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Dinamismo e crise dos museus de arte do Brasil | de Moarcir dos Anjos

A missão dos museus de arte é, de acordo com o entendimento consagrado na literatura técnica, coletar, preservar, estudar e divulgar uma determinada produção artística. A mutabilidade das estratégias criativas contemporâneas – freqüentemente baseadas em processos e não em produtos; por vezes perecível ou intangível -, tem posto à prova, contudo, o desejo classificatório e inerentemente redutor que perpassa instituições museológicas, forçando-as a diversificar e a ampliar o conjunto de ações que tradicionalmente as definem. Alguns críticos argumentam, por esse motivo, que os museus deveriam atuar de maneira similar a laboratórios científicos, estabelecendo um compromisso inequívoco com oprocesso inventivo do artista e tornando-se, por conseqüência, instituições que constantemente testariam os próprios limites de atuação. Outros preferem, ainda, definir os museus como instituições discursivas, para as quais os artefatos artísticos que colecionam e exibem seriam quase somente pretextos para a fala transdisciplinar e culta, enunciada quer por meio de exposições, quer por meio da pesquisa. Essa agenda reflexiva dos museus contemporâneos contrasta vivamente, entretanto, com suas agendas de mostras temporárias, as quais, com freqüência crescente, mais divertem que intrigam. Nessas mostras, que regularmente enfocam, de modo ligeiro, um tema ou assunto de interesse corrente, a pesquisa é quase nenhuma e a experimentação cede espaço à mera confirmação das expectativas do público, criadas em um ambiente cultural que opõe o espetáculo ao pensamento.

Essas múltiplas e contraditórias ações que os museus contemporâneos realizam requerem, obviamente, temporalidades distintas de atuação: além da conservação física e simbólica de um acervo ao longo do tempo, é preciso ter disponibilidade para a investigação sem fim certo e, igualmente, para o entretenimento de fruição imediata. E a cada uma dessas temporalidades se associa, é evidente, uma estrutura física, organizacional e curatorial diferente. [1]

Nesse contexto diversificado e pouco conclusivo, talvez seja mais adequado falar de museus como instituições que, tenham ou não essa intenção explicitada, formam, por meio de ações diversas – exposições, publicações, residências, cursos, eventos -, o repertório simbólico com que suas audiências constroem um olhar sobre as artes visuais e criam referências para medir e julgar (em termos estéticos, históricos, políticos) a arte feita por seus contemporâneos. Nos países de tradição museológica assentada (França, Inglaterra, Estados Unidos, México, entre outros), as demandas recentes feitas sobre os museus – sejam aquelas de natureza reflexiva e densa, sejam as voltadas à diversão ruidosa e rasa – foram gradualmente incorporadas pelas instituições mais complexas – ainda que sob o risco de perderem uma identidade lentamente construída – ou, alternativamente, forçaram a melhor definição de responsabilidades entre museus, centros culturais, universidades e espaços autônomos, diversificando a malha institucional voltada às artes visuais. Em outros países, aonde os museus não chegaram a se constituir como parte orgânica de um sistema cultural que incorpora e transmite valores e crenças, aquelas demandas têm causado neles apenas um dinamismo efêmero, ao mesmo tempo em que acentuam, de modo menos ou mais velado, suas deficiências.

O caso do Brasil é paradigmático dessa segunda situação, em que vitalidade momentânea e carência estrutural se reforçam, em uma combinação peculiar de processos de curta e de longa duração. Um indicador claro daquele dinamismo é o fato de que vários museus foram inaugurados ou re-qualificados em todo o país desde meados da década de 1990. [2]

Nesse mesmo intervalo de tempo, ademais, uma quantia inédita de recursos foi investida em suas programações (quase integralmente para custear exposições temporárias e itinerantes), atraindo um montante de público até então desconhecido para o segmento. É justamente nessa história de aparente êxito, entretanto, que, paradoxalmente, também se encontram as principais causas da crise que os museus enfrentam no Brasil. Crise que não seria somente devida a administrações ruinosas ou resultado de litígios políticos, embora ambas as causas estejam presentes em situações específicas. Crise que possui caráter sistêmico e que faz com que a maior parte dos museus de arte do país não possua projetos consistentes e flexíveis de gestão, levando-os, em última análise, a fracassar como instituições capazes de integrar, de forma minimamente equânime, atenção sobre um acervo, ações de reflexão e eventos voltados ao entretenimento.

O entendimento dessa peculiar situação que ata sucesso e fracasso requer destacar que a expansão quantitativa e territorial dos museus brasileiros e o simultâneo crescimento do volume de recursos que passou a circular nessas instituições dependeram, quase que totalmente, do modelo de financiamentopúblico da cultura adotado no país desde o início da década de 1990, o qual se ancora na renúncia fiscal das empresas que dele participam e na prerrogativa destas escolherem – em função de seus interesses corporativos – os projetos culturais beneficiários desses recursos. Foi esse modelo que, direta ou indiretamente, estimulou a criação ou a reestruturação de museus em várias partes do Brasil, de modo que eles pudessem se inserir em um circuito de exposições temporárias coordenadas por produtoras de eventos que articulam, com maior ou menor êxito, interesses de artistas, de curadores e de departamentos de marketing de empresas. Circuito que teve amplitude nacional pela necessidade de amortizar os custos fixos de produção dessas exposições, de obter o máximo de benefícios concedidos pela legislação federal que regula o sistema de financiamento (reservado apenas a mostras itinerantes) e de veicular, em várias capitais do país, as marcas das empresas patrocinadoras das mostras. [3]

São diversas as implicações da constituição dessa rede de interesses. Em primeiro lugar, é razoável afirmar que há, nesse modelo, uma confluência de benefícios virtuosa, pois permite (no melhor dos casos) uma ampliação do repertório visual que é posto à disposição dos habitantes de várias cidades antes colocadas à margem da circulação dessas informações. Em algumas situações, as exposições temporárias em museus são de tal forma incorporadas simbolicamente pelas comunidades a qual servem – possuindo, portanto, importância formativa e afetiva para o seu público – que é razoável considerar as obras nelas incluídas como fazendo parte de um “acervo” simbólico das instituições que as abrigam, ainda que de veloz circulação e sem quaisquer implicações patrimoniais. Em segundo lugar, porém, essas exposições raramente estabelecem relações históricas ou conceituais com as coleções permanentes dos museus onde se realizam, deixando de contribuir para o seu melhor conhecimento. Em terceiro lugar, ademais, não repercutem na qualificação dos quadros técnicos das instituições, posto que, quase como norma, os museus apenas cedem (ou alugam) as dependências físicas necessárias à sua realização. Em quarto lugar, por fim, esse modelo faz os museus se acomodarem à relativa facilidade com que podem programar exposições já concebidas por outros e com patrocínio assegurado junto a empresas integradas ao sistema de financiamento existente, eximindo-se da responsabilidade de tornarem-se, eles mesmos, formuladores e enunciadores de um discurso crítico em relação à produção artística contemporânea.

O processo de adaptação dos museus brasileiros às transformações recentes dos padrões de criação, reflexão e exibição das artes visuais causa e mantém, portanto, um desajuste sistêmico. Se suas funções são efetivamente ampliadas – com isso atraindo, inclusive, um público que antes não os freqüentava -, tais mudanças tornam deficiências antigas mais evidentes. Elas não são capazes de resolver problemas museológicos básicos de formação, catalogação, preservação, pesquisa e divulgação de acervos e tampouco dotam as instituições de mecanismos continuados de interação efetiva com a produção artística em curso. Como resultado, os museus brasileiros, em regra, não atuam como interlocutores críticos dos artistas nem confrontam o olhar e a inteligência de seu público; passivos e auto-satisfeitos, tão somente frustram os criadores e apaziguam sua audiência. [4]

Por mais que se argumente a favor do modelo que dinamizou os museus brasileiros desde o início da década de 1990 – sob critérios que oscilam entre a intenção justa de democratizar o acesso a bens culturais e o preconceito que dissocia lazer e aprendizado -, é certo que ele não é capaz de criar soluções para o atendimento de necessidades que escapem ao imediatismo que o fundamenta.

A situação das instituições museológicas brasileiras sugere, assim, que o Brasil chegou à contemporaneidade tardiamente. Em um momento em que as demandas que o campo das artes coloca para os museus são aproximadamente as mesmas para qualquer país, há uma pronunciada diferenciação entre a capacidade sustentada de resposta das instituições brasileiras a esses requerimentos e a capacidade de adaptação de instituições situadas em países que há muitas décadas estabeleceram um sistema museológico em bases firmes. Não há, entretanto, como atualizar um sistema de artes tardio de modo gradual, o que o torna conceitualmente distinto de um sistema atrasado. Em uma época de internacionalização do capital econômico e simbólico, não há progressão qualquer a ser feita, pois a simultaneidade é a regra. Não é mais possível esperar a lenta consolidação de uma rede institucional fundada no zelo por acervos para só então iniciar o atendimento de outras demandas igualmente relevantes. O fundamental é encontrar os meios adequados (e inovadores) de financiamento e de gestão de museus para lidar com essa condição tardia, não fazendo dela impedimento para assumir a responsabilidade frente às necessidades do meio das artes do país.

Para que os museus adquiram, desenvolvam ou recuperem a capacidade de formulação de um projeto institucional abrangente, entretanto, é necessário pensar em estratégias voltadas à sua profissionalização. Sem um corpo de funcionários com competências específicas nas áreas de curadoria, museologia, educação e captação de recursos, dificilmente os museus brasileiros vão poder escapar de um circuito de exposições imposto por patrocinadores e se consolidar como espaços não só de entretenimento, mas também, e principalmente, de pesquisa e de experimentação sobre seu acervo e sobre a produção em curso. Essa alteração também depende, contudo, de que o sistema de financiamento público de exposições (crucial para o dinamismo que esse circuito apresentou nos últimos anos) deixe de ser episódico e quase sempre mediado por terceiros para se tornar permanente e vinculado diretamente às instituições. Com equipes melhor qualificadas e formas adequadas de financiamento (incluindo, evidentemente, controle social sobre a utilização de fundos públicos), os museus brasileiros poderiam, idealmente, desenvolver séries articuladas de mostras onde focos de atuação seriam estabelecidos e privilegiados, fortalecendo, conseqüentemente, o seu papel formativo. Em vez de apenas se inserirem em um circuito de exposições existente e homogêneo, o alargariam a partir de perspectivas diferentes.

Parte fundamental de um tal projeto institucional autônomo é a concepção e a implantação gradual – à medida que mecanismos de financiamento privados ou públicos sejam criados em resposta às novas demandas que essa autonomia engendra – de um modelo de formação visual que não dependa quase exclusivamente de exposições temporárias feitas com acervos emprestados, mesmo que formatadas a partir dos museus e voltadas para as necessidades das comunidades que os freqüentam. A dominância e a persistência desse tipo de exposição claramente indicam a incapacidade da sociedade brasileira de formar acervos públicos e atualizados até mesmo das produções de seus mais destacados criadores. Por mais relevantes que tenham sido e ainda sejam para a atualização do olhar dos visitantes, é necessário que as exposições temporárias cedam aos acervos permanentes dos museus o lugar de primazia que hoje ocupam, passando a desempenhar, no futuro, um papel especulativo ou de releitura dos juízos de valor assentados por aquelas coleções. Somente assim será possível fazer com que, no correr do tempo, os museus justifiquem, em termos menos defensivos do que aqueles ainda empregados, o porquê de serem, afinal, instituições sociais importantes.

Moacir dos Anjos é PhD em economia pela Universidade de Londres,pesquisador da Fundação Joaquim Nabucoe diretor do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães – MAMAM. Publicou o livro Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, além de textos críticos sobrearte contemporâneaem revistas acadêmicas, catálogos e livros.

NOTAS


[1] Sobre o debate acerca do perfil que os museus deveriam possuir na contemporaneidade, ver Wade, Gavin (org.), Curating in the 21st Century, Walsall, The New Art Gallery Walsall, 2000; Serota, Nicholas, Experience or InterpretationThe Dilemma of Museums of Modern Art, Londres, Thames & Hudson, 2000; Schubert, Karsten, The Curator’s Egg, Londres, One-Off Press, 2000; Thea, Carolle (org.), foci. Interviews with ten international curators, Nova York, Apexart Curatorial Program, 2001; Marincola, Paula (org.), Curating Now: Imaginative Practice/Public Responsibility, Philadelphia, Philadelphia Exhibitions Initiative, 2001; Noever, Peter (org.), the discursive museum, Ostfildern-Ruit, Hatje Cantz Publishers, 2001; Sans, Jérôme e Sanchez, Marc (orgs.), What do you expect from an art institution in the 21st century?, Paris, Palais de Tokyo, 2002.

[2] Entre outros, foram inaugurados o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Recife), o Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (Fortaleza), o Museu Vale do Rio Doce (Vila Velha), o Museu de Arte Contemporânea de Niterói e o Museu Oscar Niemeyer (Curitiba). Embora com atuação já consolidada, foram requalificados, física e gerencialmente, o Museu de Arte Moderna da Bahia (Salvador), o Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte), o Museu de Arte Moderna de São Paulo e a Pinacoteca do Estado de São Paulo.

[3] Esse modelo de financiamento público da cultura também permitiu, ao longo das décadas de 1990 e 2000, a criação e a manutenção de uma rede de centros culturais ligados a instituições financeiras que reinvestem recursos fiscais devidos à Receita Federal (potencialmente destinados a fins diversos) em projetos de exposição realizados em seus próprios espaços. Independentemente do maior ou do menor mérito das atuações desses centros culturais (entre outros, o Centro Cultural Banco do Brasil, o Centro Cultural Santander e o Instituto Itaú Cultural), a utilização de recursos públicos para atender, prioritariamente, interesses privados de divulgação empresarial evidencia a falta de definições estratégicas daquele modelo e, portanto, seu descompromisso com as necessidades que o conjunto do sistema de artes brasileiro – do qual os museus são parte fundamental – possui na contemporaneidade.

[4] A rápida disseminação, na década de 1990, de espaços de criação, reflexão e exposição de arte contemporânea geridos por artistas – entre vários outros, Agora, Capacete (Rio de Janeiro), Torreão (Porto Alegre), Alpendre (Fortaleza) – reflete, em parte ao menos, a incapacidade dos museus atenderem suas demandas específicas.