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Os fatos e suas fotos: dispositivos modernos na produção do acontecimento na contemporaneidade | de Ana Maria Mauad

As revistas ilustradas, a partir de 1900, passam a integrar nas suas páginas fotografias que ilustram, complementam e permitem a visualização de uma cultura urbana que se moderniza. Ao longo do século XX, a imprensa ilustrada assume um papel central na conformação de um espaço social que agencia as versões de acontecimentos e processos. Os semanários ilustrados foram, durante boa parte do século XX, as principais fontes de informação para o público urbano, compondo com demais modalidades de veiculação de imagens técnicas, dentre os quais o cinema e posteriormente a televisão, a base de sustentação da chamada cultura da mídia.

Pretende-se nesse texto discutir as diferentes modalidades de uso da imagem fotográfica na construção do acontecimento na imprensa contemporânea, apontando-lhe as estratégias narrativas, bem como o redimensionamento do tempo histórico pelo instantâneo fotográfico. Para tanto, recorre-se à noção de foto-ícone, fotografias que ganham expressões públicas, associadas, ao mundo da política e a noção de acontecimento histórico.

O fundamental é ultrapassar a idéia simplista da história por detrás da foto, apontando para o argumento da foto que faz a história. Nesse sentido escolhi três fotografias em três tempos distintos, 1958, 1961 e 1984, inscritos na historicidade contemporânea, que exibem imagens de políticos, em situações diversas. Associadas a tais imagens, os depoimentos dos fotógrafos recolhidos em entrevistas, Flávio Damm, Erno Scheneider e Milton Guran, representantes de gerações de fotojornalistas que participaram ativamente da redefinição do uso da imagem na imprensa brasileira.

Da foto-ícone para a série ou o corpus fotográfico, o que se propõe é analisar a intertextualidade fotográfica, como processo de mediação entre os meios de produzir cultura e de fornecer racionalidade ao universo da experiência histórica concreta. No caso do fotojornalismo, pensar a mediação como o resultado da definição de um campo fotográfico para o novecentos, que envolve uma estreita relação com o campo político. Neste caso, o fotojornalismo concorre com as demais formas visuais, narrativas e discursos, na elaboração da cultura política de uma época histórica.

Assim, discuto essas três imagens relacionando os tempos, nelas inscritos, e as narrativas por esses tramadas. Vou começar por colocar o problema da condensação do acontecimento no tempo da foto – a síntese do momento, o que daria sentido a noção de foto-ícone. É fundamental aqui, pensar que o tempo histórico se inscreve na foto como um tempo externo, como uma espessura, que o expectador qualificado lhe concede. Essa temporalidade inscreve a foto-ícone no passado estático e como num flash recupera o fato, sendo a ponta de um iceberg – a presentificação do vivido. O tempo atribuído.

Na seqüência, abordo a relação entre fotografia e política, tanto do ponto de vista da imagem representada, quanto da pragmática que funda a própria representação. Merecem especial atenção as trajetórias dos fotógrafos, sua relação com a prática profissional e com a cultura política, com a qual troca olhares – o tempo incorporado. Finalizo com a reflexão sobre o tempo do instante, projetado na prática fotográfica da imprensa do século XX e o seu impacto no regime de historicidade, que se define ao longo desse século. Ressalta-se aqui as considerações de Mauricio Lissovsky sobre a imanência do instante, a noção do tempo como duração, do fotógrafo como expectante, da espera como o diferencial da fotografia moderna e, por fim, da imagem como devir – o tempo vivenciado

 

As datas como índices – o tempo atribuído.

1958, 1961, 1984, três datas demarcadoras de um período recente da história do Brasil, no qual a vida política foi marcada por golpes, resistências, crises, planos, possibilidades e frustrações. As datas, como índices, revelam muito mais do que os vestígios que deixaram no rastro do tempo. Das versões comprometidas, aos testemunhos presenciais, passando pelo registro técnico do vivido, a experiência factual deixa inúmeros vestígios tomados pelos historiadores como testemunhos cuja crítica deve ser aprofundada, na trilha de Le Goff, segundo o qual, toda a experiência social, da mais corriqueira à mais ritualizada, produz uma auto-imagem que se processa no tempo como documento/monumento, daí todo o testemunho ser ao mesmo tempo verdade e mentira. Uma projeção que o passado transfere para o futuro, uma ilusão de verdade absoluta que merece sempre ser relativizada. As datas como índices de referências temporais, como balizas de organização do fluxo do tempo, como delimitação de experiências compartilhadas, também são resultado de um jogo de sentidos atribuídos, fazem parte de uma operação que fornece sentido e espessura histórica aos fatos memoráveis.

Da mesma forma que as datas, as imagens tomadas como ícones, como sínteses semelhantes ao acontecimento, presentificam-no sugerindo que o que se vê, é o acontecimento tal qual. Não vale sugerir uma verdade por trás da foto, concebida sempre como falsa consciência, numa concepção de ideologia ultrapassada. Há de se pensar a imagem fotográfica como uma representação, como suporte de relações sociais cujas narrativas definem a historicidade do próprio ato que a funda. É interessante compreender, na narrativa dos fotógrafos, a sua versão do vivido1.


Foto-ícones, a História por detrás das imagens?

 

1º Flash: 1958

O ano de 1958, no qual a foto foi produzida, dava continuidade ao mandato presidencial de Juscelino Kubitschek, então conhecido como o “Presidente Voador”, pelas inúmeras viagens que fez durante os anos de governo. Aliás, seguindo a tradição inaugurada por Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek soube, através da imagem técnica, construir uma imagem pública, suas viagens eram acompanhadas de perto pela imprensa ilustrada, notadamente as revistas O Cruzeiro e Manchete, registrando de perto o dia-a-dia do presidente.

JK em viagem divide o espaço das revistas com o JK em acordos políticos para a composição do ministério. Ao presidente eleito e que vai à Europa e Estados Unidos e vemos nas páginas cumprimentando presidentes, primeiros-ministros, reis e rainhas contrapõe-se o presidente eleito, de rosto sério e tenso, conversando com políticos e prováveis ministros. Manchete faz uma ampla cobertura dessa viagem enquanto que em O Cruzeiro há a preocupação com a política em torno da escolha de ministros e JK aparece nesse sentido, no âmbito da política nacional e não das relações que começa a estabelecer no exterior.2

A presença do presidente no mundo projetava o Brasil no âmbito das relações intencionais do capitalismo avançado, associando-o com a modernidade e a modernização, cujo projeto de governo propunha. Negociava com potências capitalistas, buscando um caminho que efetivamente viabilizasse seu projeto de aceleração do tempo histórico: 50 anos em 5 era afinal seu slogan de governo.

Internacionalmente os anos 1950 foram marcados pelo recrudescimento da guerra fria, pelas lutas de descolonização, pela crescente mobilização pelos direitos civis, pelo surgimento da noção de Terceiro Mundo e de não alinhamento na Conferência de Bandung (1955). O mundo se orientava em blocos geopolíticos e as relações internacionais assumem um papel fundamental na hierarquia dos continentes e no alinhamento das nações. Por isso o presidente tinha asas.

 

2º Flash: 1961

1961, um ano e tanto! Os Estados Unidos rompem com Cuba revolucionária; Iuri Gagárin, da URSS, é o primeiro homem a fazer uma viagem espacial; crise da Baía dos Porcos (Playa Girón). Mercenários financiados pelos Estados Unidos tentam invadir Cuba a partir de Miami. Fracassam em dois dias face às milícias cubanas; Brizola, governador do Rio Grande do Sul, é dos mais duros na denúncia dos Estados Unidos; nasce a OUA (Organização de Unidade Africana), combatendo o colonialismo e o racismo; criada em Londres a Anistia Internacional visando à defesa dos presos por motivos políticos, religiosos, étnicos, ideológicos ou raciais; Jango viaja à China em visita oficial; Conferência Interamericana de Punta Del Este, Uruguai. Os Estados Unidos tentam conter a influência cubana (representada por Che); a Alemanha Oriental ergue o Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria; Jânio Quadros condecora Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro e abre crise política, vários militares devolvem suas condecorações em protesto. Conservador em todos os sentidos, o governo Jânio Quadros reserva para a política externa posturas de desafio aos Estados Unidos e à reação; Jânio Quadros renuncia na ausência do vice, em viagem à China, e os ministros militares vetam a posse de João Goulart, Jango; o Brasil restabelece relações com a União Soviética, rompidas por Dutra em 1947.3

O mundo se polariza e no clic de Erno Schneider, Jânio Quadros não sabe qual rumo tomar, se enrola nas pernas, e num balé inusitado, renuncia, contribuindo para o desfecho no golpe civil militar.

 

3º Flash: 1984

Vinte anos depois, outro ano e tanto! 1984, ano título da célebre ficção de George Orwell, prenunciando um big brother que, de forma mais prosaica, mas não menos maligna, estaria sendo encenado no milênio.4 Para além da ficção real, ou imaginária, 1984 foi o ano da campanha das Diretas Já e do renascer da esperança da democracia no Brasil.

O calendário de comícios fornece o ritmo crescente das manifestações. 25/1/1984: primeiro comício-gigante (300 mil pessoas) da campanha Diretas Já, na Praça da Sé, São Paulo. A emissora de televisão, Rede Globo não cobre o evento; 24/2/1984: comício pró-Diretas de 250 mil em Belo Horizonte; 21/3/1984: passeata de 300 mil pelas Diretas, no Rio de Janeiro; 10/4/1984: comício de 1,2 milhão de pessoas pelas Diretas-Já, na Candelária, centro do Rio de Janeiro; 12/4/1984: comício pró-Diretas reúne 250 mil pessoas em Goiânia; 16/4/1984: comício de 1,7 milhão de pessoas pelas Diretas-Já, no Anhangabaú, São Paulo. É em números absolutos a maior manifestação de massas em cinco séculos de história do Brasil5.

Como revela o fotógrafo na sua entrevista, a foto é do início dos anos 1980, associada à organização dos comitês de anistia. Ainda assim, essa fotografia foi utilizada pela editoria da Revista Senhor, como parte do artigo de abertura. Este artigo fazia o papel de editorial, realizando um balanço da situação política da semana. No dia nove de maio é publicada com o seguinte título: Negociação ou mobilização? Só fala em nome do povo quem não negocia as diretas-já, e legenda: Figueiredo gostaria de desfazer esta velha afetuosa união.

Neste caso, a apropriação da foto de um tempo por outro, implica no esgarçamento da duração do acontecimento, atribuindo à conjuntura de abertura política um sentido visual compartilhado. A afetuosa união entre o Dr. Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, originada na tradição social democrata de ambos, se consolidaria nas campanhas pela anistia ampla geral e irrestrita e pelo apoio à campanha das Diretas Já. De acordo com leitura feita por Guran, em seu livro Linguagem Fotográfica e Informação:

Ulysses Guimarães representava, na época, a campanha pelas eleições diretas para a Presidência da República, enquanto Tancredo Neves seria a solução negociada. A inclinação corporal de Ulysses, sobretudo a sua mão esquerda, percorrendo a diagonal do quadro da esquerda para a direita (o sentido da leitura de nossa cultura) até chegar a cabeça de Tancredo, sugere, plasticamente, o segundo como resultado do primeiro e como “ponto final” da foto. A integração entre os personagens é como que o retrato da negociação política em curso. ‘Tancredo, eis o homem’, começa o artigo. Efetivamente foi, quase (…)6

Guran cunha, seguindo essa linha de leitura visual, o conceito de “foto eficiente”, segundo o qual, a capacidade de articulação dos elementos da linguagem fotográfica cria uma mensagem de impacto. Tal impacto, nesse caso específico, transcendeu o tempo exato da sua produção, sendo tão eficiente a ponto de ser polissêmica, permitindo a sua apropriação em outro contexto. Retoma-se a pergunta, será que há uma história por detrás da foto, ou múltiplas histórias?

 

A experiência fotográfica – o tempo incorporado

A geração de fotógrafos, que se formaram a partir da década de 1930, atuou num momento em que a imprensa era o meio por excelência de acesso ao mundo e aos acontecimentos. A imagem dessa geração de fotógrafos exerceu forte influência na forma como a História passou a ser contada. Asconcerned photographs, fotografias, de forte apelo social, produzidas a partir do estreito contato com a diversidade social, conformaram o gênero também denominado “documentação social”.

O legado da geração do fotojornalismo heróico, cujo emblema é Robert Capa, fotógrafo que morreu num acidente de mina, durante a cobertura de guerra, no Camboja, foi justamente a politização do olhar. A perda da inocência fez com que as fotografias de imprensa dialogassem, mais proximamente, com a síntese plástica conquistada pela charge e a caricatura, do que outras linguagens visuais. Os três fotógrafos, em certa medida, guardando as diferenças de geração (1928, 1935, 1948), são tributários desse olhar.

Flávio Damm, gaúcho, nascido em 1928, começa a trabalhar cedo como auxiliar de laboratório na Revista do Globo e aos 20 anos publica um furo de reportagem. Na edição do dia seis de novembro de 1948, daRevista do Globo (Ano XIX, nº 470), em matéria intitulada “A Longa Viagem de Volta”, com texto assinado pelo repórter Rubens Vidal, publica as primeiras fotos de Getúlio no seu retorno ao Catete. Esta reportagem lhe rendeu bons frutos, pois em 1949 ruma para o Rio de Janeiro e conquista um posto de fotógrafo na revista O Cruzeiro, o principal veículo do fotojornalismo da época no Brasil. Trabalhou na revista por 10 anos e, em 1959, ruma para uma bem sucedida carreira-solo.

Erno Schneider, também gaúcho, nascido em 1935, também começa a trabalhar cedo em estúdio fotográfico, entretanto, seguindo a trilha de outros da mesma geração, passou a trabalhar na imprensa carioca. No final dos anos 1950, ingressa no Jornal do Brasil, participando da importante reforma gráfica do jornal, onde consegue ganhar o Prêmio Esso de fotografia em 1962. Depois ingressa, em outro importante jornal do período, O Correio da Manhã, no qual é responsável por uma verdadeira revolução visual. Como editor de fotografia desse jornal Erno Schneider redefine o papel da fotografia e dos fotógrafos na construção da notícia, transformando o periódico num veículo de crítica visual ao regime militar7. Depois da intervenção no Correio da Manhã, mudou-se para o jornal O Globo, onde se aposentou.

Milton Guran, carioca da Tijuca, nascido em 1948, é fotógrafo, jornalista e antropólogo, doutor em Antropologia (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales – França, 1996) e mestre em Comunicação Social (Universidade de Brasília, 1991). Repórter-fotográfico atuando na grande imprensa, desde 1973, foi um dos fundadores da AGIL Fotojornalismo (Brasília, 1980) e fotógrafo do Museu do Índio (Rio de Janeiro, 1986-89). É realizador e coordenador geral do FotoRio, encontro bianual de fotografia, desde 2003. Além do registro visual da trajetória política do período da abertura política, destaca-se pelo seu investimento na antropologia visual, articulando os temas identidade e memória, no trabalho sobre os Agudás no Benim e sobre os grupos indígenas do Amazonas. Dos três fotógrafos em questão é o único que enveredou pelos caminhos acadêmicos, e associou teoria e prática trabalhando com a fotografia como instrumento de pesquisa social8.

O breve relato da trajetória dos três fotógrafos serve de medida para dimensionar a relação de cada um com o ato fotográfico e suas formas de busca e espera pelo momento decisivo, de onde a foto-ícone surgirá, como feixe de temporalidades.

 

A prática fotográfica – o tempo vivenciado

Depois de ter inscrito o tempo histórico, através da contextualização das fotografias em seus respectivos anos de produção, e de, na seqüência, ter dimensionado o tempo do olhar dos fotógrafos, por suas trajetórias e pertencimento a uma geração, cabe pensar como, no regime do instantâneo, a fotografia ainda pode conceber uma narrativa de entrelaçamento temporal.

O que diferencia as fotografias modernas, segundo Maurício Lissovsky, é o ato de espera, assim a questão da autoria passa a ser definida pela condição da percepção temporal do sujeito expectante. Assim, acrescento eu, as fotografias são o resultado de uma espera concebida não como uma ação passiva, mas como uma prática social, cuja historicidade redefine a espera em esperança. Por outro lado, noção de intervalo, definida como a duração entre o olhar do fotógrafo e o clic na câmera, ou ainda, como uma forma de inscrição do vivido, como experiência temporal que projeta uma memória, não se confunde com a de interregno e de tempo interrompido. Tal diferença evidencia-se nas marcas que a espera deixa na imagem, na pregnância da duração e no aspecto da fotografia. Daí a possibilidade de definir diferentes resultados desse ato de espera, ou do próprio intervalo – a imanência do instante.

Apesar do autor não incorporar a noção de narratividade à sua duração de espera, creio que é possível perceber, nas marcas dessa espera a trama de uma história. Dessa forma, analisar as diferenças da forma de esperar, em cada uma das três fotografias apresentadas, me permite avaliar as possibilidades de narrativa e/ou duração no instantâneo fotográfico, ou ainda no tempo vivenciado no ato fotográfico.

1958 – Presidente voador – Flávio Damm. Pose arranjada, planejada e armada em parceria com o objeto do desejo fotográfico. O tempo de espera é o da contradança da pose, no acompanhar dos corpos até a justaposição perfeita: asa com braço, cabeça com cabeça, corpo a corpo. Asas da águia, corpo do presidente, na majestade do vôo. O vir a ser da foto, na avaliação da equipe, é a demolição da imagem do presidente, por isso a foto tem a sua publicação censurada. Na concepção do fotógrafo o aspecto só reafirmaria uma tendência, tornando evidente o que todos já sabiam.

1961 – Qual é o rumo? – Erno Scheneider. Pose espontânea, tomada de assalto, pelo inusitado barulho que, inesperadamente, abate o presidente em plena performance esquerdista ao lado do argentino Frondisi. O ruído tira o modelo do prumo e o projeta na instabilidade da conjuntura política. O tempo da espera é o do corpo a corpo, com os demais fotógrafos, e da intimidade com o presidente, do qual o fotógrafo é quase uma sombra. Tomado do mesmo susto, Erno reage como um caçador e captura a imagem com um clic. A intensidade da crítica é demolidora e rende ao fotógrafo o prêmio Esso de 1962.

1984 – Afetuosa união – Milton Guran. Pose planejada, mas não arranjada, sugere uma familiaridade com os modelos, um reconhecimento de suas poses e trejeitos, que espera o momento certo para tomar a foto que já havia visto antes, mas não teve tempo de tirar. Assim, o tempo da espera é o da tocaia, com armadilhas estrategicamente lançadas no terreno visual. O equilíbrio, não é completamente estável, orienta-se pelo movimento da mão no sentido do rosto, pela inclinação dos corpos, pela sensação do contato. O olhar atento do fotógrafo imprime um ritmo harmônico à foto, daí a sua eficiência: uma foto tirada em 1981 pode ilustrar uma matéria de 1984. O tempo da espera foi longo, as marcas da duração na fotografia são pura memória.

 

Conclusão

Segundo um senso comum, o mundo contemporâneo estaria inundado por imagens de diferentes tipos e densidades, fotos, cinema, televisão, internet. Associação que soa no mínimo amedrontadora, ainda mais se nos lembrarmos das imagens de Nova Orleans depois do Katrina.

Ressalta-se, no entanto, a necessidade de ultrapassar o que aparentemente se impõe como indiscutível, ou quase natural, e indagar-se: como podemos lidar com essas imagens? Como selecionar uma dentre muitas? O que de fato captamos nas imagens? Ou por outro lado, tais imagens integram a nossa memória coletiva, ou são fugazes e momentâneas?

A fotografia, ao contrário das imagens em movimento contínuo, ou de diferentes ritmos (como é o caso da internet – pop-upsflashes etc.), caracteriza-se pela sua estabilidade, uma base para o fluxo contínuo de dados. A leitura da fotografia deve romper com a tradição visual icônica, de similaridade e analogia para com o real, que na sua superfície sensível se vislumbra, e considerar segundo a história da sua produção e recepção, o que ela de fato chegou a ser: o parâmetro visual para as categorias centrais da experiência humana.

Por tudo o que já foi dito anteriormente, creio que a história, tanto como processo social, quanto como operação intelectual que se debruça sobre a análise desse mesmo processo, não se define no singular, pois o tempo material fundamental da leitura do passado é sempre plural.

Nesse sentido, por um lado, a experiência social vivida se processa numa sincronicidade de tempos, em ritmos variados, com durações subjetivas, mas também, objetivas, com balizas cronológicas e datáveis. Por outro, a operação histórica deve levar em conta esses múltiplos tempos, não em realidades fugidias, impossíveis de serem interpretadas, relacionadas simplesmente à sua dimensão fenomênica, singular e irrepetível.

A operação histórica se realiza sobre matéria concreta; analisar imagens fotográficas, como síntese de experiências históricas, como potência materializada do acontecimento, implica em deslindar a trama de tempos que tecida na representação visual, as múltiplas histórias que se conjugam para sua realização. A fotografia, como parte integrante do pensamento plástico contemporâneo, permite adentrarmos pela dialética entre o real e o imaginário. Por isso, mesmo na era digital, ela ainda continua a nos comover, nos seduzir e nos informar.
*Ana Maria Mauad é doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, com pós-doutorado no Museu Paulista da USP. Atualmente é professora do Departamento de História, do Programa de Pós-Graduação em História e pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, desde 1992 e do CNPq desde 1996. Dedica-se ao ensino de teoria e metodologia da história e é autora de vários artigos e capítulos de livros sobre temas ligados à história da cultura e história e imagem, especialmente fotografia.

NOTAS


1Entrevistas com o fotógrafo Flávio Damm: 1ª entrevista, em 24/04/2003; 2ª entrevista, em 13/05/2003, total de horas: 3 horas e 55 minutos; Entrevista com Erno Schneider, 08/05/2003, 2 horas de duração; Milton Guran, 9/05/2006, uma hora de duração, Memórias do contemporâneo: narrativas e imagens do fotojornalismo no Brasil do Século XX, Projeto de Produtividade financiado pelo CNPq, 2005-2008. As entrevistas estão depositadas no Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, em fase de tratamento para a sua futura publicação no site.

2BIZELLO, Maria Leandra. Entre fotografias e fotogramas: a construção da imagem pública de Juscelino Kubitschek – 1956-1961, Comunicação apresentada no XX Encontro Nacional da ANPUH, Londrina, 2005, p. 4.

3http://www.vermelho.org.br/linhadotempo/1950.asp, capturado em 13/09/2006

4Faço uma analogia ao reality show transmitido pela Rede Globo de Televisão, desde 2001, na sua sexta versão no ano de 2006.

5http://www.vermelho.org.br/linhadotempo/1950.asp, capturado em 13/09/2006

6GURAN, Milton. Linguagem fotográfica e informação, Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 1999, p 69.

7OLIVEIRA, Gil. O fotojornalismo do Correio da Manhã (1964-1968). 1996. Dissertação, (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ana Maria Mauad.

8Título do curso de especialização coordenado por ele, na Universidade Candido Mendes, entre 2002 e 2005.