Ao caminharmos em alguma floresta antiga, dessas que existem há milênios, ou que ao menos puderam crescer em paz por algumas centenas de anos, às vezes nos deparamos com pequenos montes de terra, da altura de uma pessoa, ou de uma sobre os ombros da outra, no máximo. No meio da sensação mágica de abafamento da mata antiga – o ar parado, os mosquitos indo e vindo, o completo silêncio pesado como uma coberta de inverno, e o ritmo dos pés estalando camadas de folhas que caíram umas sobre as outras ao longo de anos até que viraram terra macia –, esses montes parecem alheios e externos, como se fossem postos ali por um ato de um deus criança. Frequentemente, esses montes de terra, onde já crescem árvores menores, são acompanhados por um buraco no sopé, em um de seus lados, formando uma espécie de gruta em que muitos animais, como tatus e quatis, cavam suas tocas, ou então onças passam as noites dormindo ali. É estranho que esses pequenos morros não sejam criados e feitos por alguém. Existem, é verdade, montes de sepultamento, em que povos antigos construíam grandes morros de terra para honrar figuras importantes que ali eram enterradas, sendo que a quantidade de solo deslocado demonstrava a importância daquela pessoa. Também há montes geológicos, formados pela erosão, por fricção de placas tectônicas, por pedras enormes que rolam em dias de chuva ou são arrastadas pelas forças de rios em torrente, entre outras tantas possibilidades.
Esses montes, na realidade, são sinais de tempestades de décadas ou de séculos atrás que afetaram aquela floresta. Quando uma tempestade muito forte assola uma região da mata, às vezes os ventos são tão intensos que derrubam as maiores árvores, que muitas vezes resistiram por toda a sua vida contra a ação das tormentas e que, velhas, vencidas pelas formigas, cupins, pelo solo que cede, pela própria força do vento, finalmente tombam. E quando tombam, seus troncos e galhos pesando toneladas derrubam tudo à sua frente, formando uma cicatriz na mata que logo será coberta por árvores menores que nasceram e permaneceram pequenas por muito tempo, esperando sua chance de crescer. Na extremidade oposta da árvore, no entanto, o tronco se derrama sobre o chão, e junto as raízes rompem-se e rompem a terra, erguendo-se parcialmente no ar e trazendo um toição de terra, o qual forma esses montes, amaciados pelo tempo até tornarem-se um outeiro. Se a árvore não resiste, ela morre e ao longo de décadas ela apodrece, criando casa para os mais diversos animais e plantas no meio do caminho, até que por fim ela desaparece, fertilizando o solo onde as árvores menores que tiveram sua chance já se tornaram as novas árvores velhas, e formando os montes que estamos agora estudando na paisagem do mato verde; onde o tronco se unia às raízes, fica um espaço oco que serve de tocas aos animais que citamos; onde as raízes ficam expostas com a terra, fica o lado mais suave desse monte. É incrível como um dia de chuva e vento há tantos e tantos anos pode deixar sinais inscritos na carne da terra e que podem ser lidos como um livro em língua antiga e esquecida, parcialmente compreensível, mas com muitos trechos perdidos e rasgados.
Entretanto, frequentemente essas mesmas árvores, ainda que velhas e prejudicadas pelo tempo, continuam a viver. Seu tronco tomba sobre a floresta, abrindo uma nova clareira. A maior parte de seus galhos seca e suas raízes ficam expostas no ar, junto à terra revolvida. Quase todo o seu tronco seca e apodrece, mas uma pequena parte sobrevive, lançando novos galhos que, mesmo que não retornem à altura majestosa que a árvore tinha anteriormente, são testemunha de sua força de vida, postando-se humildes junto às árvores mais novas. As raízes no ar secam e se tornam casas para marimbondos e besouros, mas a parte das raízes que permaneceu no solo continua a crescer e se desenvolver. Também é assim com poemas, povos e falas indígenas, ou ao menos é o que imagino quando leio Tybyra.
Juão Nyn e seu povo já são por si mesmos uma dessas árvores que lutaram por viver. Morando no Rio Grande do Norte, uma das áreas de início do contato entre os primeiros comerciantes e exploradores, incumbidos da tarefa da conquista, Juão e sua comunidade não se consideravam indígenas, sujeitos às pressões da colonização. Se víssemos externamente, pareceriam como uma árvore morta, como tantas que de fato pereceram nessa espécie de paisagem natural e colonial do Brasil. Mas restaram raízes vivas no solo, ainda que as outras tenham morrido e sido expostas à ação da erosão, e houve galhos que se mantiveram verdes e florescendo. Os Potiguara, (também) do tronco Tupi, pegaram emprestada a fala da outra ponta de seu tronco linguístico Tupi-Guarani para retomar sua língua e, aos poucos, aquele povo e o autor citado renovaram sua língua e seus costumes, como brasas mexidas na fogueira ou então a clareira exposta após a tempestade, aberta a todas as novas formas de vida.
Nyn, artista Potiguara, estudou teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atuando e dirigindo várias peças desde 2014 e, a partir de 2018, começou a escrever suas próprias obras, enfocando, de maneira geral, o tema de sua ancestralidade indígena. Escreveu, em 2020, Tybyra, uma tragédia indígena brasileira, peça centrada no personagem Tybyra, que aparece em um monólogo dividido em atos – chamados de luzes. Tybyra, resumidamente, foi um indígena Tupinambá executado em 1614 por colonizadores franceses, conforme aparece na narrativa de Yves d’Évreux, que conta seu relato a partir de seu ponto de vista religioso, em Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614 (D’Évreux, 2002 [1844]). Especula-se que a morte do indígena tenha decorrido de uma acusação de sodomia, apesar de não se afirmar claramente no trecho. O Tupinambá, quando foi acusado e condenado, solicitou o batismo e, neste momento, o padre afirma que, após sua morte, “se quiseres ter no Céu os cabelos compridos e o corpo de mulher antes que o de um homem, pede a Tupã que te dê o corpo de mulher e ressuscitarás mulher, e lá no Céu ficará ao lado das mulheres e não dos homens” (D’Évreux, 2002, p. 232). Isto é, é presumível que o indígena fosse uma pessoa transsexual ou homossexual, sendo que alguns comentaristas associam o relato desse indígena executado com outro relato posterior, em que o frade francês narra que havia um indígena hermafrodita na ilha de Juniparã, apesar de essa conexão não ser explícita no texto. Tybyra, de qualquer modo, foi perseguido pelos franceses e executado a tiro de canhão – e esse relato de perseguição, julgamento religioso e execução foi gravado na historiografia colonial. Por conta disso, Tybyra tem sido visto como a primeira vítima de homofobia no Brasil.
Além disso, a peça explora o corpo e sua relação com elementos naturais de maneira muito aprofundada: os atos se chamam luzes, as quais, ao longo de cada seção da peça, iluminam determinada parte do corpo do ator, até que, no último ato, todo o corpo é revelado de uma única vez. Do mesmo modo, há trechos dedicados a cantar a natureza, como os nomes das árvores nativas, ou o som de rio corrente enquanto transcorre o monólogo. Entre outros elementos, há o canhão, no último ato, que executa o indígena. Mas, não por acaso, o tiro do canhão e a morte do personagem são postos em suspenso, e a peça, na realidade, é finalizada não com a execução e a violência colonial, mas sim com um discurso inflamado e premonitório de Tybyra, com a tônica final, novamente, na imagem, no corpo e na fala do indígena, e não nas ações ou falas colonizadoras – um exato reverso da obra do frade Yves d’Évreux, que salienta os atos impuros de Tybyra, seu batismo e sua morte.
Juão ainda apresentou outras invenções em sua peça, como a língua falada por todo o monólogo: o Potyguês. Mistura do Tupi-Guarani, em que a semivogal Y tem ampla presença, com a língua portuguesa, esse novo idioma indianiza e demarca a língua do colonizador, moldando-a a novos sentidos menos coloniais e mais afeitos ao sentido indígena. Mantendo as metáforas vegetais, é como realizar um enxerto: nessa operação, cortamos um pedaço de uma planta e inserimos em outra planta já cortada, amarrando bem as duas partes. Se tudo der certo, as duas plantas (independentemente de serem indivíduos diferentes ou de espécie distinta) podem se desenvolver e criar um híbrido em que a parte enxertada recebe a força da planta original, geralmente mais forte e resistente. No caso de Tybyra, o Potyguês tem a força do Y, do silêncio, do deslocamento causado ao lermos e ouvirmos palavras que são quase indígenas, quase portuguesas. A mistura descentra as duas línguas e cria um híbrido que nos dá a sensação de que mudanças são possíveis, de que as línguas e histórias coloniais não são estanques ou imunes à influência dos colonizados.
Para Nyn, o Y por si só já é uma vogal produzida no fundo da garganta, quase próxima ao silêncio, como as tocas onde os tatus e as onças dormem à noite, recobertos pela mata abafada. Na linguagem de Nyn, vemos que há uma língua menor, na acepção de Deleuze (2014), em seu espaço criativo desterritorializado: Nyn resgata o “y”, que vê como uma semivogal vinda da profundeza e da gruta, como uma maneira de dar peso à linguagem de Tybyra. As palavras do português perdem seu caráter de língua do colonizador e ganham a profundidade e o lastro temporal vindos da imagem da gruta, do fundo da garganta. O próprio autor e sua comunidade vivem esse processo, ao passarem a aprender e a falar o Guarani, tendo nascido falantes do português. Esse espaço de descoberta da língua e de, por contraste, nova percepção da língua materna e colonizadora transparece na própria obra e atinge cada leitor, como se cada um também devesse (ou pudesse naquele momento) ler/ouvir a língua portuguesa de outra maneira, vendo nela suas possibilidades de transformar-se em um enxerto entre português e Tupi-Guarani.
Em Tybyra, o silêncio é o interlocutor por excelência, pois a peça se constitui por poucos elementos: o monólogo de Tybyra, as luzes que demarcam partes do corpo dos atores e que denominam os próprios atos, a tinta sobre a pele, os sons de mato e água e, essencialmente, a fala. É uma fala truncada, dirigida a um silêncio persistente, marcada por avaliações, convites, reclamações, ironias, beliscões, deboches e prazeres, em que acompanhamos a história de Tybyra. Nela vemos esse contato colonizador-colonizado, quando esses termos ainda nem eram postos, em uma relação regida pelo prazer da descoberta e do encontro sexual, não problematizado por Tybyra, mas que se transforma, para os colonizadores europeus, em recalque, culpa e raiva.
No diálogo da peça, o interlocutor implícito, o silêncio, se torna frequentemente esse colonizador do passado e, por desdobramento, se transforma na imaginação da plateia e, por fim, na própria plateia, que percebe a si mesma no silêncio do passado a que Tybyra se dirige, uma mistura entre as figuras dos colonizadores como interlocutores e a audiência. Um silêncio marcado pela vergonha, pela negação da vontade e do prazer, o silêncio de preconceito, das ameaças e pecados que se tornaram parte do nosso pensamento, e que ocupa o fundo de nossas mentes. Por isso a importância de falar em uma nova linguagem, uma linguagem que descentra e desconcerta e que permite identificar e nomear esse silêncio do interlocutor a que Tybyra se dirige e se tornou parte de nós, culpando, tolhendo e punindo os prazeres, vontades e, de maneira mais concreta, os corpos e povos indígenas.
É necessário ainda ressaltar o papel da ironia e do chiste na peça Tybyra. Como frequentemente aparece em obras indígenas, a ironia tem papel central, ao afirmar o oposto do que se aparenta dizer, ao criar jogos de palavras em que o verdadeiro significado se esconde sob a face do humor e pode ali ser apreendido sem um embate direto. É claro que, em Tybyra, há falas diretas, confrontos com esse outro silencioso e colonizador; entretanto, o humor e a ironia aparecem com mais força na obra, como piadas e deboches sobre o que está escondido. Não por acaso, essa ironia é dirigida aos desejos e ações do colonizador, que transforma sua sexualidade – ao tolhê-la, puni-la e castrá-la – em agressividade e violência. Freud (1980) comentava que o chiste, a ironia e o humor em geral são meios de se conseguir liberar tensões e recalques sem precisar entrar em um conflito direto com eles, o que é muito custoso psiquicamente e que se pode resolver com muito mais facilidade e vantagem para o locutor por meio da ironia, do duplo sentido, do chiste, da piada. Ao mesmo tempo, também parece ser uma forma com que Nyn opera para evitar conflitos diretos entre Tybyra e o colonizador e, extrapolando, entre o indígena colonizado e o colonizador, talvez porque ainda não haja um jogo de forças suficiente para que as coisas possam ser ditas com clareza e justeza sem prejuízo a quem fala a verdade.
Nyn aponta a crueza da modernidade, vista aqui em seu viés colonial, heteronormativo e violento, por meio da regulação do prazer, da língua e da instituição do processo (Tybyra é preso, ouvido e condenado). Seus crimes são confessados, admitidos, redimidos (pelo batismo e pela execução). Nyn aposta em uma transformação vegetal e em metáforas de crescimento e temporalidade: ao desnudar seu personagem e iluminá-lo gradativamente, chamando seus atos de luzes e intercalando com raízes e sons de água, e colocando-lhe no fundo da boca novas palavras que não são nem português nem Potiguara, o autor transforma Tybyra em árvore e em potencialidade criativa. Nyn, desse modo, usa sua linguagem enxertada e demarcada como uma maneira de reformular o passado que criou a própria modernidade. O autor desenvolve, no futuro, a voz de Tybyra e cria um meio de reescrever a história colonial, abrindo a possibilidade de alterar o próprio futuro – por isso as imagens vegetais, de árvores, plantas, raízes crescendo, se desenvolvendo, multiplicando-se, são tão relevantes na peça. A árvore como um signo do passado e do futuro, juntos, tanto na linguagem quanto na narrativa de Tybyra e em seu significado como indígena LGBT. Tybyra, de certa maneira, escapa da bala de canhão que o dividiu ao meio – bala esta que é o término do relato feito por d’Évreux e que, sintomaticamente, é retirada da obra de Nyn justamente para evitar a apoteose da prática colonial, o prazer e o gozo que, inconscientemente, poderiam afluir à plateia ao ver a morte do indivíduo questionador a fim de, assim, retomar um status quo. No lugar disso, Tybyra vira árvore e semente, como ele mesmo coloca em seu monólogo final. É como se o enxerto do português no Tupi-Guarani formasse uma árvore estranha, mas talvez mais forte e produtiva do que seriam individualmente cada uma das línguas em separado, e que consegue ultrapassar os relatos de violência e unir um passado pré-colonial às possibilidades de um futuro (as sementes) em que a única lógica não seja uma espécie de monocultura colonial.
Resgatando a história inicial deste ensaio, os montes dos quais falei anteriormente ainda existem nas matas, e as grandes árvores de raízes no ar com seus pequenos brotos ainda existem, apesar dos dois serem cada vez mais raros pelo fato de as próprias matas antepassadas serem cada vez mais raras em todo o Brasil. Para limpar o mato e possibilitar o plantio da lavoura, um método bastante comum usado em áreas densamente florestadas é a passagem do correntão, em que dois tratores, postos em paralela, são unidos por uma enorme corrente de metal, com força suficiente para derrubar tudo. Todas as árvores tombam, e depois as maiores são serradas e vendidas, abandonando as menores no local, e depois a terra é queimada, reduzida a cinzas. Os tocos restantes são destocados e a terra torna-se pasto ou lavoura. Gradativamente, com o passar das décadas, a força e a fertilidade da terra esmorecem, e aparecem imensas manchas de solo nu, arenoso e pobre. E os montes, em seus pequenos relevos em forma de outeiro, são aplainados e desaparecem, porque dificultam a passagem de caminhões, colheitadeiras, sementeiras e pivôs. As frases do antigo livro da terra já não podem ser lidas, pois tudo se tornou um único grande continuum de lavoura, boi, pasto, cortado por uma estrada de terra vermelha. O mesmo processo ocorreu, poderíamos dizer, em relação às vivências indígenas, negras, quilombolas e de outros povos em nosso país: o correntão serviu para derrubar as línguas (inclusive seus troncos linguísticos), fazê-las desaparecer, deixar de serem faladas, praticadas e lembradas. Os povos foram reduzidos à categoria de periféricos, de vilas que servem para serem controladas e manejadas por um poder local, com pobres endividados e presos à sobrevivência. Mas por vezes essas árvores se mantêm vivas, com seus brotos, e um desses brotos poderia ser a peça de Nyn e seu Potyguês.
Se, nas línguas menores que os artistas encontram – seja a língua de um autor judio e desterritorializado como Kafka, de que trata Deleuze (2014), seja como indígenas que perderam suas terras e seus direitos e buscam retomá-los –, existe um espaço de enxertos, transformações, chistes e brechas, que serve tanto para reformular a linguagem quanto a própria lógica dominante, que pode ser melhor vista através da estranheza, Nyn consegue criar o espaço do reencantamento. Por oposição, a política do desencante (Rufino, Simas, 2011) seria a produção de escassez e mortandade, a administração burocrática da vida, a hierarquização dos seres e a lógica colonial e racional. Essa política, além disso, ignora, tolhe e uniformiza outras lógicas que giram em torno do encantamento, como a integração e interlocução entre diferentes seres vivos, a indissolubilidade entre material e espiritual, racional e irracional, entre outras lógicas que perpassam a modernidade (Goldman, Lima, 1999) e que não se guiam por divisões como racional/irracional, natureza/cultura ou material/espiritual, que retiram do mundo a interligação dos seres vivos, os conhecimentos de povos tradicionais que pensam de outra maneira o tempo. Esse universo de desencante – universo narrado pelos escritores modernos e que culmina na obra de Kafka, entre outros – é questionado por Nyn ao possibilitar modos de contornar e reformular o desencante colonial, a violência e a lógica que podem sim ser reescritas, reimaginadas e rememoradas. A imaginação criativa não se dirige a um espaço melancólico de transformações negativas, unidas pela incompreensão, inação ou incomunicabilidade, mas sim a um espaço de produção positiva das narrativas presentes, passadas e futuras.
Juão Nyn (2020, p. 07) comenta no início de seu livro que os povos indígenas sonham a arte e vivem o sonho, e que fazer arte é um ato coletivo e espiritual. Essa prática permite ver na criação artística um modo de gerar não uma representação sobre o mundo, isto é, um discurso externo do artista sobre os objetos, mas sim uma forma de inscrição do humano sobre os objetos em si, ou então da criação de um novo objeto-sujeito em meio a outros objetos-sujeitos, como Tybyra, que é árvore, antepassado cuja história foi criada no presente e que se tornou uma história de um antepassado. A árvore não como um sinal régio de autoridade, ordem e hierarquia, como esse símbolo opera no Ocidente (podemos pensar no formato árvore da cruz, na presença da árvore como símbolo da nobreza ou da antiguidade do poder, da autoridade que se ergue sobre os demais, como Deleuze [1995] estudou), mas a árvore como símbolo do tempo e do coletivo, como um ser em meio a outros seres, formado pela união dos que crescem juntos, unindo o passado (raízes e tronco) com futuro (flores e sementes). Essa árvore que serve como portal ao passado e ao futuro, e que é corporalizada em Tybyra, morto e transformado, por assim dizer, em árvore e semente aos filhos e netos da posteridade, como o próprio Nyn coloca. Nesse espaço, o sonho vira arte, e arte vira vida: a obra de Nyn é factualmente posterior às de D’Évreux, as falas de Tybyra nunca poderiam ser resgatadas segundo a lógica do desencante, apenas suas ações vistas pela voz colonial (que não era silenciosa na época).
Mas Tybyra e a narrativa da peça se tornam uma nova realidade, como sua linguagem enxertada, como se retomassem a terra do passado e tornassem real a voz que não havia sido falada, mas que agora é uma realidade concreta. Nesse jogo entre passado, presente e futuro, podemos inclusive retomar a noção Aymara, trabalhada por Cusicanqui (2010), do “qhipnayra uñtasis sarnaqapxañani”, ou seja, o passado que poderia ser o futuro, que vive nos sonhos e atualiza utopias. Esse passado que se torna realidade e que abre novas portas ao presente e também ao futuro, como a árvore que estava e estará, que provoca o sonho, é semente e tronco, é vida e gera vida, mesmo que tombada, com as raízes no ar e brotos lutando pelo sol.
* Eduardo Schaan é doutorando em Estudos Literários na UFRGS, organizador e produtor da Tela Indígena, grupo que produz eventos, filmes, exposições, entre outros, sobre a temática indígena no Brasil.
Referências
CUSICANQUI, S.. Oprimidos pero no vencidos: Luchas del campesinado aymara y quechwa. 4. ed. La Paz: La mirada salvaje, 2010.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). São Paulo: Ed. 34, 1995.
D’ÉVREUX, Y. Viagem ao Norte do Brasil: feita nos anos de 1613 a 1614 (obra original publicada em 1864). São Paulo: Sciciliano, 2002
FREUD, S. O humor [1927]. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XXI.
GOLDMAN, M.; LIMA, T. S. Como se faz um grande divisor? In: GOLDMAN, M. Alguma antropologia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999, p. 83-92.
NYN, Juão. Tybyra: uma tragédia brasileira. Selo do Burro, 2020.
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política da vida. Mórula Editorial, 2020.