dossiê
Tempo de leitura estimado: 38 minutos

REFLEXÕES DE ALICE: DIREITOS HUMANOS, CARNAVAL E DIVERSIDADE

Resumo: O trabalho lança questionamentos sobre as obras Alice no Brasil das Maravilhas, desfile carnavalesco assinado por Joãosinho Trinta, e Alice e o chá através do espelho, série fotográfica e performance realizadas por Rafael Bqueer, em cotejo com as reflexões de Luis Alberto Warat, para quem a introdução da arte na vida do direito é um movimento fundamental para se pensar a diversidade e a não-normatividade. Objetiva-se mostrar que os jogos de inversão propostos por João Trinta e Bqueer (a tradução de Alice em “corpos distópicos”, negros, gays, marginalizados) servem para que as teorizações de Warat sejam atualizadas e direcionadas para o urgente e complexo universo das questões LGBTQI.

Palavras-chave: Direitos humanos; carnaval; diversidade.

Abstract: The work focuses on the works Alice no Brasil das Maravilhas carnivalesque parade signed by Joãosinho Trinta, and Alice e o chá através do espelho, photographic series and performance made by Rafael Bqueer, in comparison with the reflections of Luis Alberto Warat, for whom the introduction of art in the life of the law is a fundamental movement to think about diversity and non-normativity. The objective is to show that reversing games proposed by João Trinta and Bqueer (the translation of Alice in “dystopian bodies”, black, gay, marginalized) serve for the theorizing of Warat be updated and directed to the urgent and complex universe of LGBTQI issues.

Keywords: Human rights; carnival; diversity.

 

Introdução

Fazendo jus à tradição das proféticas narrativas finisseculares, os enredos (narrativas escritas e conjuntos visuais formados por fantasias e carros alegóricos) concebidos pelo carnavalesco Joãosinho Trinta e apresentados no período de 1974 a 2005 clamavam por justiça social e procuravam despertar a atenção do público e dos jurados para os grandes problemas da história brasileira. Dono de um discurso político afiado, o artista maranhense falou sobre a preservação da natureza, a valorização dos saberes afro-ameríndios, as chagas sociais ocasionadas pela concentração de renda, a urgência dos direitos humanos e do combate ao racismo e à homofobia. Em 1991, ao transformar em enredo da Beija-Flor de Nilópolis a história de Alice, a mais famosa personagem do escritor Lewis Carroll, tal constante de discursos críticos e reivindicatórios não foi interrompida. Ao contrário: em Alice no Brasil das Maravilhas, a perspectiva crítica se viu fortalecida, já que as peripécias da personagem britânica sempre estiveram carregadas de politização.

A despeito de ser genericamente considerado uma obra de “literatura infantil”, o texto de Carroll, publicado em 1865, transporta o leitor a uma sucessão de situações marcadas pela violência, a começar pelos discursos genocidas (que nunca se concretizam, apesar das ameaças) da temida Rainha de Copas. Em um contexto dos mais autoritários, Alice aponta o despotismo da mandatária e desnuda a arbitrariedade com que os julgamentos são conduzidos no decorrer da história: jardineiros são condenados à morte porque plantaram rosas brancas em vez de rosas vermelhas; as provas do tribunal (em que o rei é também juiz) são manipuladas ao sabor do vento, com o fim único da punição violenta. São tantos os brados de “Cortem as cabeças!” que não parece descabida a afirmação de que “em Wonderland, como na Alemanha nazista e nos demais regimes totalitários, algumas pessoas são descartáveis (literalmente, no caso das cartas de baralho) pelo simples fato de existirem (…)” (Bora, 2010, p. 108).

Tal substrato textual foi traduzido em um desfile carnavalesco de poderosas críticas às omissões da sociedade e dos Três Poderes brasileiros. Conjunto simbólico que, mais de 20 anos depois, despertou a atenção do artista paraense Rafael José Bandeira da Penha, que assina Rafael Bqueer. Como o próprio nome artístico insinua, a preocupação central da produção do performer é discutir questões e perspectivas plurais de identidade, sexualidade e gênero, desconstruindo padrões e normatividades na esteira das provocações do ativismo queer, que defende que “novas identidades podem ser criadas, recriadas e subvertidas permanentemente e que todas elas são importantes, sem hierarquias (…)” (Colling, 2015, p. 240-241).

A escolha de Alice no Brasil das Maravilhas enquanto ponto de partida, algo não gratuito, desperta a atenção do leitor literário (afinal, trata-se de um diálogo intertextual dos mais ricos) e convida o espírito crítico (sem qualquer fim absolutizante) a um manancial de questionamentos. O que se objetiva, neste trabalho, é tecer indagações a partir das proposições de Bqueer, artista contemporâneo que buscou reatualizar, em contextos distintos, a problemática de que falou Joãosinho Trinta no carnaval de 1991. Para isso, serão enfocadas questões referentes ao universo LGBTQI, em especial ao ativismo queer, uma vez que o artista propõe a reconfiguração das discursividades que envolvem (atacam e não raro condenam à morte) os corpos que não se enquadram nos padrões heteronormativos impostos historicamente. Antes, porém, serão apresentadas algumas provocações de Luis Alberto Warat, teórico do direito que propôs o mergulho no oceano das artes enquanto estratégia para a humanização da prática jurídica. Pretende-se, por meio da conversa com Warat, verticalizar os apontamentos críticos e tocar a seara dos direitos humanos – uma experimentação ensaística em busca da radicalidade do direito à diferença.

Lewis Carroll e Luis Alberto Warat: Aliceando Themis

O cenário jurídico latino-americano se viu atordoado, em 1988, diante da publicação de uma curta e extremamente provocativa obra assinada por Luis Alberto Warat, um dos mais heterodoxos teóricos do direito argentino. Intitulado Manifesto do Surrealismo Jurídico, o texto convidava os leitores à humanização radical do direito e à celebração da vida em suas múltiplas manifestações, contra as camisas de força da tradicional “ciência jurídica” e contra qualquer tentativa de opressão e planificação (ou normatização/normalização) das diferenças (Bora, 2010, p. 41). Em outras palavras, um convite à carnavalização e ao gozo irrestrito dos direitos humanos.

Segundo Warat, o ensino da “ciência jurídica” falha ao cair em abstrações que não dão conta da complexidade do real e das demandas dos excluídos, produzindo legiões de juristas incapazes de ouvir os gritos das ruas. Para ele, o direito “pode mais afastar as pessoas da real possibilidade da justiça do que aproximá-las das esvoaçantes vestes de Themis” (Bora, 2010, p. 47), ou seja: o direito pode se converter em uma ferramenta de segregação, impedindo que inúmeras pessoas tenham acesso à deusa grega da justiça, obstruindo a passagem para a cidadania plena e para a efetivação dos direitos humanos (o que, no limite, pode ser exemplificado pelas “soluções finais” dos regimes nazifascistas, pelo apartheid sul-africano, pela condenação de homossexuais à morte e pela perpetuação de práticas de violência contra a mulher em inúmeros países teocráticos etc). É por isso que, na contramão do império da racionalidade jurídica que, na visão dele, só faz reverberar a opressão e a violência estatal, propôs a inclusão da arte na vida do direito e destacou a importância do nomadismo e da transdisciplinaridade.

Desde então, o manifesto vem sendo interpretado à luz dos mais inusitados pontos de vista, sobrando leituras conflitantes, o que reforça o caráter experimental da obra. Poético, o texto se diz “um protesto contra a mediocridade da mentalidade erudita e, ao mesmo tempo, um saudável desprezo pelo ensino enquanto ofício” (Warat, 1988, p. 13). Ao denunciar as limitações de um ensino autorreferente, antecipava as discussões contemporâneas sobre os “lugares de fala” e acenava para as pedagogias freireanas, contra a chamada “educação bancária”, aquela segundo a qual “o educador se coloca acima dos educandos, figurando enquanto única fonte do saber que, num ato paternal (melhor é dizer patriarcal), doa/transfere o conhecimento aos educandos” (Bora, 2010, p. 48-49). O manifesto de Warat, diferentemente, advoga pela educação problematizadora e argumenta que isso só é possível por meio do diálogo com as artes.

O diálogo entre o direito e a literatura vem gestando, nas últimas décadas, publicações das mais interessantes, como Contar a lei – as fontes do imaginário jurídico, de François Ost, e Poetic Justice – The Literary Imagination and Public Life, de Martha Nussbaum. No Brasil, a professora Vera Karam de Chueiri, doutora em filosofia do direito pela New School for Social Research e ex-aluna de Luis Alberto Warat, coordenou o grupo de pesquisa em direito e literatura da Universidade Federal do Paraná, dentro do qual eu desenvolvi a pesquisa que culminou na monografia de conclusão de curso intitulada O direito pego pelo rabo – Aliceando Themis, defendida em novembro de 2010. Já no título, procurei expressar a provocação sugerida por Warat, dialogando com Pablo Picasso e com a peça surrealista O desejo pego pelo rabo, “encenada” em 1944 por um elenco dos mais notáveis (participaram da leitura dramática, realizada na casa de Michel Leiris, em Paris, Jacques Lacan, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre e Albert Camus). Ao longo do texto, propus a aplicação das ideias defendidas por Warat no manifesto de 1988 a partir do diálogo com Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e com algumas criações carnavalescas de Joãosinho Trinta, artista que fez da Passarela do Samba o palanque ideal para expressar um sem-fim de indignações sociopolíticas.

A escolha de Alice no País das Maravilhas se deu, em parte, porque a obra tensiona, sucessivas vezes (ainda que de forma indireta), a ideia de corpo: Alice muda de tamanho e se apresenta indócil; as cartas de baralho, metáfora precisa, oprimem e são oprimidas enquanto corpos massificados, amedrontados e descartáveis. Ora, Warat desfia reflexões sobre o controle normatizador dos “corpos indóceis” no Manifesto do Surrealismo Jurídico, afirmando que os regimes autoritários trabalham contra as diferenças e substituem as instâncias jurídicas pelas instâncias disciplinares – o que produz “corpos dóceis” e “úteis” para a manutenção de uma determinada ordem (o condicionamento das relações sexuais e das definições de gênero aos fins procriativos, por exemplo, ideia que contribui para a sustentação da homofobia, da transfobia, da misoginia e de inúmeras outras exclusões simbólicas). Nas palavras do autor:

Nas instâncias disciplinares do poder se afeta mais um corpo observado, vigiado e classificado que uma consciência alienadamente configurada. A produção social da subjetividade encaminha-se, assim, para um futuro sem oportunidades, vencida pelas práticas disciplinares de individuação dos corpos. Corpos vazios, proibidos de pensar e identificar-se com qualquer tipo de significações (Warat, 1988, p. 102).

O estado de vigilância, no País das Maravilhas, é permanente: os oprimidos (a exemplo dos jardineiros) revelam a opressão introjetada e as noções de panoptismo e micropoder entram em cena, convidando às leituras de Michel Foucault. O filósofo francês apresenta, em Vigiar e punir, a ideia de que o panóptico, estrutura prisional em formato circular que estimulava a introjeção da opressão (os presos não sabiam se estavam ou não sendo observados, de modo que superdesenvolviam o senso de vigilância), sintetiza, no imaginário punitivo contemporâneo, a necessidade de docilização dos corpos. Nos termos do autor, o panoptismo “automatiza e desindividualiza o poder” (Foucault, 2006, p. 167). Os corpos dos presos, a exemplo dos corpos dos “anormais”, se veem condenados a uma docilização forçada, inseridos que estão em uma teia biopolítica das mais amarradas. Recorrendo a Giorgio Agamben (2004), pode-se dizer que os moradores de tão exótico lugar vivem um estado de exceção ininterrupto: as vidas dos cidadãos são capturadas pelo aparato judicial e julgadas ao sabor do vento, sem acesso a garantias básicas, como o devido processo legal e o contraditório.

Durante o tribunal instaurado às pressas para investigar (a rigor, condenar o Valete) um suposto roubo de tortas, Alice, revoltada com a manipulação das provas e com a violência dos discursos proferidos, contesta o poder do rei-juiz e se apresenta enquanto a “rebelde que se nega a obedecer determinadas regras, figura comum nas narrativas distópicas” (Bora, 2010, p. 121). A exemplo do selvagem de Admirável mundo novo e dos rebeldes homens-livros de Fahrenheit 451, Alice pode ser entendida enquanto corpo destoante, que se nega a aceitar passivamente a opressão. Nesse sentido, aos olhos dos dominantes, um “corpo distópico”, não enquadrável nos padrões desejados e impostos à força mediante o aparato jurídico-político do Estado. O corpo de Alice perturba a lógica do tribunal – e a mudança de tamanho da personagem não é um efeito narrativo à toa. Contra a univocidade dos sentidos, a personagem questiona o posto e desvela o imposto, utilizando da inversão carnavalesca enquanto estratégia desconstrutivista.

A partir de tais apontamentos, pode-se expandir a leitura e pensar a problemática em diálogo com Joãosinho Trinta, artista que levou a inversão aos limites máximos, uma vez que desenvolveu narrativas carnavalescas com o fim de denunciar as históricas mazelas brasileiras. Seguramente, o carnaval do nosso país, em suas múltiplas facetas, é uma manifestação cultural em que a noção de “docilidade” dos corpos é relativizada ao extremo. No Rio de Janeiro, fervilham os corpos indóceis pelos quatro cantos da cidade, das drags de Ipanema aos bate-bolas de Campo Grande, passando pelos históricos cucumbis e, é claro, pelas pernadas ligeiras dos passistas das escolas de samba. No desfile assinado em 1991, Alice no Brasil das Maravilhas, não seria diferente.

Alice no Brasil das Maravilhas

Em 1989, o renomado carnavalesco Joãosinho Trinta (que já havia conquistado sete títulos de campeão do Grupo Especial do Rio de Janeiro, dois à frente da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro e cinco à frente da Beija-Flor de Nilópolis) apresentou, no Sesc Pompeia, em São Paulo, a exposição intitulada Alice no Brasil das Maravilhas, assim descrita pelos pesquisadores Fábio Gomes e Stella Villares:

Dirigida principalmente às crianças, a mostra reúne 42 quilômetros de samambaias de plástico, quatro mil metros de plumantes imitando nuvens, um gigantesco Chacrinha, brilho em profusão de purpurina e brocal, animais gigantescos de pelúcia, centenas de espelhos e 14 aparelhos de televisão, numa instalação fantástica que congrega videoarte, desenho, pintura, computador, literatura, happening, escultura, performance, luz, sombra, cor. Tudo inspirado no universo prodigioso, lúdico e mágico do romance de Lewis Carroll, obra-prima da literatura infantil, cujo título foi muito oportunamente adaptado para Alice no Brasil das Maravilhas (Gomes; Villares, 2008, p. 165).

A exposição, considerada um sucesso de público e crítica, serviu de estopim reflexivo para o que o artista desenvolvesse, dois anos mais tarde, um enredo carnavalesco de mesmo título, Alice no Brasil das Maravilhas, a penúltima narrativa apresentada ao público sob as cores da agremiação nilopolitana (após o carnaval de 1992, quando falou sobre a televisão, Joãosinho Trinta se desligou da Beija-Flor e ficou um ano afastado dos festejos de Momo, retornando à folia em 1994, à frente da escola de samba niteroiense Unidos do Viradouro). Mais do que delirante, o enredo de Joãosinho se propunha a rever criticamente os problemas crônicos do Brasil, como a crise habitacional, a concentração de renda, os jogos de privilégios, os preconceitos sociais como um todo. Segundo o também carnavalesco Milton Reis Cunha Júnior, em sua tese de doutorado em Teoria Literária, há, em Alice no Brasil das Maravilhas, o “núcleo temático da desgraça brasileira”, marcado por “egoísmo, desamor, corrupção, sem-vergonhices, negociatas, ‘politiqueiros que estão construindo a triste história deste país’” (Cunha Júnior, 2010, p. 159).

O fato que mais chamava a atenção, no início do desfile da Beija-Flor, era justamente a caracterização da protagonista da história a ser contada. Assim como o defendido no texto apresentado à imprensa e ao corpo de jurados, a Alice do “Brasil das Maravilhas” não era branca nem tinha cabelos louros. Interpretada pelo ator (homossexual assumido) Jorge Lafond, que se notabilizou nacionalmente ao dar corpo e voz à personagem Vera Verão, a Alice de Joãosinho Trinta sintetizava, a um só tempo, preconceitos e inversões. Lafond era figura carimbada nos carnavais da Beija-Flor e havia causado polêmica, no ano anterior, ao se apresentar completamente nu sobre a alegoria de um vulcão. Tratava-se de um inteligente protesto de Joãosinho Trinta, revoltado que estava com a proibição da “genitália desnuda” e com o suposto “encaretamento” dos festejos: mostrou ao júri um destaque (Lafond) com o corpo despido porém coberto de purpurina, alegando que os órgãos genitais não estavam desnudos, mas decorados. A argumentação foi aceita e a escola não perdeu pontos regulamentares; no ano seguinte, no entanto, o texto do regulamento foi alterado e a regra estrangulou as possibilidades: estava proibida a “genitália desnuda, pintada ou decorada”. Em 1991, Lafond usaria sapatos de salto, minissaia azul, mangas bufantes (o torso nu à mostra), rufo no pescoço e laçarote na cabeça. Nas mãos, uma máscara de coelho branco.

Não é possível pensar a representatividade da Alice de Joãosinho Trinta, interpretada por Jorge Lafond, dissociada de uma reflexão sobre as estreitas relações entre sexualidades não-normativas e carnaval. O antropólogo Fabiano Gontijo, no início do livro O Rei Momo e o arco-íris: homossexualidade e carnaval no Rio de Janeiro, afirma que “mais do que feminizar parece que o carnaval estaria operando atualmente uma verdadeira ‘homossexualização’ do mundo, servindo cada vez mais de cenário para certa forma de ‘liberação homossexual’” (Gontijo, 2009, p. 20). Ainda segundo o antropólogo, é possível mapear as territorialidades carnavalescas do Rio de Janeiro, a partir da década de 1990 (período em que se insere a apresentação da Beija-Flor de Nilópolis), por meio de critérios ligados às identidades LGBTQI:

No Rio de Janeiro da década de 1990, apareceram as imagens identitárias que retraduziram e “tropicalizavam” o queer movement norte-americano, associadas ao que temos chamado, ainda que precariamente, de “cultura GLS”: barbies e drag queens brincam com as aparências – fake – criando novos espaços de sociabilidade (socialidade?) e de reprodução identitária, como no caso carioca, representado pelo eixo Teixeira de Melo-Farme de Amoedo, em Ipanema; as rave-parties realizadas em locais insólitos e nas quais se escuta música eletrônica (como X-Demente, B.I.T.C.H. e outras); as festividades ditas off e “alternativas” do carnaval; as bandas Carmen Miranda e Simpatia É Quase Amor; as escolas de samba São Clemente e Mangueira; ou onde estiverem Milton Cunha e Rubinho Barroso (Gontijo, 2009, p. 29).

Porém, não se pode minimizar a ideia de que, na visão de Gontijo, a despeito da estreita relação entre carnaval e homossexualidade que permeia a geografia cultural do Rio de Janeiro, a aceitação dos “corpos homossexualizados” pode não ser das mais tranquilas quando vencidos os limites (espaciais e temporais) dos festejos momescos. Nos termos dele, “a expressão das homossexualidades é permitida e difundida dentro de certos limites, em particular no universo lúdico do lazer e das festas, como propôs O. Guasch-Andreu (1997)” (Gontijo, 2009, p. 193). Também fala disso o pesquisador Marcelo Santana Ferreira, que teceu reflexões sobre as subjetividades vivenciadas no interior de uma boate gay do subúrbio carioca. O autor revisitou o clássico A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, de Mikhail Bakhtin, e concluiu que no interior de espaços de mediação como uma casa noturna de Jacarepaguá ocorrem trocas simbólicas e jogos subjetivos análogos aos que são vistos durante o carnaval: “na dança vertiginosa ao som de um funk, o corpo ‘grotesco’ (…) e o carnaval se fazem presentes como expressão do antidogmatismo, da fisicalidade e da superação do corpo puro ou mesmo idealizado através dos discursos científicos e sociais dominantes” (Ferreira, 2010, p. 266). Enfatiza-se a ideia de que o carnaval (desde os tempos medievais, conforme os escritos de Rabelais analisados por Bakhtin) é o período em que as dogmatizações do corpo caem por terra, sendo permitido o exercício público de subjetividades e sexualidades não-submissas aos padrões heteronormativos dominantes.

A antropóloga María Elvira Díaz Benítez apresenta ideia semelhante em pesquisa etnográfica realizada na boate Buraco da Lacraia, localizada no bairro da Lapa, no coração do Rio de Janeiro. Segundo ela, a aceitação das identidades homossexuais está condicionada a inúmeras questões, figurando as boates enquanto microcosmos onde as sexualidades “não-heteronormativas” podem ser exercidas com liberdade. No entanto, mesmo no interior desses espaços “liberais” e carnavalizantes podem existir segregações – entre elas, aquelas motivadas pelo poder aquisitivo e pela cor de pele. Ou seja: no “espaço carnavalesco” de uma casa noturna como o Buraco da Lacraia, celebrado pelas “excentricidades”, podem estar albergados diferentes preconceitos, o que, num primeiro momento, soa contraditório. Aqui, entram em cena as reflexões (necessárias para se pensar a figura da Alice de Lafond e da Alice de Bqueer) sobre as sociabilidades e subjetividades homossexuais dos corpos negros. Conclui a antropóloga, ao questionar o porquê de alguns interlocutores se referirem ao Buraco da Lacraia como uma “boate suja” que reunia muita “gente feia”:

Apesar de a heterossexualidade ter se construído como uma normatividade que se legitimou como modelo “correto” de acordo com a moral ocidental e que tem convertido as sexualidades alternativas em desvio, só o fato de ser gay não faz alusão ao feio e sujo se não estiver intersecionado com as características de cor negra e classe baixa. O negro e a “inferioridade” negra construíram-se a partir da criação do branco como modelo social e estético preponderantemente, e no emprego deste mesmo modelo – através de práticas de ação e ideologias sociais – na busca pela essencialização da “superioridade” branca. (…) A relação aparência/cor deve ser enfatizada. Embora os encontros inter-raciais aconteçam habitualmente, é de se ressaltar que, nos universos homossexuais cariocas que pesquisei (além do Buraco), os homens negros atuam como pontos de convergência de preconceitos em torno de sua aparência. Para se inserirem satisfatoriamente neles, especialmente em suas elites, os negros precisam se aproximar do padrão de beleza ideal, do seu estilo e classe. “O negro precisa ser muito mais bonito”, escutei em várias ocasiões do trabalho de campo (Benítez, 2007, p. 134-135).

A autora destaca, ainda, que não raro ouvia a definição de que o Buraco da Lacraia era um espaço frequentado por “mecânicos” e “porteiros”, visão profundamente estereotipada, afinal, “também se está fazendo referência à orientação de gênero dos indivíduos, que neste caso espera-se que seja máscula ou masculinizada” (Benítez, 2007, p. 136). Brota o entendimento de que existe “uma ideia hegemônica quanto à ‘identidade’ sexual do homem negro. (…) É como se o verdadeiro pecado do homossexual negro fosse ‘dar pinta’, mostrar passividade” (Benítez, 2007, p. 138).

Obviamente, a Alice de Jorge Lafond se choca contra a “quase obrigatória” masculinidade (pode-se dizer “macheza”) negra – os autores Fábio Gomes e Stella Villares enfatizam, por exemplo, que a personagem-título foi interpretada por um “negro cheio de trejeitos”, o que põe em evidência o estranhamento que a construção de Lafond causou entre os espectadores. A visão de um homem negro, alto, forte e com trejeitos afeminados é algo que, na visão de Benítez, aciona um misto de preconceitos que revelam jogos hierárquicos: um homossexual branco que usa as roupas da moda, coleciona carimbos no passaporte e discute artes com desenvoltura, independentemente do grau de “feminilidade”, será socialmente mais aceito que um homossexual negro, tanto mais se o homossexual negro for afeminado. Há, portanto, uma “escala de aceitação” enraizada na cartela de preconceitos oriundos de um passado escravocrata e machista – passado este que permanece a sangrar no presente: sangrava em 1991 e sangra em 2016. A releitura proposta por Rafael Bqueer exemplifica isso.

Alice e o chá através do espelho

Em 2 de julho de 2016, o estudante Diego Vieira Machado, de 29 anos, foi assassinado no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão. Negro e gay, tão logo foi divulgada a notícia de que um crime chocante havia ocorrido no interior da universidade, com mais do que evidentes marcas de racismo e homofobia, Diego foi novamente violentado: não foram poucos os comentários, nas redes sociais e nos portais de notícias, de que relacionar a morte a “supostos motivos racistas e homofóbicos” era algo forçado, vitimista, até mesmo irreal – uma “apelação” desmedida em tempos em que “tudo é racismo e homofobia”.

Exemplos como o relatado acima demonstram o quão urgente é o debate acerca da efetivação dos direitos humanos enquanto ferramentas de proteção à vida das populações negras e LGBTQI. É o que discute, com extrema brevidade, um artigo de Djamila Ribeiro para a Carta Capital, em 2015:

Se o pluralismo é próprio da vida em sociedade, é preciso trazer à tona temas centrais que compõem essas várias ideias: a existência de homens e mulheres gays, negros e pobres. Escamotear isso é negar a diversidade (que muitas vezes oculta e invisibiliza) e asseverar a política da homogeneização ou padronização dos corpos e sujeitos. O corpo negro é constantemente objetificado e personagem do imaginário como o viril, o forte, o másculo; prova disso é uma busca rápida pelo mundo virtual com as palavras gays + negros. Saindo do campo do fetiche, o que cabe é o ocultamento e a constante adjetivação com a justificativa “…não tenho nada contra, mas…”. Combater a homofobia é também combater o racismo e o sexismo, são lutas indissociáveis. Ser negro impõe barreira, ser negro e homo ou transexual é o fim (Ribeiro, 2015).

Ciente dessa problemática, o artista Rafael Bqueer decidiu revisitar criticamente, em 2014, a construção de personagem que Jorge Lafond apresentou no carnaval de 1991. Utilizando figurino inspirado na roupa de Alice desenhada pelo ilustrador John Tenniel para a primeira edição da obra de Lewis Carroll, o performer paraense, com a cabeça raspada e longos cílios postiços, numa clara citação a Lafond, percorreu territórios como o lixão do Aurá, em Belém, a favela Santa Marta e a estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e a Avenida Paulista, em São Paulo. Os trajetos, durante os quais bebia chá e oferecia a bebida aos passantes, foram documentados em fotografias e vídeos. O trabalho fotográfico, de forte apelo imagético, rendeu ao artista o 1º prêmio no Edital LGBT de Artes Visuais: Gênero e Identidade, da galeria Transarte Brazil, localizada na capital paulista (lugar onde as fotos foram expostas, no primeiro semestre de 2016). Sobre o trabalho, disse o artista em entrevista concedida à repórter Lais Azevedo, do jornal Diário do Pará:

“É o resultado de uma vida inteira tendo que viver e existir a partir das intolerâncias do outro. (…) Decidi levar meu manifesto para a rua, levando também a minha memória e a estética dos desfiles das escolas de samba. A exposição tem fotos do Rio de Janeiro e do lixão do Aurá, em Belém. As fotos da Alice no lixão são bastante significativas, porque quando retornei para Belém eu busquei habitar lugares e realidades que refletissem a minha percepção pessoal sobre o cenário político brasileiro” (Azevedo, 2015).

Na fala do artista, observa-se a palavra “manifesto”, que automaticamente nos remete às proposições de Luis Alberto Warat. Assim como o teórico argentino, Bqueer abraçou as ideias de nomadismo e transdisciplinaridade, transitando por universos distintos e ressignificando politicamente a Alice de Lewis Carroll e a Alice de Joãosinho Trinta, interpretada por Jorge Lafond. Isso fica bastante claro no seguinte trecho da reportagem de Lais Azevedo:

Armando Sobral, dono do Atelier do Porto, galeria que recebeu a primeira exposição individual de Rafael, tem a sua visão sobre a Alice construída pelo artista: “Com a criação desta personagem, o Rafael constrói uma série de performances e registra as reações do público também, que podem ser até xingamentos como ‘preto, viado, filho da p…’, que depois são transformados em frases postas em cartazes e retornam ao público como um espelho do pensamento conservador e reacionário, o que remete novamente à história da personagem”. Negro, alto, vestido de Alice, o performer toma um posicionamento crítico transitando por questões como a homoafetividade, a marginalização, o racismo, o pensamento conservador. Com seu personagem arquetípico, senta-se para tomar chá em meio ao lixão do Aurá, “criando uma linguagem poética, criativa e crítica”, afirma Sobral (Azevedo, 2015).

Seguramente, a imagem de um lixão sendo sobrevoado por corvos (figura 1) nada tem de “maravilhosa”. O “Brasil das Maravilhas” de Bqueer, assim como o “Brasil das Maravilhas” de Joãosinho Trinta, é um cenário distópico, marginalizado, em ruínas (figura 2), onde os corpos negros que expressam sexualidades e perspectivas de gênero não-dominantes precisam sobreviver aos mais agressivos preconceitos – os tantos xingamentos proferidos contra o performer, conforme relatou Armando Sobral, bem ilustram tal ideia. Nas fotos, observamos a sujeira, a pobreza e o repúdio à “invasão” do capital estrangeiro – é o que se pode deduzir a partir da frase “FIFA GO HOME” pintada em uma escadaria da favela Santa Marta, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro (figura 3). O performer percorreu as vielas da favela no período em que o Brasil sediava a Copa do Mundo FIFA, em junho de 2014. Na contramão das manifestações festivas relacionadas ao futebol, esporte celebrado nacionalmente, o que se vê é o protesto e o entulho (figura 4) – a denúncia dos abismos sociais existentes no maior país da América do Sul. No texto do portfolio apresentado ao edital da galeria Transarte Brazil, o artista assim sintetizou a proposta:

Alice transita pelo avesso, pela borda, pelos restos, pelas contradições políticas e sociais que tangenciam uma “cidade maravilhosa” em plena Copa do Mundo de 2014. Não satisfeita, cruza o Brasil, expondo um corpo distópico, lúdico, negro, gay e absurdo aos olhos do cotidiano. Alice reage, provoca as contradições do tempo, das ações ao seu redor, ultrapassa o abismo e vai questionar as marcas e intolerâncias impostas pela herança colonial. Reescreve seu conto de fadas e brinda com os loucos da rua o chá da realidade.

Pode-se afirmar, ainda, que o corpo negro e afeminado da Alice de Bqueer é produto de uma sobreposição de discursos, sendo que as textualidades de Lewis Carroll e Joãosinho Trinta são apenas o começo. Quando apresentou o “Brasil das Maravilhas” ao público e ao corpo de jurados, em 1991, Joãosinho Trinta retratava um país recém-saído de uma ditadura militar de 20 anos, uma República Federativa que reaprendia, aos poucos, a participar da vida democrática. A Constituição de 1988, dita “Cidadã”, ainda engatinhava; as reflexões sobre os direitos humanos careciam de musculatura. Em 2014, contexto em que a Alice de Bqueer caminhou pelo Santa Marta, as políticas de ações afirmativas eram uma realidade solidificada; da mesma forma, discussões acerca de direitos igualitários e programas de proteção aos homossexuais ganhavam as esferas jurídicas. No estado do Rio de Janeiro, o Programa Rio sem Homofobia, de março de 2007, estampou, no edifício da Central do Brasil, outro lugar percorrido pela Alice do performer, a necessidade de se proteger a vida de cidadãos e cidadãs não inseridos nos “padrões heteronormativos”, estimulando as denúncias e contribuindo para o crescimento de eventos como as “paradas do orgulho gay”. Em âmbito nacional, há que se destacar o julgamento encerrado em 05 de maio de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu por unanimidade a união estável homoafetiva. No mesmo julgamento, “a condenação da discriminação e de atos violentos contra homossexuais também foi unânime” (Haidar, 2011).

Desnecessário é dizer, porém, que, apesar dos avanços em termos institucionais (o que ainda é muito pouco, frise-se), o preconceito e a discriminação continuavam a fazer inúmeras vítimas quando Bqueer vestiu a roupa de Alice e ofereceu o seu chá aos transeuntes da Central do Brasil e aos moradores da favela Santa Marta. O estudante Diego Machado é um triste exemplo recente, o que mostra que as provocações de ambas as Alices permanecem acesas – tanto mais em um contexto de intensa crise política, quando o conservadorismo dá estrondosos sinais de fortalecimento. Em 2016, Bqueer aumentou o teor crítico e, reatualizando a proposta, com a mesma roupa utilizada no lixão, na favela e nas avenidas das maiores cidades do país, realizou a performance Alice, na Casa França-Brasil, centro do Rio de Janeiro (figura 5). Munido de balde e panos de chão, o artista esfregou, durante longas horas, de joelhos, as escadarias do pavilhão de exposições. Após o ato, a água suja acumulada no balde foi utilizada para a feitura do chá, servido em uma xícara aos espectadores (alguns beberam a infusão).

A performance jogou novas luzes sobre a personagem, trazendo à tona as reflexões tecidas por María Elvira Díaz Benítez a partir da imersão no Buraco da Lacraia. Ao corpo negro afeminado, tão discriminado cotidianamente, somava-se a invisibilização do subemprego – a discriminação pela pobreza, com a inevitável memória dos corpos escravizados. A “Alice faxineira” mostrava aos passantes que a escravidão ainda ecoa pelas ruas, algo denunciado pela antropóloga ao constatar que muitos frequentadores se referiam à boate da Lapa como “navio negreiro” (Benítez, 2007, p. 134). Não estivesse vestido de Alice, o corpo de Bqueer teria sido visto pelos visitantes do Pavilhão?

Fato é que ao fazer das ruas de grandes cidades brasileiras o seu espaço discursivo, o corpo do performer materializa as discussões do ativismo queer, objeto de análise de Leandro Colling. Para o autor, enquanto o dito “movimento LGBT institucionalizado” direciona as suas forças para os tribunais, apostando “quase que exclusivamente na conquista de marcos legais, em especial o matrimônio ou outras leis, como as de antidiscriminação, identidade de gênero e normativas (…)” (Colling, 2015, p. 239), o ativismo queer

prioriza as estratégias políticas através do campo da cultura, em especial através de produtos culturais, pois os ativistas entendem que os preconceitos nascem na cultura e que a estratégia da sensibilização via manifestações culturais é mais produtiva, mas desde que elas também confrontem as normas de gênero e sexualidade que já estão instituídas. Por isso, além de produtos culturais mais conhecidos, as performances políticas, realizadas diretamente nas ruas, ganham grande espaço nesses coletivos (Colling, 2015, p. 239).

O pesquisador relata que, durante a investigação feita em países como Brasil, Portugal, Espanha, Argentina e Chile, ficou clara a percepção de que o “movimento LGBT institucionalizado” por vezes não dialoga com o ativismo queer, considerando-o contraproducente e radical – dada a necessidade, defendida por muitas lideranças dos países visitados, de que “para conquistar direitos, as pessoas LGBT precisam criar uma ‘representação respeitável’, uma ‘boa imagem’, o que significa, no final das contas, uma aderência à heteronormatividade” (Colling, 2015, p. 241). Ainda nas palavras do autor, “o movimento LGBT possui poucas ações que promovam o respeito às diferenças de gênero e sexualidade através do campo da cultura, apesar de, a cada dia, crescer a percepção de que apenas as leis não modificam as práticas preconceituosas” (Colling, 2015, p. 239-240). Nesse sentido, não parece descabida a afirmação de que as performances de Rafael Bqueer contribuem para a descolonização de certas mentalidades observáveis mesmo dentro do “movimento gay” (Colling chega a afirmar que o “movimento LGBT institucionalizado” é majoritariamente gay, branco e masculino, ou seja, hierarquizado e reprodutor de outros preconceitos sociais), questionando, todo o tempo, quais os limites dos corpos, das sexualidades, das identidades LGBTQI. E contribuem, também, para que os direitos humanos sejam pensados para além das letras das leis, algo defendido com fervor no manifesto de Luis Alberto Warat.

 

Figura 1: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Lixão do Aurá, Belém – PA. Crédito: Paulo Evander Castro, 2014
Figura 1: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Lixão do Aurá, Belém – PA. Crédito: Paulo Evander Castro, 2014

 

Figura 2: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Lixão do Aurá, Belém – PA. Crédito: Paulo Evander Castro, 2014
Figura 2: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Lixão do Aurá, Belém – PA. Crédito: Paulo Evander Castro, 2014

 

Figura 3: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Favela Santa Marta, Rio de Janeiro - RJ. Crédito: João Henrique Menezes, 2014
Figura 3: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Favela Santa Marta, Rio de Janeiro – RJ. Crédito: João Henrique Menezes, 2014

 

Figura 4: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Favela Santa Marta, Rio de Janeiro - RJ. Crédito: João Henrique Menezes, 2014
Figura 4: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Favela Santa Marta, Rio de Janeiro – RJ. Crédito: João Henrique Menezes, 2014

 

Figura 5: Fotografia da performance “Alice”. Casa França-Brasil, Rio de Janeiro - RJ. Crédito: PV Alcântara. 2016
Figura 5: Fotografia da performance “Alice”. Casa França-Brasil, Rio de Janeiro – RJ. Crédito: PV Alcântara. 2016

 

Considerações finais

Alice talvez seja um dos personagens mais multifacetados da literatura universal, hipótese que salta aos olhos diante da multiplicidade de discursos que se entretecem em fatos como a aparição de Jorge Lafond, no alto de uma alegoria carnavalesca, no Sambódromo do Rio de Janeiro, e as performances de Rafael Bqueer, em ruas, vielas, escadarias, lixões. O texto de Lewis Carroll, utilizado para se pensar a carnavalização do direito e a busca radical pela humanização da justiça (o que passa, indubitavelmente, pela visibilidade de corpos condenados à margem – o foco da pesquisa de María Elvira Díaz Benítez), foi transformado em discurso político por artistas como João Trinta e Bqueer, o que justifica a mais festejada proposição de Warat em seu Manifesto do Surrealismo Jurídico: a inserção da arte na vida do direito traz a possibilidade de, a partir de tal diálogo transdisciplinar, florescer uma nova consciência jurídica e cidadã, atenta aos apelos das ruas e preocupada com a efetiva proteção da diversidade.

Warat escreveu, em seu manifesto, que “os discursos carnavalizados não se podem deter, eles não podem ser transformados em fetiches nas prateleiras de uma biblioteca; o seu movimento constitutivo é a travessia” (Warat, 1988, p. 84). A partir do carnaval, o teórico acena para a necessidade de compreensão das identidades enquanto construções móveis, transitórias, cambiantes, uma vez que, para ele, a efetivação dos direitos humanos não passa apenas por canetas e togas, mas pelo reconhecimento do outro seja ele quem for, em um jogo de espelhamentos marcado pelos afetos. Construir uma ponte entre tais entendimentos de Warat e as reflexões de Leandro Colling a partir do ativismo queer é mais do que possível – e mostra que a transdisciplinaridade é um caminho necessário para a edificação de novas epistemologias (afinal, o antiquado saber normativo, bancário e profundamente hierarquizado, é incapaz de compreender as pluralidades sexuais e de gênero contemporâneas). Como afirma Judith Butler, empoderar e dar visibilidade aos “corpos que ainda importam” (Butler, 2016, p. 21) é a pauta mais do que urgente.

O incômodo causado pelos corpos negros e afeminados das Alices de Jorge Lafond e Rafael Bqueer é prova de que sobram preconceitos e aversões para com a diversidade: mesmo dentro de uma boate gay ou de um cortejo de escola de samba, há quem não se reconheça naqueles corpos indóceis (ou se negue a isso) e reaja de maneira violenta. Nesse sentido, também são manifestos a clamar por direitos o desfile da Beija-Flor de 1991 e as performances de Bqueer: por meio da carnavalização desestabilizadora (e assumidamente provocativa), artistas distintos escancaram as desigualdades e falam sobre a inadiável busca por garantias. Nos termos de Colling, “nas performances, demais manifestações de rua, vídeos e outras produções culturais, o corpo, em geral bastante sexualizado, vira o principal instrumento da política” (Colling, 2015, p. 243).

Se o carnaval e as “sexualidades dissonantes” são em parte indissociáveis, como propõe Fabiano Gontijo, também é fato que a violência não poupa corpos negros e gays durante a grande festa popular – o que é denunciado, com vigor poético, no conto Terça-feira gorda, de Caio Fernando Abreu, presente na coletânea Morangos mofados. Tensões e preconceitos também permeiam os espaços festivos, bailes de carnaval ou boates. Marcelo Santana Ferreira é bastante claro ao dizer que “a violência contra as minorias encontra distintas respostas na história, e uma das suas faces é o confronto explícito (extraordinário). Mas a tensão dos encontros no interior de uma boate também está carregada de violência, desejo, ambiguidade e intensidade” (Ferreira, 2010, p. 275).

Conclui-se que o respeito à diversidade de que fala Warat em seu Manifesto do Surrealismo Jurídico é algo a ser buscado não apenas nas esferas jurídicas, mas nas vivências sociais como um todo. O nomadismo de Alice, a transeunte questionadora inserida em um universo de opressões e contradições, muito pode ensinar, para além das páginas literárias. Contra as violências, ameaças e subjugações, manifestações artísticas como o desfile de Joãosinho Trinta e as performances de Bqueer se convertem em archotes reflexivos, descolonizadores e humanizadores em sentido amplo. Espelhos invertidos que refletem o que não queremos: preconceitos, exclusões, docilizações, hierarquias. O empoderamento dos “corpos distópicos” e a busca pela visibilidade são degraus importantes para as novas travessias.


* Leonardo Augusto Bora é doutorando em Ciência da Literatura – Teoria Literária (bolsista CNPq) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestre em Ciência da Literatura – Teoria Literária (bolsista CNPq) pela mesma instituição; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Licenciado em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer:o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

AZEVEDO, Lais. Paraense vence prêmio de arte. Diário do Pará: 15/11/2015. Disponível em: http://www.diarioonline.com.br/entretenimento/cultura/noticia-350534-.html. Acesso em 22/10/2016.

BENÍTEZ, María Elvira Díaz. Buraco da Lacraia: interação entre raça, classe e gênero. In: VELHO, Gilberto (org.). Rio de Janeiro: cultura, política e conflito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 128-155.

BORA, Leonardo Augusto. O direito pego pelo rabo. Aliceando Themis. Monografia (Bacharelado em Direito). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.

BUTLER, Judith. Corpos que ainda importam. In: COLLING, Leandro (Org.). Dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2016, p. 21-42.

COLLING, Leandro. Que os outros sejam o normal. Tensões entre movimento LGBT e ativismo queer. Salvador: EDUFBA, 2015.

CUNHA JÚNIOR, Milton Reis. Rapsódia Brasileira de Joãosinho Trinta: um grande leitor do Brasil! Tese (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

FERREIRA, Marcelo Santana. Textualidade da cidade contemporânea na experiência homoerótica. In: BASTOS, Liliana Cabral; LOPES, Luiz Paulo da Moita (org.). Para além da identidade. Fluxos, movimentos e trânsitos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 261-282.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2006.

GOMES, Fábio; VILLARES, Stella. O Brasil é um luxo – Trinta carnavais de Joãosinho Trinta. Rio de Janeiro: CBCP – Centro Brasileiro de Produção Cultural: Axis Produção e Comunicação, 2008.

GONTIJO, Fabiano. O Rei Momo e o arco-íris. Homossexualidade e carnaval no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

HAIDAR, Rodrigo. Supremo Tribunal Federal reconhece união estável homoafetiva. Consultor Jurídico: 05/05/2011. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-mai-05/supremo-tribunal-federal-reconhece-uniao-estavel-homoafetiva. Acesso em 23/10/2016.

RIBEIRO, Djamila. O homem negro gay. Carta Capital: 07/07/2015. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-homem-negro-gay-4511.html. Acesso em: 22/10/2016.

WARAT, Luis Alberto. Manifesto do Surrealismo Jurídico. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.