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Cláudia de Oliveira | de Pérfidas Salomés

Pérfidas Salomés: cidade, mulher e novas formas de amar na modernidade carioca – 1900-1930

Quando chegou o aniversário de Herodes, a filha de Herodíade dançou diante de todos e agradou o rei. Então Herodes prometeu com juramento que lhe daria tudo o que ela pedisse. Pressionada pela mãe, disse: eu desejo a cabeça de João Batista em uma bandeja de prata. O rei ficou triste, mas por causa do juramento na frente dos convidados ordenou que atendessem ao pedido da jovem e mandou cortar a cabeça do profeta. Depois a cabeça foi levada em uma bandeja de prata, entregue à jovem e esta levou-a até sua mãe.1

Esta história fascinou o fim do século XIX. Em 1896, Oscar Wilde, escreve uma nova versão sobre o mito de Salomé para o teatro. Na peça, a jovem princesa simbolizava a mulher moderna. Salomé exigia a cabeça do profeta por um desejo seu. Mas João Batista se recusava a querê-la. Indignada, ela o manda matar. Após a morte do profeta, ainda tomada por uma paixão ardente, seu corpo estremecia ao ver os lábios de Batista. Assim, por amor, beija aquela boca que em vida a havia rejeitado:

Ah! Beijei-te a boca, Iocanaã. Beijei-te a boca. Havia um sabor amargo em teus lábios. Era o sabor do sangue?… Não; mas talvez fosse o sabor do amor… Dizem que o amor tem sabor amargo… Mas que importa? Que importa? Beijei-te a boca, Iocanaã. Beijei-te a boca.2

L´Aparittion, Gustave Moreau (1876)

 

Legenda da imagem:

Na tela de Gustave Moreau, concebida fora de todos os dados do testamento (…), ela não era apenas a bailarina que (…) estanca a energia, anula a vontade de um rei por meio de ondulações de seios (…); mas tornava-se, de alguma maneira, a deidade simbólica da indestrutível Luxúria, a deusa imortal da Histeria, a Beleza Maldita, entre todas eleita pela catalepsia, que lhe inteiriça as carnes e lhe enrija os músculos, a besta monstruosa, indiferente, irresponsável, insensível, a envenenar, como a Helena antiga, tudo quanto dela se aproxima, tudo quanto a vê, tudo quanto ela toca.3

A partir do final do século XIX, até aproximadamente os anos de 1930, artistas, escritores e jornalistas vinculados às estéticas simbolista e decadentista, na Europa e também no Brasil, passaram a utilizar o mito da bela e jovem princesa da Judéia, como metáfora da mulher que desponta com a modernidade. As novas condutas adotadas pela mulher urbana moderna transformaram-na, aos olhos da sociedade da virada do século, em fêmea transgressora, indecorosa e desleal. Para os homens daquela época, a mulher moderna parecia enganadora, enquanto ele era dono de uma verdade sem disfarces.

Pérfidas Salomé: cidade, mulher e novas formas de amar na modernidade carioca entre 1900 e 1930 apresenta essa percepção sobre o feminino, a partir da produção iconográfica e textual veiculada pelas revistas ilustradas Fon-Fon!Para Todos…, ambas editadas por intelectuais vinculados à tradição literária simbolista e decadentista, no Rio de Janeiro, e fragmentos de textos literários de época. Fon-Fon!Para Todos…, em compasso com a sensibilidade artística e literária européia, mostram esta curiosa justaposição entre as mulheres que emergem com a modernização do Rio de Janeiro. Com o objetivo de divulgar os novos padrões sociais, morais e educativos, bem como a moda e os entretenimentos, em reportagens, crônicas e imagens que apresentam os novos habitantes do Rio de Janeiro que acabara de passar pelas reformas urbanas de Pereira Passos, Fon-Fon!Para Todos… tinham como público-alvo os apaixonados pela trepidante vida moderna carioca: os desejosos de novas formas de amar.

Um verdadeiro caleidoscópio compunha o universo feminino urbano no início do século XX. Mulheres que faziam das ruas da cidade modernizada o campo de suas vivências mais deliciosamente pecadoras. A cidade moderna parecia possibilitar-lhes o prazer da troca de olhares e do jogo de sedução, constantes e poderosos. Assim, embora os espaços de ocupação da cidade fossem distintos para cada sexo, isso não nos permite concluir que a cidade, no início do século XX, fosse um espaço monolítico de classes e de gênero. As mulheres retratadas nessas publicações se auto-representaram não só como objetos do desejo masculino, mas como sujeitos ativos na construção da modernidade carioca. É a partir da multidão de mulheres anônimas representadas neste conjunto de publicações que entendemos que o lugar e a função da mulher urbana moderna, no início do século XX, deva ser repensado.

Salomé, na tela de Gustave Moreau, aponta para a cabeça de João Batista, que ainda tem seus olhos abertos. Desta cabeça escorrem gotas de sangue. Esta imagem, forte e desconcertante, nos chama atenção para um conjunto de sensações, medos e ansiedades masculinas sobre a natureza da mulher moderna, no início do século XX. Vista como uma fêmea bela e perversa, a nova mulher encarnava o mal e o lascivo. Simbolizava a musa trágica, era uma femme fatale, uma mulher vampira. O cronista da revista ilustrada Para Todos…, em 1925, referia-se a ela, como a “fêmea de meus sonhos, meu inferno e meu paraíso, meu sonho e meu pesadelo, meu mel e meu fel, minha ira e minha felicidade”.4 O verdadeiro alvo do questionamento era a mulher moderna, tida como um indivíduo que contaminava e ameaçava a rigidez da ordem social, sendo sua nova sexualidade associada ao perigo.

 

Se Gustave Moreau nos mostra em sua tela a princesa da Judéia em um corpo atraente, ardente e sedutor, Álvaro Moreyra, editor da revista ilustrada Para Todos…, em seu romance Cocaína (1924) descreve a nova mulher carioca no seguinte contexto:

Branca, esguia, ondulante. Parecia a fumaça de um cigarro. Chegou de repente, andando como se não pousasse no chão, envolta em seda cor de violeta morta, com as mãos nuas, os cabelos curtos, um longo sono em todo o corpo. Pela sala imensa o espanto correu. (…) Deteve-se junto ao piano. (…) Cantou, depois, versos de Verlaine em música de Reynaldo Hahn:

La lune blanche
Luit dans le bois…

As lampadas estavam esmorecidas. Apenas ao fundo, o vulto se destacava, abandonando de gesto, fino, glacial. O canto punha mãos de neve na carne dos que ouviam. Quando se perderam os últimos sons, ela desapareceu, branca, esguia, ondulante. (…) Um cavalheiro informou:
– Essa mulher tem vícios horríveis. Bebe champagne com ether e cheira cocaína.
Nunca mais me esqueci dessa mulher….
5

Álvaro Moreyra, no texto acima, nos fala de uma representação feminina, na qual a mulher desejável e atraente, aos seus olhos e sentidos, parece transgredir as regras do recato e, até mesmo, romper o domínio do pudor, articulando, em torno de um duplo movimento, de interdição e de transgressão, um novo erotismo.

Em suas imagens brumosas e esfumaçadas, noturnas e penumbristas, Álvaro Moreyra apresenta-nos uma mulher que emerge melancólica e trágica, em tom sentimental, envolta em uma nova singularidade erótica. A mulher sedutora, que se mostra à multidão, está perdida em devaneios, e traz “um longo sono em todo o corpo”.6 Tal personagem nos desenha um Eu lírico, que perambula solitário por entre os sonhos, e parece não encontrar um lugar para o seu Eu.

Por outro lado, o texto de Álvaro Moreyra também parece querer nos apontar para uma nova representação de Eros, já que, como o autor mesmo ressalta: nunca mais se esquecera daquela mulher. Álvaro Moreyra, portanto, nos fala de uma mulher moderna, que foge às regras “naturais” e esperadas do papel feminino. Descreve sua aparição no salão como uma ‘bela deusa’ que, por estar envolta em fumaça, mistura sonho e realidade, magia real que coloca frente aos olhos do narrador uma imagem vívida, deixando, assim, coisas distantes parecerem presentes. Uma mulher que oferece um semblante de realidade, deixando ver, sentir e ouvir novas emoções, as quais propiciam novas criações poético-amorosas ao narrador, apoiadas, quase que exclusivamente, na imaginação.

Assim como em Cocaína, nos vários textos, crônicas e poemas dos colaboradores de Fon-Fon!Para Todos…, começa a emergir um certo impulso de verbalizar um novo erotismo. A linguagem do desejo e a necessidade de decifrar o enigma do amor, não só vai sendo extremamente acentuada como, segundo Antonio Candido (1987), “o amor e a sexualidade representavam uma forma de rebeldia, já que possibilitavam descrições arrojadas da vida amorosa, favorecendo uma atitude de oposição aos valores tradicionais”.7 A nova mulher, vista como possuidora de uma feminilidade frívola e displicente, vai tornando-se para os cronistas sinônimo da própria carioca moderna que casquilha pelos salões, faz o footing e o flirt, é maliciosa e fútil.

Como Salomé quer evocar amores extremados, desejos de aniquilamento de si e do outro, parecendo viver o amor como um impulso de morte. Fellipe d`Oliveira, naPara Todos… de 1928, descreve esta nova forma de encontro afetivo:

Quando / depois de olhar-me / sublime / tu dissestes / que a paisagem em torno / se anulava / para teus olhos por causa da minha / imagem gravada neles / tu já tinhas falado / dos meus lábios grossos / das minhas mãos sobre a tua pele / dos meus dedos sábios que a tua pele identificava / um por um / sem se enganar / mas tu dizias tudo / como si a tua sensação viesse do outro lado da tua alma / e eu senti que tudo da tua realidade ocasional / era a face oposta da mesma realidade também minha / que nada era exatamente mentira / mas que a ser verdade / era o avesso da mentira / como o avesso da tapeçaria.8

Vivia-se o início do século XX, período, em que a sociedade carioca, mesmo experienciando um intenso processo de urbanização e modernização e, por conseqüência, de transformações na sua estrutura sócio-cultural, ainda encontrava-se vinculada aos hábitos vitorianos, presa, portanto, ao aparato normativo, regulador da sexualidade. Apesar disso, como produto da virada do século, textos como estes articulam uma contraposição às idéias e concepções do passado, apresentando-nos novas configurações vinculadas ao presente vivido pelo narrador: neste caso, um desejo de viver novas experiências erótico-amorosas, as quais nos apontam para uma vontade de representar e viver experiências subjetivas próprias ao seu tempo.

Porém, as imagens de mulher que encontramos na arte, na literatura e no jornalismo mundano da época não são necessariamente uma expressão de como elas realmente viviam ou experimentavam suas vidas no período. Textos como este nos parecem apresentar reflexões, ou possibilidades, de uma experiência de moralidade feminina que parece buscar ultrapassar o ideal de feminilidade, então encapsulado, na noção de respeitabilidade doméstica. Ou seja, são narrativas que procuram apontar para a existência de um ideal de mulher que foge ao seu papel tradicional de mãe, esposa e filha: noções vinculadas em todos os níveis da vida pública do período – na legislação e na educação, através de romances e de poemas, bem como em quase toda a iconografia popular ou não. Neste sentido, o fazer literário e o modo pelo qual eram expressas estas emoções, relacionavam-se mais às sensações do narrador, do que propriamente às vivências da leitora/espectadora, embora buscassem encontrar nela – leitora – o elemento fundamental que completaria a obra.

A transformação de Salomé em “fêmea fálica da modernidade”9 , reforça a visão da mulher moderna como possuidora de uma feminilidade exuberante, contudo, doentia. Nesta concepção, a mulher moderna ao buscar novos meios para expressar seus desejos femininos era vista como uma ninfomaníaca ou uma histérica – palavras usadas pelo discurso médico da época que acusava de “anormais” os novos comportamentos femininos. Assim, alertando os pais das “senhoritas da boa sociedade”, os médicos diziam que para estas doenças modernas, somente o casamento poderia evitar tais males. Contudo, as novas mulheres pareciam preferir desfrutar o prazer da cidade moderna: os encontros furtivos, o footing, o flirt, os salões, as soirées, os clubes e as praias. Segundo o cronista de Fon-Fon! em 1918, a nova mulher queria mesmo era “flertar, flanar e footingar”.10 O amor romântico passa a ser questionado e até mesmo o casamento começa a ser visto como algo que sufocava a liberdade feminina. A escritora Carmen Dolores em seu romance A Luta (1911) descreve uma cena de discussão entre um casal moderno. Celina, a personagem principal, diz ao seu marido Alfredo:

– Ouve-lá, é que estou farta, farta até aqui – mostrou os olhos – de tanta dependência, de tanta escravidão. (…) Atacam o americanismo de minhas irmãs… mas sabes tu, Alfredo, que eu as invejo do íntimo de minha alma? Estas ao menos vivem; e eu? … eu crio mofo. (…) Estou farta!… farta de cativeiro! (…) quero ir-me!

Já o narrador de Fon-Fon!, em 1919, descreve a mulher moderna como consciente do desejo de independência. Conta ele que reproduzira o conteúdo de uma carta que certa senhorita havia deixado cair, sem querer, em um bonde entre Botafogo e o Centro. Esta senhorita elegante, “feitio de melindrosa”, escrevia ele, “deixara cair no estribo do motor um envelope azul”. Ele, sem conter sua curiosidade, após inúmeras suposições decide ler o conteúdo da missiva e “dar ao local vazio de sua coluna, a matéria que faltava”. Helena, a protagonista da carta endereçada a uma amiga, contava os “arrufos constantes e freqüentes com Ricardo”. Dizia ela que o que mais a aborrecia

neste comissariado de amor, é ele querer que eu siga a tabela. Si eu vou neste protecionismo de amor, heim? Como sabes, ele pretende casar-se e… levar-me para o Sul, onde vai muito em breve, em comissão do Governo. Deixar eu o Rio? Não! Nunca! Si ele é o melhor bocado da minha vida, tornando-se no decálogo dos meus sonhos, o primeiro mandamento.11

Aos olhos do narrador, a heroína moderna era percebida como uma mulher que alterava profundamente os comportamentos sociais. Tornara-se adepta da equitação, natação, tênis; cultuava o corpo e a beleza; era vaidosa, dedica-se aos cuidados com a aparência e com a moda, e, acima de tudo, estava por toda parte. Escreve João do Rio:

Ela aparece vestida de baile, com tecidos apenas para acentuar as suas curvas… Ela aparece mostrando os pés… Ela aparece vestida de chauffeur, de óculos e véus. Está em toda parte. A bordo dos steamers, nos comboios, nos restaurantes, nos chás, em cada canto, trabalhando ou jogando o bridge… É sereia, exige, sacrifica e mata, é a divindade que nos satisfaz, nos incita e acalenta…12

As novas avenidas transformaram-se para elas em espaços de prazer para as suas vivências mais deliciosamente pecadoras. Para o cronista, elas pareciam ter saído de sua fantasia, a qual parecia se debater entre dois pólos: de um lado, uma percepção sobre a mulher estruturada em uma imaginária, cuja fonte inspiradora apoiava-se em uma tradição, na qual a mulher surgia como um Ser espiritual, etéreo e envolto em mistério; de outro, uma mulher que o narrador via transitar livremente pelas ruas da cidade e que parecia a ele inteiramente disponível.

FIG3:

Um erotismo ousado passava a permear a imaginação masculina na construção desta nova mulher. Eram nas calçadas que surgia a possibilidade de um olhar furtivo sobre suas meias de seda. O cronista cria uma narrativa mise-en-scène que vai se convertendo em recurso para falar de uma aparência feminina erótica: “… loura, de um louro quente que provoca vertigens, sua pele setinosa e doce, queimada como um fruto raro, olhos escuros e profundos, intensos, ela me encanta sempre a vista e a alma, quando por mim passa13 escrevia o cronista da Fon-Fon!, em 1922. Imagens como esta parecem personificar a delícia, a sedução e o perigo de um envolvimento com a nova mulher que desfruta da cidade, que caminha pela avenida envolta em pele de lontra, evocando o poder sedutor e sugerindo um prazer tátil. Ela parece deslizar sob perfumes. Esse perfume inexplicável que se manifesta no aroma da mulher desejada. Pois, para o cronista, a mulher moderna sugeria o prazer quente, a paixão sedutora e íntima, o perfume de uma flor. Vemos esboçar, então, uma idéia de amor que transcende até a sexualidade, através de sentidos que sugerem o íntimo, o suave e o deslizante. Privilegiam o tato entre todos os sentidos para falar de sua emoções eróticas. Há, portanto, nestas falas uma atração pelo toque, por tudo quanto é sedoso, como os pêlos, os veludos, as camurças, a pelica, ou seja, elementos que conferem às suas sensações um tom feminino. Elegem fetiches, erotizam superfícies, produzindo uma narrativa sensual, assim ao mesmo tempo em que articulam veludos e pelicas, trazem à cena a relação Eros/morte, paixão e dor.

 

Estas novas formas de viver o prazer sinalizam para um desejo, no qual homens e mulheres parecem buscar um erotismo novo. Especialmente as mulheres procuram por alternativas diferentes ao seu papel tradicional de esposas, mães e filhas. Elas desejam ser vistas como mulheres conquistadoras de novos espaços sociais. Por outro lado, este desejo feminino parecia despertar no homem um conjunto de sentimentos ambíguos que misturavam prazer e descontentamento. Assim escrevia ´João da Avenida´:

Para ela, nunca amar. Ser amada, é o bastante. Viver colecionando madrigais. Enganar. Isso é super- elegante… Fazer o flirt apenas. Nada mais.14

Podemos nos perguntar: é a sedução da mulher sobre o cronista ou é apenas a fantasia do homem seduzido? A própria relação de proximidade entre o objeto de desejo e o sujeito desejante, ou do narrador e a mulher que ele vê passar, o local onde se instaura a sedução e a linguagem do amor. O que vai se apresentando é a construção de uma erótica do cotidiano moderno, que é caracterizada por um novo jogo de sedução. O desejo, nesta narrativa, para ambos os sexos, vai se condensando no olhar, o qual vai ocupando um lugar privilegiado na construção do discurso do amor na modernidade.

As mulheres pareciam querer se mostrar sedutoras aos olhos do narrador, através da utilização de uma linguagem corporal que partia do domínio do recato e do pudor, mas rompia e, de certo modo, violava os códigos de uma sociedade falsamente puritana. Havia uma ondulação na sua silhueta, um fluir no seu caminhar, uma troca de olhares enigmáticos, bocas vermelhas e sedutoras. As mulheres promoviam um olhar sobre o seu corpo como objeto de desejo: saias que se levantavam delicadamente para que o pé e o tornozelo pudessem ficar de fora, olhares furtivos por entre véus e chapéus, e sorrisos delicados. A nova mulher cria a sua imagem como uma mulher sedutora, reforçando os arquétipos de femme fatale, ‘tarântulas’, Salomés e Cleópatras. Onde ela estava uma multidão de homens a cercava e uma câmera fotográfica a procurava: Cherchez la femme! era a idéia.

Assim, do mesmo modo que João Batista, aterrorizado, observava a loucura da fêmea apaixonada, Gilka Machado, em Poema de Amor (1915) descreve o olhar de seu amante sobre o seu corpo de mulher apaixonada:

(…) o teu olhar / luzente, lindo / ora descendo, ora subindo / a fitar…, o teu olhar manso, indolente, / dá-me a impressão de uma serpente, pelo meu corpo a se enroscar….15

É através desta troca de olhares entre ambos os sexos, que o corpo da mulher desejável e desejosa vai provocando um certo reino das aparências, uma superfície na qual o olhar masculino desliza e penetra. É nesta mulher moderna que o narrador vê habitar um novo erotismo. Ela, ao se projetar para o masculino, ultrapassa o papel de simples objeto de desejo e estimula uma energia erótica sobre si mesma. A relação daquele que olha e daquele que se deixa ver, não é apenas um instrumento, mas um meio de acesso privilegiado para algo particular: o território do amor.

Assim, todas as cenas de olhares emitidos – do suposto amado para a amante desejada e da fêmea moderna para o possível amado – parecem despertar um enorme prazer que envolve sempre a fantasia do ver como possuir, mesmo que à distância. Neste conjunto de imagens há uma troca de olhares, onde o desejo é articulado. Uma troca de rituais infinitos e, como na sedução amorosa, se hipnotizam. A construção do mito de Salomé, que apresenta a mulher moderna como uma fêmea pérfida e fatal, no início do século XX, cristaliza, a nosso ver, novas formas de desejo, de encontro e de amar entre o homem e a mulher que despontam com a modernidade carioca.

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória etérea a altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
16






* Cláudia de Oliveira é doutora em História Social pela UFRJ; pesquisadora Associada do Setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa e professora de História da Arte da Universidade Candido Mendes – UCAM. Publicou As Pérfidas Salomés: a representação do pathos do amor em Fon-Fon! e Para Todos…, 1907-1930, na Coleção Papéis Avulsos, no. 53, Fundação Casa de Rui Barbosa.
NOTAS

1 São Mateus, XIV, 1-12.

2 “Ah! I have kissed thy mouth, Iokanaan, I have kissed thy mouth. There was a bitter taste on thy lips. Was it the taste of blood?… Nay; but perchance it was the taste of love… They say that love hath a bitter taste… But what matter? What matter? I have kissed thy mouth, Iokanaan. I have kissed thy mouth”. In: Wilde, Oscar. Salome. London: Creation Books, 1999.

3 Huysmans, J-K. Às Avessas. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

4 Para Todos… Ano VIII-Num.162, 02/04/1925.

5 Moreyra, Alvaro. Cocaína. Rio de Janeiro: Editora Pimenta de Mello, 1924.

6 Idem. Ibidem, p.5.

7 Candido, Antonio. “Os primeiros baudelairianos”. In: A Educação pela Noite e outros Ensaios. Série Temas, V.1. Estudos Literários. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 64.

8 Disjuncção. Felippe D’Oliveira. In: Para Todos…, Ano X-Num 516, 22/12/1928.

9 Schorske, Carl E. Viena fin-de-Siècle. São Paulo: Editora da Unicamp e Cia. das Letras, 1988. p.45.

10 Fon-Fon!/ Ano XIII-N.27, 09/1918.

11 Carmen Dolores. A Luta. Florianópolis: Mulheres, 2001. p. 34.

12 Rio, João do. A Mulher e os Espelhos. Lisboa: Editora Portugal-Brasil, 1919.

13 Fon-Fon!/ Ano XVI-N.27, 09/1922.

14 Olegário Mariano, sob o pseudônimo de João da Avenida, na coluna Ba-ta-clan da revista Para Todos…., Ano VIII-Num.162, 02/04/1925

15 Machado, Gilka da Costa Melo. “Poema de Amor”. In: Crystaes Partidos. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunaes, 1915.

16 Machado, Gilka. “Ser Mulher”. In: Crystaes Partidos. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunaes, 1915.