Ano XVIII 01
resenha
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PAIXÃO SIMPLES. SIMPLES?

Passion simple

Annie Ernaux abre a introdução de Écrire la vie, edição em um volume do conjunto de sua obra publicada até 2011, com a frase: “Escrever é um presente e um futuro, não um passado.” O futuro estava próximo, o prêmio Nobel, recebido em dezembro de 2022. O passado se torna presente pela escrita que olha para o futuro. Annie Ernaux olha para frente, não para trás.

O passado, nas narrativas que se ocupam fundamentalmente da própria vida, não são memórias, nem autobiografia. A razão fundamental para serem narrativas originais em seu formato está em se constituírem no que a própria autora chama de “biografia impessoal”. Os melhores recursos do ficcional podem estar presentes, assim como as observações sociológicas, a avaliação política do contexto em que os fatos da vida acontecem. Quando narra sua vida pessoal, as relações familiares, quando fala da mãe trabalhadora ou do pai que falava patois mortos, é a memória social da filha do povo que aparece. As obras que tratam de seu percurso intelectual traçam a trajetória da jovem do interior da França que precisa ir para Paris, para os grandes centros para se transformar na escritora que é.

Annie Ernaux prova que o pessoal, na vida de uma mulher, é político. A narrativa da violência do aborto clandestino a que se submete, memória mais do que pessoal, torna-se leitura tão importante quanto o discurso que Simone Weil faz em 1974, diante de um parlamento composto de apenas 2% de mulheres eleitas, em defesa da legalização do procedimento. O acontecimento, no entanto, tornou-se leitura ainda mais importante num Brasil que continua condenando o aborto.

Partilhamos das leituras combativas, dos relatos da filha de operários, dos testemunhos das desigualdades da ordem social, e tudo nos parecia coerente, quando nos chega a tradução de Passion simple (Paixão simples, trad. Marília Garcia, São Paulo: Fósforo, 2023).

O título é o primeiro desafio que se impõe à competente tradutora, a poeta Marília Garcia. Trata-se de uma simples paixão, que poderia se diferenciar de outras, mais complicadas? É apenas paixão, sentimento que exclui outros, como o amor? Melhor mesmo foi ter ficado com a complexa simplicidade: Paixão simples.

Atribuir a uma mulher, ou a qualquer pessoa, uma identidade fixa é sempre um erro. Os estudos biográficos frequentemente cometem tal equívoco, sobretudo quando os autores são incluídos nos grandes cânones, nacionais ou internacionais.

No pequeno romance, especialmente contundente por sua concisão, a mulher é outra. Nada do passado importa, as questões políticas desaparecem, nem família nem trabalho vêm ao caso. Só o que importa é a experiência de uma paixão arrebatadora. “Sentia que estava no direito de me opor a tudo o que atrapalhasse uma entrega sem limites às sensações e narrativas imaginárias da minha paixão.”

Um diplomata estrangeiro, casado e que a seu país deverá voltar, captura o corpo e o cérebro da mulher de meia idade, e a partir daí não existe espaço para nada mais em sua vida senão o estar com ele.

Andar pela cidade, fazer compras, escolher um vestido, assistir a um filme, tudo só tem sentido ao se relacionar com a paixão vivida. Desejá-lo é esperar pelo telefonema, pelo barulho do carro que chega, pelo sinal à porta. Não importa quanto tempo espere, desde que o homem chegue. E os corpos se encontrem, o gozo se repita. “Gastávamos um capital de desejo.”

Roupas e copos se espalham pelo chão como em músicas românticas, cenas de filmes de sessão da tarde, talvez com trilha sonora de Roberto Carlos. O intrigante para o voyeur que atravessa as páginas do romance é que nada soe brega, vulgar. Ao contrário, quem lê se reconhece timidamente em alguma lembrança.

Nada se oculta no relato da paixão: na presença, o sexo, na ausência, a masturbação.

A cada êxtase de preenchimento se sucede a dor da falta que a ausência deixa. Porque é paixão será efêmera e o amante se vai. Fica a escrita, e é aí que Annie Ernaux mostra sua genialidade, a escritora raríssima, só ombreada mesmo por outra francesa, Marguerite Duras.

Os franceses se gabam do número de prêmios Nobel de literatura recebidos: 16. A única mulher premiada foi Ernaux, em 2022. Duras só recebeu o Gouncourt, o maior prêmio francês, no final da vida, em 1984. Talvez porque a imagem que criam de seus homens não deixem os vaidosos críticos satisfeitos.

Para a narradora de Paixão simples, é muito pequeno o limite entre reconstituição e alucinação, entre memória e loucura. O texto escrito é, para ela, vestígio daquele outro texto, vivido. Diante dos julgamentos que virão, a mulher que se revelou da forma mais nua durante a paixão acredita que, sob a forma de romance, “as aparências estão a salvo”.

Complicado, isso de paixão.


* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e editora da Revista Z Cultural.