O Observatório de Favelas foi criado em 2001 por um grupo de pessoas, cientistas “do social” e ativistas de organizações sociais, em sua maioria, interessados em contribuir na construção de conceitos e metodologias no campo dos direitos humanos, em sentido lato, que pudessem ser transformados em políticas públicas. A finalidade central dessas políticas seria a superação dos desafios fundamentais que limitam as possibilidades do exercício de uma vida humana mais plena nos grandes centros urbanos, em particular a existência dos grupos sociais populares. O francês Henry Lefebvre (1992) definiu a possibilidade de se viver dessa forma como o “direito à cidade”.
Diante disso, em nosso trabalho, nos últimos anos ganharam destaque reflexões sobre temas como a violência; as representações estereotipadas sobre os moradores das favelas, em particular os jovens; o papel do Estado nos diversos territórios da cidade; o acesso republicano aos serviços e equipamentos da polis; as possibilidades de exercício da cidadania no quadro atual de esgarçamento das relações sociais e culturais etc.1 Nesse quadro se insere, de modo fundamental, o direito a circular na cidade, de forma segura, com acessibilidade e sem restrições discriminatórias a quaisquer grupos social, etário, étnico etc.
Em função do exposto, as formas diferenciadas de apropriação do território urbano e as práticas sociais específicas nele desenvolvidas pelos diversos grupos de citadinos se constituíram, progressivamente, como os eixos condutores dos nossos estudos. Nesse quadro, ganhou relevo o tema da violência, em suas diversas manifestações. Definimos “violência”, de forma sintética, como todas as práticas sociais, inclusive as simbólicas, que violam a dignidade do ser humano, como indivíduo e/ou grupo. Os estudos propostos têm sido referenciais para a elaboração de diversos projetos no campo dos direitos humanos voltados para reduzir a violência.
Assim, a violência inter e entre os grupos sociais, as práticas do Estado nesse campo, em particular nos territórios populares e a progressiva incorporação do medo e da insegurança como componente fundamental da existência cotidiana na cidade foram se constituindo como temas centrais em nossas reflexões e proposições. E passamos então a considerá-la como a grande questão urbana do século XXI no Rio de Janeiro e nas outras grandes metrópoles brasileiras. E, o mais grave, o fenômeno está se disseminando de forma acelerada para os médios centros.
Essa violência se manifesta de formas diversas, como já sinalizamos, mas duas formas em especial nos têm chamado atenção. Em primeiro lugar, a que pode ser compreendida como sua forma mais universal, quer dizer, a que atinge os diversos grupos sociais. Ela consiste no progressivo processo de redução do direito de circulação dos cidadãos no conjunto da pólis. Esse direito tem mudado em sua natureza, em sua forma e em sua intensidade. De fato, a cidade sempre foi, desde o seu nascimento, marcada por interdições na circulação de seus moradores. Estas restrições eram frutos de normas definidas pelo Estado, pelo mercado e pelas relações sociais. Neste último caso, um exemplo expressivo é o histórico temor dos grupos sociais dominantes em circular nos espaço das classes perigosas, dos pobres. Outro, ainda mais difundido, é a interdição simbólica dos territórios mais valorizados da cidade para os grupos sociais populares. Quem é um pouco mais velho lembra do furor que provocou a entrada de um grupo de moradores de assentamentos ilegais da zona oeste em um shopping em Botafogo, um dos bairros mais valorizados da cidade do Rio de Janeiro.
Nos últimos anos, todavia, tem ocorrido um temor de circulação de forma mais difusa: a insegurança de andar nos espaços de circulação da cidade. O ato de ir de um lugar a outro, de passar por espaços que não domina, onde não se sente conhecido e conhecedor tem atingido cada vez mais pessoas na cidade. Nesse caso, mais importante do que a violência objetiva que possa acontecer é o sentimento paralisante de insegurança, de permanente perigo, que domina os diversos sujeitos sociais. De forma curiosa, todavia, os jovens, as principais vítimas de violência nos espaços públicos dos centros urbanos, não são os mais dominados por este temor. Seus pais, ao contrário, sentem uma angústia avassaladora.
O outro tipo de violência que temos buscado interpretar é mais restrito, em termos territoriais, mas tem se disseminado de forma intensa nos últimos 20 anos. Trata-se do processo de privatização do que temos denominado no Observatório de Favelas como “soberania urbana”. E é sobre este processo que nos detemos um pouco mais nesse breve artigo.
A soberania, na era moderna, passou a designar a capacidade de um Estado-Nação formular e aplicar leis específicas em seu território de forma autônoma, sem depender da vontade de outros Estados. Assim, desde a Revolução Francesa a soberania passou a ser interpretada como a expressão do poder político e jurídico do Estado, emanado da vontade geral da nação. Nesse caso, o conceito está vinculado, de forma indissociável, às noções de unidade, de poder e de legitimidade.
Por unidade, se entende o monopólio da força de um ente, no caso o Estado, de fazer valer sua decisão, e apenas sua decisão, no conjunto do território sobre o qual detém a soberania. Este poder soberano se legitima a partir da vontade popular, expresso no sufrágio e é exercitado por governos de grupos – partidos – específicos e por períodos determinados.
Desse modo, é incomum, na verdade, inadequado, do ponto de vista de uso formal do conceito, o uso da expressão soberania quando se fala do exercício do monopólio da força em territórios locais de um país. Todavia, ao analisarmos a configuração territorial do Rio de Janeiro identificamos a incapacidade do Estado em exercer seu poder político e jurídico sobre vastas áreas da cidade, em especial sobre os territórios onde vivem os grupos sociais populares. Ele não consegue regular as relações de propriedade, as normas para as edificações e o zoneamento urbano; afastar da vida social e/ou responsabilizar civil e criminalmente os que não respeitam as suas leis; garantir a segurança dos cidadãos; controlar a oferta dos serviços públicos e o funcionamento dos equipamentos urbanos; e, de modo mais geral, garantir o direito de circulação no espaço local e entre os diversos territórios da cidade.
O que temos nos perguntado, como ponto de partida, é por que o Estado abriu mão, historicamente, de exercer sua soberania nos territórios populares, em especial no Rio de Janeiro, em relação às favelas. Este processo, que já se fazia presente desde o início da constituição das favelas, passou a se acentuar na década de 80, e, desde lá, tem se agravado. Antecipando algumas possíveis respostas, nossa hipótese central é que o Estado não consegue exercer seu poder soberano sobre o conjunto da cidade em função da ausência de interesse dos grupos que historicamente o dominaram e o impedem de agir de forma republicana. Isso significaria reconhecer todos os cidadãos como iguais diante da lei; não tratar o bem público de uma forma patrimonialista; não transformar os órgãos do Estado em instrumentos de afirmação de interesses particulares etc. Com efeito, o Estado brasileiro, marcado por sua herança escravocrata e oligárquica, revelou uma profunda capacidade de se modernizar sem se tornar republicano2. Ao contrário, ele se constituiu como um importante instrumento para a transformação do Brasil em um dos países mais desiguais do mundo no campo econômico e social.
A inapetência do Estado em exercer a soberania nos territórios populares e regular as relações nele estabelecidas, do mesmo modo que nas áreas mais valorizadas da cidade, fez com que essa forma de exercício do poder fosse privatizada. Assim, o monopólio da força e o ordenamento das práticas sociais em um território específico passou a ser disputado por grupos criminosos em geral identificados como “tráfico de drogas” e “milícias”. Nesse quadro, a polícia, presença mais visível do Estado nas favelas, se tornou um elemento a mais na guerra. Ela não cumpre papel mediador ou funciona como obstáculo ao poder privatizado. Em geral, termina sendo mais um elemento de tensão no quadro de enfrentamento, desenvolvendo ações violadoras dos direitos fundamentais do morador e destruindo a legitimidade do Estado como ente regulador das relações sociais.
No processo de caracterização das organizações que almejam conquistar os territórios locais, as definimos como “Grupos Criminosos Armados com Domínio de Território”. Estes constituem redes criminosas territorializadas que atuam em atividades econômicas ilícitas e irregulares, como o tráfico de drogas, serviços de segurança e transporte coletivo irregular, dentre outras, a partir de uma base territorial específica, fazendo uso da coação e/ou da legitimação como meios de manutenção e reprodução de suas práticas.
A legitimação da soberania desses grupos privados em territórios cada vez mais vastos da cidade decorre da sua capacidade de manterem o monopólio da força e, desse modo, ordenarem o cotidiano social. Além disso, a partir de seu poder eles criam as condições objetivas para que alguns moradores se sintam liberados para não respeitarem algumas normas básicas da vida social e urbana, tais como o pagamento de taxas e impostos; o respeito aos limites de ocupação dos espaços públicos; a obediência a regras de construção normatizadas pelo Estado etc. Os grupos locais, em geral, deixam de lutar, por exemplo, por tarifas sociais para os serviços de água, luz e IPTU; por uma melhor qualidade do serviço e abrem mão de fortalecerem os meios coletivos de resolução de conflitos. As relações entre os grupos criminosos e os moradores se sustentam em uma relação direta, sem intermediação de regras para além das relações pessoais.
Os atores do Estado, por sua vez, obedecem a estes grupos nestes territórios privatizados, tais como as escolas e postos de saúde; ou estabelecem uma relação de conflito, via as forças policiais. Neste caso, estas passam a agir como forças invasoras, tratando a população local como os civis do território inimigo. Extorsões, mortes, roubos etc. passam a caracterizar as ações de alguns grupos policiais, que se tornam os “bárbaros” do ponto de vista de quem controla e/ou reside no território. Sem a transformação dessas relações, dessas práticas e sem a criação de mecanismos de legitimação do Estado e das normas republicanas, a situação só se agravará.
O melhor exemplo desse fenômeno foi a recente ação do Estado no Morro do Alemão, na Zona da Leopoldina do Rio de Janeiro. O Alemão é um aglomerado de comunidades populares que reúne quase cem mil pessoas e é dominado por um dos mais fortes grupos criminosos da cidade. A polícia agiu durante dias, matou dezenas de pessoas, invadiu centenas de casas e sua ação foi objeto de críticas dos movimentos sociais e de grupos internacionais que atuam com os direitos humanos. Boa parte da população da cidade, por sua vez, apoiou a intervenção. Os argumentos desse setor da população eram caracterizados, em geral, pela “xenofobia”, pelo desejo de vingança e pelo desprezo aos direitos fundamentais dos moradores das favelas.
Ao final da ação, o chefe local do tráfico continua no controle do território, o sentimento de indignação da população com as forças do Estado é profundo; amplia-se o descompromisso com a democracia e com os direitos humanos para todos os cidadãos por parte do governo em exercício e, principalmente, aprofundou-se a naturalização de que o Estado não tem obrigações de tratar os moradores das comunidades populares como cidadãos. Nesse sentido, a distância entre os diversos moradores da cidade se amplia, assim como a sensação de insegurança e de intolerância.
O desafio, nesse contexto histórico, não é então reafirmar o que separa estes grupos sociais, mas o que pode aproximá-los. Avaliamos que um fator de unidade entre esses diversos sujeitos é o desejo de que a cidade seja um espaço de respeito aos direitos individuais, pelo menos. Um espaço onde as leis funcionem, onde as pessoas possam circular e onde a insegurança cotidiana seja transformada pela possibilidade de se exercer a solidariedade, por exemplo. Isso porque o direito à segurança, à vida, é uma premissa fundamental da existência coletiva. Podemos viver numa sociedade injusta, embora insatisfeitos, mas não podemos viver em uma sociedade sem ordenação coletiva, onde cada um faça apenas o que quer, sem reconhecimento e respeito ao outro.
Assim, o que se tem de perguntar em relação à ação das forças policiais no Morro do Alemão e em outros espaços semelhantes é: essa ação contribuiu para garantir a soberania do Estado naquele território? Ela fez com que o grupo criminoso que ali exerce a soberania ficasse fragilizado ou perdesse legitimidade? Para nós, parece que não. Pois a legitimação não é produto da força, mas o reconhecimento da capacidade de definir normas e fazê-las serem cumpridas.
Nesse sentido, o problema fundamental é que foi se criando uma clivagem entre os elementos coercitivos e legitimadores que caracterizam a construção do monopólio da força do Estado nos espaços da cidade. Para muitos grupos sociais conservadores, a ação possível do Estado nas favelas, por exemplo, é via a materialização de uma guerra contra o tráfico, em especial. Para ela são mobilizados armas e treinamento típicos da guerra, ações como a licença para matar típica dessa forma de confronto. O recente sucesso do filme de ficção “Tropa de Elite” e o furor que produziu é a melhor expressão dessa percepção.
Os grupos da sociedade civil que lidam com a temática dos “direitos humanos”, por sua vez, repudiam de forma absoluta o uso da força, vêem o Estado apenas a partir do seu papel coercitivo, exercem um papel permanente de denúncia de seus excessos, mas não conseguem propor programas efetivos no campo das políticas públicas que incorpore o item “segurança” ao conjunto de ações do Estado nos espaços populares. Na defesa monolítica das ações sociais como eixo central da ação, o que é o correto como princípio no plano ético, político e como método, os grupos terminam não reconhecendo o impacto da privatização da soberania nos territórios populares e a importância de criar formas inovadoras para enfrentá-la.
O grande desafio do Estado, portanto, é construir sua soberania sobre o conjunto dos territórios da cidade de forma legítima. Para isso, não há sentido, de fato, em invadir os territórios; o desafio é ampliar, de forma progressiva sua presença regular, cotidiana e centrada na mediação e resolução dos conflitos, de forma que o morador local consiga reconhecer o valor da sua presença. O Estado deve permanecer para além do plano da segurança, desenvolvendo um leque de ações que permitam a incorporação daquela área ao território onde ele consegue exercer a soberania.
A execução dessa ação integrada todavia, exige o reconhecimento de que só pode haver uma cidade e um cidadão, cabendo ao Estado, no que tange ao seu papel, conferir tratamento e iguais oportunidades aos moradores da cidade como um todo, entendendo que não deve haver distinção do local de moradia no que se refere aos direitos assegurados aos cidadãos pela constituição brasileira.
Além disso, urge superar os precários indicadores sociais, econômicos e ambientais, dentre outros, das comunidades populares da cidade. Isso implica em uma intervenção sócio-espacialmente focalizada, com a criação de um ciclo sustentável e integrado de desenvolvimento social, econômico, ambiental e dos direitos humanos nas favelas e periferias.
A construção desse processo implica na constituição de um plano de desenvolvimento que articule as forças do Estado, da sociedade civil e do mercado. A ação comum dessas instâncias não deve se sustentar em uma carta de intenções, mas na criação de mecanismos concretos indutores do desenvolvimento local.
Nesse sentido, uma das ações necessárias é a constituição de um Plano de Desenvolvimento Sustentável de longo prazo para as comunidades populares. Constituído de forma progressiva, esse plano seria apoiado em fundos econômicos públicos e privados, sob controle público, mas não apenas estatal. O Fundo de Desenvolvimento Local deve ser constituído de recursos de variados ordens, a partir de legislação específica e com o envolvimento de variados atores que atuam na perspectiva da soberania do Estado e são comprometidos com a republicanização da sociedade brasileira.
A elaboração de um plano desse teor deveria ser precedida por um diagnóstico social, econômico, ambiental e dos direitos humanos realizados por institutos de pesquisa; organizações da sociedade civil e/ou universidades. A aprovação, o acompanhamento dos indicadores e a avaliação desse tipo de plano, assim como a fiscalização do Fundo Público, seriam realizados por um Fórum de Desenvolvimento Sustentável Local, integrado por representantes do governo, em suas três instâncias; do poder judiciário Estadual; do poder legislativo estadual e/ou municipal; de instituições comunitárias que atuam nos territórios do programa; de empresas privadas presentes nos territórios locais; de organizações da sociedade civil, em particular as que atuam com os direitos humanos etc.
O caminho de construção da soberania do Estado no conjunto da cidade é longo, ainda estamos longe da chegada e os desafios parecem cada vez maiores. Todavia, há caminhos sendo propostos; há metodologias já experimentadas e há várias redes cidadãs sendo constituídas na cidade e no país. Assim, estão sendo elaborados, de forma quase que subterrânea, mas de modo consistente, caminhos inovadores para a crise nossa de cada dia. Eles nos remetem para a utopia de uma cidade-pólis, política e democrática, onde todos possamos estar em nossas casas certos de que um Estado democrático nos protege e andar nas ruas seguros que voltaremos para ela quando assim o desejarmos.
*Jailson de Souza Silva é geógrafo, doutor em Sociologia da educação, professor da Universidade Federal Fluminense/RJ e coordenador geral do Observatório de Favelas.
**Jorge Luiz Barbosa é geógrafo, doutor em Geografia Urbana, professor da Universidade Federal Fluminense /RJ e coordenador geral do Observatório de Favelas.
***Fernando Lannes Fernandes é geógrafo, doutorando em Geografia Urbana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador adjunto do Observatório de Favelas.
Até Quando (When will it finish?)
NOTAS
1 Temos publicado vários trabalhos a respeito desse temas nos últimos anos, com destaque para o livro “Favela: alegria e dor na cidade” (2005).
2 Esse processo de “modernização conservadora” do Brasil foi interpretado por diferentes pensadores brasileiros, tais como Nelson Werneck Sodré e Carlos Nelson Coutinho (2003) a partir dos conceitos de “revolução passiva” de A. Gramsci, e de “Via prussiana”, de I.V.Lênin. Jessé Souza (2.000 e 2.002), por sua vez, realiza uma interpretação original da constituição e difusão desse processo de modernização autoritária no conjunto da sociedade em seus trabalhos recentes. Ele trabalha para isso com autores como M. Weber; C. Taylor e P. Bourdieu.
BIBLIOGRAFIA
COUTINHO, Carlos Nelson (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. V. 1.