Se é que existe reincarnações (sic), eu quero voltar sempre preta.
Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus
Como se nota já pelo título, “Tu no sabe inglé” (1930), do poeta cubano Nicolas Guillén, faz uso de uma variante não-padrão da língua colonial espanhola. Guillén apropriou-se do idioma e escreveu-o com marcas de oralidade próprias das comunidades afro-cubanas. O poeta estadunidense Langston Hughes, na tentativa de manter o tom do texto caribenho, fez uma tradução com o título de “Don’t Know no English” (1948) por meio do inglês afro-americano. Essa transposição é interessante por muitos motivos, pois, além do aspecto linguístico do criollo cubano transformando-se em African American English, há também uma questão intercultural, visto que o poema de Guillén brinca com o chamado Spanglish, isto é, com a mescla entre o espanhol e o inglês, fenômeno tão comum até hoje nos Estados Unidos, sobretudo em regiões de grande presença latina.
O poeta, ensaísta, dramaturgo e ficcionista estadunidense Langston Hughes é ainda pouco conhecido no Brasil. Nasceu no ano de 1901, no Missouri e muito jovem, após o divórcio de seus pais, foi morar com a avó materna, graças à qual entra em contato com as tradições orais afro-americanas, que seriam, no futuro, tão importantes em sua obra. É a partir desse momento que o futuro poeta começa a explorar, com o tom lúdico das narrativas caseiras, a relação entre oralidade, ritmo, sonoridade e ancestralidade afro-americana.
Aos treze anos, com a morte da avó, Langston Hughes voltou a morar com a mãe e, alguns anos depois, em 1920, terminou seus estudos em Ohio, sendo eleito o poeta da turma. Concluída a escola, foi morar com o pai no México apesar da conturbada relação que mantinha com ele. Em setembro de 1921, depois dessa temporada fora do país, Langston Hughes foi para Nova York e ingressou no ensino superior. Todavia, mais importante do que os estudos universitários, foi o contato com a atmosfera intensa da cidade, que seria, afinal, o palco da Renascença do Harlem, um movimento intelectual e artístico em Nova York do qual Hughes se tornou o principal expoente.
Entre 1923 e 1924, o poeta foi a Paris apesar da falta de dinheiro. Na volta para os Estados Unidos, fez amizade com outros importantes autores negros de seu tempo, como Zora Neale Hurston, Wallace Thurman e Arna Bontemps. Envolveu-se também na publicação da revista Fire!! e graduou-se pela Lincoln University. Já tendo publicado dois volumes de poesia, lançou o primeiro romance no ano de 1930, Not Without Laughter, e a coletânea de contos The Ways of White Folks em 1934. Ao final da década de 1940, tornou-se professor visitante na Universidade de Chicago no campo de estudos da poesia. Publicou também I Wonder as I Wander, sua segunda autobiografia, na qual narra, dentre outros lugares, suas viagens pelo Haiti, Cuba, Rússia, Espanha e Japão. Langston Hughes faleceu no ano de 1967 na cidade de Nova York. Na década de 1970, foi criada a medalha Langston Hughes, prêmio dedicado a autores que discutem as relações afrodiaspóricas. Dentre os laureados, encontram-se nomes fundamentais da literatura negra, tais como James Baldwin, Toni Morrison, Alice Walker, Maya Angelou, Chinua Achebe, Derek Walcott, Octavia Butler e Zadie Smith.
O segundo autor desta pesquisa é Nicolas Guillén, que nasceu em 1902. O autor estudou Direito na Universidade de Havana, mas, assim como Langston Hughes, não seguiu na carreira acadêmica que escolhera. Dedicou-se, então, à escrita. Ao longo da década de 1920, começou a publicar poesia em revistas literárias. Em 1937, Guillén afiliou-se ao partido comunista. Viajou mais tarde para a Espanha, onde cobriu a guerra civil como jornalista. No regresso para Cuba, mantendo-se firme em sua posição política à esquerda, o poeta recusou um visto para entrar nos Estados Unidos em 1941. Nesse sentido, outra semelhança de sua vida com a de Hughes foram as várias viagens que Guillén realizou. Percorreu diversos países latino-americanos e europeus, além de ter ido para a China.
Nos anos 1950, foi proibido de voltar para Cuba e apenas retornou a seu país de origem com o sucesso da Revolução Cubana em 1959. A partir de então, Nicolas Guillén foi por décadas o presidente da União Nacional de Escritores de Cuba e recebeu amplo reconhecimento por sua produção literária. O poeta faleceu em 1989 e é hoje celebrado como o grande poeta nacional cubano. Sua obra é basilar para se estudar a história afro-cubana, tendo transformado o choque colonial e a mestiçagem em temas centrais de sua lírica.
O encontro com Langston Hughes se deu em fevereiro de 1930, ano em que o autor estadunidense haveria de lançar Not without Laughter, seu primeiro romance. Hughes estava em Cuba, onde sua poesia já era reconhecida pela intelectualidade local e, com diversos interesses literários em comum, não é difícil imaginar como tenha surgido de imediato uma amizade entre os dois jovens poetas. Àquela altura, Hughes já havia publicado, dentre outras obras, os livros de poesia The Weary Blues (1926) e Fine Clothes to the Jew (1927). O poeta, que dominava o espanhol, viu as muitas semelhanças entre os blues e o jazz e o son cubano, estilo musical surgido no século XIX que mistura influências espanholas e de origem africana.
Essa conexão fez com que o laço intercultural entre os dois escritores fosse ainda mais potente. Hughes sugeriu que Guillén absorvesse em sua poesia a tradição do son, algo similar ao que o poeta estadunidense fizera com a musicalidade afro nos Estados Unidos (Rampersad, 1988). Não por acaso, a primeira coletânea de poemas de Guillén, publicada no mesmo ano em que conhecera Hughes, chama-se, justamente, Motivos de son. É possível, por isso, argumentar que houve uma virada na obra de Guillén após seu contato com Langston Hughes pois, antes disso, a poesia do autor cubano não se voltava para os ritmos afro-cubanos como ocorre após 1930. É nesse livro em que se encontra “Tu no sabe inglé”, texto que Hughes haveria de traduzir anos depois.
Língua, raça e colonialidade
Agora que já vimos um pouco da vida de Hughes e Guillén, podemos nos dedicar a uma reflexão teórica sobre o sentido da língua no contexto afrodiaspórico e, sobretudo, sobre as diversas formas de resistência que uma língua pode oferecer. Falar, assim como escrever, é um ato político. Traduzir, portanto, é um ato duplamente político, pois quem traduz não apenas decide o que será traduzido como também precisa escolher como traduzir. Não por acaso o intelectual afro-caribenho Frantz Fanon dedica o primeiro capítulo de Pele negra, máscaras brancas ao fenômeno da linguagem, concluindo que “falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (2008, p. 33).
Essa é uma consciência que tanto Hughes quanto Guillén demonstraram em sua obra. Ambos os autores estiveram atentos às consequências da longa tragédia colonial e escravocrata em seus países de origem. Marcados por múltiplas formas de discriminação, transformaram a experiência colonial e o racismo em tema fundamental em suas obras. Portanto, para pensar a forma como ambos se apropriaram de línguas europeias para elaborar um projeto antirracista e anticolonial, precisamos ter em mente como a linguagem foi fator determinante para produzir um senso europeu de humanidade durante os séculos de dominação. Em consequência disso, o padrão linguístico das metrópoles tornou-se a língua “correta” por excelência, o idioma usado para narrar a moralidade falaciosa e a beleza compulsória que se atribuiu aos corpos brancos.
O mundo, a partir de então, a despeito de suas milhares de línguas e de sua vasta complexidade cultural, passou a ser organizado em algumas poucas línguas de matriz colonial. A riqueza do Outro foi, pouco a pouco, exterminada e todo conhecimento tido como válido poderia ser apenas produzido em uma das seis línguas da modernidade europeia: italiano, espanhol e português durante o Renascimento; alemão, francês e inglês depois do Iluminismo (Mignolo, 2008, p. 289).
Para o/a leitor/a brasileiro/a, esse tema faz ecoar os estudos da antropóloga Lélia Gonzalez, cujo pensamento preocupa-se com a formação do português brasileiro de maneira revolucionária. A autora nos lembra que a língua hoje falada no Brasil é o “pretuguês”, isto é, uma mistura da língua de dominação lusitana com os vários africanismos que compuseram o país ao longo dos séculos de escravidão negra. Sendo assim, essa fala africanizada é fator fundamental na formação do Brasil e, conforme alerta a autora, estigmatizá-la é parte do processo “civilizatório” que se pretende branco, masculino e europeu (1984, p. 239).
No caso de Nicolas Guillén, o espanhol que utilizava era sua própria versão de “pretuguês”, ou seja, o criollo cubano que, assim como a versão brasileira, mesclava marcas linguísticas da diáspora africana com o sistema normativo espanhol. O intelectual haitiano Michel Trouillot dedicou-se longamente aos estudos sobre a crioulização das Américas, tendo dado especial atenção ao fenômeno da linguagem. Para Trouillot, as línguas europeias foram “crioulizadas” ao serem faladas pelos milhões de africanos escravizados no “novo mundo”. Apropriando-se dessas línguas para expressar seus sofrimentos, dores e traumas, as línguas da matriz imperial foram se modificando, adquirindo novos traços fonético-fonológicos e morfossintáticos que não existiam na Europa (2021, p. 196). Como a leitura dos poemas nos demonstrará a seguir, a reprodução, por exemplo, de marcas da oralidade no texto escrito é uma estratégia crucial para que se mantenham vivas as variantes afro do espanhol e do inglês. Dessa maneira, tornaram-se outras formas de dar materialidade ao mundo, subvertendo, por exemplo, o inglês britânico para criar o blues ou o espanhol imperial para inventar a rumba.
É essa notável criatividade que deu espaço para a resistência em terras devastadas pela presença europeia e a escravização de pessoas negras, fenômeno que marca de maneira fundamental a modernidade nas Américas. Conforme discute o historiador francês Olivier Pétré-Grenouilleau (2009) na obra História da escravidão, essa prática já existia na Mesopotâmia, no Egito Antigo e foi recorrente na Grécia e em Roma durante a Antiguidade. Aristóteles, por exemplo, chega afirmar que o escravizado não pertencia a si mesmo e que certos indivíduos foram “naturalmente” determinados à servidão (citado em Pétré-Grenouilleau, 2009). Racismo também não foi uma novidade do tráfico negreiro no século XVI. Já se pode falar de racismo, por exemplo, na época das Cruzadas, pois é um fenômeno que se altera com o tempo (Bethencourt, 2018, p. 21).
O que há de novo, então, na experiência negra escravizada nas Américas e como o uso da língua se inscreve como forma de resistência? O fenômeno inaugurado pela Europa na Idade Moderna revoluciona as práticas escravocratas já existentes, pois estabelece uma relação entre trabalhos escravos e a pele negra, de modo que “a escravidão nas Américas acabou vinculada à cor” (Pétré-Grenouilleau, 2009, p. 83). Em outras palavras, a presença europeia no continente americano fez com que o marcador da raça se tornasse sinônimo de escravidão, fazendo surgir um Outro colonial nos corpos negros. Foi a colonialidade, portanto, que inventou a noção de raça no “novo mundo” e categorizou seres humanos em diferentes grupos hierarquizados (Quijano, 2009; Almeida, 2019). Essa retórica colonial, durante as primeiras grandes navegações, foi associada à falta de fé cristã, pois aqueles que não conheciam a palavra sagrada do Cristianismo deveriam ser “salvos” pelo projeto colonial. Nas palavras de Sueli Carneiro, “os teólogos do século XVI justificaram a escravidão sob o argumento de que o africano era um homem que não tinha língua, mas dialeto; não tinha arte, mas folclore” (2011, p. 153).
Dessa forma, como sugere Gabriel Nascimento (2019) no livro Racismo Linguístico, a língua é parte fundamental da imposição de uma hegemonia colonial. Sendo o idioma a ferramenta com a qual a humanidade dá forma ao mundo, ao deslegitimar o uso de milhares de línguas indígenas e africanas, o imperialismo europeu encontrou um mecanismo perverso e muito eficaz para se afirmar como única visão de mundo possível e, por consequência, relegou os demais povos à categoria de sub-humanidade. Vale lembrar, por isso, o comentário de 1578 do cronista português Pero de Magalhães Gândavo sobre a fonética do tupi: “não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente” (2008, p.65). O etnocentrismo de sua conclusão só não chama mais atenção do que a notável ignorância linguística da análise, dado que à época José de Anchieta já estava há mais de duas décadas no Brasil impondo o catolicismo entre os nativos e aprendendo tupi.
Em linhas gerais, foi essa a importância da hegemonia linguística no processo de dominação colonial. O mesmo recurso foi utilizado em séculos posteriores, ou seja, o racismo se recicla para manter um sistema de poder e, nesse processo, a língua é a espinha dorsal da supremacia branca europeia. Nos momentos finais do século XVIII e ao longo do XIX, quando o cientificismo não mais condizia com um discurso religioso, o projeto imperialista foi baseado na ideia de “civilização”. Como define María Lugones, a missão civilizatória foi “a máscara eufemística do acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma exploração inimaginável, violação sexual, controle da reprodução e terror sistemático” (Lugones, 2014, p. 938).
Se a fé cristã fez uso da língua para demonstrar o que seria “certo” ou “errado” no início da Idade Moderna, a missão civilizatória dos séculos XIX e XX apropriou-se da mesma ideia, traçando então uma linha entre as línguas que falam os “civilizados” e as que falam os “selvagens”. Resultado desse longo processo é a associação imediata, no senso comum, entre as palavras “negro” e “escravo”, as quais pertencem ao mesmo campo semântico no imaginário coletivo graças ao sucesso do projeto europeu de colonização político-econômica, mas também mental. Houve escravizados em diversos povos, culturas e civilizações ao longo da História, porém, para o indivíduo do século XXI, pensar em escravidão ainda é, imediatamente, pensar no corpo negro e pensar na África, esse continente outro que foi saqueado em sua riqueza, sua fé e sua linguagem.
Desse modo, parte crucial da dominação europeia era convencer o africano de sua inferioridade em relação à Europa. Foi essa colonização mental que fez ser possível a manutenção tão longeva do sistema escravocrata e, por consequência, seus desdobramentos até hoje. Alberto da Costa e Silva resume essa realidade explicando que “se o negro não podia mudar a cor de pele, tinha de se comportar como se fosse branco” (2013, p. 120). A essa ideia, eu acrescento: falar como branco, isto é, procurar imitar a norma linguística da metrópole e recusar as tantas marcas de africanismos presentes nas línguas faladas ao longo do continente americano.
Como se vê, a formação da sociedade ocidental moderna foi baseada na ideia de que o negro era uma criatura sem fé nos primórdios da empreitada colonial, um selvagem sem civilidade na era industrial e, contemporaneamente, como herança dessa tradição histórico-discursiva, temos o negro, no senso comum, representado, em muitos contextos, pela falta de bom gosto, beleza, valores morais e caráter. Um dos principais elementos que conecta todas essas imagens produzidas pelo senso comum é a língua, esse elástico constantemente interditado enquanto não for embranquecido.
Langston Hughes traduzindo Guillén
Observemos a seguir o poema original e a tradução de Hughes:
Tu no sabe inglé
Con tanto inglé que tú sabía, La mericana te buca, Bito Manué, tú no sabe inglé, No te enamore ma nunca (Guillén, 1980 [1930]) |
Don’t Know No English
All dat English you used to know, ‘Merican gal comes lookin’ fo’ you Li’l Manuel, you don’t know no English Don’t fall in love no mo’, (Guillén, 1948) |
Já no título de Guillén, chama a atenção do leitor a ortografia propositalmente fora da norma do espanhol. A forma linguística, nesse caso, potencializa e se entrelaça com o conteúdo, uma vez que o assunto do poema é justamente a competência linguística do interlocutor. É nessa metalinguagem que a criatividade da crioulização caribenha ganha forma. Dirigindo-se a um “você” cujo referente recebe um nome próprio na primeira estrofe, a voz lírica traz indiretamente a relação entre língua e poder já no nome do texto, tendo em vista que não saber inglês é o problema em torno do qual se desenvolvem todas as estrofes do poema.
Vale lembrar, por isso, que o tema do letramento é recorrente nas literaturas afrodiaspóricas. Apenas para ficarmos com alguns exemplos, o abolicionista Frederick Douglass escreveu que “o conhecimento torna uma criança inadequada para a escravidão” (Douglass citado em Davis, 2016, p. 108). Ainda nos Estados Unidos, há o caso de Solomon Northup e o indispensável diário 12 anos de escravidão, no qual o tema da educação formal aparece com frequência como possível fuga do cativeiro. Esses são apenas alguns exemplos de uma longa tradição de autores e autoras negras que tematizam a necessidade da educação e do domínio da língua como formas de emancipação ou ascensão social, uma lista na qual poderíamos acrescentar Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Lima Barreto e tantos outros.
No caso do poema de Guillén, não falar inglês é, portanto, a questão que move o eu lírico a aconselhar, ao final do texto, que Manuel não se apaixone mais. O tom de sátira da tradição romântica traz ao poema uma certa leveza, ainda que inscrito num tema trágico da experiência negra em países colonizados. No lugar dos amores impossíveis e das donzelas inalcançáveis que povoaram a literatura oitocentista, o poeta cubano retrata um encontro que jamais se materializa pelo simples fato de Manuel não falar inglês. Em outras palavras, Guillén parece eleger o tema de um homem cubano que não fala inglês para tematizar a falta de acesso à instrução formal das populações negras periféricas. Ao mesmo tempo, destaca assim a influência cultural anglo-americana sobre a ilha caribenha. Langston Hughes, aliás, fez algo semelhante em sua obra. Embora tenha tratado o racismo e a segregação com extrema violência na juventude, foi pouco a pouco optando por uma abordagem mais leve e sarcástica para esses temas, culminando na publicação de Laughing to Keep from Crying (em tradução livre, Rir para não chorar). Essa coletânea de contos foi lançada originalmente em 1952 e já no título demonstrava a virada na forma como Hughes denunciou essa grave e constante problemática, causa social da qual nunca abriu mão.
O primeiro verso do poema abre a estrofe com o tempo verbal pretérito, indicando um conhecimento que o interlocutor detinha, mas agora não consegue mais utilizar. No verso seguinte, descobrimos o nome desse você ambíguo já anunciado pelo título: Bito Manué (Victor Manuel) vertido para o inglês por Langston Hugues como Li’l Manuel. Como se nota, a questão fonético-fonólogica é crucial nessa leitura comparada, uma vez que essa camada linguística é, na maioria dos casos, o componente que primeiro se destaca nos africanismos em línguas coloniais europeias. Por esse motivo, no que diz respeito à variação da norma, tanto o criollo cubano como o inglês afro-americano possuem diversos casos de supressão ou troca de fonemas. No caso do português brasileiro, isso também pode ser facilmente ilustrado, como no ensaio de Lélia Gonzalez em que cita o vocábulo Framengo a fim de demonstrar que a troca do L pelo R nada mais é do que herança linguística africana, de modo que reforçar a ideia de “erro” é parte de um projeto ainda hoje presente de embranquecimento nacional (1984, p. 238).
Assim, o espanhol afro-cubano de Guillén suprime sons em final de palavra, como Manuel que se torna Manué, inglés que se torna inglé, decir que se torna desí e yes que se torna ye. Como poderia, então, Langston Hughes transpor essa característica para o inglês estadunidense e seus africanismos? O poeta do Harlem optou também por suprimir um fonema em Li’l Manuel para reproduzir a forma como a palavra inglesa little costuma ser pronunciada no contexto da diáspora. No entanto, é interessante perceber que, em vez de traduzir os fonemas suprimidos por outros fonemas suprimidos, Hughes opta por escrever a estrofe em inglês modificando fonemas no lugar de cortá-los. É o que se observa em that, que vira dat.
Na segunda estrofe, é evocada a presença de uma mulher estadunidense que busca Manuel, cuja falta de domínio do inglês o impossibilita de falar com ela. Nesse momento, vem à tona, além das inovações linguísticas próprias de comunidades afrodiaspóricas, o tema da influência cultural estadunidense sobre os demais países do continente. Manuel conhece “etrái guan y guan tu tri”, ou seja, “strike one and one-two-three”, termos provavelmente aprendidos ao jogar ou assistir às partidas de beisebol dos Estados Unidos. Essas palavras, no entanto, não são o suficiente para se comunicar com a mulher, de modo que ao hispanofalante resta apenas a possibilidade de afastar-se. Essa ironia cômica em torno de um amor impossível dá a Guillén um potencial crítico de, em certa medida, retomar a tradição romântica do século anterior com um sarcasmo que a desconstrói.
Para traduzir os versos da segunda estrofe, Hughes opta pela supressão de diversos fonemas. As palavras ‘Merican, lookin’, fo’, an’ e jes’ são desvios propositais da norma dos vocábulos American, looking, for, and e just, de modo a reproduzir em inglês o tom do espanhol que o poeta cubano usara no original. É interessante perceber, ainda, que, além do aspecto fonético-fonológico evidente em todas as estrofes, Langston Hughes emprega também um recurso da morfologia para realizar uma transposição tão fiel quanto possível do poema original. É o caso do segundo verso da segunda estrofe, em que traduz y tú le tiene que huí (y tú le tienes que huir) como and you jes’ runs away (and you just run away). Aqui, o tradutor inclui o morfema -s da terceira pessoa que contraria a concordância verbal padrão do inglês, potencializando por meio da forma o sentido do texto de Guillén. Como se percebe, em espanhol é suprimida a marca morfológica de tienes e, para encontrar um correspondente no inglês, Hughes acrescenta o morfema que não se encontra na variante padrão do verbo.
Nas duas últimas estrofes, o eu lírico mais uma vez traz Bito Manué com o vocativo que estabelece a interlocução. Dessa vez, repete o título do poema, enfatizando que o homem não sabe inglês e conclui com um conselho: não se apaixone nunca mais, já que não fala inglês. A despeito do invólucro humorístico dos versos, Nicolas Guillén traz à tona uma questão crucial sobre a influência político-cultural dos Estados Unidos no Caribe e na América Latina como um todo. A jovem estadunidense sem nome pode ser lida, então, como uma metonímia dessa potência inalcançável para a imensa maioria dos latino-americanos. Langston Hughes, portanto, conseguiu verter “Tú no sabe inglé” com sucesso para a língua inglesa. Afinal, assim como uma motivação para o poeta cubano, a relação entre língua, raça e poder foi um tema fundamental para o estadunidense, expressão que retratou na poesia, na prosa de ficção e no teatro.
Por fim, encerrando esta breve reflexão sobre os dois poetas, é importante frisar que pensar as marcas fonético-fonológicas e morfossintáticas das variantes afrodiaspóricas do inglês, do espanhol, do português ou de qualquer outra língua colonial vai além da investigação linguística, por si só fascinante. Trata-se, na verdade, de garantir a dignidade de todas as falas, cores, sotaques e expressões, pois, sendo a língua o tecido com o qual damos materialidade ao mundo, a noção excludente de certo ou errado funciona como perpetuação da lógica colonial de segregar para dominar. Eu concordo com Fanon ao dizer que “existe na linguagem uma extraordinária potência” (2008, p. 34). Por isso, iniciativas de respeito e valorização das várias formas de falar um idioma sejam talvez o primeiro necessário passo para reconhecer a potência que há alguns séculos tantas línguas têm sido proibidas de exercer.
* Gabriel Chagas é doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorando em Estudos Culturais e Literários na University of Miami, onde atualmente leciona Língua Portuguesa e Estudos Culturais Luso-Afro-Brasileiros. Recebeu o 1° lugar do Prêmio Antonio Candido de melhor dissertação de mestrado pela ANPOLL.
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