Ano XIX 01
Dossiê
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DISSIDÊNCIA, MASCULINIDADE E PELES NEGRAS: RECONSTRUÇÕES VISUAIS DE FANON

Em meio à tragédia pandêmica que já assolava nossas vidas, o Brasil assistiu, entre 11 e 12 de maio de 2020, à exibição do doc-filme Frantz Fanon: Black Skin, White Mask (1996), do cineasta afro-britânico Isaac Julien (1960-). O filme compôs o arranjo de películas, instalações audiovisuais, combinações entre cartoon e street art, apresentações musicais, teatrais e de coletivos inteiros da Mostra Perspectivas Vila Sul (2020). Organizada pelo Goethe-Institut, com sede em Salvador, a Mostra reuniu 22 ex-residentes de diversas nacionalidades do Programa de Residência Vila Sul, que visa agregar artistas, escritores e cientistas de vários campos do saber que acolhem como tema gerador de sua produção intelectual o Sul global. O isolamento social provocado pelo coronavírus obrigou os volumes I e II da Mostra a assumirem um formato virtual[1].

O filme e a radicalidade do pensamento de Frantz Fanon (1925-1961) voltaram a assombrar e sacolejar os acadêmicos brasileiros, que estão despertando novamente para a insurreição que Peau Noire, Masques Blancs [Black Skin, White Masks] (1952) e Les Damnés de la Terre [The Wretched of the Earth] (1961) produziram no Movimento Negro brasileiro dos anos 1960, bem como nas obras de Lélia González, Paulo Freire, Florestan Fernandes e tantos outros pensadores daqui.

Nascido na Martinica, Frantz Fanon foi discípulo do poeta maior da Négritude, Aimé Césaire. Numa França pós-Segunda Guerra, marcada pela emancipação das colônias europeias, Fanon terminou seus estudos em psiquiatria na Universidade de Lyon e, tempos depois de exercer o ofício na metrópole, assumiu, na Argélia colonial, a direção do hospital psiquiátrico Blida-Joinville. Isso foi o bastante para que ele percebesse o quanto as instituições coloniais afetavam a psiquê daqueles que viviam sob seu regime, o que o incentivou a alistar-se na Front de Libération Nationale (FLN) [Frente de Libertação Nacional da Argélia] e integrar, em 1956, a luta contra o colonialismo.

Por consequência de sua expulsão da Argélia pelo governo francês, Fanon decide viver na Tunísia, local onde sua obra e atuação política se lançam definitivamente da clínica para a mobilização da luta armada em prol da superação do regime colonial, tendo a escrita de The Wretched of the Earth como símbolo maior de tal transição. Fanon pode ter falecido antes da publicação deste livro e da independência da Argélia, mas sua atuação cosmopolita e panafricanista fez com que seus escritos continuassem a repercutir em todo o projeto teórico-crítico pós-colonial, encabeçado pelos estudos culturais, subalternos, visuais, de teoria literária, psicanalítica e psiquiátrica, de raça e diáspora ainda hoje.

Quando o Goethe-Institut hospedou a película para apreciação gratuita na plataforma Vimeo por 24 horas, a sensação era de que a paralisia causada pelo coronavírus e pela escancarada desigualdade social que se intensificou no Brasil em 2020 foi colocada em suspensão no plano das redes sociais: rapidamente, iniciou-se uma profusão de compartilhamentos pelo Facebook, grupos de WhatsApp e e-mails do link onde o filme estava disponível para a audiência brasileira. Isso revelou não só o ineditismo daquela produção cinematográfica para a academia situada aos trópicos, mas também o completo desconhecimento sobre quem o produziu e o significado de Fanon para todo o ativismo e produção teórico-artística anticolonial e antirracista que se desvincula de abordagens falocêntricas e hetero-cis-normativas em espaços anglófonos, sobretudo aqueles retalhados pela máquina colonial do império britânico.

Consagrado por seus filmes Looking for Langston (1989), Young Soul Rebels (1991), The Attendant (1993) e The Darker Side of Black (1993), Isaac Julien (Figura 1) desenvolve em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask uma intensa pesquisa arquivística que mescla identidade, história e estrutura narrativa (Fusco, 1997). Embora este seja seu trabalho mais próximo e direto relacionado ao legado de Fanon, seu projeto enquanto cineasta é totalmente perpassado por questões levantadas pelo pensador martinicano em se tratando da racialidade, da violência contra a corporalidade negra e de suas representações no discurso colonial (Julien; Nash, 2000). Tal como o fotógrafo Rotimi Fani-Kayode (1955-1989), ele pertence à geração de artistas afro-britânicos queer, oriundos dos anos 1960, que encontraram em Frantz Fanon suporte teórico de criação artística.

Figura 1: Isaac Julien. Fonte: Isaac Julien Studio. (Disponível em: https://www.isaacjulien.com/about/.)

Com a tradução para o inglês de Les Damnés de la Terre, seguida de Peau Noire, Masques Blancs, entre 1965 e 1967, respectivamente, nos Estados Unidos e Reino Unido, as obras mais difundidas de Frantz Fanon alcançaram não somente o público estadunidense e britânico, como também intelectuais da África Oriental que estudavam nos Estados Unidos nos anos 1960, imprimindo ao movimento e à intelectualidade negros destes espaços um impulso análogo àquele produzido no Brasil na mesma época (Batchelor, 2017). Ao estabelecerem contato com obras de escritores e pensadores afro-americanos e com o movimento Black Power, esses estudantes africanos conheceram, por consequência, a obra fanoniana e a disseminaram no retorno à África anglófona num momento em que as lutas pela independência das colônias africanas emergiram. O capítulo “Concerning Violence”, de The Wretched of the Earth, conferiu, por exemplo, um enorme impulso aos movimentos anticoloniais em prol da independência do Quênia e maior compreensão dos danos psíquicos sofridos pelos sujeitos colonizados na condição de combatentes da guerra (Mazrui, 2017).

Artistas estadunidenses, ingleses e africanos de territórios anglófonos, negros e queer, se utilizam das principais ideias de Black Skin, White Masks para compor investimentos artísticos que rompem com aspectos hegemônicos em torno da homossexualidade, masculinidade e feminilidade negras (Furtado, 2018). O livro destaca

[…] o colonialismo e seu impacto como sendo amplamente compostos por experiências visuais. Esse olhar colonial, segundo [Fanon], se apropria e despersonaliza seus sujeitos, ignorando seu modo de ver. Por sua vez, os teóricos [e artistas] queer, especialmente do cinema, têm se apropriado e aplicado esses termos às questões de gênero (Furtado, 2018, sem paginação)[2].

A curadoria e direção do filme feita por um dos cineastas afro-britânicos mais aclamados da cena gay inglesa, bem como sua respectiva dedicatória à memória do escritor afro-americano Essex Hemphill (1957-1995), também assumidamente gay, dão a tônica metodológica e temática que Julien empregaria em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask. O cineasta se aproxima do procedimento utilizado em Looking for Langston, no qual lhe interessava “complementar” a obra do poeta afro-americano Langston Hughes (1902-1967) e suas ressonâncias no Renascimento do Harlem, sem se apegar às especulações críticas sobre a sexualidade do escritor. Esta é a razão pela qual ambos os filmes se tornam textos visuais, experimentais e poéticos.

Ao tentar capturar o espírito de Fanon enquanto “a experiência vivida do negro” (Fanon, 2008, p.103-126) através de sua retórica teórico-pessoal, Frantz Fanon: Black Skin, White Mask exibe, em 70 minutos, uma montagem de arquivos fotográficos, fílmicos (encenados pelo elenco do filme ou resgatados de outras produções ficcionais), depoimentos de personalidades acadêmicas que tiveram Fanon como seu precursor, além de entrevistas com entes familiares e amigos próximos do martinicano.

A ausência de arquivos fílmicos sobre Fanon foi a força-motriz para que o diretor pusesse em prática o que chamou de “reconstrução visual” [visual reconstruction] (Julien; Nash, 2000, p. 14): o preenchimento da falta da imagem pela ficção encenada. A reconstrução foi uma estratégia visual encontrada pelo diretor para dar corpo à vida e à teoria fanoniana através do ator Colin Salmon (Figura 2), bem como ao embate entre a presença de Fanon no hospital psiquiátrico colonial e o olhar ocidental racializado frente aos nativos das colônias. A tentativa de conferir visualidade ao corpo e à teoria de Fanon pela encenação revelam que

o ato de visualização pode ser encarado como uma forma de produção teórica, aquela que faz do corpo em particular um local privilegiado de poder imagético e mediação. Ou seja, não é uma questão de simplesmente encontrar uma maneira de representar Fanon no cinema, mas de usar o cinema para se envolver com as ideias fanonianas e talvez, de alguma forma, transformá-las (Julien; Nash, 2000, p. 14).[3]

Figura 2: Colin Salmon, intérprete de Fanon. Fonte: Isaac Julien Studio. (Disponível em: https://www.isaacjulien.com/projects/frantz-fanon-black-skin-white-mask.)

Todo o material ficcional utilizado por Julien foi tratado como material arquivístico no doc-filme, pois as encenações e os trechos de outros filmes auxiliaram não só na construção de “um documentário poético com uma abordagem ficcional” (Julien citado em Fusco, 1997, p. 57)[4], como também no desmantelamento do arquivo colonial (Julien; Nash, 2000, p. 15). Assim, a abordagem visual de Julien se torna, de certa forma, queer: não se trata de uma filmografia que revela a “verdade” sobre Frantz Fanon no plano pessoal e teórico-crítico, mas que constrói um Fanon cuja identidade é multifacetada, personagem e atuante, que entra e sai do plano da ficção, que não se restringe simplesmente à psicopatologia do colonizado e à descolonização dos povos argelinos, mas se dispersa em múltiplos “eus” que se confrontam, inclusive, na conjunção entre vida e obra. Tornar Fanon “queer” seria, portanto, tomá-lo fora da simples dimensão de herói da revolução ou da primazia de um enfoque masculinizado sobre sua vida e obra crítica. Seria, ainda, torná-lo passivo de contestação, de trazê-lo para o debate contemporâneo através da reconstrução visual proposta por Julien.

As cenas tiveram como suporte textual excertos de Black Skin, White Masks, The Wretched of the Earth, L’An V de la révolution algérienne [A Dying Colonialism] (1959) e Pour la Revolution Africaine [Toward the African Revolution] (1964), sendo dramatizadas na Argélia, Martinica, França e Tunísia. De modo não linear, elas se mesclam a depoimentos de familiares e amigos próximos de Fanon; às cartas que ele escreveu ao irmão Joby, pouco antes de falecer; aos depoimentos de mulheres da região do Magrebe, que atuaram na guerra anticolonial; às fotografias do arquivo pessoal do filho de Fanon, Olivier (Figura 3), e às do Musée Régional d’Histoire et d’Ethnographie de la Martinique; se entrecruzam a extratos das películas Algérie em Flammes (Les Films du Village), Battle of Algiers (BFI Distribution) e J’ai Huit Ans (les Films Grains du Sable).

Figura 3: Olivier Fanon e seu filho. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Tais cenas reconstituem o hospital Blida-Joinville e abrem o filme com relatos pessoais de Fanon e de sua atuação enquanto psiquiatra (Figura 4). Elas também aproximam o espectador de seus pacientes, cujos traumas foram relatados em The Wretched of the Earth. Na sequência, as cenas se apoiam no depoimento do pai dos Estudos Culturais, Stuart Hall (1932-2014), no qual ele expõe a relação colonizador-colonizado, fruto da dialética hegeliana senhor-escravo, como o pilar do pensamento fanoniano (Figura 5). Em desdobramento à fala de Hall, a teórica decolonial Françoise Vergès (1952-) traz à tona aspectos relevantes na formação pessoal e acadêmica de Fanon (Figura 6).

Figura 4: Frantz Fanon (Colin Salmon) no Hospital Psiquiátrico Blida-Joinville. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

As aparições em sequência de Homi Bhabha (1949-), outro grande nome dos Estudos Culturais e Subalternos, surgem como intervenções à parte, tendo em vista que a fala de Bhabha se assemelha a um ensaio, onde o crítico se coloca à procura do espectro de Fanon nas ruas (Figura 7), na simulação do velório do martinicano, entre fotografias e flashes de cenas do evento All Africa’s People Conference (1961) em Acra, Gana, onde Fanon foi participante e representante da FLN (Figura 8). Através de reflexões acadêmicas, contornadas por concordâncias e críticas, ficção e arquivo, Julien resgata as ferramentas que estes teóricos herdaram de Frantz Fanon para pensarem o mundo pós-colonial e a força contracultural que suas reflexões promoveriam logo após a morte daquele que os inspirou.

Além da descoberta da psiquiatria enquanto instrumento posterior de libertação dos combatentes em guerra, é através dela que Fanon descobre o racismo. Em carta a seu irmão, o psiquiatra relata um incidente com um paciente francês, que se negou a ser atendido por ele devido à cor de sua pele. O olhar da metrópole francesa sobre ele causava verdadeira despossessão de si, e o fez descobrir-se como um outsider dentro do plano genealógico da “cultura europeia” (a “máscara branca”), mesmo tendo sido educado à imagem e semelhança do Ocidente. A rasura na imagem da “máscara branca”, que é o verdadeiro nó do livro que nomeia o doc-filme de Julien, se reflete na cena clássica narrada por Fanon em Black Skin e reproduzida no filme, na qual ele é surpreendido pela exclamação de uma criança que o vê (“Mamãe, olha um preto, estou com medo!”). O episódio se caracteriza como metáfora maior do racismo sofrido por ele no período em que viveu na França (Figura 9).

Figura 5: Stuart Hal. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O preenchimento ficcional desta cena e o caráter outsider do corpo negro na ocidentalidade se aliam aos comentários de Stuart Hall no filme, à medida que a experimentação do racismo, caracterizada no plano do olhar e do visível, fez com que Fanon lesse a dialética senhor-escravo como “uma espécie de releitura histórico-hegeliana do complexo de Édipo”, pois “Fanon também está profundamente preocupado com a luta com o pai. Esse é o cerne do texto: a luta entre o filho negro e o pai colonizador. É essa relação filho negro/pai branco que concede profunda masculinidade a seu modo de ver o mundo” (Hall citado em Frantz Fanon…, 1996)[5].

A menção do complexo de Édipo evocada por Hall no documentário, revestida de uma masculinidade patriarcal e sexista, é reflexo das imagens, comentários e trechos que aparecem na sequência do filme em torno das controvérsias e do lugar ambíguo das mulheres, da relação entre homens e da homossexualidade na obra de Fanon. É nesse momento que o filme contesta Frantz Fanon e dele se apropria ainda mais em sua forma “queer”, ao convocá-lo novamente para um debate iniciado antes do lançamento da película.

Figura 6: Françoise Vergès. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Apesar de dispormos de estudos que abordam a evasão epistemológica de Frantz Fanon sobre os impactos do peso colonial em se tratando das questões de gênero e sexualidade (Fuss, 1994), parece-nos pertinente retomar o assunto a partir do doc-filme em evidência, uma vez que a entrada de Fanon no Brasil e nos espaços anglófonos mencionados, bem como sua abordagem na academia brasileira, ainda se limitam fundamentalmente ao contingente da raça, deixando escapar a ambiguidade que a dimensão de gênero e a corporalidade dissidente assumem em sua obra. Este é um momento em que nós, pesquisadores brasileiros, estamos nos aproximando cada vez mais de discussões que entrelaçam corpo, raça, gênero e sexualidade, iniciadas com maior intensidade na ambiência anglófona do final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Esse mesmo debate tem nos proporcionado entrar em contato com outras figurações possíveis do aparato teórico fanoniano em espaços anglófonos, que promovem meios de vê-lo para além do caráter heroico da revolução argelina. Não pretendemos revisar as críticas já apontadas, muito menos promover uma petição em defesa de Fanon sobre elas. O que está em pauta é a forma que a curadoria de Julien e sua conversão em película foram capazes, a partir de seus preenchimentos ficcionais, de evidenciar tais traços como diálogos inacabados, tomando os escritos de Fanon como ponto de vista teórico inesgotável, múltiplo, capaz de ser lido/visto para além da superfície.

Figura 7: Homi Bhabha. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Em se tratando das mulheres, há dois pontos em que Julien entrecruza o debate teórico com a ficção. Françoise Vergès enfatiza a leitura hostil que Fanon realiza em Black Skins, White Masks da narrativa semiautobiográfica Je suis Martiniquaise (1948), da escritora Mayotte Capécia (1916-1955). Fanon considera autora e obra frutos de uma alienação e rendição da mulher negra ao homem branco e colonizador: “Je suis Martiniquaise é uma obra barata, que preconiza um comportamento doentio” (Fanon, 2008, p. 54). A leitura feita por Fanon se restringe aos aspectos biográficos do romance, tornando-o uma representação totalizante da mulher antilhana, de seu desejo pelo colonizador e pelo ideal de “brancura” que ele representa. De modo análogo a Vergès, a escritora antilhana Maryse Condé (1937-) ressalta no documentário que “o amor às vezes nos coloca em uma posição de contradição com [nossas] opiniões ideológicas ou filosóficas” (Condé citado em Frantz Fanon…, 1996)[6] (Figura 10).

Figura 8: Frantz Fanon na All Africa’s People Conference (1961). (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Do plano teórico para o pessoal, ambas defendem o amor da escritora pelo homem branco como uma escolha individual ou possível estratégia para escapar da brutalidade colonial, o que a afasta da alienação. A maior contradição seria, de acordo com Vergès, a posição de Fanon em julgar Capécia através do romance sem que ele levasse em consideração sua própria união matrimonial com uma mulher branca e sua autopercepção enquanto não alienado diante do fato.

Figura 9: A criança vê Fanon. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Como desdobramento dessas análises, Julien promove encontros imaginados entre o martinicano e Simone de Beauvoir, narradas a partir de trechos de La Force des choses (1963), embora saibamos da influência notoriamente pública de Jean Paul-Sartre na obra de Fanon, a partir dos prefácios com que o existencialista francês condecorou seus livros mais conhecidos (Figura 11). A presença de Beauvoir, ao invés de Sartre, indicia a influência feminina na vida e obra de Fanon e oferece margem para o diretor não só explorar a experiência de Fanon ao “descobrir-se” negro na França, mas também a posição das mulheres tunisianas frente ao seu papel na revolução argelina, assim como a violência vivenciada por elas a partir do regime colonial e no próprio movimento que tentava se impor contra ele. Isso nos remete ao prefácio, elaborado por Gayatri Spivak, do doc-filme Concernig Violence (2014), cuja base reside no capítulo homônimo de The Wretched of the Earth. Por mais incômodo que seja, a teórica afirma que

é no resultado do colonialismo, algo que Fanon não pode presenciar, que se deve considerar cuidadosamente a tragédia do que se vê [em Concerning Violence, no que se refere às mulheres]. Este é um texto didático. Faço um acréscimo sobre as questões de gênero. Concerning Violence nos lembra que, apesar de as lutas de libertação forçarem as mulheres a uma aparente igualdade, iniciada no século XIX ou até mais cedo, quando a poeira assenta, a chamada nação pós-colonial regressa às invisíveis e longevas estruturas de gênero (Spivak, 2014, p. 62)[7].

Ambos os filmes se conectam nesta fala, na medida em que Frantz Fanon: Black Skin, White Mask reconstitui a participação feminina na luta armada, em cenas com mulheres portando ou não véus para cobrirem o rosto e transportarem armas fora do alcance visual dos franceses. Intercaladas com entrevistas de ex-combatentes, as cenas revelam uma violência flagrante da mulher nas lutas anticoloniais, tanto pelos seus próprios companheiros de luta, como pelo exército francês.

Figura 10: Maryse Condé. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O filme também nos instiga ao retorno à nota de rodapé 38 (da edição que citamos em língua portuguesa do Brasil) ou 44 (edição em língua inglesa) de Peau Noire, Masques Blancs, que se dirige ao corpo dissidente. Ao articular o olhar de Fanon (Colin Salmon) e o beijo trocado por dois homens negros (Figura 12), sobrepostos por fotografias de uma travesti (Figura 13), Julien põe em xeque, ao som da leitura da nota de rodapé, outro ponto bastante controverso das reflexões de Fanon: os afetos homossexuais e a masculinidade hegemônica. Esta nota, já bastante comentada por Diana Fuss (1994), coloca em evidência a declaração de Fanon de que “[…] não nos foi dado constatar a presença manifesta da pederastia na Martinica. Isto é devido, sem dúvida, à ausência do complexo de Édipo nas Antilhas” (Fanon, 2008, p. 154). Para o martinicano, “[…] a negrófoba é uma suposta parceira sexual – como o negrófobo é um homossexual recalcado” (Fanon, 2008, p. 138).

Figura 11: Simone de Beauvoir, La Force des chose. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O confronto entre as declarações de Fanon e a fotografia da travesti antilhana desperta-nos para duas conclusões: por um lado, o corpo dissidente não possui espaço na teoria fanoniana, pois a ele é negada sua própria existência nas Antilhas; por outro, a homossexualidade é racializada, uma vez que, para Fanon, ela é “culturalmente branca” [culturally white] (Fuss, 1994, p. 30). A racialização da homossexualidade em Fanon ([1952] 2008), isto é, a homossexualidade enquanto um “comportamento branco”, surtiu enorme efeito no Black Arts Movement estadunidense dos anos 1970, o que também possivelmente contribuiu para a intersecção tardia dos estudos queer com os Black Studies naquele país.

Ao invés de serem tomadas apenas como lacunas no livro de Fanon, tais fragilidades têm se convertido em pontos cruciais nos debates de gênero e raça promovidos por artistas e intelectuais negros dos eixos anglo-americano e africano, como demonstra Furtado (2018), e como apontamos em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask. Isso demonstra a capacidade que a obra de Fanon tem de ser tratada como um diálogo em contínua construção. Embora seja um desafio para a crítica atual, Isaac Julien enxerga nisso uma vantagem, pois pode reinterpretar e reconstruir Fanon em sua complexidade, de maneira ininterrupta.

Figura 12: Afetos masculinos. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Frantz Fanon: Black Skin, White Mask desloca a potência crítica fanoniana de uma perspectiva identitária fundada no signo da masculinidade hegemônica e da heteronormatividade. Desta forma, tal curadoria imagética supera com seus esquemas visuais o debate centrado na violência epistêmica contra as mulheres, de um modo geral, e contra pessoas LGBTQIAPN+, ao recuperar um “Fanon queer”, que se constitui como um intervalo, estranhando seu tempo e sem se adequar a ele, questionando-o, percebendo seus impasses. Com base na apropriação queer e na reconstrução visual, Julien demonstra que seu encontro com Fanon marca, de modo mais latente, um possível reencaixe das ideias do martinicano na espacialidade anglo-queer.

Figura 13: Travestilidade.
Figura 13: Travestilidade. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Graças à Mostra Perspectivas Vila Sul, o filme chegou ao Brasil de 2020 em boa hora e, por um momento, foi capaz de nos tirar do transe coletivo que assolou o país, frente ao quadro pandêmico-político e aos dilemas impostos pelos conflitos bélico-raciais e neocoloniais ao redor do mundo, pelas mortes diárias de caráter homofóbico e pelo feminicídio que ainda ameaça milhares de mulheres ao redor do globo. A película nos mostra que ainda há espaço para o Homem SIM de Fanon (2008, p. 184), que, envolto nessa zona de não-ser contemporânea, encontrará meios de ampliar sua compreensão de mundo, de amor ao outro e de libertar-se do olhar etnocêntrico, sem desconsiderar as dimensões de gênero e sexualidade.

* Jânderson Albino Coswosk é professor e pesquisador de produtividade do Instituto Federal do Espírito Santo – Ifes, campus de Alegre. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral no Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo.
Referências bibliográficas
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COSWOSK, Jânderson Albino. Queering Fanon: representação fílmica e impactos dos escritos fanonianos na espacialidade anglo-queer. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade; HARRIS, Leila Assumpção (org.). Escritos Discentes em Literaturas de Língua Inglesa, vol. XIII. Rio de Janeiro: Letra Capital/PPGL/UERJ, 2020, p. 99-108.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EdUfba, 2008.

FANON FRANTZ: Black Skin, White Mask. Direção de Isaac Julien, produção de Mark Nash. Londres: The BBC and the Arts Council of England, 1996. 1 DVD (70 min.).

FURTADO, Will. How Frantz Fanon Has Influenced Generations of Queer Artists, C&, 2018. Disponível em: https://www.contemporaryand.com/magazines/how-frantz-fanon-has-influenced-generations-of-queer-artists/. Acesso em: 20 dez. 2023.

FUSCO, Coco. Visualizing Theory: An Interview with Isaac Julien, Nka: Journal of Contemporary African Art, n. 6-7, 1997, p. 54-57.

FUSS, Diana. Interior Colonies: Frantz Fanon and the Politics of Identification, Diacritics, v. 24, n. 2/3, 1994, p. 20-42.

JULIEN, Isaac; NASH, Mark. Fanon as Film, Nka: Journal of Contemporary African Art, n. 11/12, 2000, p. 12-17.

MAZRUI, Alamin. Fanon in the East African Experience: Between English and Swahili Translations. In: BATCHELOR, Kathryn; HARDING, Sue-Ann (org.). Translating Frantz Fanon Across Continents and Languages. Nova York; Londres: Routledge, 2017, p. 76-97.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Preface to Concerning Violence: Nine Scenes From the Anti-Imperialistic Self-Defense, Film Quarterly, v. 68, n. 1, 2014, p. 61-62.
Notas
[1] O presente artigo é uma versão revisada e ampliada de Coswosk (2020).

[2] “[…] colonialism and its impact as being largely made up of visual experiences. This colonial gaze, according to [Fanon], appropriates and depersonalizes its subjects while ignoring their way of seeing. In turn, queer theorists [and artists], especially in film, have appropriated these terms and applied them to gender.” Tradução nossa de todas as citações em inglês.

[3] “[…] the act of visualisation can be seen as a form of theoretical production, one which makes the body in particular a privileged site of imagistic power and mediation. That is to say, it is not a question of simply finding a way to represent Fanon in film but to use film to engage with Fanon’s ideas and perhaps in some way transform them”.

[4] “a poetic documentary with a fictional approach”.

[5] “[…] a kind of historical Hegelian re-reading of the Oedipus”; “[…] Fanon himself is also deeply concerned with the struggle with the father. And this is what is at the center of his text: the struggle between the black son and the colonizing father. It is that black son/white father relationship which gives him deeply inscribed masculinity to the way in which he sees the world”.

[6] “Love sometimes puts [us] in a position of contradiction with [our] ideological or philosophical opinions”.

[7] “It is within the context of the aftermath of colonialism—that Fanon could not know—that the tragedy of what we watch [in Concerning Violence, when it comes to women,] must be carefully considered. This is a teaching text. I add a word on gender. This film reminds us that, although liberation struggles force women into an apparent equality—starting with the 19th century or even earlier—when the dust settles, the so-called post-colonial nation goes back to the invisible longterm structures of gendering”.