Ano XIX 01
Dossiê
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DOS BRASIS: A CURADORIA COMO CRÍTICA E A CRÍTICA DA CURADORIA

Curadoria pode ser
– entre outras coisas –
uma vastidão de intenções
Ana Lira

Neste artigo buscarei traçar algumas considerações sobre a relação entre crítica e curadoria a partir da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, em cartaz no Sesc Belenzinho (São Paulo) de 3 de agosto de 2023 a 31 de março de 2024. A exposição tem curadoria geral de Igor Simões, que, além de curador, é professor de História da Arte na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), juntamente com Marcelo Campos, curador-chefe do Museu de Arte do Rio e professor no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Lorraine Mendes, curadora da Pinacoteca de São Paulo. O projeto teve origem em 2018, com a pesquisa desenvolvida por Simões e Hélio Menezes, antropólogo e curador de exposições como Histórias Afro-Atlânticas (MASP, 2018) e da 35ª Bienal de Arte de São Paulo (2023).

É certo que muitas exposições de artes (áudio)visuais hoje têm colocado o foco sobre as temáticas etnicorracial, de gênero e sexualidade – aquilo que poderia ser chamado de “minorias”, o que no sentido usual pode soar um tanto pejorativo e acuado, mas que, no sentido que lhe emprestaram Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997; 2002), é justamente o que, por não ser a maioria, por diferir do Mesmo, das configurações que aprisionam as possibilidades de ser e de existir, têm como imanência a possibilidade de criação de outros modos de vida. No entanto, diante da própria concepção histórica de arte e do cenário social, político e econômico em que vivemos, todos os empreendimentos são necessários para que se promova a arte produzida por artistas negros, negras, indígenas e LGBTQIAPN+ etc. e se dê visibilidade a ela.

Um dos aspectos que mais chamam a atenção em exposições como Dos Brasis é a miríade de suportes que compõem os trabalhos apresentados – entre tapeçarias, pinturas, fotografias, vídeos, instalações e esculturas. A diversidade de suportes dá a ver a riqueza da arte contemporânea produzida no Brasil e como o próprio fazer artístico se relaciona com a produção de conhecimento, dialogando, respondendo ou tensionando a história instituída, branca e hegemônica, que buscou recalcar o racismo histórico e cotidiano no país. Cria-se também uma contrafação à ideia de nacionalidade que se constituiu como uma “‘etnicidade fictícia’ e homogênea que no Brasil firmou-se através do recalque das profundas tensões, separações e violências étnicas e sociais” (Cunha, Bacelar, Alves, 2004).

Daí também a força – que remete à perspectiva curatorial – do título evocando Brasis no plural. Nesse sentido, não se trata de uma crítica em relação à curadoria apenas, como dois âmbitos – crítica e curadoria – que entrassem em oposição, mas da própria curadoria como crítica e como modo de produzir conhecimento e pensamento. Ou, ainda, para usar os termos propostos por Michel Foucault (1990) ao dissertar sobre o que é a crítica, trata-se de perceber um movimento que dá a ver as relações entre saber e poder na manutenção do significado de arte.

O texto de Foucault é evocado aqui na medida em que ele propõe uma genealogia da emergência do que ele vem a chamar de “atitude crítica”. Essa atitude, que se configura como um modo de se colocar diante do mundo e das questões políticas e sociais em uma determinada sociedade, Foucault a localiza na formação do que viriam a ser os Estados-nação, como tensionamento ao fato de ser governado de uma determinada forma e por um determinado grupo social hegemônico. Isso teria, segundo ele, desencadeado o que denominou como uma atitude crítica em resposta a uma atitude coercitiva do poder, e, mais ainda, ao vínculo entre saber e poder: “Justamente no momento em que se põe o problema: como ser governado, vai-se aceitar ser governado desse modo?” (Foucault, 1990). Na ocasião, ele trata desse tema da crítica em uma conferência proferida na Sociedade Francesa de Filosofia em 1978, posteriormente publicada em 1990. O que interessa aqui destacar é justamente o modo como ele articula a emergência de uma atitude crítica à governabilidade e ao exercício de um poder de Estado.

Ler a atitude crítica por essa chave permite ressaltar o modo como a composição de muitas das obras presentes na exposição Dos Brasis, como veremos adiante mais detalhadamente, está imbuída desse gesto crítico, visto que tratam justamente do desacordo em relação a um modo de governabilidade baseado no racismo e na formulação de uma nacionalidade cuja hegemonia política é branca, ainda que fundada sob um ideal de mestiçagem cultural que foi usado como fomento para uma política de embranquecimento social do país. Dessa forma, a produção artística que se apresenta na exposição reencena, na contemporaneidade, algo do que provocou essa atitude crítica: a que se destina o exercício do poder sobre determinados setores da sociedade? Como lidar com o vínculo entre poder e saber quando estes incidem de forma violenta sobre corpos e existências consideradas à margem da humanidade ou, na perspectiva mais recente, à margem de uma cidadania plena? Como lidar com o vínculo entre poder e saber quando estes foram usados para justificar atrocidades como o tráfico escravista, a política de branqueamento e a consequente situação de indigência cognitiva produzida pela precarização das condições de vida da população negra brasileira?

Isso fica evidente, por exemplo, na segmentação da exposição em diferentes núcleos, intitulados, a saber: Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá, como também no aporte teórico-crítico que fundamenta a linha curatorial, amparado em autores e autoras tais como Beatriz Nascimento, Emanoel Araújo, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez e Luiz Gama.

Luiz Gama foi um proeminente advogado baiano que na segunda metade do século XIX liderou o movimento abolicionista, assumindo a defesa jurídica de pessoas escravizadas que se achavam em situação ilegal e em processos de alforria. Foi crítico do regime monarquista e do racismo (na época, preconceito de cor) no Brasil. Também atuou como escritor, tendo publicado em vida o livro Primeiras trovas burlescas, em 1859. É conhecida a sua frase, proferida durante um júri, de que o escravo que mata o seu senhor, seja em que circunstância for, o faz sempre em legítima defesa, o que certamente inspirou o título de um dos núcleos da exposição Dos Brasis.

Alberto Guerreiro Ramos, por sua vez, foi um sociólogo, baiano de Santo Amaro da Purificação, pioneiro na formulação do racismo enquanto uma patologia do branco brasileiro, em livro publicado em 1957 (Sovik, 2009, p. 52). Guerreiro Ramos criticou os estudos do que designou como “negro-tema”, ou seja, estudos realizados por pesquisadores brancos que tomam a população negra como objeto, percebendo sua “contribuição” à nação (mestiça) na forma de música e culinária, mas que ignoravam o “negro-vida”, isto é, não como um objeto estanque e com uma referência ancorada no passado, mas como agente em constante movimento, fundamental para a construção do país. Foi, nesse sentido, um dos pioneiros na formulação do que hoje se constitui como os estudos da branquitude no Brasil.

Beatriz Nascimento foi uma historiadora sergipana, radicada no Rio de Janeiro, que, nos anos 1970 e 1980, propôs desenvolver uma história dos quilombos no Brasil, ou mesmo uma história do Brasil a partir dos quilombos, principalmente através da importância da cultura bantu na formação quilombola e na constituição do próprio país. Em seu projeto, Beatriz Nascimento buscava conceituar a noção de quilombo para além da historiografia, como explicita ao falar sobre as dificuldades e pretensões de sua pesquisa, dentre as quais a demanda por especialistas de outras áreas das ciências humanas, como geografia, antropologia e linguística, bem como de áreas tecnológicas (Nascimento, 2021, p. 148). Dentre as contribuições de Beatriz Nascimento, destaca-se a conceituação do racismo como ideologia e a defesa da formulação de uma história da população negra e do Brasil protagonizada pela população negra, que, segundo ela, ainda estaria por ser feita (Nascimento, 2021, p. 45).

Lélia Gonzalez, historiadora e filósofa mineira radicada no Rio de Janeiro, também teve importante atuação política e intelectual nos anos 1970 e 1980. Dentre suas inúmeras contribuições, destaca-se o modo como articulava a discussão sobre racismo no Brasil às questões de gênero e ao sexismo, percebendo tanto no movimento feminista uma lacuna em relação ao debate racial quanto no movimento negro uma necessidade de se articular ao debate feminista e de desigualdade de gênero. Lélia formulou a ideia da categoria político-cultural de amefricanidade, destacando a relevância do aspecto cultural enquanto força que perpassaria o debate racial e de gênero em diferentes países da América Latina, ou, como ela gostava de chamar, a Améfrica Ladina (Gonzalez, 2020, p. 127). Esta noção cunhada por Lélia Gonzalez inspirou o título do núcleo Amefricanas na exposição Dos Brasis.

Por fim, Emanoel Araújo, artista plástico e curador, baiano de Santo Amaro da Purificação, foi diretor do Museu de Arte da Bahia nos anos 1980 e diretor curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo, até o ano de sua morte, em 2022. Teve uma carreira proeminente no Brasil e no mundo. Em seus trabalhos escultóricos, tinha como referência fundamental a cultura negra, em especial o candomblé. Uma de suas esculturas mais conhecidas chama-se justamente Baobá, nome de uma árvore sagrada de origem africana, que esteve exposta no núcleo de mesmo nome da exposição Dos Brasis, ocupando o lugar central no salão das esculturas (Figura 12).

Nota-se, desse modo, que não só as obras, mas sobretudo o ato curatorial esteve bastante atento às temáticas apontadas acima, ao propor núcleos que respondem e dialogam de formas distintas com questões também distintas entre si acerca do debate racial e da cultura negra nos Brasis, em detrimento de divisões que priorizassem cronologia, estilo ou linguagem. É importante destacar ainda que, além da pesquisa curatorial, houve uma residência artística on-line intitulada “Pemba: Residência Preta”, com mais de 450 inscrições e 150 residentes selecionados, reunindo artistas, educadores, curadores e críticos.[1]

Em um texto sobre a 35ª Bienal de São Paulo, que ocorreu em grande parte paralela à Dos Brasis, Bernardo Carvalho (2023) afirma que, de um modo geral, as obras expostas na Bienal que buscam reparação histórica recusam contradições, salvo o vídeo Uma mulher pensando, de Aida Harika Yanomami.

Muitas na Bienal são obras da vontade (e não da contradição), são asserções, expressão da cultura (e não da dúvida). Não há ruído nem problema entre o que querem dizer e o que dizem; estão do lado do que é justo, do que é consenso entre quem as busca como confirmação. E nesse sentido são moralmente inquestionáveis. (Carvalho, 2023)

Segundo ele, essa “adequação moral” das obras apresentadas estaria de acordo com o “pacto garantido pela cultura” de quem vai à Bienal. Sendo assim, a curadoria da Bienal estaria se afastando de um dos pilares da tradição moderna da ruptura, das elipses e da valorização das contradições, estabelecendo mesmo uma guerra contra as descontinuidades entre arte e vida, o que representa, para ele, uma reciclagem da lógica da moral e dos costumes, ainda que constituam propostas de outra moral e de outros – e novos, mas talvez nem tão novos assim – valores. Esse distanciamento do valor da contradição na arte, e a adequação a um pacto moral, acaba ferindo, para o autor, o princípio crítico de que uma obra não pode ser, ao mesmo tempo, artística e inquestionável, ou seja, de que a função da arte é justamente pôr em dúvida as certezas, por mais idônea que seja a moral de que a obra está imbuída.

No entanto, o que Carvalho parece não levar em consideração é todo um “estado de coisas” em relação ao qual certas obras se constituem. É evidente que o questionamento de uma mulher yanomami sobre a cultura yanomami coloca em xeque a romantização que se faz do outro como ser uno e coerente em relação à sua própria cultura, como uma concepção estanque ideal e desprovida de movimento – problema este levantado por Gayatri Spivak em relação ao pensamento dos “filósofos da diferença” Foucault, Deleuze e Guattari em Pode o subalterno falar?

Essa postura de tomar o “outro” como um sujeito uno, ao passo que se critica a unidade da noção de sujeito erigida na modernidade ocidental, não deixa de guardar um ranço colonial segundo o qual os indígenas não teriam direito à dúvida quanto à sua própria identidade que aparece muitas vezes como boia de salvação para um modelo de sociedade em decadência – e que elege, nessa alteridade idealizada, novas certezas e paradigmas capazes de salvar a humanidade.[2]

Ainda assim, esse questionamento não diminui a força com a qual as obras que recusam expor e explorar as contradições, no que ele chama de uma “moral inquestionável”, interpelam o estado de coisas de um país profundamente conservador e excludente, e cuja realidade social e política ancora-se em princípios racistas, misóginos e fóbicos em relação às expressões dissidentes de gênero e sexualidade. Ao relacionar nacionalidade e cisgeneridade enquanto prática de gênero colonial, a artista e professora Dodi Leal chama a atenção para o modo como os “fluidos corporais são controlados pelo Estado, e o poder de decisão sobre o corpo também. Todas essas formulações do Estado que vão reger nossas corporalidades têm um caráter de definir quem é verdadeiramente da nação” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 15).

Se, na concepção de Carvalho, o público da Bienal de 2023 – e poderíamos igualmente estender à exposição Dos Brasis – é um público que aceita o pacto garantidor da moral apresentada pelas obras – e pela curadoria –, o que por si só já é uma assertiva questionável, isso não diminui a contundência da escolha curatorial – e da crítica empreendida através da curadoria.

Nesse sentido, é importante perceber o papel da curadoria, para além das obras tomadas “individualmente”, e sua maior ou menor adequação ao pacto garantidor da moral. Castiel Vitorino Brasileiro, uma das artistas presentes em Dos Brasis, ressalta, em diálogo com Dodi Leal, a necessidade de “ter mais pessoas negras, trans e indígenas fazendo curadoria, fazendo crítica” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 16). Nesse sentido, o que Dos Brasis apresenta, por exemplo, ao reunir obras de artistas negros e negras que vão do século XVIII ao século XXI, pode ser lido como uma reescrita de boa parte da história da arte no Brasil, uma história que precisa ser revista e refeita continuamente, como destacou Beatriz Nascimento. Uma história da arte que já se faz ao mesmo tempo no presente e no porvir.

O fato de se coadunar com a proeminência e a projeção que vozes e discursos dissidentes da hegemonia branca vêm ganhando nos últimos anos, a despeito de um recrudescimento avassalador do conservadorismo, não significa que a curadoria ou as obras apresentadas estejam isentas de contradições ou, mesmo que estejam, que isso se configure como um aspecto negativo. Assumir essa perspectiva significa reconhecer a importância de uma assertividade que possa abandonar o paradigma das contradições para que se constitua como força de uma história a ser (re)escrita, sobretudo quando se tem em vista o que precisa ser feito em termos de reparação e reconstrução. Retomando mais uma vez os dizeres de Castiel Brasileiro,

A contradição é um encontro de caminhos, e nesse encontro existe a decisão por qual caminho tomaremos, um dos caminhos pode ser a eliminação da contradição, mas também nessa encruzilhada, nesse encontro de caminhos é possível cultuar justamente esse momento onde tudo se desfaz. (Brasileiro; Leal, 2021, p. 11)

Quando pensamos no cenário cultural e político atuais, esse problema surge diante do imenso desafio ético, estético, social e civilizacional que se coloca contemporaneamente.

A primazia que a curadoria ou a figura do/a curador/a assumem a partir dos anos 1970, o que no Brasil se firma a partir dos anos 1980, em detrimento da figura do crítico, conforme aponta Francisco Alambert (2014), parece sugerir uma oposição, estampada no termo que intitula a chamada para o texto de Alambert publicado no portal Sesc SP: Curadoria versus crítica de arte. Segundo ele, o curador, em vez de se limitar ao espaço de “conservador” de obras de arte e de seu acervo, passa a atuar e a ser compreendido como um autor e produtor na medida em que cria um discurso ou um sentido em uma exposição, num processo de mediação entre o mercado da arte e o público.

Essa criação de conexões entre a arte e o público através de um discurso ou de uma curadoria que produz uma exposição com um nexo de significação e valor – ou seja, com um sentido e uma direção captáveis pelo público – parece bastante evidente em Dos Brasis, sobretudo na segmentação em núcleos nos quais diferentes aspectos das relações raciais são trabalhados: Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá. Aspectos como a crítica à percepção da população e da cultura negras como objetos de estudo estanques e solidificados no tempo, o tensionamento com a perspectiva de uma convivência racial harmônica através da asserção e exposição do conflito racial, as organizações político-sociais de combate ao racismo, a valorização de elementos das culturas e religiões negras e afro-diaspóricas como valores civilizacionais e modos de organização social.

No entanto, o que se busca ressaltar aqui é que, a despeito de uma crítica enquanto percepção externa à curadoria, essa atitude curatorial já é por si só uma atitude crítica frente a um discurso – ou a discursos – hegemônicos provenientes da historiografia oficial, ou mesmo de uma história da arte. No caso, em Dos Brasis, a crítica a essa historiografia e à percepção de Brasil se dá já no título da exposição, que opta por tratar um país no modo plural, fazendo emergir no espaço expositivo os embates, as contradições, os tensionamentos.

Nesse sentido, a curadoria e as obras não parecem se adequar a uma nova conformação moral, mas justamente evocam uma inquietação com um estado de coisas, inclusive do próprio modo de funcionamento do mercado da arte. Na exposição, tais provocações se iniciam ainda na parte externa do Sesc Belenzinho, na instalação Sinalização Profética, de Augusto Leal, com placas nas quais se leem os avisos “Curador simpático a 200m”, “Patrocinador imparcial a 600m”, “Produção cultural sensível a 300m” (Figuras 1, 2 e 3). Ou, ainda, no trabalho de Paula Duarte intitulado Nem o sabão é neutro (Figuras 4 e 5), que evoca, para quem leu Stuart Hall (2016) em “O espetáculo do ‘outro’”, os usos e abusos do racismo nas propagandas de sabão que trabalham subjacentemente com o binômio limpo/sujo – e que não se limitam ao sabão Pears e ao período colonial inglês analisado por Hall, conforme demonstram casos recentes na publicidade (Santahelena, 2017; BBC Brasil, 2016).

Castiel Brasileiro, por sua vez, relaciona a questão da limpeza e da sujeira à construção do sujeito moderno como sujeito límpido, segundo a formulação proposta por Denise Ferreira da Silva em A dívida impagável, destacando, ainda, que no contexto brasileiro a busca da limpidez e da higienização se relaciona também com “a eliminação de um passado contraditório” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 23), diante do qual a neutralidade é no mínimo constrangedora, para usar o termo cunhado no sabão por Paula Duarte.

Figuras 1, 2 e 3: Augusto Leal, Sinalização Profética, 2023. Fonte: Arquivo pessoal.

Figuras 4 e 5: Nem o sabão é neutro. Paula Duarte, 2023. Fonte: Arquivo pessoal.

Os livros de Manuel Querino, as esculturas de Mestre Valentim (Figura 6) e o Autorretrato de Wilson Tibério (Figura 7) compõem, junto às intervenções sobre os desenhos de Johann Moritz Rugendas e Jean-Baptiste Debret realizadas por Marcus Deusdedit (Figuras 8 e 9), uma historiografia de arte brasileira a partir da perspectiva negro-africana e diaspórica. Mas não se trata apenas de revisionismo histórico, trata-se da rearticulação de elementos de significação para uma historiografia e para uma configuração de Brasil que demonstram a passagem do negro-tema destacado por Guerreiro Ramos para o “Branco tema” e para o “Negro vida”, como o ferro que remete aos assentamentos de pomba-gira sobre veludo vermelho, que ocupam o espaço inicial da exposição, na obra de Jade Maria Zimbra, Xica Maria, Teu Amor para mim não é Fantasia (Figura 10), e emprestam outro sentido às joias de crioula ao lado das quais a obra se encontra (Figura 11).

Figura 6: Mestre Valentim, Conjunto de três continentes: África, América e Ásia, século XVIII.
Figura 7: Autorretrato de Wilson Tibério, 1941. Fonte: Arquivo pessoal

Figuras 8 e 9: Marcus Deusdedit: Intervenção sobre Moinho de Açúcar, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (2022), Intervenção sobre Mercado de Escravos, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (2022) e Intervenção sobre Retorno de um Proprietário, de Jean Baptiste Debret, 1816 (2022). Fonte: Arquivo Pessoal.
Figura 10: Jade Maria Zimbra, Xica Maria, Teu Amor para mim não é Fantasia, 2021.
Figura 11: Joias de crioula. Fonte: Arquivo pessoal.

Os elementos ligados ao candomblé e à umbanda, bem como o uso de línguas como o iorubá, contribuem também para a percepção de Brasis que coexistem e que tensionam, porque agenciam outras forças capazes de dar sentido e valor ao que seja uma política da verdade no jogo entre poder e saber e na busca por legitimação de sensibilidades que existem à margem da ordem vigente. Modos de vida, por exemplo, que se colocam Entre o obé e o livro (2023), segundo o título de uma instalação de Pandro Nobã, composta por gamelas pintadas em tinta acrílica e uma tela pintada a óleo.

Destaca-se, ainda, como o espaço expositivo contribui para o impacto da exposição e o próprio fazer curatorial, como fica evidente no salão de esculturas, onde se encontra uma réplica da estrutura de madeira feita por Mestre Didi para o Ilê Asipá, terreiro de culto a Egungun no qual ele era sacerdote, debaixo da qual figura o Baobá de Emanoel Araújo (Figura 12).

Figura 12: Espaço expositivo do Sesc Belenzinho na exposição Dos Brasis. Fonte: Arquivo pessoal.

A epígrafe deste artigo é de um texto-poema-comentário acerca do projeto Conversas Críticas sobre Curadoria promovido pelo Instituo Moreira Salles, em que a curadora e artista Ana Lira traz algumas questões e impasses acerca da curadoria, do mercado de arte e da missão cada vez mais desafiadora de descentralizar a circulação da produção artística do eixo Rio-São Paulo. Missão que requer ir a fundo em Brasis nem sempre tão visíveis às curadorias que se encontram nos circuitos hegemônicos de arte. O presente artigo buscou, portanto, contribuir para o debate em torno das relações férteis entre crítica e curadoria tomando como tema a curadoria da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, que se afirma como uma alternativa contundente e compartilhável com o público de crítica tanto à história instituída na hegemonia branca e nacional das artes brasileiras quanto ao racismo histórico e cotidiano no país.

* Felipe Wircker Machado, doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, é bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (PPRER-CEFET/RJ), onde leciona, e desenvolve pesquisa pós-doutoral também no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), através do projeto intitulado “Candomblé, Verger, Bastide e o confronto com o racismo no Brasil”.
Referências bibliográficas
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Audiovisual

Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro [exposição]. Pesquisa de Hélio Menezes e Igor Simões. Curadoria geral de Igor Simões. Curadoria adjunta de Lorraine Mendes e Marcelo Campos. Sesc Belenzinho (São Paulo), 2 de agosto de 2023 a 28 de janeiro de 2024.
Notas
[1] As aulas públicas que fizeram parte do programa da residência estão disponíveis no canal do Sesc Brasil no YouTube: https://www.youtube.com/@SescBrasil.

[2] Castiel Vitorino Brasileiro fala sobre o tema da salvação em diálogo com Dodi Tavares Borges Leal, cf. Brasileiro; Leal, 2021.