Ano XVIII 01
vale a pena ler de novo
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GUIMARÃES ROSA: ENTREVISTA INÉDITA, POR GRAÇA COUTINHO

Guimarães Rosa é conhecido por não dar entrevistas. Durante sua vida, mostrou-se exímio fugitivo de qualquer jornalista ou pesquisador. Essa entrevista, que encontrei numa visita à Graça Coutinho no Vale das Videiras, tornou-se, então, uma joia de acervo. Não que Graça Coutinho tenha tido alguma estratégia especial para fazer Guimarães ceder a uma entrevista. Foi simples. Graça era filha de Afrânio Coutinho, um intelectual de ponta que introduziu o New Criticism no Brasil e grande amigo do escritor, que sempre a levava ao Itamaraty em suas visitas a Guimarães. Aos 15 anos, Graça teve que fazer um trabalho de colégio com um autor brasileiro, e lembrou de procurar Guimarães, porque lhe parecia mais fácil. Essa é a origem desta raríssima entrevista com o gigante Guimarães Rosa feita por uma adolescente de 15 anos. Senti, na hora, que tinha de compartilhar isso com os leitores da Revista Z. Está aí. Se as perguntas são amadoras, as respostas traduzem em vários pontos a grandeza de nosso escritor maior.
Heloisa Teixeira
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo

Mobilizada pelos 80 anos de Guimarães Rosa, lembrei-me de uma entrevista que havia feito com o grande escritor brasileiro nos tempos de colégio. Eu tinha então 15 anos e o privilégio de conhecê-lo e de privar de seu convívio nas visitas que fazia a meu pai.

Tendo que entrevistar o escritor brasileiro para um trabalho de estágio de português, escolhi imediatamente a grande figura de Guimarães Rosa, que muito admiro e a quem me ligam laços afetivos muito fortes, pois ele me honra com sua amizade.

Fui encontrar o grande escritor, que consentiu em conceder-me a entrevista no seu gabinete do Palácio do Itamarati ou Ministério das Relações Exteriores, pois, como embaixador brasileiro, ocupa o posto de escritor de departamento de fronteiras.

O seu gabinete de trabalho tem as paredes todas recobertas de mapas de nossas fronteiras. Recebeu-me, como sempre, com a maior simpatia, pondo-me logo à vontade. Não posso esconder que estava muito encabulada, pois aquela seria a minha primeira experiência nesse tipo de trabalho, sem falar em que estava diante de um dos maiores escritores brasileiros de nosso tempo e de todos os tempos, criador de um universo de ficção autenticamente brasileiro.

Mas consegui vencer a minha inibição e passei a formular ao escritor as minhas perguntas, a que ia respondendo de mistura com palavras amáveis e relatos de episódios de sua vida de diplomata e escritor.

Graça Coutinho: Diplomata e escritor ao mesmo tempo, como prefere o senhor viver, como escritor ou como diplomata?

Guimarães Rosa: Como escritor (mas escritor retraído).

GC: Onde prefere viver, no estrangeiro ou no Brasil?

GR: No Brasil sempre! Só no Brasil me sinto em perfeito equilíbrio psicológico.

GC: Na sua vida de diplomata, que países conheceu? E quais os de que mais gostou?

GR: Morei quatro anos e meio na Alemanha, dos quais três durante a guerra; dois anos na Colômbia (Bogotá) e três anos em Paris. Tive posto diplomático nestes lugares. Visitei também muitos países da Europa. Gosto da Alemanha, da França, mas meu carinho especial é com Portugal, que é o encanto, e com a Itália, que é deslumbrante.

GC: Que cidade mais o encantou no mundo?

GR: No Brasil é Salvador e o Rio de Janeiro, e no mundo é Florença, Roma e Veneza.

GC: Descobri há pouco tempo que o senhor é médico. Por que deixou a carreira?

GR: Ora, porque eu queria ir a fora e conhecer o mundo. Deixei a medicina para fazer o concurso para o Itamarati e talvez, inconscientemente, para me dedicar à literatura.

GC: Chegou a clinicar?

GR: Cheguei. Formei-me em fins de 1930 e fui para a cidadezinha no interior de Minas chamada Itaguara, onde cliniquei durante dois anos. Era médico da roça. Ganhava para ir às fazendas. Em 1932, houve a revolução e fui chamado para prestar serviços médicos. Fiz concurso para capitão médico. Em começo de 33, fui mandado para o 9º Batalhão de Infantaria, como capitão médico em Barbacena. Em 34, fiz concurso para o Itamarati, tendo sido nomeado em julho desse ano. Fui nomeado cônsul de terceira classe e fiquei três anos e meio no Brasil; depois, fui nomeado cônsul de segunda classe e fui para Hamburgo, onde permaneci até 1942, quando o Brasil rompeu relações com a Alemanha.

Mais tarde fui para Bogotá, como segundo secretário da embaixada. Em 44, retornei ao Brasil, onde fiquei como chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura.

Em 46, fui a Paris fazendo parte da delegação do Brasil à Conferência da Paz. Em 48 fui como primeiro secretário da Embaixada do Brasil para Paris. Lá fui promovido a conselheiro da Embaixada. Em 51, voltei para o Rio, a fim de chefiar novamente o gabinete do ministro.

Daí por diante, permaneci no Brasil, como ministro de segunda e agora de primeira classe (embaixador). Desde 1956 chefio o serviço de marcação de fronteiras.

GC: Recolheu da vida de médico alguma experiência para o escritor?

GR: Tudo o que nós vivemos serve de experiência. As lembranças misturam-se em nosso subconsciente e afloram mais tarde na obra.

GC: Quando começou a fazer literatura? Que o influenciou neste sentido?

GR: Comecei quando vim para o Rio, em 34. Em 35, escrevi um livro de poemas Magma, que obteve o prêmio da Academia em 36 e ficou inédito até hoje. Em 37, escrevi Sagarana, publicado somente em 46. Comecei a escrever movido pela saudade do interior de Minas.

GC: Quanto tempo levou escrevendo Sagarana?

GR: Escrevi em sete meses e retoquei-o em quatro. Da mesma forma Grande Sertão, apesar de muito maior.

GC: Sei que a publicação deste livro despertou um grande sucesso. Como o recebeu? E como se sentiu diante do êxito extraordinário de seu livro?

GR: Fiquei muito entusiasmado. Quem nunca comeu melado quando come se lambuza. Depois me fui acostumando.

GC: Como costuma trabalhar, e a que horas?

GR: Trabalho sem parar. Quando já tenho as ideias prontas. Prefiro, no entanto, trabalhar à noite.

GC: Gosta da vida social?

GR: Detesto. Gosto muito das pessoas, mas tenho horror à vida social. Não tenho paciência para aturá-la. Não gosto de frequentar a vida social, tenho logo vontade de escrever. Quando ando de ônibus estou sempre planejando algum trabalho. Concatenando ideias. Prefiro muito as montanhas ao mar. O campo agrada-me imensamente.

GC: Como ficcionista, qual a sua obra de que mais gosta?

GR: Eu gosto mais da história “Campo geral”, a primeira novela do livro Corpo de baile. Toda vez que releio esta história, enchem-me os olhos de lágrimas. Ela é assim mais forte do que eu, pois comove-me.

GC: O senhor trabalha lentamente as suas obras?

GR: Trabalho, porque eu retoco muito. Trabalho com “vagareza rapidez”, ou “rápida lentidão”.

GC: Quais os seus planos para o futuro? Tem algum livro em preparo?

GR: Eu não faço nunca planos. Mas, no momento, tenho um livro de novelas em preparo. Estou agora colaborando no jornal médico Pulso, que circula entre os médicos do Brasil inteiro.

Escrevo neste jornal contos de página e meia. Numa semana sai um artigo meu, na outra, um do Carlos Drummond de Andrade.

Acho o conto um excelente exercício de despojamento. Cada palavra tem de ser justa como um bordado delicado.

GC: Como vê o êxito de suas obras no estrangeiro, em traduções?

GR – Inesperado, uma surpresa que muito me comove, mas tive a sorte de ter excelentes tradutores. Vai sair este ano Sagarana em inglês, nos Estados Unidos, e a tradutora consultou-me muito.

GC: Como concilia o seu trabalho de diplomata e de escritor?

GR: Tirando muito o meu tempo de divertimento. Sacrifico os fins de semana, feriados e fico até tarde à noite.

GC: Quais os escritores brasileiros do passado e do presente que mais admira?

GR: Acho muito difícil responder assim, pois não tenho fanatismo por nenhum escritor do passado. Todos ensinam muita coisa. Machado de Assis, por exemplo, José de Alencar, Pompeia, Aluísio Azevedo. Ainda Bernardo Guimarães, o presente, faria uma longa lista. Entre muitos, poderia mencionar Monteiro Lobato, José Lins do Rego, não tenho preferência marcada. Na poesia, poderia citar Gonçalves Dias, Castro Alves, Alphonsus de Guimaraens e Bilac.

GC: Acha que a literatura brasileira já pode ser encarada como original e autônoma?

GR: Quase. Está fazendo força para isso.

GC: Qual o romance que mais admira na literatura brasileira?

GR: O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e D. Casmurro, de Machado.

GC: Quais os livros da literatura universal que mais admira?

GR: A Divina Comédia (Dante), Os Irmãos Karamazov (Dostoiévski), A Ilha do Tesouro (Stevenson), Macbeth (Shakespeare), D. Quixote (Cervantes), Os Miseráveis (Victor Hugo), Dr. Fausto (Thomas Mann), A Relíquia (Eça de Queirós), Contos (Andersen).

Citei 9, pois é meu número de sorte. Ou então 7. Sou religioso e supersticioso.

GC: Qual a obra de arte universal que mais o impressionou?

GR: O que muito me impressionou foram: os quadros de Tintoretto, em Veneza, todos os de Velázquez e os quadros de Tiepolo.

GC: Que brasileiro mais o impressionou no passado como figura humana?

GR: Borba Gato – bandeirante paulista, genro de Fernão Dias Paes.

GC: Dos personagens da sua obra, qual o de que mais gosta?

GR: Maria da Glória (Corpo de baile), Miguilim (Corpo de baile), Manuelzão (Corpo de baile), Zé Bebelo (Grande Sertão), Manuel Fulô (Sagarana).

GC: Como se sentiu com a eleição para a Academia Brasileira de Letras?

GR: Honrado e feliz, como todo escritor teria que sentir.

Antes de me despedir, Guimarães Rosa me mostrou as diversas edições de suas obras em alemão, italiano, inglês e francês.

Estava terminada a entrevista, e eu me retirei encantada com o nobre ambiente daquele palácio e com a nobreza daquele grande espírito.


* Graça Coutinho é artista plástica.