Em Santiago (uma reflexão sobre o material bruto), o cineasta João Salles coloca em prática uma idéia que vinha defendendo com afinco nos últimos anos: a produção de documentários no Brasil deve se voltar para temas próximos à vida dos diretores e não apenas filmar o “outro” – pobres, desvalidos, marginalizados. Salles talvez se referisse, indiretamente, ao filme iniciado por ele em 1992, e não concluído, sobre o mordomo que trabalhou com a família Moreira Salles por quase trinta anos.
Em agosto de 2005, decide se confrontar com as nove horas do material filmado e finaliza Santiago, que adquire um subtítulo – uma reflexão sobre o material bruto – e uma outra densidade. É um filme que contém muitas histórias: um documentário sobre um mordomo, mas também uma carta filmada dirigida aos irmãos compartilhando memórias, um “ensaio” fílmico sobre como fazer (ou não fazer) um documentário e uma homenagem póstuma ao mordomo, que morreu poucos anos depois da filmagem.
Santiago é de fato um personagem e tanto. Conjuga habilidade narrativa com histórias incomuns de vida: nascido na Argentina, começou a trabalhar com uma família aristocrática em Buenos Aires, contraindo desde então uma paixão por tudo o que dissesse respeito à vida de reis e rainhas, a nobreza em geral, real ou imaginária, pouco importava. É com fascínio por esse mundo que conta as histórias dos grandes jantares e festas na mansão da Gávea, as tarefas que envolviam a arrumação da casa, as mesas, as flores, a orquestra, os nobres e distintos que as freqüentavam. São pequenas narrativas que desvelam aqui e ali a dureza do trabalho contínuo, a dificuldade de uma vida privada, a submissão do mordomo a uma ordem estabelecida.
O documentário, contudo, está longe de ser apenas isso. Salles decide também expor no filme, implacavelmente, o que percebeu ao rever o material de 1992: o quanto se manteve distante de Santiago ao longo dos cinco dias de filmagem, o quanto impôs a ele uma idéia prévia de filme, o tanto que não entendeu o que de fato importava naquele reencontro. Uma compreensão que se deu, de certa maneira, tarde demais. Santiago morreu e o que foi filmado não pôde ser mudado.
Mas é dessa sensação de “tarde demais” que Salles extrai as condições para finalizar o filme. Retoma erros, mal entendidos e incompreensões cometidas por ele ao longo da filmagem de 1992 e os evidencia, sem meias palavras, sem subterfúgios, de forma cruel com ele mesmo, quase como um castigo. Exibe truques e manipulações efetuadas 13 anos antes e afirma na narração: “é difícil saber até onde íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita”. Desmonta imagens e sons e adverte o espectador: desconfiem do que seus olhos vêem. Radicaliza de tal maneira que pouco a pouco um mal-estar nos acomete porque a imagem que fazíamos do diretor nos seus filmes anteriores – gentil e atento com aqueles que filma – toma direções inesperadas.
Nos deparamos com um diretor por vezes déspota, irritado, apressado, incapaz de estabelecer uma efetiva interação com Santiago, que tenta a seu modo acertar e fazer aquilo que o diretor quer. “Santiago vai de novo, não olha para a gente não. Não olha!” diz Salles em uma das seqüências, ou ainda: “Fala logo que estamos com um pouco de pressa”. É preciso dizer que raras vezes na história do documentário um cineasta ousou explicitar de tal maneira segredos que ficam, na maior parte dos casos, para sempre perdidos no material não usado dos filmes.
A montagem extremamente hábil realizada por Eduardo Escorel e Lívia Serpa chega a inserir quatro repetições de uma mesma fala do mordomo, mantendo hesitações e silêncios, intensificando o desconforto tanto do personagem quanto do espectador. São momentos em que opressões vividas pelo mordomo ao longo da vida parecem se manifestar de forma mais contundente, e é isso que constata Salles, ao dizer, perto do final do filme: “Durante os cinco dias de filmagem eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa e ele nunca deixou de ser o nosso mordomo”.
Mas o filme tampouco se limita a essa dimensão confessional. Salles vai gradualmente ao encontro de Santiago e revê o que na época não o havia interessado: as 30 mil páginas de histórias da nobreza de todos os tempos pesquisadas em bibliotecas e transcritas pelo mordomo ao longo de mais de meio século. Uma tentativa quase insana de impedir que aquelas vidas desaparecessem da memória. Salles traz para o filme fragmentos desses escritos, assim como comentários pessoais de Santiago encontrados em meio aos textos. Refaz, a seu modo, o gesto do ex-mordomo e retira Santiago do esquecimento a que as imagens de 1992 o haviam condenado. Santiago é, acima de tudo, a narrativa perturbadora e comovente de um aprendizado e de uma transformação de um cineasta no confronto com ele mesmo em um outro momento da vida. Transformação “sutil e sem alarde”, como diz Salles no final do filme, e que ficou clara no reencontro com as imagens de Santiago.
*Consuelo Lins é documentarista, professora da Escola de Comunicação/UFRJ, e pesquisadora da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais da ECO. Autora de O cinema de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo, Jorge Zahar Editor, 2004, 2ª edição.