Empenhado em finalizar sua carreira como realizador com a marca de dez longas-metragens, numa carreira iniciada em 1992, com Cães de Aluguel, Quentin Jerome Tarantino abriu 2024 compondo o elenco de um projeto chamado The Movie Critic. Brad Pitt foi o astro escalado para assumir um papel central na trama sobre um crítico cinematográfico, de verve mordaz, que, na Califórnia da década de 1970, assinava uma coluna de resenhas numa revista pornô. “Ele fez carreira escrevendo sobre produções mainstream”, anunciou o cineasta, em depoimento colhido pelo site Indiewire.com, referindo-se ao fato de que o objeto da análise de seu protagonista são produções de grande orçamento e de larga penetração em circuito. “Ele é cínico como o inferno e seus textos são uma combinação do que o jovem Howard Stern (radialista americano famoso por polêmicas) e Travis Bickle (papel de Robert De Niro em Taxi Driver, de 1976) fariam se criticassem longas-metragens”. A declaração ilustra uma perspectiva desmistificadora sobre a arte de criticar obras fílmicas na mirada do diretor laureado com a Palma de Ouro de 1994, dada a Pulp Fiction, um thriller que mudou a forma de se escrever roteiros, desafiando linearidades e usando falas e fatos da cultura de massa em seus diálogos. Para o realizador que fez o sistema métrico dos sanduíches do McDonald’s ser assunto de uma conversa entre matadores de aluguel (o famoso Royale With Cheese, dito por John Travolta, no supracitado longa de 94), a persona do crítico carrega um simbolismo pop, e sua produção intelectual é capaz de transgredir padrões do que é obra-prima e do que é descartável.
Após uma série de ataques sofridos pela imprensa europeia durante a exibição de Jackie Brown na competição pelo Urso de Ouro na Berlinale de 1998, Tarantino destilou ódio contra resenhas que reduziam seu cinema à violência e demonstrou repúdio em relação a críticas que se recusam a “conversar” com a proposta estética trazida por um filme:
“No dia em que um cineasta chamar um crítico pelo nome, seja de que forma for, por uma crítica negativa que escreveram contra seu trabalho, esse será o dia mais feliz da merda da vida desse resenhista. E eu nunca darei a um crítico que me tenha atacado o dia mais feliz da sua maldita vida”, disse o diretor ao site Deadline em entrevista de 21 de novembro de 2022, concedida ao repórter Mike Fleming Jr. Nessa conversa, ao admitir que “rouba” referências de tudo o que viu e vê, o realizador de Os Oito Odiados (2015) explica que, ao revistar clássicos e cults, em suas paráfrases e homenagens, ele se comporta como um crítico. Um crítico que filma. Faz crítica na ótica da dimensão genealógica que a crítica tem, como apontou José Carlos Avellar (1936-2016) em seu O Chão da Palavra, editado pela Rocco, em 2007:
A crítica que influi e contagia uma geração – e as gerações seguintes – é feita não só por profissionais, que escreviam com regularidade em jornais e revistas, como também pelo espectador. De certo modo, desenvolvemos nas Américas uma espécie de crítica de espectador, aquele que conseguia ver mais filmes e organizava qualquer forma de registro, arquivo ou fichário. Ler a crítica era parte do ritual cinematográfico. Os anos 60 foram o momento em que os filmes eram reflexão e reflexo, debate direto e vivo da realidade e vontade de nos definirmos diante dela. Alguns se bastavam nisso. Outros partiram dessa nutrição trazida pelos filmes para filmar e construir universos. (p.106)
Avellar costumava citar uma frase de Glauber Rocha (1939-1981), diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964): “Diretor é quem dirige filmes; cineasta é quem cria seu universo particular ao dirigir”. Depurava essa sentença do cineasta baiano dizendo: “Crítico é quem desbrava esses universos dos cineastas, rejeitando o lugar comum da epifania demiúrgica da criação, para construir uma semiótica daquele universo particular em busca de traços identitários (ou seja, marcas de autoralidade, registros de uma expressão poética própria, que gere um paradigma) (2007; p.205).
No exercício cotidiano de ver e rever e filmes que adquiriu ainda na infância, Tarantino tenta cartografar esses potenciais caminhos paradigmáticos de que fala Avellar a cada novo longa ou curta a que assiste, mesmo quando se trata de uma produção ignorada pela fortuna crítica. Entende que certos filmes são ignorados ou caem no esquecimento por uma desconexão com os anseios de uma época. “Filmes não podem ser reduzidos à carreira que fazem no fim de semana em que são lançados, pois, no estado de coisas da arte, esse é o período que menos importa em sua vida útil na memória dos cinéfilos”, disse Tarantino, na entrevista ao Deadline, enfatizando o fato de que “alguns longas são soterrados por não se encaixarem em códigos prévios de quem escreve sobre eles”.
Parte do que seriam esses “códigos”, por vezes determinados por sensos impressionistas e, mais tarde, depurados a partir de estudos capazes de dissecar planos fílmicos como linguagem e como narrativa, começaram a ser estabelecidos a partir de 1895, data encarada como marco zero da invenção do cinema como manifestação cultural (e tecnológica). Os códigos para se analisar filmes nascem em artigos publicados em jornais (em especial, no New York Times), em dezembro daquele mesmo ano, em reação à primeira projeção pública do cinematógrafo dos irmãos Louis e Auguste Lumière, na França. Mas eram textos descritivos, que almejavam refletir sobre a sinestesia gerada por filmes como A Saída dos Operários da Fábrica Lumière ou A Chegada de um Trem à Estação, pela fricção gerada por imagens em movimento vistas, pela primeira vez, em preto e branco numa tela. Nos EUA, só em 1908 o escritor Frank E. Woods (1860-1939) viria a se tornar o primeiro crítico a ter um espaço fixo para falar exclusivamente sobre a arte cinematográfica na imprensa americana, publicando no New York Dramatic Mirror, antes de se lançar como roteirista. Woods faz descrições detalhadas dos elementos cênicos e dos acontecimentos retratados nos primeiros filmes feitos em solo americano e inglês, mas consegue, em paralelo, abrir discussões sobre os dilemas morais de seus personagens. É um trabalho pioneiro, assim como o do editor italiano Ricciotto Canudo (1877-1923), fundador da revista Montjoie!, em 1913 (um dos periódicos que mais e melhor promoveram a pintura cubista). Em artigos de 1911, ele foi uma voz pioneira, na intelectualidade europeia dos anos 1910, a enxergar dimensão estética na produção cinematográfica, defendendo que filmes deveriam ser analisados não sob critérios de apreciação de gosto, mas, sim, a partir de uma teoria capaz de dissecar os meandros simbólicos da física por trás de corpos em deslocamento na tela.
O interesse de Tarantino, em seu The Movie Critic, não se detém sobre a cinemática, ou seja, o efeito que um corpo em movimento gera numa tela. Um de seus filmes de maior sucesso, Era Uma Vez… Em Hollywood (ganhador do Globo de Ouro de Melhor Filme de Comédia em 2020), aborda os bastidores da feitura de um longa e sua recepção pelo público mais interessado numa cultura de recepção de bases históricas. Para o diretor de Django Livre (2012):
“Eu gosto da História porque ela parece um filme. Um filme no qual eu posso entender comportamentos a partir de um determinado período e seu ethos. O trabalho de um narrador não é apenas escrever sobre si próprio, mas olhar para o resto da Humanidade e explorar a forma de falar das outras pessoas em seu tempo, de modo a entender as frases que utilizam. Minha cabeça é uma esponja. Ouço o que toda a gente diz, observo pequenos comportamentos idiossincráticos. Quando as pessoas me contam uma piada e eu me lembro dela, essa anedota passa a fazer parte do meu modo de olhar. Quando alguma pessoa me conta um causo interessante da sua vida e eu consigo me lembrar dele, encontro ali matéria de dramaturgia” (declaração do diretor dada ao site The Talk, em 2022).
Em declarações concedidas à imprensa em sua passagem pelo Festival de Cannes de 2023, Tarantino explicou que não concebeu The Movie Critic para fazer um balanço histórico da atividade jornalística ou acadêmica que se debruça sobre filmes em busca de um senso estético. Seu objetivo é dissecar um tempo no qual a opinião de um profissional de mídia poderia redirecionar as atenções do público leitor para um filme.
Não por acaso, o fetiche desse personagem idealizado como eixo dramatúrgico em The Movie Critic é um longa-metragem (real), outrora encarado como um título classe B na produção cinematográfica americana dos anos 1970, e hoje cultuado: A Outra Face da Violência (Rolling Thunder, 1977), de John Flynn (1932-2007). “É a melhor combinação já feita entre estudo de personagem e filme de ação”, escreve Tarantino nas páginas de seu livro Especulações Cinematográficas (2023, p.259), explicando que descobriu esse thriller em 1977, aos 14 anos, numa sessão dupla com Operação Dragão (1973), com Bruce Lee (1940-1973), que prestigiou na companhia de sua mãe.
Na trama escrita por Paul Schrader (roteirista de Taxi Driver e diretor de A Marca da Pantera) e por Heywood Gould (romancista e repórter), o Major Charles Rane (William Devane) regressa da guerra do Vietnã com status de herói, sendo coroado com uma série de condecorações em sua cidade natal. Preso por sete anos numa prisão militar vietcongue em Hanói, ele retorna alquebrado do front. Luta para estabelecer uma nova relação com sua mulher e com seu filho até que sua casa é invadida por criminosos que matam os dois e dilaceram sua mão. Sedento de revanche, Rane substitui seu punho decepado por um gancho e recorre à ajuda de um colega de farda, Johnny Vohden (Tommy Lee Jones), para se vingar dos bandidos, num banho de sangue.
Rodado em San Antonio, no Texas, ao custo de US$ 2 milhões, O Outro Lado da Violência fez carreira em circuito no mesmo ano de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg, e avançou até 1978, quando a Guerra do Vietnã passou a ser abordada, nas telas, como tragédia social, de forma nada romantizada, por dramas de sucesso como Amargo Regresso, de Hal Ashby (1929-1988), e O Franco-Atirador, de Michael Cimino (1939-2016). Perto desses dois longas, ganhadores de Oscar, o filme de Flynn era apenas um exercício comercial de exploração dos traumas dos combatentes estadunidenses, estilizado a partir da figura de um anti-herói com mão de ganho para atrair uma plateia das chamadas grindhouses.
O termo – traduzido no jargão industrial do audiovisual brasileiro como “cinema poeira” – se refere a salas de exibição das periferias das metrópoles onde era possível assistir a dois longas por sessão, com um único ingresso, mais barato do que a média do circuito. A saga do major Rane estava destinada a se notabilizar na plateia dessas salas e, posteriormente, em exibições na TV em horários destinados a filmes-pipoca de apelo violento, como é o caso brasileiro da sessão Domingo Maior, da TV Globo. Porém, algo mudou no lugar histórico desse filme no imaginário cinéfilo.
Essa mudança foi provocada por Tarantino, num devir–crítico, não apenas nos artigos do livro Especulações Cinematográficas, mas em palestras que passou a ministrar. A mais importante delas, e mais significativa para o legado de Flynn, aconteceu durante o Festival de Cannes de 2023, quando foi convocado para ministrar uma palestra na mostra paralela Quinzena de Cineastas, antecedida por uma exibição (escolhida e comentada por ele) de A Outra Face da Violência.
Quando concorreu à Palma de Ouro com À Prova de Morte (2007), Tarantino foi visitar a Quinzena a fim de acompanhar uma projeção, na Croisette, da cópia restaurada do outrora maldito Parceiros na Noite (1980), de William Friedkin. Ria de se acabar na poltrona, ao ver a versão estereotipada que o longa (com fama de maldito) trazia da cartilha dos longas de psicopata. Cerca de 17 anos depois, ele voltou lá para ministrar informalmente uma espécie de aula sobre a história do audiovisual. No balneário da Côte d’Azur, pessoas se estapeavam por um ingresso para ouvi-lo sobre sua própria cinefilia – uma história bonita.
Por um soldo de US$ 200 semanais, Tarantino passou o ano de 1985 batendo ponto na Video Archives, uma locadora de Manhattan Beach, Califórnia, onde fez amigos, reais e imaginários, devorando o acervo local, sobretudo o faroeste Rio Bravo (no Brasil o título é Onde Começa o Inferno), de 1959. É do VHS que vem a depuração de sua cultura cinematográfica, reforçada com o DVD, que chega ao convívio dos cinéfilos num momento em que ele já é um diretor de respeito, com o díptico Kill Bill – Vol. 1 (2003) e Vol. 2 (2004) em seu currículo. Mas o universo das fitas rebobinadas do Video Home System foi essencial para ele. A partir do início da década de 1980 quando a tecnologia informática permitiu o advento dos retângulos analógicos do VHS, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919. O VHS alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade – do Presente e do Passado, sobretudo – é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsters não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em Os Intocáveis, um filme de 1987. Ou seja… verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, ou seja, uma meta-vida, onde imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si.
É isso que ele foi explicar à Quinzena e é disso que se trata seu The Movie Critic, um filme que chega às telas num momento de mudança nas práticas de recepção do cinema, quando o VHS é um suporte defunto, suplantado (na atualidade) pelas plataformas de streaming. Entre o fim dos anos 1990 e meados de 2010, a tecnologia do DVD e do Blu-Ray ainda oferecia a cultura informativa dos extras. Hoje, o saber está diluído, e, na maioria das vezes, sem foco curatorial numa Babel de podcasts e blogs, como aponta Rodrigo Carreiro no artigo História De Uma Crise: A Crítica De Cinema Na Esfera Pública Virtual:
De certo modo, a crítica de cinema contemporânea parece estar migrando de um território (a imprensa clássica) para outro (o ciberespaço), onde reúne condições mais favoráveis para voltar a exercer o papel original que lhe cabia: incentivar um debate estético amplo e horizontal, sem opiniões impostas de cima para baixo, o que por si só já constitui uma atitude de resistência cultural.
Mudaram os suportes, sim, o que leva os Tarantinos do presente a se formarem de outra forma. Porém, a crítica de hoje – inclusive aquela que cineastas como o diretor de Pulp Fiction fazem parafraseando narrativas de colegas mitificados – segue reverente ao Evangelho da Autoria. É um credo que já soma sete décadas, iniciado a partir de 1951, em textos da revista Cahiers du Cinéma, em especial as pesquisas do crítico André Bazin (1918-1958), nas quais nasce o termo “autoralidade” em relação a filmografias que são marcadas por recorrências de engramas estéticos, ou seja, pela reiteração de um tema, ou de uma mesma abordagem formal, ou de um mesmo coletivo de atrizes e atores, ou da mesma investigação filosófica. Exemplo: 1) o recorrente e reiterado investimento da belga Agnès Varda (1928-2019) em devassar a semiótica do feminino na mídia e expor lugares-comuns sexistas; 2) a aposta de Spike Lee em tramas que exponham as vísceras racistas da sociedade americana; 3) a conexão de Luchino Visconti (1906-1976) com pilares da literatura europeia de diferentes fases (Lampedusa, Stendhal, Camus) para extrair da palavra literária o conceito estético de Belo.
Desde o início dos anos 1990, carregando consigo o saber que trouxe de suas fitas VHS, Tarantino se fez autor com sua forma particular de incluir conversas sobre práticas de consumo da cultura de massa em situações inusitadas de tensão, como a sequência de Cães de Aluguel discutem sobre sexualidade num videoclipe de Madonna ou como o clímax de Kill Bil: Vol. 2, no qual o chefão do crime (David Carradine) fala sobre os óculos do Superman. Mais do que isso, Tarantino levou a violência nas telas a um extremo onde ela se fratura como signo. Como diz Jean Baudrillard (1929-2007), “nenhum valor cultural desaparece pela escassez, mas, sim, pelo excesso”.
Na excessiva reação do ator Rick Dalton aos hippies assassinos que invadem sua casa em Era Uma Vez… Em Hollywood – usando um lança-chamas para dizimá-los -, Tarantino espatifa a brutalidade e nos expõe o âmago ridículo de sua prática a cada filme. The Movie Critic deve ter violência também. Sempre tem. Mas o que mais se espera dele é a reinvenção de filmes que seremos capazes de rever… e amar.