O volume que aqui se apresenta é o breve, mas consistente traçado de uma cartografia da diversidade na qual se inscreve o diálogo entre literatura, arte e política, com atenção especial para o feminismo. Se os últimos anos têm sido marcados pelo que Adriana Armony denomina de “brutalidade semiótica (que às vezes chamamos de polarização)” no importante artigo que encerra o dossiê, neles também podemos reconhecer um movimento crescente de experimentos e práticas éticas e estéticas nas quais a escrita e o corpo interrompem e escapam a essa brutalidade. Essas experiências passam também quase necessariamente por uma reinscrição do erotismo, criando novos caminhos para o desejo, para a relação entre indivíduo e coletivo, na qual, segundo escreve Italo Moriconi, “o nós é uma cacofonia conjunta de vozes singulares”.
Nessas outras tramas eróticas, o trauma e a violência a que os corpos e as subjetividades são submetidos em um sistema capitalista e patriarcal não são apagados nem esquecidos, mas levados para a cena da escrita, para o palco da política, para que possam ser ressignificados.
O dossiê é aberto e fechado por duas Adrianas. Entre “Uma piropoética lésbica do fogo”, de Adriana Azevedo, sobre os potentes The Lesbian Avengers Eat Fire Too (1993), dirigido por Sue Friedrich, e Retrato de uma jovem em chamas (2019), de Céline Sciama, e o texto-depoimento sobre literatura e sexo de Adriana Armony, “O sexo dos anjos”, o dossiê conta com contribuições variadas que testemunham não só uma grande diversidade de temas feministas, mas uma escrita propriamente feminista, híbrida e libertária.
Cidinha Silva, e seu “Percurso de uma escritora durante o período de doutoramento”, nos oferece sua experiência como escritora e doutoranda durante a pandemia e o nascer de uma nova escrita a partir do tédio da academia e da angústia dos prazos; o texto de Priscila Gontijo, “Por uma poética da passagem”, cria um tecido de pensadoras feministas, de Virginia Woolf a Anna Tsing e Rosa Montero, para refletir sobre a criação teórica e literária. “Mimoso”, de Claudia Oliveira, estabelece uma leitura da obra da artista plástica Juliana Notari a partir de noções propostas por Donna Haraway e da discussão sobre o antropoceno. Danielle Magalhães desafia as ideias canônicas de maternidade e de corpo feminino em “Vingar os vales derrotados” e Glaucia Secco, em “Gritemos!”, discute as violências sofridas por corpos feminizados em um texto acompanhado de um romance, uma instalação de arte e testemunhos. Finalmente, em “Universidade, webinários e novas epistemologias”, Drica Madeira relata suas experiências em eventos acadêmicos, demonstrando a energia que ainda pode mover mulheres a se expressar, apesar de todos os percalços impostos pela pandemia.
Os artigos de temática livre que compõem esta edição também passeiam por formas diversas, discutem questões urgentes, como os artigos de Nataly Costa e Fred Le Blue, e contribuem para os estudos sobre teatro e sobre a literatura, como o texto de Rafael Conde e a importante “narrativa teórica” (a expressão é nossa) de Italo Moriconi.
A resenha deste volume é dedicada a Pré-história (2020) de Paloma Vidal e termina por apontar um panorama do romance contemporâneo, ou, ao menos, um pathos, como esclarece Lucas Bandeira de Melo. A entrevista é uma conversa imperdível com Angélica Freitas sobre sua arte, Berlim e o futuro; e, na seção “Vale a pena ler de novo”, Heloisa Buarque de Hollanda recupera uma entrevista publicada em 2009 com Miriam Moreira Leite, uma das mais importantes estudiosas de gênero, família, fotografia e memória.
É com grande alegria que apresentamos mais um número da Z Cultural, informando que, devido ao grande número de artigos submetidos, ele será dividido em dois volumes, o segundo a ser publicado no primeiro trimestre de 2022. Este volume encerra um ano difícil, mas do qual foi possível extrair grandes aprendizados e criações, alguns deles reunidos aqui.
As recentes imagens da Cinemateca Brasileira em chamas em São Paulo nos remetem a todas as vezes em que instituições culturais desapareceram nas cinzas no Brasil – o Museu Nacional em 2018, o Museu da Língua Portuguesa em 2015 –, como se algum prenúncio estivesse sendo dado para os terríveis acontecimentos políticos que se desenrolaram no Brasil desde então. Em novembro de 2017 chamas também foram acesas contra a cultura e o conhecimento no nosso país quando a teórica lésbica Judith Butler veio ao Brasil para ministrar uma conferência no Sesc Pompeia durante o evento “Os Fins da Democracia”. Na época, grupos contrários à vinda de Butler ao país organizaram abaixo-assinados e uma manifestação em frente à instituição. Os revoltosos portavam bandeiras do Brasil, cartazes contra Lula, FHC, a ONU, as “ideologias de gênero”, cartazes com a inscrição “– Butler + Família” e “Menino nasce Menino”; mas a protagonista do ato era uma grande boneca vestida de bruxa com o rosto da filósofa colado, portando um grande chapéu pontudo, vestindo um soutien rosa por cima do vestido preto e uma capa rosa. A boneca foi incendiada aos gritos de “FORA BUTLER”; e urravam contra a retirada da inocência das crianças que seria provocada por uma suposta “ideologia de gênero”. Uma imagem ficou muito marcada, remetendo-nos às fogueiras da inquisição: a boneca representando a sapatão filósofa pegando fogo e uma mão segurando um crucifixo apontada para o rosto de Butler em chamas.
O fogo serve à dinâmica cisheteropatriarcal e branca como símbolo e instrumento da supressão de corpos inadaptáveis e dissidentes: como os corpos das mulheres insubmissas, donas de seus saberes e de seus corpos, suprimidos pela Santa Inquisição; a queima de livros do instituto do sexologista alemão Magnus Hirschfeld (que havia construído tolerância e comunidade para pessoas LGBT no contexto da República de Weimar) por soldados nazistas; a marcação de animais explorados com emblemas do poder; a expropriação de terras indígenas; o incêndio das nossas florestas e biomas; e a destruição de um mundo onde a vida pulsa em todas as suas múltiplas, potentes e belas manifestações.
Mas nossos corpos ardem. Arder é um sinal de que podemos deter o saber do fogo como forma de constituição subjetiva insubmissa. Pegar o fogo com as mãos. Fogo na buceta. Fogo no cu. Quais os caminhos percorridos pelo fogo em nossos corpos? Quais usos fazemos do fogo como práticas de liberação e de afirmação da vida? Afinal, sem fogo não há vida. E nós sabemos dessa máxima e nos apropriamos dessa máxima.
Neste artigo, pretendo elaborar uma reflexão acerca das piropoéticas do fogo a partir de dois acontecimentos político-culturais protagonizados por mulheres lésbicas: as ações públicas e performáticas do grupo de ação política direta estadunidense The Lesbian Avengers, que atuou no país nos anos 1990, retratadas no filme Lesbian Avengers Eat Fire Too (1993), de Sue Friedrich, e o filme Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), da diretora francesa Céline Sciamma. Como é possível pensar poeticamente e politicamente o fogo a partir de suas (re)apropriações por lésbicas artistas e ativistas? O que o corpo lésbico e o pensamento lésbico podem queimar? De que nos servem estrategicamente as chamas do fogo? São perguntas que encetam caminhos ao pensamento, e não respostas definitivas.
1. Lésbicas que comem fogo
Um grupo de seis mulheres resolveram se reunir certo dia em Nova York, nos Estados Unidos, por partilharem um incômodo por conta de certa ausência e invisibilização de questões lésbicas no ativismo em torno da questão do HIV/AIDS – que naquele momento era uma grave pandemia global – e no próprio ativismo homossexual. A partir desse encontro foi criado o Lesbian Avengers, um grupo de ação direta focado na visibilidade e sobrevivência lésbica. O grupo, como consta no “About” de seu site, planejava suas ações para causar “um impacto visual e tinha comitês de mídia dedicados à divulgação e ‘propaganda’. The Lesbian Avenger Handbook [O manual das Lesbian Avengers] oferecia um guia passo a passo sobre como atrair a atenção da imprensa, da grande mídia e da mídia lésbica e gay, incluindo até exemplos de comunicados à imprensa”.[1]
O nome “Lesbian Avengers” [Vingadoras Lésbicas] é uma clara referência e uma mistura de reversão e deboche ao grupo de super-heróis The Avengers [no Brasil, Os Vingadores]. O quadrinho foi criado em 1963 por Stan Lee, Jack Kirby e Dick Ayers para a editora Marvel Comics, com o objetivo de fazer concorrência com a DC Comics, que havia lançado a sua Liga da Justiça em 1960. Os Avengers originais eram uma equipe ou uma espécie de clube que tinha como objetivo “combater vilões que nenhum herói conseguiria combater sozinho”, juntando, para isso, o Homem de Ferro, Hulk, Homem-Formiga, Vespa e, em sua quarta edição, um novo membro, o Capitão América. O grupo foi recrutado a serviço do governo dos Estados Unidos para combater forças cósmicas malignas – um grupo de homens brancos (um deles às vezes verde) e uma mulher-inseto, cumprindo a cota da mulher sexy, salvando o mundo do mal.
Para o governo e a sociedade norte-americana dos anos 1990, gays personificavam o mal, por serem vistos como propagadores de desvios morais e de uma doença mortal e até então sem cura, e as lésbicas eram colocadas em um certo “ponto cego”[2] da discursividade na estrutura heteronormativa de organização do mundo ocidental. A superinvisbilidade funciona como um superpoder para as Vingadoras Lésbicas, já que de onde menos se espera surge a revolta, a insurgência e a rebelião – um grupo que combate os vilões do cisheteropatriarcado que nunca poderiam ser combatidos por uma lésbica sozinha.
No início do documentário Lesbian Avengers Eat Fire Too (1993), dirigido por Sue Friedrich, vemos os registros em vídeo de uma das primeiras ações públicas do grupo em Nova York, em setembro de 1992. As ativistas estão reunidas perto do Queens. O quadro escolar do 24º distrito havia rejeitado um currículo multicultural que estava sendo aplicado na época, justamente porque o currículo continha tópicos em que seriam apresentadas as identidades de gênero e orientações sexuais múltiplas presentes na sociedade. Usando instrumentos de sopro e percussão, saem em marcha tocando uma “polca lésbica” com uma enorme faixa rosa onde está escrito “TEACH ABOUT LESBIANS” [ensinem sobre lésbicas], e com balões da mesma cor com a inscrição “Ask About Lesbian Lives” [perguntem sobre vidas lésbicas], que levam para distribuir às crianças da escola. Ao chegarem à porta da escola, os pais desviam da banda e das manifestantes e retiram raivosos os balões das mãos dos pequenos, que os pegam com entusiasmo da mão das ativistas. Podemos observar de cara que as estratégias de luta dessas vingadoras são bastante distintas da força física e dos superpoderes dos super-heróis tradicionais.
Em 1992, um homem gay branco e uma mulher lésbica negra sofreram um ataque de skinheads no estado do Oregon, nos Estados Unidos. Os skinheads tacaram coquetéis molotov na casa deles, que pegou fogo, e os dois foram queimados vivos. O Lesbian Avengers havia surgido, conforme já mencionado, nesse mesmo ano, e a ideia da criação tem sido creditada à cubana Ana Simo, que crescera na França e havia participado dos eventos de Maio de 68.[3] Ana Simo estava revoltada com as políticas conservadoras que dizimaram os grupos de resistência nascidos nos anos 1960 no EUA, e os anos 1990 estavam muito violentos sobretudo para lésbicas, mulheres e pessoas não brancas.
O Lesbian Avengers prontamente organizou uma marcha que visibilizasse o incêndio e o assassinato de Hattie Mae Cohens e de Brian Mock. Essa marcha também está retratada no documentário Lesbian Avengers Eat Fire Too. Segundo consta no site do Killer Queens Podcast:
Em 26 de setembro de 1992 em Salem, Oregon, Hattie Mae Cohens e Brian Mock estavam em seu apartamento com seus amigos. A maioria das pessoas no apartamento estava dormindo quando duas bombas incendiárias entraram pela janela. Essas eram bombas rudimentares feitas de garrafas cheias de gasolina e acesas. Todos os amigos escaparam do apartamento em chamas, mas não Hattie Mae e Brian. Eles morreram queimados no apartamento do porão que chamavam de casa.
Hattie Mae era uma afro-americana de 29 anos que se identificava como lésbica.
Brian era um homem branco de 45 anos, supostamente deficiente, que se identificava como gay.[4]
O documentário nos mostra cenas das ativistas marchando em protesto contra a brutalidade do assassinato de Cohens e Mock e contra o silenciamento midiático e social em torno do caso. As Lesbian Avengers carregavam tochas feitas com galhos de árvore grosseiras, partindo da região do Greenwich Village, e como ponto final da caminhada um memorial que haviam construído como forma de manifestação pública do luto. O caminho até o memorial foi tumultuado. As ativistas enfrentaram violência policial, além de muitos policiais que tentavam dispersar a manifestação e tomar-lhes as tochas e seus cartazes à força.
Ao chegarem ao ponto final da marcha, elas leram um manifesto que dizia coisas como:
Nós do Lesbian Avengers construímos esse memorial. Isso representa o nosso medo. Isso representa o nosso luto. Isso representa a nossa raiva. E isso consagra nossa intenção de viver plenamente. Assim como somos. Onde quer que estejamos. Nós tomamos o fogo da ação em nossos corações. [enquanto acendiam uma pequena tocha] E nós o colocamos em nossos corpos. E nós estamos aqui e agora. Para que isso seja conhecido, estamos aqui. E aqui nós vamos ficar. Nosso medo não nos consome. O fogo deles não irá nos consumir. [uma sapatão abaixa e embebeda sua tocha com querosene – a sapatão que lia o manifesto acende ambas as tochas com a boca. O fogo vai sendo transmitido e reproduzido de tocha em tocha, cada uma acende a tocha da outra com a boca e então todes engolem o fogo de suas tochas].
A ativista negra e lésbica Marlene Colmbun narra os acontecimentos:
Nós decidimos erigir um memorial para eles. Na semana do Halloween. Que era uma semana péssima em relação à violência gay e lésbica em NY. E nós pensamos: “Bem, nós vamos ficar aqui.” E nós passamos a semana ali. E isso foi uma nova experiência para a maioria de nós. Nós superamos o medo que tínhamos de confrontar o desconhecido. De passar a semana na rua. A maioria de nós superou esse medo. Apesar de cada ação que fazemos ser carregada de preocupação e perigo. Nós sempre tratamos de superar isso. E nos sentimos mais felizes e fortes por isso.
O Lesbian Avengers foi o grupo responsável por organizar, em 1993, a primeira Dyke March dos Estados Unidos. Como protesto contra a invisibilidade lésbica da “Parada Gay” que aconteceria no dia seguinte, elas conseguiram recrutar 20 mil lésbicas para marcharem até a frente da Casa Branca. Elas formaram um paredão de sapatões na frente do paredão de seguranças da casa presidencial e COMERAM FOGO novamente. Os registros desse evento se tornaram as imagens mais emblemáticas do grupo. Comer fogo acabou se tornando um símbolo do coletivo e o seu grito de guerra se consagrou: “O fogo deles não vai nos consumir. Nós tomamos esse fogo e o tornamos nosso”.
Em A psicanálise do fogo (1994), Gaston Bachelard descreve os mecanismos de descobertas do fogo pela humanidade. O medo do fogo produzido por raios, as árvores das florestas pegando fogo, até o clímax, em que o homem põe uma madeira contra o buraco de outra madeira e, friccionando, produz a faísca necessária para que a chama surja entre as folhagens secas. O fogo seria, então, filho da madeira – “mas antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem” (Bachelard, 1994, p. 39). Bachelard faz então uma longa associação fálica do surgimento do fogo: o pau que entra na fenda e por fricção produz o fogo passa a ser visto portador de um erotismo falocêntrico pelo imaginário psicanalítico do fogo produzido pelo autor. Para as lésbicas, a fricção é de outra ordem, é da ordem do “corpos atritáveis” (Azevedo, 2020), é da ordem da desobediência. As vingadoras lésbicas roubam o fogo dos homens.
Bachelard aponta como em diversos mitos, de diversas sociedades, assim como no mito de Prometeu, o segredo do fogo é roubado por um homem, um pássaro, ou algum outro pequeno animal. No entanto, em outros mitos menos conhecidos, são as mulheres que descobrem a arte e o poder do fogo: “em outras ocasiões, mulheres se batem: ‘ao final, uma das mulheres quebrou seu bastão de combate e dele imediatamente saiu fogo’” (Bachelard, 1994, p. 33). “O fogo é também produzido por uma velha, que ‘sacia sua raiva arrancando dois pedaços de pau e esfregando-os violentamente um contra o outro. Várias vezes a criação do fogo se associa a uma violência similar. O fogo é o fenômeno objetivo de uma raiva íntima, de uma mão que se enerva” (idem, p. 55).
A teórica Ann Cvetkovich (2003), analisando a performance da banda punk Tribe 8 no Michigan Womyn’s Music Festival em 1994, evento acusado de ativar gatilhos de traumas sexuais das espectadoras por cortarem um dildo em uma performance barulhenta de rock, observa que as “reações tradicionais de minorias sexuais ao trauma são o fetiche e a fantasia” e ainda que “as possibilidades subversivas de repetição com uma diferença, que foram valorizadas nas discussões de butch-femme, drag e outras práticas culturais queer, portanto, fornecem a base para rituais de cura e performances”. Os aspectos negativos do trauma, nessas práticas culturais, são acolhidos, e não recusados. Isso “desafiaria a própria hipótese repressiva, tão central para a autoajuda e discursos terapêuticos” (Cvetckovich, 2003, p. 88-89).
As vingadoras lésbicas desafiam essa hipótese repressiva do trauma ao pegar o fogo que nos assassina e fazê-lo sumir em suas bocas, no interior de seus corpos. Ao engolirem o fogo, em um ato quase erótico, elas subtraem a chama, mas também a tomam para si. O fogo, como simbologia ambivalente entre vida e destruição, é reapropriado por elas, como uma forma de dizer: “nós lidamos assim com o nosso luto, com o nosso medo, mostrando para vocês que eles não nos derrubam”. Elas acolhem esse medo, fazem dele um sentimento e um afeto que fazem parte da constituição subjetiva lésbica como uma potência desafiadora da existência.
A pirofagia se torna então um gesto poético e performático de reversão da opressão – e de alto impacto. O luto e o trauma do perigo de suas existências, o medo de serem queimadas vivas por skinheads, se tornaram motores de ação e de um gesto poderoso. As lésbicas feministas e insubmissas, muitas vezes representadas como “dragões”, e que no passado eram queimadas em fogueiras da inquisição como bruxas, e que ainda são queimadas por fundamentalistas cisheterobrancos, agora engolem e neutralizam a violência com seus corpos. Elas detêm o saber do fogo. Comem o poder do inimigo e tomam a sua força para si. Essa é sua vingança. Como as bruxas.
2. Lésbicas sob a luz do fogo
Faço um salto até 2019, ao filme Retrato de uma jovem em chamas, da cineasta lésbica francesa Céline Sciamma. O filme é ambientado no século XVIII e narra a história de uma pintora chamada Marianne, que tem como objetivo pintar de forma secreta o retrato de Heloïse, jovem que vive enclausurada em uma casa numa praia deserta. O retrato teria como destino as mãos de um jovem rapaz italiano, um marido “arranjado” contra a sua vontade. Heloïse está se recuperando do luto da irmã, que cometeu suicídio, se jogando de um penhasco. A narrativa indica que esse suicídio tenha sido motivado também pelo desespero diante da iminência de um casamento arranjado contra a sua vontade.
Nas primeiras cenas do filme Marianne chega de barco à casa de Heloïse com o corpo e as roupas molhadas do mar, porque teve que salvar algumas telas que tinham caído na água. Com a ajuda de uma governanta, ela despe suas roupas e seca as telas ensopadas, seus cabelos e seu corpo sentada na frente de uma lareira recém-acesa. A cena mostra seu corpo nu, sentado no chão, enquanto acende um cachimbo para fumar um tabaco para relaxar da viagem.
O fogo da lareira, das velas, do fumo e de fogueiras atravessa as cenas e compõe a fotografia do filme de Sciamma. As cenas internas e noturnas são sempre uma espécie de breu iluminado por chamas, e é sob a meia-luz quente e delicada do fogo que suas vidas se manifestam em sua potência. E o fogo que dá tom ao título, o retrato em fogo, é o centro dessa potência.
É importante ressaltar que Sciamma está jogando com a tradição do retrato na pintura e o conceito de retrato autônomo. Jean-Luc Nancy, em seu livro Le regard du portrait, nos oferece inúmeras definições do retrato, inclusive a de Jean-Marie Pontévia, que em seu Écrits sur l’art (1986) diz que “O retrato é um quadro que se organiza em torno de uma figura” que exclui do seu entorno toda a exterioridade (Nancy, 2000, p. 13). O retrato autônomo deveria nos trazer um “sujeito sem expressão”. Esse sujeito seria o do primeiro quadro que Marianne pinta de Heloïse, e que ela reprova, sob argumento de que seria sem vida. Marianne responde ao alerta reprovativo de Heloïse pondo fogo nesse primeiro retrato. Nesse ponto, Sciamma rompe com essa tradição e com a mirada patriarcal, como já observado há pouco, a do observador racional de um objeto passivo. As chamas consomem essa mirada e a destroem, transformam-na em cinzas.
É nesse novo jogo de gestos e olhares, que se estabelece dentro da lógica de equilíbrio de poderes proposta pela diretora,[5] que o novo quadro (e uma nova mirada) começa a ser pintado das cinzas. Um retrato vivo, um retrato preenchido por gestos, memórias, significados e, sobretudo, segredos aquecidos pelo fogo. O segredo se torna um artifício delicado e sensível no interior da narrativa. Um secredo ou um íntimo perceptíveis e endereçados para uma espectadora específica, a espectadora lésbica. A sensibilidade lésbica nos arma com o olhar apurado para ver onde só nós podemos enxergar, um segredo da escuridão, sob a luz de velas que iluminam o que só nós conseguimos ver.
O segredo atravessa a narrativa de forma contundente, e sempre sob as chamas. A governanta da casa engravida e precisa abortar. As três vão, então, ao encontro de uma velha senhora que detém saberes ancestrais das ervas e que havia lhe dado alguns chás para tentar interromper a gravidez. É noite, e após o encontro elas se reúnem em torno de uma fogueira, com outras mulheres de classes subalternizadas, que partilham tradições de mulheres em torno do fogo. A governanta anuncia que mesmo após o chá ainda está grávida e que precisará fazer o aborto. No escuro elas continuam se divertindo, entoando cânticos ritualísticos e tomando bebidas alcoólicas, sem a presença de homens. A música que entoam diz em latim “fugere non possum” (“elas vêm voar”), e é ao som desse canto de liberação e num ambiente marcado pelo continuum lésbico que elas se olham sem as amarras sociais e se deixam apaixonar. A própria Sciamma escreveu a letra: “Eu escrevi as letras em latim. Eles estão dizendo, ‘fugere non possum’, que significa ‘eles vêm voar’”. “É uma adaptação de uma frase de [Friedrich] Nietzsche, que diz basicamente: ‘Quanto mais alto voamos, menores parecemos para aqueles que não podem voar’.” Entre seus olhares está a grande fogueira, e cinzas em chamas atravessam o escuro da noite levadas pelo vento como pequenos vagalumes. É nesse momento que Heloïse começa a se afastar da fogueira e a barra de seu vestido é tomada pelo fogo, na cena que ilustra o cartaz oficial do filme. Depois desse momento, elas se abrigam numa caverna escura, na praia gelada que margeia o terreno da casa de Heloïse, e se beijam.
O que nós, mulheres, também podemos enxergar no filme é o processo da ruína da heterossexualidade compulsória,[6] que se dá no e através do olhar. Heloïse é obrigada a se casar com um homem que nunca viu, e Marianne é a primeira mulher que conhece que não tem essa mesma obrigação, por ser de outra classe social. Marianne apresenta outra possibilidade de existência. Através da ferida desse encontro, e do isolamento dessas mulheres, numa microcomunidade sem homens e autoridades, a compulsoriedade perde o sentido e surge o desejo e o enamoramento entre duas mulheres que se miram.
Nancy suspeita que “toda pintura é talvez figura e olhar” (Nancy, 2000, p. 27) – um olhar não mais de um objeto mas de uma figura-sujeito, em toda a sua intimidade, em sua interioridade, em sua superfície e em sua interioridade, essa figura que foi olhada, nos olha e nos endereça seus segredos. Nós trocamos olhares íntimos e em relação de equilíbrio de poderes com o filme-retrato, assim como Heloïse e Marianne. Jacques Derrida, em um livro inteiramente dedicado a Nancy, intitulado Le toucher: Jean-Luc Nancy (2011), fala dessa troca de olhares: “quando nossos olhos se tocam, isso faz dia ou isso faz noite?”, e que olhar é comparável aos lábios, ao toque. Um toque quente no escuro. Sob a luz do fogo.
Termino este artigo na direção de uma piropoética lésbica. Pensando em como lésbicas podem voar ao pegar para si o fogo. Num gesto de reinscrição do mito de Prometeu, a lésbica não rouba o fogo do Olimpo para dá-lo aos homens, mas rouba o fogo dos homens para fazer de seu corpo um corpo quente que pulsa em afirmação da vida. Das Lesbian Avengers a Heloïse e Marianne, proponho um pensamento lésbico em chamas. Não interessado (de forma simplista) apenas em queimar o patriarcado, mas em tomar em si o fogo, e inscrever em si a dor, o trauma e o luto, como uma nova possibilidade de existir para além dos perigos que a vida nos endereça.
* Adriana Azevedo é professora substituta de Teoria Literária na UFRJ e doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. É também editora e idealizadora da Filipa Edições e traduziu o livro Eu odeio os homens, de Pauline Harmange, da editora Rosa dos Tempos.
Referências
AZEVEDO, Adriana. “Corpo atritável ou uma nova epistemologia do sexo”. In.: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista Hoje: Epistemologias do Sul Global. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2020.
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
CVETKOVICH, Ann. An Archive of Feelings: Trauma, Sexuality and Lesbian Public Cultures. Durhan & Londres: Duke University Press, 2003.
FRIEDRICH, Sue. The Lesbian Avengers Eat Fire Too. Estados Unidos, 56min, 1993.
NANCY, Jean-Luc. Le regard du portrait. Paris: Éditions Galilé, 2000.
SCIAMMA, Céline. Retrato de uma jovem em chamas. França, 2h 2min, 2019.
[2] Para entender melhor a noção de “ponto cego” em relação à existência lésbica, ver The Straight Mind (1978), de Monique Wittig.
[3] “Early in ’92, Ana Simo, frustrated at lesbian invisibility, and in particular how lesbians were being erased from the NY Rainbow Curriculum battle, approached Sarah Schulman about starting a lesbian direct action group, ‘A group totally focused on high-impact street activism, not on talking,’ Ana said.” (Disponível em: http://www.lesbianavengers.com/about.shtml. Acessado em 29 de agosto de 2021.)
[4] “On September 26th, 1992 in Salem, Oregon, Hattie Mae Cohens and Brian Mock were at their apartment with their friends. Most of the people in the apartment were asleep when 2 firebombs came crashing in through the windows. These were crude bombs made from bottles filled with gasoline and set on fire. While the friends all escaped the fiery apartment, Hattie Mae and Brian didn’t. They burned to death in the basement apartment they called home. Hattie Mae was a 29-years-old African American woman who identified as a lesbian. Brian was a 45-year-old, reportedly disabled, white man who identified as gay”. Trecho traduzido livremente da reportagem do site Killer Queens Podcast. Disponível em: https://www.killerqueenspodcast.com/the-murders-of-hattie-mae-cohens-and-brian-mock/. Acessado em 29 de agosto de 2021.
[5] Céline Sciamma fala em “equilíbrio de poderes” em entrevista ao canal Collider Videos, ao lado das atrizes Adèle Haenel e de Noémie Merlant. Disponível em: <https://youtu.be/iNQTfl2lEnI>, acessado em 17 de fevereiro de 2020.
[6] Da qual a irmã de Heloïse escapou na única saída que encontrou, o suicídio, atirando-se de um precipício (como em Thelma & Louise, clássico de 1991).
Escrevi a tese de doutoramento Pirilampo das africanidades: políticas públicas para o livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (governo federal 2013-2015) durante os meses pandêmicos de janeiro a março de 2021. Uma experiência traumatizante, como o doutorado costuma ser para muita gente.
Mas o que, exatamente, me mortificou? O prazo, o acossamento do prazo que os colegiados praticam com estudantes. A meu ver, trata-se de um ritual hierárquico e de prazer masoquista, do tipo “vamos jogá-las na fogueira e elas se viram”, ou, “vamos jogar no fogo e observar como se viram”. Algo insano, desumano e de mão única, porque, a qualquer problema do orientador ou da banca, o prazo pode ser dilatado com tranquilidade, a despeito de atrapalhar a pontuação do departamento nos órgãos de fiscalização de desempenho acadêmico. Durante o processo, amigos me contaram de prorrogações sucessivas de até seis meses contabilizadas da data da entrega feita pelo estudante até o momento da defesa devido a questões da banca, todas aceitáveis e compreensíveis, por suposto.
O garrote do tempo pandêmico impunha perguntas dilacerantes: E se eu adoecesse? Teria paz para me cuidar ou essa pressão desesperadora baixaria de vez minha imunidade e me levaria à morte em menos tempo? E as pessoas que dependiam de mim? Mesmo sem gerar renda durante aqueles meses dedicados à tese, eu precisava continuar depositando o dinheiro delas. E se mais alguém da família fosse intubado? E se outros amigos morressem? E se eu pirasse com tudo aquilo e tivesse um bloqueio na escrita, se não conseguisse produzir o número diário de páginas ao qual havia me determinado? Cheguei a conversar sobre essas questões com o orientador e apresentei exemplos de pessoas amigas matriculadas em outras universidades que conseguiram prorrogações a perder de vista. Ele, de maneira serena, parceira e cautelosa, desfiou exemplos de jubilamento muito próximos, experimentados por orientandos de orientadores famosos e respeitados.
Eu não me permiti pôr em risco tantas estações da minha vida investidas no processo e obedeci ao garrote do tempo do colegiado do departamento em que estudava. Concluí a tese, mandei para a revisão e depois a entreguei ao orientador no período exigido. É lógico que a defesa não aconteceu na primeira data prevista, só um mês depois.
Por essas e outras não tive qualquer alegria com esse trabalho e sequer ao concluí-lo, nem mesmo alívio. Foi mais uma coisa do rol das coisas que são feitas porque precisavam sê-lo.
Como agora é o momento de capitalizar a tese e o título acadêmico, conto a vocês que a tese tem o “formato novo” que Eduardo Oliveira, meu orientador, me desafiava a criar durante as reuniões de orientação. Eu respondia com silêncios reticentes de desesperança e descrédito. Ele sugeria coisas, a escrita de um romance sobre o tema de pesquisa, por exemplo, e olhava nos meus olhos buscando respostas. Eu evadia. Em algumas de nossas conversas cheguei a dizer que queria mesmo fazer um trabalho convencional, que a criatividade eu exercitava na minha produção literária. Na verdade, temia desgastes previsíveis e desnecessários. Fiquei surpresa quando, no exame de qualificação, ele voltou ao tema de maneira muito suave, e continuou a fazê-lo nas duas derradeiras reuniões de orientação.
Eis que um dia, acordei com a ideia de escrever a tese em formato de cartas, dirigidas ao orientador, à banca de avaliação, ao DMMDC (Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento, da Universidade Federal da Bahia), às pessoas que formulam e fazem a gestão das políticas públicas do setor do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil, e ao público leitor. Cartas que tiveram notas de rodapé, referências bibliográficas e, acima de tudo, um caminho argumentativo que produziu sínteses narrativas, aspecto para o qual Eduardo Oliveira chamava a atenção de todos os seus orientandos rumo à modelagem de uma boa tese.
É um trecho dessas cartas, a de número 03 – “Uma pesquisadora encarnada e as memórias que a conectam ao seu tema de pesquisa: africanidades nas políticas públicas para o livro, leitura, literatura e bibliotecas (PPLLLB) – governo federal (2013-2015)”, que trago para este ensaio, no espírito de destacar o que fiz de mais importante e realmente significativo durante o período do doutorado, meus livros.
Conto-lhes, prezadas leitoras e leitores, que ouvi recorrentemente duas perguntas em eventos literários durante os anos do doutoramento: 1) Como a escritora se adaptou à escrita acadêmica?, e 2) A escrita acadêmica atrapalhou a escritora?
À primeira pergunta, costumava responder assim: Durante o tempo do doutoramento escrevi quatro artigos e os submeti a revistas acadêmicas. Dois foram aceitos e publicados e dois foram rejeitados. Quando recebi a avaliação das negativas, concordei completamente. Se fosse eu a avaliar os textos, também os desaprovaria.
Quanto à segunda contestação, o processo do doutorado como um todo não chegou a atrapalhar a escritora de maneira substancial. Eu o comecei com a determinação de que cumprir componentes curriculares e pesquisar um tema não obstaria minha carreira literária. De maneira colateral, eu pretendia também contribuir para impulsionar a produção discente do DMMDC, em resposta a conversas tidas com meu orientador sobre essa expectativa em relação a certos perfis, como o meu. Tenho certeza de tê-lo feito e tenho imensa alegria em documentar, no Currículo Lattes do período 2015-2020, diversas palestras, entrevistas, artigos, produção de material multimídia, cursos, oficinas, publicações no exterior (Alemanha, EUA, Espanha (Catalunha), Itália, França), centenas de crônicas publicadas na imprensa eletrônica e, até mesmo, uma coleção de roupas[1] inspirada em livro escrito por mim.
A maior alegria, entretanto, foi ter publicado 11 livros (8 inéditos e 3 reedições) no período do doutoramento (2015-2020). Estes foram os títulos:
Canções de amor e dengo (Poemas. Me Parió Revolução, 2016. Esgotado).
# Parem de nos matar! (Crônicas. Ijumaa, 2016. Esgotado).
O homem azul do deserto (Crônicas. Malê, 2018).
Um Exu em Nova York (Contos. Pallas, 2018).
Exuzilhar: melhores crônicas de Cidinha da Silva (Crônicas. Kuanza Produções, 2019).
Pra começar: melhores crônicas de Cidinha da Silva, vol.2 (Crônicas. Kuanza Produções, 2019).
Kuami (romance infantil. Jandaíra, 2ª edição, 2019).
# Parem de nos matar! (Crônicas. Jandaíra; Kuanza Produções, 2ª edição, 2019).
Oh, margem! Reinventa os rios! (Crônicas. Oficina Raquel, 2ª edição, 2020).
Movimento de Mulheres Negras e Feminismo Negro no Brasil: uma memória (Ensaio. n-1, 2020).
Tenho também me empenhado em construir uma história editorial da escritora negra que sou. Ou seja, me interessa documentar todos os meus passos, processos, aprendizados, conquistas e estratégias para existir de maneira vitoriosa no mercado. Este é um dos principais legados que intento deixar para as novas gerações; a documentação da minha carreira literária[2]. Seguindo esse espírito, também registro nesta carta e nesse espaço tão importante, as tiragens dos meus 19 livros publicados que perfazem 227,2 mil cópias em circulação. Saliento que alguns livros têm recebido novas edições por editoras diferentes, nesses casos, a última editora mencionada é a que detém os direitos patrimoniais nesse momento.
Título
Gênero
Editora
Ano 1ª edição
Número de edições
Número de reimpressões
Número de copias
Ações afirmativas em Educação: experiências brasileiras
ensaio
Summus (SP)
2003
01
02
6.000
Cada tridente em seu lugar
crônicas
Mazza Edições (MG)
2006
01
03
4.000
Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!
crônicas
Mazza Edições (MG)
2008
01
——
1.000 (ESGOTADO)
Os nove pentes d’África (PNLD Literário 2020)
novela
Mazza Edições (MG)
2009
01
07
17.548 (varejo)
+156.678 (PNLD)
O mar de Manu
Conto para crianças
Kuanza Produções (SP)
2011
01
—–
2.000
Kuami
Romance para crianças
Nandyala(MG) / Jandaíra (SP)
2011
02
01
4.000
Oh, margem! Reinventa os rios!
crônicas
Selo Povo (SP) / Oficina Raquel (RJ)
2011
02
——
2.000
Racismo no Brasil e afetos correlatos
crônicas
Conversê (RS)
2013
01
____
1.000 (ESGOTADO)
Baú de miudezas, sol e chuva
crônicas
Mazza Edições
2014
01
01
2.000
Africanidades e relações raciais: Insumos para Políticas Públicas na área do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas no Brasil
ensaios
Fundação Cultural Palmares (DF)
2014
01
——
1.800 (ESGOTADO)
Sobre-viventes!
crônicas
Pallas (RJ)
2016
02
01
5.000
Canções de amor e dengo
poemas
Me Parió Revolução (SP)
2016
01
—–
1.000 (ESGOTADO)
# Parem de nos matar!
crônicas
Ijumaa (SP) / Kuanza Produções / SP e Jandaíra (SP)
2016
02
03
9.328
O homem azul do deserto
crônicas
Malê (RJ)
2018
01
01
3.000
Um Exu em Nova York (Prêmio Biblioteca Nacional, 2019)
contos
Pallas (RJ)
2018
01
02
6.500
Exuzilhar – melhores crônicas de Cidinha da Silva, vol.1
crônicas
Kuanza Produções (SP)
2019
01
—–
2.000
Pra Começar – melhores crônicas de Cidinha da Silva, vol.2
crônicas
Kuanza Produções (SP)
2019
01
—–
1.000
O teatro negro de Cidinha da Silva
dramaturgia
Aquilombô (MG)
2019
01
—–
500
Movimento de Mulheres Negras e Feminismo Negro no Brasil: uma memória
Um detalhe importante é que alcancei esses números raros mesmo publicando por editoras pequenas e médias, as chamadas editoras independentes[3]. Ainda não tenho publicações nos conglomerados editoriais regidos por capital internacional ou em editoras grandes de capital nacional[4].
Outro destaque são os 156.678 exemplares de Os nove pentes d’África, adquiridos pelo FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, via política pública de formação de acervo nas escolas públicas brasileiras, o PNLD Literário, Programa Nacional do Livro e do Material Didático, edição 2020. Trata-se de ter uma obra selecionada por um dos maiores programas de distribuição de livros do mundo. Isso abre muitas portas e potencializa as vendas governamentais nos níveis estadual e municipal principalmente, pois o selo PNLD é uma chancela significativa para as secretarias de educação de cidades de menor porte.
Isso faz crescer a importância da autora no cenário editorial, em âmbito interno das editoras pelas quais ela publica. A Mazza Edições, por exemplo, levou 13 anos para tomar a decisão de inscrever um livro meu (tenho três títulos publicados pela editora) no PNLD. Quando finalmente o fez, a equipe estimou que o livro venderia entre 80 mil e 100 mil cópias. Eu estimei 200 mil cópias e trabalhei para atingir essa meta. Ficamos em 156.678 exemplares. Mas nem mesmo diante desse resultado, que causou surpresa, a editora decidiu inscrever outro de meus livros publicados por ela no PNLD 2021 dedicado ao ensino médio, para o qual meus outros títulos seriam totalmente adequados.
Inscrever um livro no PNLD implica uma complexa tarefa. É exigido um imenso e detalhado material de apoio, que inclui vídeos, manual do professor, versões para pessoas cegas ou com baixa visão e versões em audiovisual, ou seja, uma configuração de suporte técnico-didático que será escrutinada por um pequeno exército de avaliadoras e avaliadores, recrutados nas melhores universidades brasileiras.
Caso os livros inscritos sejam aprovados, passam a compor uma lista de livre escolha a ser enviada a todas as escolas brasileiras inscritas no FNDE. As escolas definirão internamente como escolherão os livros. Nesse processo, vemos de tudo: escolas que perdem o prazo de escolha; escolas que têm processos intensos e participativos de discussão entre professores; escolas que deixam a escolha nas mãos de um pequeno grupo de docentes ou mesmo de um indivíduo. Houve dois ou três docentes que me disseram: “escolhi seu livro, qual outro título você indica”?
* Cidinha da Silva (MG) publicou 19 livros, que contam com 227,2 mil exemplares em circulação, entre eles: Um Exu em Nova York (Prêmio Biblioteca Nacional, 2019) Os nove pentes d’África (PNLD Literário 2020) e # Parem de nos matar!. Organizou duas obras fundamentais para o pensamento sobre as relações raciais contemporâneas no Brasil, Ações Afirmativas em Educação: experiências brasileiras (2003) e Africanidades e Relações Raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014). Tem publicações em alemão, catalão, espanhol, francês, inglês e italiano. É curadora de Almanaque Exuzilhar (Youtube), conselheira da Casa Sueli Carneiro e doutora em Difusão do Conhecimento.
Notas
[1] Refiro-me à Coleção De amor e dengo, roupas criadas e confeccionadas pelo designer de vestuário Renato Carneiro, inspirada no meu livro de poemas, Canções de amor e dengo (2016).
[2] Distingo carreira literária de projeto literário, mas avalio que os dois são fundamentais e complementares. O projeto literário abriga meu propósito como escritora, minha ética e opções estéticas, minha memória, referências, temas, ferramentas de trabalho com a língua. A carreira é a roupagem organizada e profissional que adoto para consolidar o projeto literário, para alcançar metas e objetivos e grafar meu nome no mercado editorial e na historiografia literária do país.
[3] O tamanho das editoras pode ser mensurado em termos de faturamento, dimensões e qualidade do catálogo, número de títulos lançados por ano e número de exemplares produzidos, resguardando-se as diferenças de tamanho dos mercados editoriais, por exemplo, o que é considerado uma pequena editora num país como a França que tem largo e consolidado mercado editorial, pode ser uma editora média no Brasil que tem um mercado editorial menos robusto. Se você tiver interesse em conhecer pequenas editoras negras e periféricas brasileiras pode assistir ao conjunto de entrevistas que realizei no programa-web Almanaque Exuzilhar, especialmente a 9ª edição https://www.youtube.com/watch?v=x7M-DaNvVeo, na qual entrevistei as editoras Oralituras, Selin Trovoar, Marginália, Figura de Linguagem e Arolê Cultural, e a 12ª edição, na qual converso com a poeta e editora tatiana nascimento sobre a Padê Editorial, entre outros temas https://www.youtube.com/watch?v=PQpbkHZvFL8 .
[4] Tenho dois contratos assinados com a Autêntica, uma das mais consistentes e prolíficas editoras brasileiras de capital exclusivamente nacional, mas os livros ainda não saíram, as tiragens desses livros pactuados não estão contempladas nessa tabela, o que aumenta ainda mais a importância desses números.
Em Um teto todo seu, ensaio de Virginia Woolf publicado em 1929, a escritora britânica faz a seguinte pergunta: “Será que o sexo interferiria de alguma forma na integridade da mulher romancista – essa integridade que considero ser a espinha dorsal do escritor?” (Woolf, 2014, p. 106).
Para a ensaísta, que estudava o estado de espírito mais propício para o trabalho criativo, a mente precisava “consumir todos os impedimentos e se tornar incandescente” (idem, p. 87), como o foi a mente de Shakespeare, artista que conseguiu expressar inteiramente o seu trabalho porque a poesia fluía desimpedida, livre de obstáculos. Interessante destacar, em sua observação, principalmente na época em que vivemos, de intensa exposição nas redes sociais, que sabemos muito pouco sobre a vida do dramaturgo. Não conhecemos as antipatias de Shakespeare, nem seus rancores ou malevolências acumuladas. O desejo de protestar e de acertar contas “foi expelido de dentro dele e consumido”. Desse modo, a sua obra pôde realizar-se de forma integral.
A integridade de que fala Woolf significa, no caso do romancista, “a convicção com que ele convence o outro de que aquilo é verdade” (idem, p. 104) e tem relação com esgotar todos os assuntos externos e tirar qualquer obstáculo do caminho para que o trabalho criativo se realize. Uma mente incandescente é capaz de “alcançar o esforço prodigioso de libertar completa e inteiramente o trabalho que está dentro do artista” (idem, p. 83). Por outro lado, uma mente perturbada por ódio e mágoas terminaria por dividir os seres humanos em posições opostas, e poderiam tornar os homens “as vozes oponentes” – em referência àqueles que obstruem o caminho da escritora, os que detêm o poder. O romance é um gênero que desperta emoções contraditórias e ambíguas e um escritor que sufoca as personagens com seus medos e opressões talvez impeça as descobertas imprevisíveis provocadas pelo ato da escrita.
Todavia, como seria possível para uma mulher escritora (não apenas daquela época, mas do século XIX – quando surgiram as primeiras romancistas – e mesmo as do século XX e do XXI) não deixar que as críticas, os constrangimentos diários e constantes, os ressentimentos mais do que justificáveis envenenem a sua obra ficcional?
Ao propor um diálogo entre pensadoras, escritoras e feministas para refletir sobre novas formas de narrar na atualidade, em uma perspectiva transdisciplinar, convocamos para a cena a bióloga e filósofa Donna Haraway, as escritoras Virginia Woolf, Virginie Despentes e Rosa Montero, e a antropóloga Anna Tsing.
No capítulo quarto do ensaio de Woolf, ao discorrer sobre como a interferência externa na escrita literária de Jane Austen, George Eliot, Emily e Charlotte Brontë pode alterar e até distorcer as narrativas dessas escritoras, a ensaísta exalta a capacidade de Austen de permanecer fiel ao seu talento e à sua visão de mundo, apesar de toda a adversidade.
Esse talvez fosse o maior milagre de todos. Aqui está uma mulher dos anos 1800 que escrevia sem ódio, sem amargura, sem medo, sem revolta, sem sermão. Era assim que Shakespeare escrevia, pensei, olhando para Antônio e Cleópatra; e, quando as pessoas comparam Shakespeare e Jane Austen, talvez queiram dizer que a mente dos dois consumira qualquer impedimento, e por essa razão não conhecemos Jane Austen nem Shakespeare, e por essa razão Jane Austen permeia cada palavra que escreveu, assim como Shakespeare (Woolf, 2014, p. 99).
Para Woolf, as únicas escritoras do século XIX que conseguiram escrever desconsiderando todas as críticas, repreensões e promessas de recompensa, sem se encolherem diante da sociedade patriarcal da época, mantendo a genialidade e a integridade diante de toda crítica, foram Jane Austen e Emily Brontë.
Elas escreviam como escrevem as mulheres, não como os homens o fazem. De todas as milhares de mulheres que escreviam romances naquele tempo, elas eram as únicas que ignoravam as admoestações perpétuas do eterno professor – escreva assim, pense assado. Elas eram as únicas surdas àquela voz persistente, ora um rosnado, ora condescendente, ora benevolente, ora angustiada, ora chocada, ora brava, ora tolerante, aquela voz que não deixa as mulheres em paz, que precisa ficar em cima delas, como uma governanta supercuidadosa, implorando a elas, como Sir Egerton Brydges, que sejam refinadas; até arrastando para a crítica da poesia a crítica do sexo (idem, p.108).
Segundo Woolf, mesmo possuindo uma capacidade superior para a escrita literária, superando em muito o talento de Jane Austen, Charlotte Brontë deixou que a ira e a indignação interrompessem o fluxo de seu romance, Jane Eyre (1847). Esses sentimentos, vindos da autora, criavam cortes abruptos na narrativa, impedindo que o seu talento se expressasse por inteiro e por completo. Charlotte abandonou a sua trama para cuidar de mágoas pessoais, deformando e deturpando os seus livros. “Ela escreve com leviandade quando deveria escrever com sabedoria. Ela escreve sobre si mesma quando deveria escrever sobre seus personagens” (idem, p.101).
Para Virginia Woolf, nada deveria abalar a integridade de uma escritora, ainda mais uma escritora brilhante como Charlotte Brontë. A imaginação não deveria turvar uma visão límpida a favor ou contra uma crítica externa, nem se desviar por qualquer outra influência; o tom de voz não deveria responder a certas provocações, apenas seguir o seu curso narrativo. Ao se afastar desse curso, a criadora se afasta da literatura em si. Sua indignação não só é fruto da raiva, mas também da ignorância. O rancor e a opressão, por exemplo, que marcam o retrato de Rochester, maculam o livro com um espasmo de dor, segundo Woolf.
Seria o óbvio ululante dizer que, para a mulher escritora de todas as épocas, a crítica literária sempre se inclinou aos valores masculinos, até porque estes são os valores da cultura ocidental há séculos e os assuntos desse universo são os que prevalecem, enquanto os assuntos do universo feminino são vistos como “triviais”. A guerra, os esportes, o futebol são importantes e estão acima dos outros, enquanto os sentimentos das mulheres em relação ao casamento, à maternidade, suas conversas nas salas e nos interiores são irrelevantes. Além disso, existe a preferência pela estrutura linear, o pensamento reto, com propostas claras e objetivas, em direção a um propósito claro, definido, muitas vezes fálico, um lugar a se chegar, uma meta a se cumprir. A narrativa que não obedece a certos preceitos e critérios básicos de estrutura – preceitos e regras essas criadas pelos homens, diga-se de passagem, e quase nunca questionadas – será excluída, banalizada ou simplesmente não será considerada como narrativa. A linearidade está relacionada à marcha do progresso, com o sentido de hierarquia, com a lógica dos quartéis, dos soldados, da ordem. Foi assim que o homem cresceu e se formou, cumprindo etapas rígidas para conquistar o mundo, um mundo que gira ao redor dele. Se essa dinâmica inspira até os menos ajustados e os mais transgressores, também comanda a vida, a escrita e o julgamento das mulheres.
Essa lógica não se desfaz de uma hora para a outra. A busca pelo Santo Graal, o desejo de recompensa, o triunfo como ponto de chegada, a divisão da humanidade entre ganhadores e perdedores, ainda são o retrato destes tempos. Esse esquema, introjetado em cada sujeito, não permite escapatória. A mola propulsora do mundo ainda é vencer, ainda que ninguém saiba direito o quê e nem para quê. E informar. E opinar. E dar seu juízo. O pensamento que incorpora curvas, sobressaltos, hesitações, tons múltiplos, intensidades, reverberações, cores, ritmos, e empurra para o proscênio personagens sem metas definidas, sem ganhos extraordinários (ou mesmo nenhum ganho), que não miram a recompensa, que ignoram o auge e a jornada para a frente. Ainda assim, não se pode perder de vista que a escrita ficcional não precisa atender às demandas dos czares da narrativa, não precisa adentrar no salão nobre das grandes figuras, não aspira ao panteão, nem o desfile na ala dos bem-aventurados. A criação artística se faz e se consulta na solidão, nos mares imprevisíveis da noite, nos interstícios e na inadequação, no “entre”. Responder às críticas a partir das personagens, agradar aos poderosos a partir do enredo, seja com docilidade e reverência, seja com raiva e ênfase, seria o pior golpe para a construção de um universo próprio.
Então, qual a desobediência necessária para dar continuidade ao ofício de escritora sem se render a um esquema geral? Talvez o caminho mais profícuo seja persistir na trilha da linguagem, arrancar da pena a exatidão da palavra, encontrar o erotismo particular que ronda o feminino, até arrancar novos códigos e novas músicas de uma história narrada.
A escritora e cineasta francesa Virginie Despentes, que já trabalhou como empregada doméstica, prostituta e jornalista de rock, nascida em Lyon e autora, entre outros, do ensaio autobiográfico Teoria King Kong, publicado em 2006, acredita que a maioria das mulheres ainda pede licença para os homens. No ensaio, Despentes revela a importância do punk rock, que considera um exercício de explosão dos códigos estabelecidos, especialmente no que se refere aos gêneros, para não deixar morrer o monstro que há em cada mulher.
Na literatura feminina, os exemplos de afrontamento ou de hostilidade contra os homens são raríssimos. Censurados. Eu, bem, eu sou desse sexo aí, que não tem o direito de não compactuar. Colette, Duras, Beauvoir, Yourcenar, Sagan, toda uma geração de mulheres escritoras que não se cansam de pedir licença para entrar, de tranquilizar os homens, de pedir desculpas por escreverem repetindo o tanto que elas os amam os respeitam os adoram, e não desejam sobretudo – seja o que for que escrevam – atrapalhar muito. Sabemos todas que, caso contrário, o resto da tribo se ocupará do seu caso” (Despentes, 2016, p.114-115).
Para Despentes, confrontar-se com o novo é a verdadeira coragem. Difícil saber se a francesa concordaria com a noção de integridade e pensamento incandescente de Woolf, dessa crítica da interrupção do enredo a favor de uma reclamação pessoal. Virginie considera o feminismo ainda comportado demais, decoroso demais. Por sua vez, para Despentes, a potência do novo não deve se ocultar.
Questão de atitude, de coragem, de insubmissão. Existe uma forma de força que não é nem masculina nem feminina, que impressiona, que enlouquece, que tranquiliza. Uma faculdade de dizer não, de impor seus pontos de vista, de não se ocultar. Não estou nem aí se o herói veste saias e tem peitões ou se tem ereções como um touro e fuma charutos (Despentes, 2016, p. 121).
Essa atitude e coragem que existe em uma forma não determinada, nem masculina e nem feminina, também pode ser a forma de uma escrita outra, uma narrativa desejante e não desejada, uma narrativa receptiva em disparar traços ativos, em aceitar trajetórias e linhas não estanques.
2. Escrita Matsutake
Para se pensar nas escritas híbridas de uma “forma mais livre”, que se baseie numa proliferação de vozes, o encontro com o pensamento da bióloga, antropóloga e filósofa Donna Haraway (professora emérita de história da consciência e estudos feministas da Universidade da Califórnia) traz à tona processos que priorizam a recusa em consagrar uma visão de mundo, fazendo a unidade do ponto de vista desaparecer em prol de uma estrutura polifônica.
Donna Haraway já afirmou, algumas vezes, ter se tornado feminista por causa da ficção científica, por este ser um gênero especulativo, de mundos possíveis. A ficção científica, marcou a revolução no gênero, na década de 70, impulsionado por mulheres escritoras como Marge Piercy, autora de Women on the Edge of Time, romance de 1976 que se tornou um clássico do gênero especulativo utópico e feminista.
Na conversa com sua tradutora para o espanhol, Helen Torres, em maio de 2020, Donna Haraway, autora do livro Ficar com o problema,[1] relata que “Histórias de Camille” é sua primeira tentativa de escrever uma ficção especulativa, uma ficção científica. A fábula surgiu de uma oficina de narração junto a Vinciane Despret e Fabrizio Terranova.
As histórias de Camille funcionam como um esboço de histórias possíveis, um tipo de revezamento, como um jogo de cordas entre histórias entrelaçadas. Segundo Haraway, as alianças feitas por Camille consistem em trabalhar com e para os humanos e os não-humanos. No ensaio “The Carrier Bag Theory of Fiction”, de Ursula Le Guin, citado por Haraway na conversa com Torres, Le Guin discorre sobre:
(…) a necessidade de deixar de contar o conto fálico, o conto do herói com as armas, o conto de viagens fálicas que regressam com a recompensa… basta de histórias fálicas! Precisamos contar as histórias dos detalhes minuciosos de como viver e morrer juntxs, as histórias de colecionar e compartilhar e pegar e dar que não são, de forma alguma, histórias inocentes, mas são histórias de viver e morrer como uma sacola de rede, como uma mochila, como uma espécie de coleção. Essas são as histórias que Le Guin pensa como a forma da ficção. Então, não se trata do espaço da matriz com o significante privilegiado que se desloca através do relato, senão algo mais parecido com essa mochila portadora feita por um coletivo de mulheres (…) (Haraway, 2020).
Quando Haraway declara que nossas práticas de contação de histórias estão repletas de formas de imaginar e performar mundos que façam mais sentido, alguns conceitos de Anna Tsing parecem ecoar das profundezas do bosque, clamando por modos alternativos de uma nova escrita, onde habitar um devir-com seja não só possível, mas almejado. Essa nova forma de ficcionalizar clama por uma comunicação transespecífica, feita de encontros imprevisíveis, a partir da floresta de cogumelos Matsutake. Ao descobrir iguarias nascidas das ruínas, poderemos – quem sabe – expandir os limites do narrar.
Em seus livros, Tsing se afasta da etnografia e se aproxima do texto literário em uma perspectiva dialógica. Em The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins, por exemplo, Tsing mostra que o trabalho com fungos é capaz de atravessar os limites entre as ciências naturais e os estudos culturais e revelar, assim, um conhecimento não apenas crítico, mas criador de mundos.
O que está em jogo é construir narrativas mais densas sobre os fenômenos com os quais nos deparamos. E para isso não apenas são necessárias outras formas de ver o mundo, como também ter a capacidade de escutá-lo, de pressenti-lo, de aguardá-lo e de compreender que não apenas há um mundo, mas variações dele, em planos distintos. É necessário deslocar as bordas indisciplinares para o centro das coisas.
Em Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno, Anna Tsing (2019, p. 142) menciona que a “‘virada acadêmica’ para a multiplicidade se destaca com os múltiplos aparatos de conhecimento atuando simultaneamente”. A antropóloga se pergunta se poderia haver outros tipos de multiplicidades. Discutindo o conceito na fronteira entre a antropologia e os estudos da ciência, ela aborda o problema introduzindo a noção de assemblage. Uma de suas intervenções metodológicas foi fundamentar pesquisa e análise em uma paisagem, pois “uma paisagem pode existir em qualquer escala, mas sempre envolve uma diversidade de fragmentos. Pensar com paisagens abre a análise para uma multiplicidade entrelaçada” (idem, p.149). Esses métodos se juntam de modo a possibilitar o conceito de assemblage, que nada mais é do que uma ferramenta para investigar “como variadas espécies em um agregado de espécies influenciam umas às outras e nos mostram histórias potenciais em formação” (idem, p.150). O termo, usado como conjunto de coordenações através da diferença, ganha de Tsing o aditivo “polifônico” e assim pode apontar para uma nova dimensão da escrita narrativa. Escrita essa em que a percepção valora e valoriza os múltiplos ritmos temporais e as trajetórias do agenciamento, em contraposição ao ritmo do progresso.
Nesse sentido, a proposta de uma escrita Matsutake ou de uma multiespécie narrativa não tem uma unidade e nem é passiva. Ela obedece a uma via não cronológica e sua presença espacial é indefinida e dispersa, sua indeterminação faz parte da história. Colher a palavra como um apanhador de cogumelos, a recompensa sendo o grau mínimo: uma multiplicidade de cheiros vertiginosos nascida entre bons parceiros: plantas, animais e fungos. Nessa nova forma de narrar no contemporâneo, o verdadeiro ato criativo se revela numa zona de histórias conturbadas e contaminações ferozes. Nesta proposta de criação interessa investigar vazamentos, ranhuras, rachaduras, indeterminações, oposições contínuas sem sínteses, aquilo que escapa, aquilo que não é visível, explicável, fixo, porque não é mais possível acreditar em lugares estáveis ou falar de parentesco no capitalismo.
A partir da ruptura do ponto de vista do humano para o não humano ilumina-se a cidade esquecida, a cidade subterrânea, e o eixo se desloca. Cessam as buscas pelo Santo Graal, a meta na ponta do fuzil, um alvo a se abater, o símbolo fálico como medida de êxito. A conquista por algo exterior e imponente, pelo cálice de ouro, aos poucos, perde o sentido e esvanece. Em contrapartida, o objeto ermo, clandestino, gerado no útero do presente e no campo terreno, desponta como alternativa, inaugurando o submerso. Na floresta, o triunfo se dá no compromisso com a minúcia, no aprendizado nômade, fazendo-se em passo desacelerado, tendo o sabor como última consagração: o gosto raro, estranho e múltiplo do Matsutake.
Tanto Haraway com suas histórias de Camille quanto Tsing na floresta de Matsutake conseguem provocar cortes na marcha de progresso e possibilitar uma redefinição de arte, cultura e pensamento. Para além do multiculturalismo, as histórias de Camille permitem construir redes, entendendo que o entrelaçamento entre humanos e não humanos gera movimento.
A língua tem de alcançar desvios femininos, animais, moleculares, e todo desvio é um devir mortal. Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas (Deleuze, 2011 p. 12).
As escritas de nossos dias seguem temporalidades múltiplas, revitalizando descrição e imaginação. Todos nós temos essas linhas de vida de caráter heterogêneo da comunidade, linhas étnicas, poéticas, narrativas, sexuais, de relatos da terra, dos corpos, para, quem sabe, “pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida” (idem, p. 16).
3. A mulher na literatura e no cinema
Até hoje há uma enxurrada de filmes e séries em que as personagens femininas surgem apenas para salvar o protagonista de sua crise de identidade e melancolia. Conhecida pelo termo inglês Manic Pixie Dream Girl, a personagem é a boia de salvação brilhante, de uma alegria infantil, que rejuvenesce nosso herói tombado.
Mas o exercício de pensar criativamente origina deslocamentos e desarticula antigas crenças. Para ser atravessado pela multiplicidade de sentidos é preciso gerar novas possibilidades de enxergar o outro, nesse caso, a mulher real, longe dos estereótipos da: “enfermeira”, “salvadora”. “donzela em perigo” ou “bruxa má / manipuladora invejosa” e “objeto sexual”. Nunca é tarde para sair do piloto automático e entrar no maravilhoso mundo da contradição humana.
Por ser, primordialmente, o espaço do conflito, a narrativa ficcional clama por singularidades paradoxais, vulneráveis, imperfeitas. Se as personagens são todas conscientes, generosas umas com as outras, não há drama. Imaginar uma narrativa de seres humanos satisfeitos em suas atribulações, apaziguados com suas decisões pessoais, repleta de vizinhos cordatos, arautos de um discurso coeso, legisladores uns dos outros, gentis em seus locais de trabalho, essas personagens conciliatórias podem render um belo panfleto, mas não uma obra ficcional.
A ficção literária, forma artística que se nutre de ambiguidades e polêmicas, resguarda, em seu jardim abrasivo, um inferno calculado, repleto de maldades e encantamentos. A ambiguidade pode não ser o campo do jornalismo, mas é o do romance. Censurar os desatinos, as violências e as imprevisibilidades seria o último cadafalso para a narrativa. Se a obra for capaz de instaurar processos múltiplos, estimular o nascimento de vozes dissonantes, de criar narradores que divergem do personagem central e vice-versa, um duvidando do argumento do outro e até de si mesmo, então há espaço para o risco. Afinal, só em terreno movediço a inventividade se prolifera. Assim como os fungos, assemblages e colaborações multiespecíficas se proliferam em solos perturbados. A terra da qual nascem os fabulosos Matsutakes não é pura, não é imaculada e nem está imune à intervenção humana: os fungos brotam justamente dessa intromissão.
Autora que escreve nesse lugar entre gêneros, Rosa Montero, jornalista e escritora espanhola, defende que já é hora dos homens se identificarem com as protagonistas mulheres e prefere, em vista disso, usar o termo antissexista – não por desvalorizar o termo “feminismo”, mas por conta de esta ser uma palavra que soa como oposta ao machismo, causando um sentido equívoco. Em A louca da casa, publicado em 2003, ela segue um pensamento similar ao de Virginia Woolf, defendendo a literatura como espaço único da criação.
Mas o fato de você considerar-se feminista não implica que seus romances o sejam. Detesto a narrativa utilitária e militante, os romances feministas, ecologistas, pacifistas ou qualquer outro ista que se possa pensar, porque escrever para passar uma mensagem trai a função primordial da narrativa, seu sentido essencial, que é o da busca do sentido. Escreve-se, então, para aprender, para saber; e não é possível empreender essa viagem de conhecimento levando previamente as respostas. Mais de um bom autor se perdeu por causa de sua ânsia doutrinária; mas às vezes acontece, em certos casos especiais, de o próprio talento salvar o escritor da cegueira de seus preconceitos (Montero, 2004, p. 148).
Montero ilustra seu argumento citando o caso de Tolstói, que se dispôs a escrever Ana Karenina (1877) tendo por premissa expor moralmente como a modernidade destruía a sociedade tradicional russa. Por conta do seu extraordinário talento, o romance mostrou exatamente o contrário do que pretendia. Na figura central de Ana, o livro revela a hipocrisia social e a injustiça do sexismo. O preconceito, a ideologia e a censura do escritor russo ao adultério, que considerava o exemplo maior de como o progresso poderia desarranjar a sociedade, não foram capazes de bloquear “a verdade das mentiras literárias”, para usar a expressão de Montero (idem, p. 148).
Construir uma trajetória que aceite as divergências e matizes de outras vozes, muitas vezes antíteses do próprio autor, exige sacrifício. A escrita é um ofício perigoso e implora por uma existência no umbral. A mulher escritora, por ter sido trancada e proibida de vivenciar seus talentos criativos por tanto tempo, se familiarizou com a borda das coisas, do pensamento, da rotina, se conluiou ao anonimato, sendo a margem o seu conhecido mais íntimo. Essa existência, sempre à beira de atingir o voo, mais doméstica e parceira dos recônditos da casa, de seu silêncio e de sua sujeira, visita outros tempos, mais indeterminados, porque ocultos em sua invisibilidade. Atravessar os tempos sendo esse ser do canto, essa figura não central por excelência, sem poder dizer muito, ou aparecer demais, acende uma outra espécie de chama no movimento do mundo. Nem pior, nem melhor – é vital limitar aqui a comparação que se faz entre as coisas, dando notas para tudo, outro legado da mentalidade masculina, atendendo à lógica da competição e aniquilação do outro, mentalidade bélica –, apenas diferente daquele fogo central.
Esses tempos narrativos ainda não se incorporaram à literatura, nem mesmo à literatura contemporânea, porque ainda é preciso que os homens e as mulheres acostumem os ouvidos e a visão aos ritmos e sonoridades outras. Talvez seja necessário que as escritoras mulheres não se limitem a escrever apenas narrativas engajadas ou de denúncia: ainda é preciso inserir muitas metáforas na literatura, como a do sangue, a do erotismo (um tempo novo de Eros) e seus infernos próprios, para além de um ponto de vista legislador ou moralizante de um pensamento patriarcal. As linhas emaranhadas no subterrâneo pedem histórias conturbadas, feitas de colaborações mútuas e encadeamentos imprevisíveis.
Não estamos suficientemente representadas nas academias ou nas enciclopédias, nem costumam nos encarregar das conferências sérias nos encontros internacionais. Os críticos quase sempre são terrivelmente paternalistas e têm uma inquietante tendência a confundir a vida da escritora com sua obra (coisa que não acontece com os escritores homens), a considerar todos os romances de mulheres uma literatura contemplativa e sem ação (mesmo que seja o thriller mais trepidante) e, naturalmente como dizíamos no princípio, a pensar que uma mulher escreve apenas de mulheres e é, portanto, material humano e literário de segunda. Felizmente essa retrógrada cultura oficial também está se feminizando; cada vez há mais eruditas, críticas e professoras universitárias, e isto está alterando a situação; mas algumas dessas profissionais teimam em fazer resenhas, antologias e estudos literários desenfreadamente feministas, isto é, ideologizados até o dogmatismo e, a meu ver, quase tão sexistas e contraproducentes quanto o preconceito machista. Embora partindo da margem contrária, elas também pensam que o que uma mulher escreve trata apenas de mulheres (Montero, 2004, p. 149).
Essa intimidade com a beirada da língua, com os cantos mais ermos, consequência da privação a que foi submetida ao longo dos séculos, fez com que a mulher desenvolvesse uma capacidade intrínseca de alteridade. Quando se habita o inominável, quando se assenta no contorno, nas bordas indisciplinares, aprende-se a enxergar no escuro com uma exatidão obscena. A posição de espectadora, de refém da casa e da coxia, provoca uma dilatação interna, e faz com que a mulher se coloque no lugar do outro com uma facilidade aterradora, quase sobrenatural. Não por bondade, servilismo ou compaixão, mas também por sobrevivência. E este é um ponto importante a se abordar na escrita das mulheres.
Evidente que não só a mulher é capaz desse olhar, mas há uma especificidade no seu campo de visão que merece destaque. Quem atua em posição adversa se aprimora em recolher fragmentos dos mais insignificantes e passageiros no meio da paisagem humana e reconhece o outro na mesma situação. Essa habilidade instintiva, ainda não valorizada, além de uma necessidade vital do humano também é uma particularidade do feminino. E tudo o que é vital é estruturalmente legítimo, pois aponta para novas formas de organização.
Como isso se revela na escrita? O príncipe Míchkin, personagem central do romance O idiota, de Dostoiévski, publicado inicialmente em folhetim, em 1868, revela-se como alguém capaz de concordar com todos os seus interlocutores por possuir uma capacidade inata de se colocar no lugar do outro. Essa capacidade também é a sua perdição, pois não é possível concordar com todos os pontos de vista, de todas as pessoas ao seu redor, e no final, o personagem enlouquece e termina internado em um manicômio.
A loucura, essa extrema lucidez, caminha lado a lado com a escrita por sua força inventiva, por sua propensão ao risco e por sua habilidade em abrir-se a uma infinidade de perspectivas e cenários, facilitando downloads intermitentes, escancarando janelas e arrombando portas, antes hermeticamente trancadas. Só o louco tem acesso ao indizível. Essa abertura é tão perigosa para o escritor quanto para o leitor. Como escreveu Nelson Rodrigues (1993, p. 43), em O óbvio ululante, “há livros que nos salvam e que nos perdem”, avisando sobre tal dimensão movediça da literatura. Tendo em vista que sem risco não há escrita inventiva, é preciso, ao menos, ler as autoras e os autores que criaram uma língua estrangeira e “arrastaram a língua para fora de seus sulcos costumeiros, levando-a a delirar”, nas palavras de Deleuze.
A pergunta que Peter Pál Pelbart (1993, p. 107) faz em A Nau do Tempo Rei, “o que significa, para o pensar, poder pensar loucamente, poder enfim desarrazoar?”, não pretende uma resposta direta, com novas palavras de ordem – “como por exemplo, Viva a Multiplicidade, ou Viva a Diferença, ou Viva o Devir, ou Abaixo a Metafísica. Isso tudo não muda absolutamente nada, pois a desrazão não é uma nova ideologia” (idem, p.107), mas o fim do “manicômio mental”, um acostumar o ouvido e a visão ao interstício do pensamento, ao instalar-se na defasagem, na inadequação. Como pensar à sombra da linguagem? Não seria a sombra a grande confidente da mulher? Talvez essa forma de pensar esteja mais próxima do que se imagina, o problema foi que o bisturi da racionalidade explicativa o recortou, aniquilando toda a sua força de expressão.
A escrita da criação ficcional implica a criação de um outro tempo. A “voz” está em função da construção do tempo poético, das ações simultâneas, do cruzamento de temporalidades e da vertigem do espaçamento, para “o exercício, no seio do próprio pensar, de uma nova forma de relacionar-se com o Acaso, com o Desconhecido, com a Força e com a Ruína” (idem, p.107). Busca-se, assim, procedimentos literários que atuem no umbral da existência, nesse “entre”, ou seja, no lugar em que a mulher foi repetidamente confinada: no seio da passagem. Em História da Loucura, Michel Foucault (2012, p.12) elabora a imagem com maestria dizendo que “o louco é o prisioneiro da passagem”:
A água e a navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer.
Talvez esse modo de existência ilumine poéticas da incerteza e da passagem. O que seria essa poética? Seria o lusco-fusco. O ritmo da desintegração do dia pela noite, a mulher que parte para não mais voltar, a mulher que não é mãe, jamais foi. Um erotismo infindável, que não se esgota em uma sentença, que precisa das mil e uma noites para fecundar. Seria também não fecundar, nem permanecer, nem aceitar. Mas uma contínua selvageria da impermanência. Estamos prontos para esse novo ritmo da escrita, esse ritmo que adensa diferentes tempos porque nascido na contramão das benesses? Estamos prontos para submergir na corrente múltipla de uma libido aluada? Para aceitar outras fecundidades no espaço? Para não mais idolatrar a mãe, mas a mulher? Para não apenas aceitar a mulher, mas as vozes emaranhadas de fungos e raízes, o broto? Sim, é perigoso. A escrita dissonante é um lugar que não aceita mais uma única visão de mundo e isso pode ser enlouquecedor. Impossível prever.
Virginie Despentes aborda esse lugar de risco de uma perspectiva muito interessante. Ao afirmar que “a maternidade se tornou o aspecto mais glorioso da condição feminina” (Despentes, 2016, p. 20), ela sublinha que a figura da mãe atua como um poder assombroso, uma réplica doméstica daquilo que se organiza coletivamente: o Estado, que a tudo controla. Somente a mãe sabe punir, enquadrar e “manter a criança em estado de infância prolongada”. Ao exemplificar o perigo da propaganda pró-maternidade atual, o que Despentes revela é o quão assustador é ceder a uma vida não aprisionada.
O indivíduo está livre de sua autonomia, de sua capacidade de se enganar e de se colocar em perigo. É para isso que tende a nossa sociedade, talvez porque tenhamos deixado nossos tempos de glória para trás, tenhamos regressado a estágios de organização coletiva que infantilizam o indivíduo. Segundo a tradição, os valores viris são os valores da experimentação, do risco, da ruptura com o lar. (…) Quando o inconsciente coletivo supervaloriza a maternidade através da mídia e da indústria de entretenimento – esses instrumentos de poder –, não se trata de amor pelo feminismo ou de um ato de bondade global. A mãe portadora de todas essas virtudes nada mais é do que o corpo coletivo que se prepara para a regressão fascista. O poder outorgado por um Estado doente é forçosamente suspeito (Despentes, 2016, p. 21).
O medo das mulheres de que os homens as considerem loucas – e eles consideram qualquer mulher que fale mais alto, discorde, pense, escreva, se indigne, tenha muito apetite, seja enérgica, animada, sarcástica, erudita, boêmia, brava, calma, divergente, confiante, com gato, sem gato, com filho, sem filho – faz com que muitas se afastem de uma dimensão de delírio na linguagem e da selvageria como busca. Nada poderia ser mais nocivo para a escrita das mulheres do que se limitar à razão, valor este quase ditatorial, ainda mais tendo em vista uma razão das normas e dos bons costumes. É o medo dos homens que fala mais alto quando acusam uma mulher de maluca, pois a energia criativa é sempre transgressora e só resplandece em salões não convencionais, em corredores não assépticos, conluiados às euforias e disforias do sangue, aos apelos de alguma possível insânia. É de suma importância desejar o perigo. Que a partir de desatinos insalubres e musicalidades absurdas, finalmente, essas escritas possam florescer e levantar as suas vozes em prol de uma dimensão poética muito, mas muito perigosa. Uma escrita potente não se faz de forma arrazoada e com boas intenções. A reverência não parece um caminho profícuo para a literatura. As vozes de pensadoras e escritoras contemporâneas como Donna Haraway, Anna Tsing, Rosa Montero, Virginie Despentes e tantas outras mostram o quão divergente, múltipla, cheia de sangue, humana e não humana, e mesmo transespecífica pode ser a linguagem.
Queremos ser mulheres adequadas. Se a fantasia aparece como um problema, impuro ou desprezível nós a escondemos. Menininhas-modelo, anjos do lar e boas mães, construídas para o bem-estar dos outros, não para investigar nossas próprias profundezas. Somos formatadas para evitar o contato com nossas selvagerias. De início, priorizar a satisfação alheia. Dane-se tudo que é calado em nós. Nossa sexualidade nos coloca em perigo, e reconhecê-la talvez signifique experimentá-la, e toda experiência sexual para uma mulher conduz à sua exclusão do grupo (idem, p.89).
Se a narrativa fálica, mencionada por Ursula Le Guin, tem uma direção única, a figura do cogumelo se contrapõe e se abre a perspectivas diversas. Na narrativa fálica, o clímax surge como ejaculação masculina, mas se pensarmos em uma escrita matsutake, no vegetal, na terra, nos fungos – miticamente associados ao feminino – podemos imaginar outra espécie de clímax, uma exaltação que não se dirija a um ponto único e exclusivo, mas que se abra à passagem e ao imprevisto.
A libertação de vozes múltiplas pode nascer tanto do diálogo com as diversas camadas sociais do tempo presente, da influência da arte, da poesia, do teatro, da música, dos sons da cidade, quanto das leituras de autores díspares, sejam eles da literatura, da antropologia, da biologia ou da filosofia. Para encontrar o acesso dialógico é preciso pôr em cena as vozes contraditórias de uma época, em permanente discordância. E ouvir as vozes subterrâneas da floresta perturbada.
* Priscila Gontijo é dramaturga, escritora e roteirista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/FFLCH-USP. É autora de Soslaio, Funâmbulas, Deadline, entre outras peças teatrais, e de dois romances, Peixe cego e O som dos anéis de Saturno, ambos pela editora 7Letras.
Referências:
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DELEUZE, G.; GUATTARI, F. “Micropolítica e segmentaridade.” In Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 3.Coordenação da tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2012.
DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. Tradução Márcia Bechara. São Paulo: n-1 edições, 2016.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O idiota. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002.
FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade clássica. Tradução José Teixeira Coelho Neto. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.
HARAWAY, D. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulhucene. Durham and London: Duke University Press, 2016.
HARAWAY, D. Ficar com o problema: gerar parentesco no Chthuluceno, a ser publicado pela n-1 edições em tradução de Ana Luiza Braga. Entrevista com Donna Haraway, feita por sua editora para o espanhol, Helen Torres. Tradução: Ana Luiza Braga, Caroline Betemps, Cristina Ribas, Damián Cabrera e Guilherme Altmayer. Revisão: Ana Luiza Braga. Disponível em: https://n-1edicoes.org/137 Acesso em: 27/11/20.
LE GUIN, U. K. “The Carrier Bag Theory of Fiction.” In Dancing at The Edge of The World. Thoughts on Words, Women, Places. New York: Harper & Row, 1990.
MONTERO, Rosa. A louca da casa. Tradução: Paulina Wacht, Ari Roitman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
PELBART, Peter Pál. A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
PIERCY, Marge. Woman on the Edge of Time. London: The Women’s Press, 1979.
RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante: primeiras confissões. Seleção Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
TSING, Anne. The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins, Princeton University Press, 2015.
TSING, Anne. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Tradução: Thiago Mota Cardoso et al. Brasília: IEB Multi Folhas, 2019.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução Bia Nunes de Sousa, Glauco Mattoso. São Paulo: Tordesilhas, 2014.
Notas
[1] Helen Torres, ao entrevistar Donna Haraway, faz perguntas em relação à situação atual em diálogo com citações do livro Ficar com o problema. A primeira citação é docapítulo Pensamento Tentacular: “Como podemos pensar em tempos de urgência sem os mitos autoindulgentes e autorrealizáveis do apocalipse quando cada fibra de nosso ser está entrelaçada, e é até mesmo cúmplice, das redes de processos nas quais, de alguma maneira, é preciso envolver-se e voltar a desenhar?” (Haraway, 2020).
O presente artigo apresenta uma crítica à vídeo-performance Mimoso, da artista plástica Juliana Notari, dimensionando artista e obra no campo da arte feminista e do feminismo no século XXI, que, já tendo ultrapassado a binaridade de gênero, abrange todos os Outros oprimidos pela masculinidade e, por consequência, pela “colonialidade do poder”. Ao situar o olhar da artista no campo de uma “Nova Objetividade”, o artigo-crítica dialoga com as propostas da cientista Donna Haraway sobre o olhar feminista. Com efeito, tendo em vista que Mimoso traz também uma crítica ao Antropoceno, a obra dialoga não só com a história da arte e a filosofia, como também com a Antropologia, mais especificamente com o pensamento de Eduardo Viveiros de Castro, de Juliana Fausto e de Anne Tsung.
A Figura 1 é uma imagem da vídeo-performance Mimoso, da artista Juliana Notari: pernambucana, brasileira, latina que, do Sul Global, lança uma crítica à “crueldade da colonialiadade do poder”, categoria teórica elaborada pela antropóloga Rita Segato (2003). Partindo dessa perspectiva analítica, Mimoso não se instala somente na história política das mulheres, mas traduz traumas e feridas abertas pela colonialidade, que, para a artista, “é a ferida de nosso holocausto” (Notari, 2021).[1]
Mimoso regurgita uma história de opressão dos humanos sobre os não humanos. É uma crítica política que, ao se posicionar na “diferença”, desconstrói formulações milenares sobre as mulheres e todos os “Outros”. A obra de Notari é resultado da consciência da mulher mestiça, como define a poeta e feminista Gloria Anzaldúa, uma vez que o choque de vozes que o conjunto de suas obras apresenta – e, Mimoso, em particular – resulta em estados mentais e emocionais de perplexidade, porquanto “a personalidade múltipla da mestiza é assolada por uma inquietude psíquica” (Anzaldúa, 2005, p.1).
No artigo “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, a cientista feminista Donna Haraway (1995, p.7) afirma que a visão, na sua natureza corpórea, pode ser resgatada como sistema sensorial a significar um olhar particular disruptivo em relação ao olhar de “privilégio da perspectiva parcial masculina”. A palavra visão, segundo a autora, é difamada por feministas de todas as disciplinas, uma vez que “significa as posições não marcadas de Homem e Branco” (Haraway, 2005, p. 12), tornando-se, assim, uma das “tonalidades desagradáveis que a palavra objetividade tem para os ouvidos feministas nas sociedades científicas e tecnológicas, pós-industriais, militarizadas, racistas e dominadas pelos homens” (Haraway, 2005, p. 12).
Em oposição a tal perspectiva parcial, a autora propõe uma objetividade corporificada capaz de acomodar “os projetos científicos feministas críticos e paradoxais: objetividade feminista significa, simplesmente, saberes localizados” (Haraway, 2005, p. 15). Visto que, se os olhos têm sido “usados para significar uma habilidade perversa – esmerilhada à perfeição na história da ciência vinculada ao militarismo, ao capitalismo, ao colonialismo e à supremacia masculina” (Haraway, 2005, p. 16), distanciando o sujeito cognoscente do interesse do poder desmesurado, a autora sugere a construção de uma visão particular não vinculada à “falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades” (Haraway, 1995, p. 21).
A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. Esta é uma visão objetiva que abre, e não fecha, a questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas visuais. A perspectiva parcial pode ser responsabilizada tanto pelas suas promessas quanto por seus monstros destrutivos. Todas as narrativas culturais ocidentais a respeito da objetividade são alegorias das ideologias das relações sobre o que chamamos de corpo e mente, sobre distância e responsabilidade, embutidas na questão da ciência para o feminismo. A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Desse modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver (Haraway, 1995, p. 22).
Os olhos, como sistemas de percepção ativos, constroem traduções e modos específicos de ver, isto é, modos de vida. Desse ponto de vista, a objetividade feminista pode propor novas perspectivas sobre as relações de poder, as quais permitam pensar igualdade política e social com o objetivo de incluir, além da dimensão de gênero, as questões de classe e de raça que até então subjaziam em análises centradas na neutralidade do humano enquanto tal e no caráter ontológico do sujeito (Rodrigues; Heilborn; 2013, p. 4).
É desse “ponto teórico” (Viveiros de Castro, 2014) que interpretamos que Notari inventa um modo próprio de corporificar a objetividade feminista em suas obras, porque representa o terreno subterrâneo dos saberes subjugados. Para Haraway, as perspectivas dos subjugados também não são posições inocentes, “porque, em princípio, são as que têm menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento” (Haraway, 1995, p 23). Por outro lado, os saberes parciais, localizados, críticos, apoiados na possibilidade de redes de conexão, chamados de solidariedade em política e de conversas compartilhadas em epistemologia, possibilitam a representação dos corpos não marcados: o corpo heteronormativo, masculino, branco (Haraway, 1995, p. 25). Ao corporificar a objetividade feminista em suas vídeo-performances, a artista cria diálogos com outras narrativas científicas e humanistas, desenhando o saber da feminidade e o saber dos corpos marcados.
Na performance Mimoso (Figura 1), Juliana Notari parte do olhar da objetividade feminista e desconstrói uma tradição da história da arte que se insere na história social indiferente à “genealogia da liberdade como um atributo que separa todos os seres humanos de todos os outros seres vivos” (Tsung, 2019, p. 125). A castração do búfalo Mimoso, na Ilha de Marajó, é um ato de opressão da masculinidade, servindo-se para satisfazer suas necessidades econômicas. Posta e proposta a partir desta perspectiva, a castração do búfalo Mimoso questiona a noção de “liberdade” tal como é entendida, visto que esta não representa uma descrição que narra o modo como vivemos no mundo, mas, antes, um ato institucional e planejado.
Mimoso representa, assim, a ocularidade dramática de uma paisagem que revela ao espectador o abuso de outras espécies pelos humanos, o que faz a vídeo-performance se posicionar nos debates atuais dos estudos sobre o Antropoceno: a Sexta Extinção. Mimoso expõe o trauma da artista ao se deparar com as formas degradantes como os não humanos foram engendrados ao longo da história, agravando-se, ainda mais, pela colonialidade do poder. A performance fílmica traduz uma denúncia e um desamparo que dispõem em cena a pergunta: como podemos pensar que os “não humanos não são sociais?” (Tsung, 2019 p. 119). Mimoso dá a ver ao espectador a “oposição entre sociabilidade humana e não humana”, revelando, ainda, a impossibilidade de atingirmos uma “sociabilidade mais que humana (…), a não distinção entre humanos e não humanos” (idem).
Juliana conta que Mimoso foi a primeira performance realizada por ela, em Belém. Ao chegar na capital paraense, em 2014, a artista soube dos búfalos da Ilha de Marajó que, por serem exímios nadadores, conseguiram sobreviver a um naufrágio e chegaram até a ilha. Atualmente, são em maior número que os habitantes humanos, sendo toda a economia de Marajó inteiramente dependente dos búfalos (“a polícia anda de búfalo e os búfalos realizam a limpeza da praia”, afirma Juliana). Ao chegar à ilha, já com a intenção de fazer uma performance com um desses animais, visitou uma fazendo de búfalos, onde havia os castrados e os não castrados. Logo se apaixonou pelo búfalo Mimoso, que ainda não havia sido castrado. Porém, na sequência, soube que, por ser agressivo, Mimoso seria castrado pelo dono e, nessa condição, o animal não poderia responder às necessidades do proprietário, que precisava de um búfalo manso para levar turistas para passear pelas praias de Marajó. A performance Mimoso nos relata, então, a representação triste e dramática de como os animais tornaram-se apenas brinquedos mecânicos nas mãos dos humanos, revelando a impossibilidade de uma outra genealogia da liberdade, uma outra forma de sociabilidade humana que envolva a liberdade de outras espécies viventes (Tsung, 2019, p. 45).
Mimoso pode ser interpretada como uma performance visual e teatral em três atos que ocorrem a-temporalmente. Aqui separamos os três atos em uma tentativa de ler a obra, que ocorre na esfera do trauma, da impotência, da morte, unidas ao sentimento de repulsa e, também, a um revigorar antropofágico, de recomposição da potência de vida do humano (a artista) pelo não humano (o búfalo).
Primeiro ato: “Paisagem da impotência”
Denominamos o primeiro ato de “Paisagem da impotência” (Figura 2), pois vemos a artista nua sendo puxada pelo búfalo Mimoso, seus pés amarados a ele por uma corda que sugere que a energia de ambos se encontra em estado de simultaneidade. Mimoso arrasta a artista, que é um humano representando o insólito, o nada, o vazio, a morte para a natureza, onde ela (humano/mulher) e a natureza (não humano/búfalo) parecem ter deixado de resistir. A artista é a morte que “vive uma vida humana” (Bataille, 2013, p. 3). O búfalo é a morte que vive uma vida não humana. A nudez de seu corpo e de seus pés amarrados (Figura 3) se igualam ao estado de impotência/morte do animal castrado em estado sacrificial. Humano e não humano seguem na paisagem desértica expondo a impotência, a morte.
De um lado, podemos relacionar o ato da performance de Mimoso a uma crítica da “Vontade da Potência” humana sobre a impotência do não humano. Nietzsche, que toma o conceito “Vontade da Potência” de Schopenhauer, afirma que a “Vontade da Potência” é cega e insaciável e constitui a própria existência. Para Nietzsche, a Vontade não está fora do mundo, mas se dá na relação, uma vez que se diz sempre no plural. Estando em luta constante, o mundo encontra-se sem equilíbrio possível. A Vontade, estando presente em tudo, se mostra com sua sede de dominar, constrangendo outras forças mais fracas até dominá-las. Estando sempre em expansão, procura superar-se, incorporando-se a outras até tornar-se maior e dominante.
Por outro lado, ao observarmos na performance visual duas potências dominadas, o não humano e o humano (mulher), podemos relacioná-las ao tempo histórico que Donna Haraway qualifica como Chthuluceno: época em que o humano e o não humano estão inextricavelmente ligados nas práticas tentaculares (Haraway, 2016). Chthulu, para Haraway, é um deus subterrâneo, abissal e inominável (Viveiros de Castro; Fausto, 2014). Quando Chthulu se levanta não há lugar possível para a humanidade, uma vez que ele é um Deus anti-humano. Chthuluceno é uma das denominações para o Antropoceno – “etimologia da palavra Antropos, ou aquele que olha para o céu, alusão aristotélica (…) em oposição aos animais que olham para o chão” (Viveiros de Castro, 2014). Para Haraway, segundo Viveiros de Castro, esse conceito é incurável, porque exclui mulheres, escravos, crianças, todos aqueles que não se adequam ao capitalismo. Ou ainda,
todos aqueles que estão na vanguarda da revolução Terrana ou humana, no sentido que Haraway dá a palavra Humus: um Compost Humanism (…). Porque o Antropos não diz respeito a todos, mas somente ao cidadão. Contudo, quem é o cidadão, senão a maioria deleuziana: o homem branco, cristão, europeu? (Viveiros de Castro, 2014).
“Paisagem da impotência” a nos ser revelada como o Outro, humano/mulher e não humano/búfalo que compartem uma mesma condição na era da perturbação humana que constitui o “Antropoceno”, de onde Chthulu parece ter se levantado.
Segundo ato: “Sacrifício”
“Mimoso foi castrado sem anestesia por um veterinário na beira da praia” (Notari, 2021).
A castração foi compreendida por Freud como um ardil feminino. O psicanalista afirma que no olhar da mulher habita a grande ameaça da castração masculina, uma vez que o olhar feminino se associaria ao olhar da Medusa: personagem mítica que não tem apenas o poder de matar, mas de devorar e cegar o homem que a olha. O psicanalista canônico, talvez do alto de sua masculinidade, conclui, assim, que o olhar da Medusa é uma metáfora para o olhar da mulher. Tal construção foi, de fato, afirmada milenarmente pela masculinidade, gerando um processo que, como sabemos, levou à subordinação e à absoluta assimetria da mulher nas hierarquias de poder.
No campo da arte, já demonstramos em outro texto (Oliveira, 2021) que não foi a mulher quem castrou o homem, mas a própria história da arte. Pois, como sabemos, a Masculinidade requer a ereção do pênis como garantia. Desde as esculturas gregas (Figura 4), passando pelo Renascimento (Figura 5) até o advento das vanguardas artísticas (Figura 6), o pênis ereto é caracterizado nas artes visuais do século XX como um marcador da masculinidade. Todavia, Freud parece não ter se dado conta de que a própria arte necessita de um intervalo de oclusão, a ser transmutado na diminuição do pênis para que a ordem e o ideal fálico possam permanecer intactos. Para tanto, o modelo deve ser castrado, não pelo olhar da mulher-Medusa, mas pela própria arte, que se transforma ela própria em uma espécie de Medusa corporificada.
A imagem da castração de Mimoso e as operações artísticas que Juliana Notari compõem, ao se inscreverem nos discursos da objetividade feminista e nas narrativas artísticas pós-modernas, se situam numa distância relativa a uma história da arte patriarcal, nos transportando, com efeito, a outras proposições de mundos e realidades possíveis. Pois, como questiona Viveiros de Castro (2014), “que tipo de aparato imaginário nós somos capazes de produzir para dar conta de tudo que está acontecendo?”. Desse ponto de vista, a performance visual Mimoso nos estimula a perguntar: afinal, o que vemos acontecer na imagem desta castração? Anne Tsung afirma que, quando as ciências consideram a obviedade de uma sociabilidade mais humana, salta aos nossos olhos humanos a seguinte questão: “como podemos esquecer de uma sociabilidade mais que humana?” (Tsung, 2019, p. 173). A castração do búfalo Mimoso é um ato e uma representação de uma não sociabilidade entre humanos e não humanos. Ao olharmos para o aparato imaginário da artista talvez possamos alcançar a sua objetividade feminista, na apresentação de um novo modo de “dar conta de tudo que está acontecendo”. Tendo em vista que, no caso da vídeo-performance Mimoso, todas as posições foram invertidas e colocadas em suspenso (como uma não resposta, um nada, a morte simplesmente), é tão particularmente na política e na epistemologia das perspectivas parciais feministas que podemos encontrar uma possibilidade de avaliação crítica objetiva, firme e racional do contemporâneo (Haraway, 1995, p. 24).
Terceiro ato: “O regurgitar antropofágico”
Sentada à mesa (Figura 7 e Figura 8), a artista tem seu corpo nu, o mesmo que fora arrastado pelo animal, porém, agora, busca a recuperação da potência de Mimoso a partir da degustação antropofágica de seus testículos. A artista degusta os testículos de Mimoso em um prato, com garfo e faca sobre uma toalha branca, manchada de sangue do animal que acabara de ser castrado. A artista parece reencenar a potência do ritual antropofágico das “índias” ao degustarem os guerreiros capturados, cenas vistas e representadas pelos viajantes renascentistas Théodore de Bry e Jean de Léry. Se os testículos do búfalo são comidos em ritual antropofágico para lhe trazer a vida perdida, a potência do não humano com quem esteve em estado de simultaneidade, Notari faz do ritual antropofágico a expurgação de uma anti-História Natural, convencional, utilizada nos discursos das elites europeias e de seus observadores coloniais. Mimoso retira o ritual do legado colonialista e limitador, que é de fato a consumação da precariedade que constitui a relação entre a sociabilidade humana e a não humana, e o reposiciona na objetividade feminista, na crítica decolonial. Esse ato em performance leva o espectador a refazer a pergunta de Anne Tsung (2019, p. 61): como alguém poderia imaginar que coisas vivas não são sociais? Com efeito, concordamos com a afirmação de Donna Haraway (2015, p. 24)ao propor que somente uma objetividade feminista é capaz de criar “uma prática da objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as conexões em rede e a esperança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver”.
Tal conjunto de imagens que compõem a performance Mimoso conformam uma criação artística em que todas as amarras parecem ter sido rompidas. Instalada nas produções pós-modernas, Mimoso encarna a própria “nêmia da modernidade”, como apontou o filósofo Jacques Rancière (2015, p.43): “a loucura moderna da ideia de uma autoemancipação da humanidade do homem e sua inevitável e interminável conclusão nos campos de extermínio”. Por outro lado, Mimoso também é “experiência de pensamento”, conceito formulado por Eduardo Viveiros de Castro (2014), significando as experimentações imaginárias, elaboradas em pensamento, mas trazidas para o campo da arte. Num sentido próximo a esse, a performance visual de Mimoso evoca as “experiências de pensamento” e as “experimentações imaginárias” que apresentam ao espectador o “fazer de uma experiência” (Viveiros de Castro, 2014).
À guisa de conclusão
A historiadora da arte feminista Griselda Pollock, no prefácio da obra The Sacred and the Feminine: Imagination and Sexual Difference (2014), faz quatro perguntas acerca das artes visuais na contemporaneidade: “O que você acha das artes visuais hoje em dia? O que está acontecendo com a história da arte? Quais são as novas direções? Ao que devemos permanecer leais?” (Pollock, 2014, p. 7).
Partindo, então, de um novo “ponto teórico” como propõe Viveiros de Castro (2014), verificamos que a obra Mimoso está à altura dos diálogos com as linguagens mais contemporâneas e conceituais no campo da arte feminista brasileira, latina e decolonial, visto que ultrapassa a binaridade de gênero, transformando-se em imagem e representação de processos de violências, erigidos por uma ordem patriarcal instalada na longue durée de uma “crueldade da colonialidade do poder”, em que “a soberania opera sobre a vítima sacrificial” (Segato, 2003). Ao libertar-se da prisão do “eterno feminino”, Notari explode com as consonâncias mulher/natureza/fertilidade, para transmutar-se numa metáfora da sexualidade do “Outro” e de sua heteronormatividade em potência, traduzindo traumas, perturbações, feridas históricas, a partir de uma poética do afeto, feminina e feminista.
Por tais razões apresentadas, podemos também situar a obra de Notari no artivismo (Guerra, 2019), uma vez que a arte, no âmago dessas linguagens, possui um papel crucial de resistência e de subversão ao status quo, implicando, a um só tempo, uma ruptura tácita com a visão da arte pela arte (intervenção estética) e, também, o afastamento de uma realidade social e de seu retrato verossímil (intervenção performativa). Ambos os eixos estão presentes na obra de Juliana, em particular em Mimoso.
Na conferência “A Revolução faz o bom tempo”, Viveiros de Castro (2014) afirma ser o referido título utópico, entrópico e parcialmente irônico, porque não existe mais nem Revolução, nem bom tempo. São essas duas ideias obsoletas e o nosso problema é como fazê-las ganhar algum sentido novo (Viveiros de Castro, 2014). Não obstante, ao analisarmos a performance visual Mimoso, verificamos que a arte feminista e o feminismo podem anunciar um “bom tempo”, tanto para o campo da arte, como para a própria humanidade. Pois a arte de Notari parece já ter ultrapassado a “nêmia” assinalada por Jacques Rancèire (2015), transmutando-se em crítica contumaz ao presente opressor e anunciando, assim, que o futuro está em aberto e não estamos encerrados nele. Se a salvação é apenas parcial, como afirma Donna Haraway, existe também, segundo a autora, uma maneira de viver e de morrer bem nessa terra com alegria e com terror (Haraway, 2016, p. 36). Como também o destacam Jacques Rancière (2015) e Viveiros de Castro (2014), o pensamento feminista chegou ao século XXI como a Vanguarda política da contemporaneidade.
* Cláudia de Oliveira é professora associada de História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro permanente do Programa de Pós-Graduação da EBA/UFRJ. É membro da Rede de Sociologia da Cultura e Artes “Todas as Artes” e organizou Mulheres na história: inovações de gênero entre o público e o privado (Faperj/Leterar, 2019) e A cidade mulher (Faperj/Mauad, 2016), entre outros. Tem capítulos publicados em Magazines and Modernity in Brazil: Transnationalisms and Cross-Cultural Exchanges (Anthean, 2020) e Paris Fashion and World War Two: Global Diffusion and Nazi Control (Bloomsbury, 2020).
Referências
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FAUSTO, Juliana. Comentário sobre a entrevista de Donna Haraway. In: Colóquio Internacional, “Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra”, 15 a 19 de setembro de 2014. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Realização do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e do PPGAS do Museu Nacional – UFRJ. Disponível emhttps://www.youtube.com/watch?v=Qg0oyW9-rA0, acesso em 13/08/2021.
GUERRA, Paula. Nothing is forever: um ensaio sobre as artes urbanas de Miguel Januário, Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 25, n. 55, p. 19-49, set./dez. 2019.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial, Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773, acesso em: 26 out. 2021.
____. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthuluce. Duhan: Duke University Press, 2016.
NEAD, Linda. Female Nude: Art, Obscenity and Sexuality. Routlege: London & New York, 1992.
SEGATO, Rita L. Conferência Central por Rita Segato, Las Jornadas de Debate Feminista 2019, 15, 16 e 17 de julho, Facultad de Ciencias Sociales y la Intendencia de Montevideo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HdDWceq10TA, acesso em 13/08/2021.
TSUNG, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens, multiespécies no Antropoceno. Edição Thiago Mota Cardoso, Rafael Vicorino Devos. Brasília: IEB/ Mil Folhas, 2019.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Comentário sobre a entrevista de Dona Haraway, Colóquio Internacional, “Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra”, 15 a 19 de setembro de 2014. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Qg0oyW9-rA0, acesso em 13/08/2021.
Notas
[1] Entrevista concedida por Juliana Notari a Cláudia de Oliveira em 26 de janeiro de 2021.
“Vale Derrotado” é um verso do poema “O protesto de Gômer”, de Adriane Garcia. A gestação é um tema abordado de várias formas na poesia brasileira contemporânea. Porém, podemos perceber que parte da poesia recente escrita por mulheres vem abordando esse tema por outro viés: não pela maternidade, mas pelo que não vinga, pelo que não chega a ser. Encontramos indícios dessa abordagem em poemas de Mar Becker, Adriane Garcia, Tatiana Pequeno, Raquel Gaio, Bruna Mitrano, dentre outras. Gostaria, então, de pensar a gestação pelo seu negativo: os frutos não vingados. Também pelo negativo, isso nos remete à linhagem, à herança, ao legado, e nos lança às perguntas: O que se carrega? O que se gesta? O que se transmite? Qual é a herança? Qual é o legado? Quais são as sementes? Como fazê-las vingar? O objetivo deste texto é apresentar essa perspectiva a partir, sobretudo, da relação entre corpo e território, tecendo a hipótese de que os corpos das mulheres, resistindo à procriação como norma, resistindo, portanto, ao enquadramento (Butler, 2015) ou ao cercamento dos corpos (Federici, 2017), afirmam-se não pelo princípio da territorialização, mas por um território sempre em ruína.
Como enunciam os versos de Tatiana Nascimento (2019, p. 11-12) no poema “cuíer A.P. (ou “oriki de shiva”, v.28 out. 2018)”, publicado no livro 07 notas sobre o apocalipse ou poemas para o fim do mundo: “mas a gente, que nem semente daninha,/ vinga, se espalha, sobre/ vive!”. Esse é o sentido de vingança, vingar como semente, termo que vem sendo utilizado na luta política para se referir ao legado de Marielle Franco, como vemos, por exemplo, no filme Sementes: mulheres pretas no poder (Embaúba Filmes, 2020) – palavra que também deu título ao livro de Margaret Atwood, Semente de bruxa, que reescreve A tempestade, peça de Shakespeare que inspirou o título de Calibã e a bruxa, de Silvia Federici, e, sem dúvida, palavra que nos alude ao solo, à terra, trazendo a importante luta tecida por parte do movimento feminista em muitos lugares onde o feminismo está diretamente relacionado com a questão do controle e da exploração do meio ambiente, e atentando para a relação entre ecocídio e feminicídio.
Em um trecho do poema “Cris Lopes, dedico meu livro para você”, de Tatiana Pequeno, poema inédito em livro e revistas, postado no Facebook em 12 de julho de 2019, em ocasião do lançamento do livro Onde estão as bombas, da referida poeta, lemos: “quebremos tudo, meu amor,/ enquanto estivermos por aqui/ restituamos a luta/ as armas/ os fios/ e mostremos os dentes/ em nome dos filhos que não tivemos/ em nome da gravidade deste tempo”.[1] Esse poema, que é uma postagem, uma dedicatória, uma carta de amor, especula, para além desse trecho, sobre a possibilidade de não coincidir com o destino, de errar o destino, de tecer outro destino, de desfiar e fiar outras tramas. Nele, fala-se em nome dos não herdeiros, dos não nascidos, indo do avesso da gravidez à gravidade do tempo, enunciando-se “em nome dos filhos que não tivemos”.
Convoco, então, um modo de ler esses poemas não como o que digere o indigesto, mas como o que gesta o indigesto (atentando aqui para a intimidade etimológica entre essas duas palavras). Vingar os vales derrotados, na esteira de Adriane Garcia, e afirmar as terras arrasadas, a casa em ruínas, na esteira da “cidade submersa” de Mar Becker, nos insere no gesto de recusa à maternidade e de afirmação da infertilidade como gesto de vingar as mulheres que foram e são historicamente esquecidas, violentadas e assassinadas por “crimes reprodutivos”. Retiro essa expressão do livro Calibã e a bruxa, de Federici, em que a filósofa mostra como o surgimento do capitalismo se deu às custas da destruição do poder das mulheres sobre seus próprios corpos e dos laços comunais que as unia. No século XVI, a política de cercamento de campos, ou a expropriação das terras comunais do campesinato, não significou senão uma política de cercamento dos corpos das mulheres: o estupro foi legalizado, o útero foi controlado e transformado em uma máquina para a reprodução da força de trabalho. Centenas de milhares de mulheres, acusadas de “crimes reprodutivos”, foram queimadas como “bruxas”, em sua maioria, por irem contra, de alguma forma, a procriação como norma.
Calibã e a bruxa nos mostra, assim, que as bruxas eram as mulheres que evitavam ou interrompiam a maternidade, eram as parteiras que podiam confabular com a gestante e intervir no parto, eram as mulheres pobres camponesas subversivas que organizavam movimentos de resistência contra o cercamento de terras, eram as mulheres camponesas que tinham o conhecimento das ervas (consideradas pejorativamente como abortivas), eram as mendicantes que suplicavam por comida, eram as mulheres idosas e pobres que não podiam mais reproduzir, gerar filhos, retratando “uma disciplina sexual que nega o direito a uma vida sexual à mulher que já não era fértil” (Federici, 2017, p. 346). Temos, aí, uma relação entre corpo e terra quando o corpo da mulher mais velha é visto como uma terra arrasada: um corpo que não reproduz mais, como uma terra que que foi muito explorada e não tem mais recursos a oferecer. Era proibida, capturada e atacada toda sexualidade que não fosse reprodutiva.
Diante da misoginia e da destruição da sociabilidade feminina em que se estrutura o capitalismo, de que modo podemos pensar o estatuto político dessa poesia como uma comunidade que vinga as vidas das mulheres que morrem todos os dias por causa de uma gestação interrompida (lembrando que, no Brasil, são as mulheres negras e pobres as que mais morrem por este motivo)? Pensar em como essas questões estão presentes em determinadas poetas contemporâneas significa, também, refletir sobre como aparece e comparece em suas respectivas escritas uma relação entre corpo e território – relação em que o corpo da mulher, como resistência à procriação como norma, resiste ao “cercamento” (dos corpos), se quisermos dialogar com Federici (2017), ou ao “enquadramento” (dos corpos), se quisermos falar com Butler (2015), afirmando-se, porém, não pelo princípio da territorialização, mas por um território sempre em ruína. Sugiro aqui uma aproximação entre as noções de “cercamento” e “enquadramento” não como sinonímias, mas pela maneira como ambas, em suas devidas diferenças de teorização, indicam os corpos que, cercados ou enquadrados (não esquecendo da polissemia dessa palavra – a expressão, em inglês, a que se refere Butler em Quadros de Guerra, “to be framed”, também traz, em português, a polissemia de “ser emoldurado”, em um quadro, e ser “enquadrado pela polícia”), são os corpos passíveis de serem mortos ou as vidas não reconhecidas como vidas.
Pensado primeiramente a partir do contexto das guerras dos Estados Unidos contra o Iraque e o Afeganistão, em que os enquadramentos midiáticos determinavam quais vidas seriam dignas de luto e quais não seriam, é certo que, em Butler, importa, sobretudo, o que resiste ao enquadramento, a borda sempre deslizante que não permite a determinação entre o dentro e o fora da moldura, compreendendo como o enquadramento pode ser subvertido (e não ajustado) à moldura que lhe é estabelecida, os modos como os enquadramentos podem ser desenquadrados, como eles se refazem e se desfazem, mostrando que “enquadrar e romper com o enquadramento são dois movimentos que caminham juntos”, como observou Carla Rodrigues (2020, p. 67) no artigo “Por uma filosofia política do luto”. Em Federici, por sua vez, a noção de “cercamento” se insere no contexto histórico da expropriação de terra dos camponeses na Europa como um marco do início do capitalismo com a privatização das terras comunais campesinas e a extensão desse termo como forma de inteligibilidade ou de nomeação ao controle pelo qual foram submetidos os corpos das mulheres na história moderna: “Do mesmo modo que os cercamentos expropriaram as terras comunais do campesinato, a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres” (Federici, 2017, p. 330). Quando as terras foram cercadas, os corpos das mulheres foram cercados. Quando as terras foram expropriadas, os corpos das mulheres foram expropriados.
Como Federici (2017, p. 133) localiza, no século XVI, “‘cercamento’ passou a ser um termo técnico que indicava o conjunto de estratégias usadas pelos lordes ingleses e pelos fazendeiros ricos para eliminar o uso comum da terra e expandir suas propriedades”. É preciso lembrar que o continente americano foi o lugar em que houve “o maior processo de privatização e cercamento de terras, onde, no início do século XVII, os espanhóis tinham se apropriado de um terço das terras comunais indígenas sob o sistema da encomienda” (Federici, 2017, p. 130). Também na África, a escravização executada pela empresa europeia colonial trouxe como consequência a expulsão de populações africanas de suas terras. Em Federici, podemos constatar a coincidência entre a política de cercamento de campos e a política de cercamento dos corpos cuja relação entre corpo e território não é uma relação essencialista, mas, antes, uma relação de poder, como se explicita também em Mulheres e caça às bruxas, quando observamos a ligação intrínseca entre a prática de exploração de terra e a prática de violência dos corpos de mulheres, sobretudo nas regiões do mundo que sofreram processos de colonização. Sobre essa relação, que continuou existindo com o advento da globalização e que sobrevive ao surgimento do neoliberalismo, Federici (2019, p. 94) analisa: “Não surpreende que a violência contra as mulheres tenha sido mais intensa naquelas partes do mundo (África subsaariana, América Latina e Sudeste Asiático) mais ricas em recursos naturais e agora mais valorizadas para especulações comerciais, onde a luta anticolonial tem sido mais forte. Maltratar mulheres é útil para os ‘novos cercamentos’”.
Dialogando com essa relação entre corpo e território, em que o corpo da mulher como resistência à procriação como norma, como dissemos, resiste ao enquadramento (Butler, 2015) ou ao cercamento dos corpos (Federici, 2017), afirmando-se não pelo princípio da territorialização, mas por um território sempre em ruína, assim versa um trecho de um poema de Raquel Gaio, publicado na Revista Garupa: “sou continente que não chegou a nascer/ feto estancado tristeza dos pais/ pântano onde todas as águas se misturam”.[2] Nos versos, lemos uma contraposição entre continente e pântano, em que o segundo se refere à mistura, enquanto o primeiro, intuímos, se contrapõe pela separação. Pântano é uma zona úmida, uma área alagada cujo solo, mal drenado, em que a água escoa muito lentamente, é permanentemente inundada. Pântanos são áreas baixas que acontecem principalmente em lugares onde o rio deságua, mas também podem se formar em terras planas à beira-mar. Ou seja, pode ser de água doce ou salgada. Como o propõe o poema: “onde todas as águas se misturam”.
“Nina”, de Tatiana Pequeno, publicado no livro Réplica das Urtigas, também nos mostra, pelo aborto, a associação entre corpo e território:
Nina
Neve com o êmbolo
feto
no corpo um outro passo
pleno
a vagarosidade fértil assombra
neve com a ânfora
lixo
no corpo um centro resto
órgão de península
amorfo incêndio de ilha.
(Pequeno, 2009, p. 70)
O fio que o poema traça desloca-se do surgimento de um feto ao aborto. Nos versos que se reduzem a uma palavra, “feto”, “pleno”, “lixo”, acompanhamos esse movimento. A assonância em /e/ e /o/ que se quebra com a palavra “lixo” acentua a quebra do ritmo que já foi quebrado, antes disso, no verso “a vagarosidade fértil assombra”, que quebra a métrica do primeiro e terceiro versos.
No poema supracitado, temos o corpo como “órgão de península”. O centro, porém, é descentralizado: o centro é resto, “um centro resto”. Sabemos que península é essa parte da terra que se liga ao continente por um fio, é um “quase”, “quase ilha”, pertencente e não pertencente ao continente, destacando-se dele, mas se mantendo ligada a ele por um fio de terra. Península é uma área toda cercada de água que, no poema, foi incendiada: “no corpo um centro resto/ órgão de península/ amorfo incêndio de ilha”. Como as chamas de um incêndio, de forma indeterminada, informe, o incêndio aqui é amorfo, como algo que não chegou a ter uma forma, estrutura e contorno precisos. Entre temperaturas-limite, “neve” e “incêndio”, entre extremos, o poema inscreve uma situação extrema na vida de uma mulher.
“sou uma cidade submersa” é o primeiro verso de um dos poemas que compõem o livro A mulher submersa, de Mar Becker:
sou uma cidade submersa
quando à noite me deito contigo e te amo com todos os meus
abismos
pela manhã sou uma cidade submersa
.
porque é assim que amo, lendária e triste. porque não posso
senão amar com o que em meu corpo é a história do fim de uma
linhagem, estéril como sou
e quando pela manhã tu vais e eu permaneço na cama, nua
quando pela manhã a luz do sol começa a entrar pela janela e
preenche o quarto
nessa hora o suor se reacende
o sal cintila em minhas coxas
e eu, estéril
eu então sou uma mulher estéril repleta de estrelas
de constelações
(Becker, 2020, p. 15)
No primeiro verso já temos uma associação entre corpo e território: “sou uma cidade submersa”. Mas o poema nos mostra que esse é um território sempre em ruína. O corpo coincide com o fim, o corpo é “a história do fim de uma/ linhagem”, e amar, aqui, só é possível se se leva em conta esse fim como a condição do amor: “porque não posso/ senão amar com o que em meu corpo é a história do fim de uma/ linhagem, estéril como sou”. Ao final do poema, temos o corpo associado a um corpo cósmico, um corpo prenhe de estrelas, um corpo-constelação, isso que já é o indício de uma ruína, a marca do que não está mais lá, como as estrelas que são uma incidência do que já morreu, marcas que portam uma ausência.
Mar Becker abre A mulher submersa com a imagem de uma “mulher estéril”. Em uma postagem no Facebook, a poeta teceu o seguinte comentário:
Abro “A mulher submersa” como a imagem da “mulher estéril”. Acho que é possível entendê-la (também, mas não somente) como um dos frutos magros do nosso tempo. Ela é um prisma – como uma estrela falida – que refrata e multiplica em si, no seu corpo, no seu nome, o sentido mesmo do termo “fim”. Pode ser o fim de uma linhagem, o fim de um dia ou da hora. Pode ser ainda o fim de uma promessa qualquer de futuro ou o fim de uma língua, esse marco de onde nós, escritores e poetas, partimos então buscando com nossas palavras sempre outras, ainda outras – aquelas próprias de línguas impossíveis ou mortas. Não saímos em busca sem assumir riscos e custos; como diz Orides [Fontela], “tudo será difícil de dizer / a palavra real nunca é suave”.[3]
Fazer do fim o ponto de partida significa um modo de fazer do ventre de uma mulher estéril o lugar de começo da história-estória, o lugar por onde se começa a narrar. Outro modo de reafirmar não mais a história dos grandes feitos, não mais a história pela via do enaltecimento da genealogia patrilinear, mas sim o fim como condição da história, o fim de uma linhagem, o fim de uma língua, como quem faz da ruína a condição de possibilidade. Cultivar a terra arrasada, fazer do fim o lugar de começo ou começar como quem não tem mais nada a perder se dá, irremediavelmente, é preciso dizer, pelo corpo da mulher. Os seus poemas traçam uma cartografia da ruína via o corpo da mulher. A mulher plasma a ruína: o território é ruína, a casa é ruína, a memória é ruína. Por isso mesmo, com isso, a partir disso, a necessidade de tecer, de tentar fazer o traçado dessa ausência, de tentar dar corpo à ausência, de imaginar um corpo para o corpo perdido, para a terra perdida, como quem se depara, a cada vez, com o corpo como uma língua esquecida, com o corpo como exilado de si.
Em trechos do poema a seguir, vemos novamente o vínculo da mulher com o território: há uma contraposição do campo com a cidade que não é tecida senão pela sola dos pés:
a mulher nascida na região da serra sem fim levanta-se
não há cor em suas unhas, e os fios do seu cabelo secam ao
natural. a planta dos seus pés é mais áspera que a das mulheres
nascidas nas cidades grandes, porque ela vive caminhando
descalça no chão de pedra do quintal de casa. estende roupa. nos
fins de semana come uva colhida de uma videira tímida
o fruto é miúdo, quase não vinga; ainda assim
há famílias que insistem no cultivo
essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo
[…]
por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do
beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e
põe seus ovos. em fevereiro e março, no período de chuvas mais
intensas, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido
horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico
no dia seguinte, é varrido para um canto e fica amontoado
junto com as cascas de uvas comidas
(tudo é cadáver, vindima e fome)
[…]
a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas;
e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em
silêncio
de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser
vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde
.
na casa fabula-se outra casa. em ruínas
(Becker, 2020, p. 31-34)
Nos versos, lê-se o lugar de onde vem uma mulher pela cartografia traçada no corpo, a planta do pé. Lê-se a sola dos pés como quem lê a planta de uma casa, um mapa, a topografia dos solos. Pelo uso da catacrese, esse modo de nomear a falta, como “pé da mesa”, “dente de alho”, “costas da cadeira”, as partes do corpo vão dando nome ao que seria difícil de nomear. Aqui, na “planta dos pés”, esse lugar que, de fato, é mais ou menos repleto de traçados, como a palma da mão, de que também muitas mulheres se ocupam da leitura, o ponto de contato dos pés com o chão será chamado de “planta” e não de “sola”, condizendo com o traçado em que esse livro vai se tecendo, no entrecruzamento do tempo histórico e do tempo orgânico, trazendo, na “planta dos pés” de uma mulher, a topografia social, a história de uma linhagem que nasce no fim e aponta para o fim, a história do que não vinga. No poema, lemos uma colheita às avessas no paralelo entre a mulher e a pássara, entre a “mulher nascida na região da serra sem fim” e a “pássara prenha”, entre a casa da mulher e o ninho da pássara: os frutos que não vingam mas que, porém, insiste-se no cultivo, como a família triste, a videira tímida e o filhote recém-nascido “horrível. roxo”: “tudo é cadáver, vindima e fome”. Na “mulher nascida na região da serra sem fim”, tudo aponta para o fim. Tudo, em seus versos, parece apontar para o fim, para o contorno impreciso (“o contorno dos telhados e das chaminés se perde”), para a “cerração” (“a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas”), para isso que mal é, que mal pode ser, como sugere o enjambement: “a casa nessas manhãs mal pode ser/ vista”. Entre a casa que “mal pode ser” e “mal pode ser vista”, entre o que não chega à existência e o que não chega aos olhos, tudo no poema fica nesse estágio do que “mal pode ser”. O corpo, a casa, o íntimo, o doméstico, espaço historicamente destinado a quem nunca pôde ser, às mulheres, são receptáculos e vias de territórios e de histórias que também estão por um fio, não dando forma, porém, ao que não chegou a ser, mas constatando e afirmando o esboço, fazendo do esboço – desse campo exponencial do que não chega a ser – o estágio potencial de tessitura.
Em A mulher submersa, o fio é a ausência, o fio que se puxa para tecer o esboço de uma história é a ausência de mulher. A ausência na historiografia, a ausência na geografia da segregação econômico-social, a ausência na política ocidental. Como diz um trecho de um dos poemas do livro, que eu leio como modo de elucidação do método de Mar Becker (2020, p. 78): “mulher vinda da ausência de outra, da ausência da história de/ outra. mulher vinda de uma/ não-mulher// de um não-corpo/ de uma não-voz”. A mulher submersa é um exercício de insistir no cultivo daquilo que “mal pode ser”, daquilo que mal assume o estatuto de ser. Um exercício de fazer vingar o que não vinga, de traçar, na perda, um território inédito, atravessado pela intercessão de espaços, tempos e corpos diferentes, de tentar traçar um contorno impreciso, um esboço, seguindo os rastros disso que está sempre na iminência do fim ou do que não chegou a nascer; ou, ainda, quando o que mal nasceu diz tanto do que “acabou de nascer” como do que “nasceu mal”, não vingado, ou seja, quando o “cedo demais” e o “tarde demais” se aproximam.
No livro Não, de Bruna Mitrano, isso que mal nasceu pode ser lido nas “frutas que nasceram podres/ as que nasceriam pra sempre” (Mitrano, 2016, p. 24), assim, “pra sempre”, como uma linhagem que se determina pelo ponto de decomposição em que coincidem nascimento e morte, tal como lemos no próximo trecho: “gestação infinita/ o filho podre a filha cerca viva/ meu útero arregaçado expelindo medo em sangue/ porque é meu horror que gero –/ sei me ferir” (Mitrano, 2016, p. 20).
Em Não, a voz da mulher que fala nos relata que ela, a mulher, também foi abortada: “meu sangue é vivo porque é sangue de quem se aborta, é sangue de quem implodiu e é arrancada a fórceps” (Mitrano, 2016, p. 47). Aqui, o aborto como aborto de si está ligado, porém, à vivacidade do sangue, ao que deixa um “sangue vivo”, a quem tem o “sangue de quem implodiu”, de quem pertence à linhagem dessas que diariamente são arrancadas a fórceps, dessas que fazem do aborto de si a contrapartida da violência, um movimento de acabar vingando – mas não como quem nasce, pelo contrário, como quem se aborta.
O Não também gesta aquilo que não vingou, aquilo que não chegou a ser. Chego então ao que vem se mostrando desde os poemas anteriores: a necessidade de pensarmos num estatuto político da poesia que considere essas poéticas como o lugar não daqueles que são, mas daqueles e daquelas que nunca puderam ser, que nunca tiveram o estatuto de ser.[4] Essa reflexão se torna pertinente se pensarmos que, desde Platão, em O Banquete, um dos modos como a poesia ainda é compreendida pela tradição ocidental refere-se a aquilo que permite a passagem do não-ser ao ser, ou seja, como aquilo que faz com que algo que não fosse passasse a ser. Esses poemas colocam a importância de ver a poesia – e o gesto ético e político dessa poesia – como isso que permite fazer a experiência daquilo que não chega a ser, daquilo que foi interrompido, ou, mais contundentemente, obstruído, impedido. Aqui, a problematização da teoria platônica da passagem do não-ser ao ser se dá também, especialmente, pela experiência da pobreza, que antes impede e obstrui do que dá passagem. Gestando o indigesto, o Não – como uma negação, porém, afirmativa – é um movimento em si mesmo interruptivo: ele impõe um limite no gesto de dizer “Não” e, ao mesmo tempo, gesta os mutilados da vida, o que não vingou, os corpos que diariamente sofrem muitos “Nãos”, corpos que diariamente são excluídos da política, corpos que diariamente não são, não têm o estatuto de ser.
Esse livro tem uma ética de tudo que abarcaria um mundo ínfero. É curioso notar que essa palavra, “ínfero”, significando aquilo que é inferior, que está abaixo, faz parte da linguagem do estudo da vida vegetal, precisamente, da morfologia botânica, para indicar a posição do ovário em relação ao receptáculo. Na botânica, é dito que o ovário de uma flor é ínfero quando ele se localiza na parte inferior do receptáculo e, por isso, “ovários ínferos originam falsos frutos”, porque o receptáculo fará parte da formação do fruto, não deixando com que esse último se desenvolva plenamente.[5] Não por acaso, o cristianismo se utilizará da palavra latina inferus para significar “lugares baixos”, de onde sairá “inferno”. Leio o Não como esse ovário ínfero, cujos frutos coincidem com o receptáculo, sendo isso que não é exatamente um fruto, que não chega a ser um fruto.
Como nos poemas anteriores, aqui, também, “o enquadramento” é “impreciso”:
puta que pari um bicho morto
risco indócil na coxa
barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços imagens
o enquadramento impreciso
aparar as arestas até triturar os ossos do rosto
as unhas perfuram lentas a boca grande calada
é preciso fugir pelas beiradas
sem alarde.
(Mitrano, 2016, p. 18)
Se o Não traz justamente os corpos enquadrados, em uma interdependência de gênero, raça e classe, abordando a mulher, a favela, a pobreza, a miséria, a loucura, no primeiro verso do poema supracitado vemos “o enquadramento impreciso” do sujeito do poema: não se lê “puta que pari um bicho morto” sem alguma trava. Começo a ler “puta que pariu”. Depois leio “puta que pare”. Só então percebo que o sujeito está oculto: não é a puta que pariu, sou eu que pari: eu, “puta que pari um bicho morto”. Trazendo a primeira pessoa oculta na possibilidade da terceira, tornando ambas a mesma pessoa, as arestas do poema vão fazendo dessa a história de fuga traçada pelos estilhaços que compõem a cena do irrepresentável que se repete há séculos.
A história se passa no século VIII a.C., o povo de Deus estava dividido em dois reinos, norte, Israel, e sul, Judá. Ao contrário de Judá, Israel estava entregue ao culto de falsos deuses dos inimigos. Oseias é um profeta enviado por Deus para alertar Israel da destruição iminente pelos assírios, pela influência dos fenícios do norte. Tudo de ruim simbolizava Israel, a idolatria a deuses, a prostituição, e Gômer simboliza Israel, simboliza a decadência e a degradação de Israel, porque ela é uma prostitua.
Deus ordenará Oseias a se casar com essa prostituta. Salvar a mulher da prostituição significava salvar o povo prostituído de Israel. O resgate de Gômer representa o resgate que Deus faria por seu povo. Então, Oseias e Gômer têm três filhos que vão ter três nomes degradantes, como forma de fazer o povo de Israel carregar essa vergonha por ter abandonado Deus. Pelos filhos de Oseias, Deus repreendia seriamente o povo. Mas Gômer abandonou Oseias e seus filhos e voltou para a prostituição. Deus mandou Oseias ir atrás de Gômer, assim como Deus vai atrás de seus filhos desviados e os perdoa, determinando que Oseias comprasse Gômer, que tinha se tornado uma escrava, talvez uma escrava sexual.
Então, por causa de Gômer, Israel estaria fadada à destruição. Gômer representa o não arrependimento do povo de Israel, representa a vergonha (por ela ter sido infiel, promíscua, adúltera, prostituta, por ter abandonado o marido e os filhos) e a culpa que Israel carregaria por ter abandonado o senhor. Toda a errância de um povo é representada pela culpa de uma mulher. Depois, Deus, esse pai que pune, mas nunca abandona, porque ele não aguenta ser um pai abandonado, perdoou, claro, os filhos vergonhosos, mas primeiro ele teve que fazer os filhos comerem o pão que o diabo amassou. Esse pai misericordioso, que pune em nome do amor, que comete as maiores atrocidades e repreensões em nome do amor, é o mesmo pai que deposita a culpa de todo um povo em uma mulher.
Reescrevendo a história como um modo de vingança e de vingar, finalizo este artigo com o poema de Adriane Garcia, um poema que é um protesto de quem nunca pôde protestar, “O protesto de Gômer”:
Não quero este filho
(vou tentar fazê-lo não nascer)
Mas se ele nascer vou chamá-lo
Vale Derrotado
Prefiro um ventre estéril
E seios secos
Se meu corpo
É a primeira metáfora
Para o seu desamor
Não quero esta filha
(vou tentar fazê-la não nascer)
Mas se ela nascer vou chamá-la
Desfavorecida
Prefiro um ventre estéril
E seios secos
Se o que tem
Para as minhas filhas
É pura desolação
Não quero este filho
(vou tentar fazê-lo não nascer)
Mas se ele nascer vou chamá-lo
Não-Meu-Povo
Prefiro um ventre estéril
E seios secos
Do que parir aqueles
A quem o senhor
Só aborta.[6]
* Danielle Magalhães é doutora em Teoria Literária (UFRJ). Atualmente, como bolsista de Pós-Doutorado (FAPERJ/UFRJ), desenvolve a pesquisa “Mulheres que reescrevem a história”. Publicou os livros de poemas: Vingar (2021) e Quando o céu cair (2018), pela Editora 7Letras, e sua tese de doutorado, Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror, que contém parte deste estudo, está no prelo pela Editora Ape’ku.
Referências
BECKER, Mar. A mulher submersa. São Paulo: Editora Urutau, 2020.
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. São Paulo: Boitempo, 2019.
As palavras que acompanham este trabalho acompanham minha trajetória de pesquisa nos últimos dois anos. Desde a defesa da minha dissertação, no final de 2019, inquieta-me o fato de que as diversas violências contra os corpos feminizados são cada vez mais re-conhecidas na mídia, nas artes e na academia, e também parecem estar em cada vez maior número[1]. Em pleno período pandêmico, as estatísticas dessas violências escancaram o que nós, corpos feminizados, já sabíamos: em momentos de crise, somos alvo das mais variadas brutalidades de um sistema social patriarcal, capitalista e misógino. Neste texto, proponho uma leitura compartilhada, ainda embebida de muitas perguntas, entre a narrativa de um romance, as instalações de uma exposição artística e as estratégias para se contar os relatos de estupros sofridos por mulheres reais, para além da ficção.
(prólogo)
Ele arrancou a minha calça com violência, as luvas ásperas arranhando a minha pele, e enfiou o pau na minha boceta. O pau dele na minha boceta. Eu não suporto usar essas palavras, mas não sei quais seriam as mais precisas. Afinal, era isso: era o pau dele dentro da minha boceta. Mas era tudo, menos isso. Um pau numa boceta é outra coisa.
Tatiana Salem Levy, 2021
A exposição Vermelho como palavra ainda é uma cor fantasma (2019), da artista plástica Lívia Aquino, traz em vermelho neon a pergunta de um general da ditadura militar brasileira feita à jovem Lázara, vítima de um estupro coletivo em um interrogatório por militares do regime. A partir do depoimento revelado no Relatório da Comissão da Verdade, em 2014, Lívia Aquino chama a atenção para a ambiguidade da pergunta “cretina”, que, segundo ela, “é uma pergunta ambígua, que pode ser tomada como uma preocupação sincera, (…) mas naquele contexto diz muito de como o Brasil não está livre de algumas ditaduras – as da política e as que incidem sobre o corpo feminino” (Aquino, 2021). Partindo da ambiguidade da pergunta, Lívia Aquino nos invoca a pensar nas perguntas e nas ferramentas para se contar essas histórias. A literatura brasileira contemporânea escrita por mulheres também está em busca dessas estratégias narrativas.
Como se escreve um estupro? Como se descreve um estupro? Por que escrever sobre um estupro? É possível relatar um estupro? Estaria a literatura pronta para narrar a condição indizível do horror de uma violação sexual? Em uma entrevista para o podcast da revista Quatro Cinco Um, a escritora Tatiana Salem Levy ressalta: “a violência sexual é o indizível do horror”. Embrenhando na mata densa da violação de um corpo, em uma busca de palavras que contam aquilo que está evidenciado nesse corpo, Salem Levy narra, em Vista Chinesa, o horror e o indizível a partir da perspectiva de uma mulher-vítima que tenta replicar em palavras aquilo que está escrito em seu corpo: o estupro. “Está escrito na minha pele, sei que está, tudo o que aconteceu, até os detalhes que eu disse que tinha contado para a polícia, mas não contei, porque nunca se conta tudo, há sempre uma parte que falta” (Levy, 2021, p. 43).
Júlia, a personagem-narradora de Vista Chinesa, é uma arquiteta que mora na cidade do Rio de Janeiro e que tinha, por hábito, correr na Floresta da Tijuca, nas imediações da Vista Chinesa, mirante localizado no Alto da Boa Vista, que oferece aos visitantes uma vista panorâmica da cidade que une a Mata Atlântica, a lagoa e o asfalto. Júlia saía do asfalto para acessar a mata antes de planejar prédios no escritório onde trabalhava como arquiteta. Em uma terça-feira do ano de 2014, Júlia foi arrastada para dentro da floresta e estuprada por um homem anônimo. Ela não conseguiu correr. A floresta e sua mata verdejante, cartão-postal da cidade maravilhosa, tornaram-se o inferno de Júlia.
Ele era baixo, forte, encostou uma pistola na minha cabeça e ordenou, me segue, a voz se fundindo à da Daniela Mercury, a mão me apertando o braço, interrompendo a corrida e me arrastando para a floresta, aquela mata linda, exuberante, cantada nos mais belos poemas, exaltada nos guias turísticos do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas 2016, aquela mata que todo mundo diz que é o que faz a diferença, afinal muitas capitais têm praia, mas uma mata assim, frondosa, casa de tucanos, cobras e macacos, aquela mata que exala um cheiro doce e enjoativo de jaca, aquela mata que todo mundo admira quando está subindo a Vista Chinesa e na qual quase nunca reparo, porque quando estou correndo me desligo do mundo, aquela mata virou meu inferno (Levy, 2021, p. 12).
Entrelaçando a violência no corpo de Júlia com as violações históricas da floresta por parte dos colonizadores e da cidade por parte do neoliberalismo, Tatiana Salem Levy explora os fragmentos de opressões perpetrados por uma sociedade sistematizada pelas diversas violências e violações aos corpos. A floresta, explorada e dizimada, torna-se a única testemunha do horror vivenciado por Júlia. A terra une, ao presenciar a violação, o passado (o antes), o presente (o estupro) e o futuro (a vida depois). A cidade, lugar de morada e de trabalho de Júlia, mundialmente conhecida e constantemente visitada, naquele momento, junto de Júlia, iniciou seu processo de bancarrota: nos anos seguintes, escândalos de corrupção, degradação dos espaços públicos, fortalecimento das milícias armadas – esteio ideológico do fascismo que tomou o país de assalto. A mulher-escritora, habitando a linguagem como potência, se irmana a tantas outras escritoras e artistas que suplantam o real com sua estética e vão além de catalogar as mulheres como vítimas. A mulher-escritora escreve a história de uma mulher que tem escrita em seu corpo uma violação. Do corpo-mulher ao corpo-carta, aos corpos-filhos, ao corpo-escritora, ao corpo-leitora. A carta torna possível a elaboração daquilo que a personagem-vítima não dá conta de contar: “por favor, me deem a palavra certa” (Levy, 2021, p. 13). É dessa relação entre os corpos, a linguagem, a mulher, a terra e a cidade que pretendo partir.
1. O silêncio da violação
Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni cómo vestía El violador eras tú El violador eres tú Son los pacos (policías) Los jueces El estado El presidente El estado opresor es un macho violador
“Un violador en tu camino”, Las Tesis
A violação sexual é um trauma. É o horror que se instala no corpo, na pele, infiltrando-se nos poros por osmose, porque inevitável. A violação sexual é um trauma, porque mata a ingenuidade da autonomia dos desejos e das escolhas. A violação sexual é um trauma que escreve uma história no corpo, como uma tatuagem, sempre lá, marcando o território como se marca o gado da manada. O corpo-território é invadido, saqueado, usurpado, defenestrado. Nunca mais como antes. Ainda que novas sementes, novos plantios, novos cuidados, nunca mais como antes. Mas como é que se narra o trauma do corpo perpetrado pela violência de um estupro?
É desesperador quando a palavra não cola na imagem. Toda fenda é exasperante, mas esta dói no corpo. Eu tenho vontade de sair gritando, por favor, me deem a palavra certa, aí alguém diz, não existe, as palavras certas nunca existem, mas eu não acredito nisso, eu acho que para toda coisa existe uma palavra certa e se a gente falar falar falar uma hora a gente encontra.
As palavras certas poderiam ser: Eu fui estuprada. A mãe de vocês foi estuprada. Eu, a mãe de vocês, fui estuprada. Foi. Fui. Estuprada. Estuprada. Es-tu-pra-da (Levy, 2021, p. 13).
Em Notas sobre o luto (2021), a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2021, p. 14) aponta que “o luto tem a ver com as palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras”. Sentir o luto é uma busca incessante por dizê-lo, expressá-lo, como se as palavras fossem veículos de ação que movimentam o silêncio e a suspensão do tempo que o luto exige. Escrever a palavra do luto torna o espaço da escrita um espaço de contestação. Escrever a palavra do luto torna possível a elaboração do trauma. As palavras, derrotadas, tentam impor-se ao silêncio perpetrado pelo trauma. Entendendo que esse espaço de contestação se caracteriza por ser um lugar através do qual um outro pode falar, ou seja, um lugar de deslocamento em direção ao outro, um movimento em direção a outra enunciação, compreendo o romance Vista Chinesa como uma necessidade de elaborar o indizível por meio da mediação do diálogo, da troca com o outro. Quando Júlia decide que é necessário escrever uma carta aos filhos, Antonia e Martim, ela atravessa o trauma contestando um espaço de fala íntimo e localizado: do seu corpo aos dois corpos que dele saíram. A carta, alegoricamente, é a concretização do cordão umbilical que une os três corpos em um único. Ao escrever a carta, Júlia reapropria-se do corpo, do pedaço que falta: “vai chegar o dia em que vocês vão ouvir algum rumor, vão descobrir uma ponta da história, talvez outra e mais outra – mas vai sempre faltar um pedaço. Vai faltar a verdade, porque assim, como vou contar agora, eu nunca contei a ninguém” (Levy, 2021, p.10).
Partindo de longas entrevistas com Joana Jabace, Tatiana Salem Levy, a escritora, dá a voz e a vez à personagem Júlia, que, também se colocando na posição de escritora, relata sua violação por meio da escrita de uma carta endereçada a seus filhos gêmeos, Antonia e Martim. A carta é a continuação da história que está escrita em seu corpo, assim como os filhos são a continuação do corpo da mãe. Do corpo de Júlia partem o luto, as vidas e as palavras:
É no corpo que o saber acontece, que o conhecimento vira magia, ganha novo outro lugar. É no corpo que o conhecimento fica encantado. Por isso é a partir do corpo que se escreve, é com o corpo que fundamos um mundo, é com o corpo que experimentamos nossos surtos e é com o corpo que aprendemos a curar nossos processos (Lima, 2021, p. 60).
Quando deslocamos nossa enunciação em direção ao outro, tornamos possível a encenação do que foi vivido, saindo de um lugar de opressivo silêncio para um lugar de possível linguagem. Como postula Beatriz Sarlo (2007, p. 119), a “literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”. A literatura, então, é uma experiência de fora que pretende se “apoderar do pesadelo”. Tatiana, ao ouvir o relato de Joana, sua amiga próxima, de fora da experiência, apodera-se de seu pesadelo, capturando o luto, o horror, o trauma, instaurando-o, agora, também em nós, leitores-interlocutores, convidando-nos a lermos o indizível, a adentrar a dor a fim de fortalecermos o cordão que, estrategicamente, sai de um corpo-vítima transformando-se em um corpo-potência.
Por tudo isso, quando narramos a geografia do medo e do risco (porque se impregna em muitas de nós como um mapa de alertas que, no entanto, fornece a chave para tornar inteligíveis abusos múltiplos e violências), isso não se traduz em vitimização, mas em capacidade estratégica. É mapeamento sensível das explorações vividas cotidianamente em conexão umas com as outras para alimentar maneiras radicais de pensar o território e, em particular, o corpo como território (corpo-território) (Gago, 2020, p. 12).
Transmitir a própria história é uma forma de evitar a clausura que impede a partilha do amor. Partilhar a dor é uma forma de libertar o amor. Joana transmite sua história a Tatiana. Júlia transmite a Antonia e Martim. Tatiana transmite aos leitores. Segundo a professora e pesquisadora Eurídice Figueiredo (2020, p. 265), “estar em luto é, […], ficar no vazio, enquanto fazer o luto é sair do vazio. Fazer o luto é um duplo trabalho de olhar para dentro de si e olhar para fora de si a fim de ir ao encontro do mundo e do Outro”. Quando Júlia escreve a carta a seus filhos – e Tatiana escreve a nós, leitores –, o luto está sendo feito, em um movimento duplo, de dentro e de fora, em uma ousadia de expor a agonia do corpo, dando corpo para a língua, emudecida pelo trauma, rompendo a barreira do silenciamento:
Escrever é dar corpo para a língua, é dar lugar no mundo para a voz de medo, para a voz de coragem, para vozes massacradas, para vozes que não são escutadas, é transmutar, como feitiço, o que se seria antes, redescobrindo em si mesma aquelas histórias escondidas. (…) Escrever e publicar é uma atitude de guerrilha para as mulheres (Lima, 2021, p. 65).
Enquanto a vítima fica em silêncio, ela é apenas uma vítima, seu sofrimento se repete como em um looping. Romper a barreira do silêncio retira o estupro do horror total e a vítima do lugar enclausurador de vítima: o horror se torna narrativa e a vítima recupera o próprio corpo.
A narrativa de Vista Chinesa constrói-se em movimentos sintáticos fraturados, voláteis, como uma sequência, por ora, ininterrupta de ações e sensações, promovendo uma sinestesia tonteante, como se nos jogasse no limbo da dor de Júlia, dentro da floresta.
Vejo pedaços, fragmentos daquele momento: uma clareira um cinto um tapa minha garganta folhas no céu uma boca se mexendo uma língua sapatos um peito nu um tapa um passarinho um soco um cinto folhas caindo do céu outro soco ânsia de vômito gosto ruim uma nuvem dor vai quebrar mosquitos um cheiro ruim dentro outro tapa fora dor dor dor uma jaca várias jacas um rosto se desfigurando um rosto (Levy, 2021, p. 12).
Esse jogo coesivo que nos interpela uma leitura de palavras soltas e, ao mesmo tempo, sufocantes produz uma narrativa em fragmentos, em fissuras, que demonstra uma insuficiência da linguagem em relatar completamente a experiência de um corpo atravessado pelo estupro. As palavras são apresentadas em uma sequência de fôlego único, convocando-nos, leitores, a respirar no mesmo ritmo do desalento de Júlia. A estratégia não é uma invocação à empatia, é muito mais um estar no corpo-vítima, escrevendo a história em nossos corpos-leitores. A narrativa desenha-se, assim, como um rizoma, cartografando as ações entre os corpos que partilham do relato escrito por Joana, por Tatiana, por Júlia, por Antonia, por Martim, por nós: “… o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas e suas linhas de fuga” (Deleuze e Guattari, 2011, p. 43). As fraturas nas tessituras narrativas também são linhas que se cartografam em um mapa, evidenciando um corpo em partes soltas, como os continentes, por meio das interlocuções estabelecidas nas múltiplas narrativas que atravessam a narrativa-livro. A violência narrada com palavras sem conectivos, em versos livres, demarca um corpo em partes soltas, fragmentando-se naquele espaço. Partes soltas, misturadas à terra, aos galhos, aos sons, desintegrando-se, o corpo-vítima e a mata, deflorados.
Por que é possível que a mulher-escritora escreva o horror vivido em outro corpo? Porque ser mulher em sociedade é também aprender sobre ter um corpo vulnerável a todo tempo. A escritora Tatiana, ela própria interlocutora da amiga, suplanta a realidade criando uma outra, Júlia, que conta a história a dois outros, Antonia e Martim, e a nós, interlocutores outros. A narrativa-livro, então, promove uma espécie de conexão entre os corpos para que a dor, ao ser partilhada, torne possível o relato do que se compreende como indizível. O imperativo de narrar por meio de uma linguagem que não dá conta de contar tudo é alinhavado entre vários corpos: de Joana a Tatiana, de Tatiana a Júlia, de Júlia a Antonia e Martim, do livro aos leitores. Por meio do romance, a história passa a ser escrita em muitos corpos. O trabalho do luto se desenvolve no compartilhamento dessa história em múltiplos corpos: a encenação do lugar incômodo por meio da escrita.
Além do processo de fratura sintática, a narrativa também nos joga em processos alucinatórios. Júlia, em sua prática cotidiana de exercício, entregava-se ao espaço e às sensações que a corrida proporciona a seu corpo e a sua mente, fundindo-se ela mesma à floresta e à cidade, organicamente. As sensações proporcionam prazer.
Eu sabia identificar o local porque na subida para a Vista Chinesa há um lugar emblemático, um paredão cheio de grafites, conhecido como o Muro do Alívio, por ser o ponto em que a estrada deixa de ser tão íngreme e a Vista Chinesa se avizinha. Mais um quilômetro e já se pode vislumbrá-la. Eu gostava de correr ao lado desse muro porque os grafites são muito coloridos, provocam uma ilusão ótica. As cores entram na cabeça, se misturam com o pensamento, a música, a endorfina. Um homem e uma mulher se beijando, um cogumelo gigante, uma árvore psicodélica, uma baleia, uma boca fumando um baseado. Quem desenhou aquilo devia estar muito louco: uma baleia no meio da floresta, uma baleia-azul, tudo muito colorido, vermelho, laranja, roxo, as cores bastante vivas, chamativas, ao contrário da floresta, que é só verde (Levy, 2021, p. 32).
Mas a aparição do homem anônimo transformou o prazer em dor e as sensações em interrupção do tempo:
…de repente o tempo virou tudo menos pressa. Estava suspenso e permaneceria assim, eu só não sabia até quando. Um trauma, palavra que eu ouviria da polícia dezenas de vezes, interrompe tudo ao seu redor, interrompe o próprio mundo, embaralha o tempo, a memória, e você é arrastada para fora da paisagem (Levy, 2021, p. 19).
Tatiana escreve Júlia em paralelo à cidade do Rio de Janeiro. O trauma, que embaralha o tempo e joga o corpo-vítima para fora da paisagem, estende-se à cidade – e ao país – em seu processo de bancarrota nos anos seguintes ao estupro. Júlia, em um limite entre a loucura e a lucidez, se vê partilhando as angústias da cidade e do país, como se junto da interrupção de sua corrida também ocorresse a interrupção de um futuro promissor para ela e para a cidade maravilhosa: “pela primeira vez nem o Rio foi capaz de salvar o Rio, que foi enlouquecendo, enquanto eu também talvez tenha enlouquecido, ou esteja enlouquecendo, mas a minha loucura ninguém vê” (Levy, 2021, p. 26). Em um bloco de fluxo de consciência, a narrativa segue por três páginas em um único fôlego, sem ponto final, com o relato de Júlia misturando-se às vozes de muitas pessoas que falavam sobre Júlia e a gravidez dos gêmeos. Nessa sequência do primeiro capítulo, mergulhamos mais uma vez na angústia do corpo de Júlia, mas agora do corpo-mãe de Júlia:
as pessoas me olham e pensam, nossa, que corpo inteiro, elas já nem se lembram do acontecimento ou, quando se lembram, põem numa balança e dizem, mas ela teve tudo depois, casou, pariu, é ótima mãe, mora numa casa linda e é linda, olhem esse corpo, nem parece que foi dilacerado, partido, fragmentado, nem parece que um dia essa mulher esteve em frangalhos, ninguém vê o que estou pensando, ninguém sabe que estou ficando louca (Levy, 2021, p. 27).
A narrativa do horror é a narrativa da falta ou do excesso, porque a violação de um corpo é a imposição do desequilíbrio, da ruptura, da fragmentação. A violação sexual é a interrupção abrupta de um fluxo. A violação sexual rompe o corpo.
A filósofa italiana Silvia Federici afirma que a tomada dos corpos das mulheres, com a ascensão do capitalismo, se dá para “apaziguar” as tensões dos homens na sociedade opressora do capitalismo, consolidando, assim, a instrumentalização do estupro.
Somos estupradas, tanto em nossa cama quanto na rua, precisamente porque fomos configuradas para ser as provedoras da satisfação sexual, as válvulas de escape para tudo o que dá errado na vida dos homens, e os homens têm sido sempre autorizados a voltar seu ódio contra nós se não estivermos à altura do papel, particularmente quando nos recusamos a executá-lo (Federici, 2019, p. 57).
A correlação na narrativa entre a violação do corpo de Júlia e a bancarrota da cidade é uma chamada à consciência para o modelo de exploração que orienta a sociedade: colonial e patriarcal. A filósofa argentina María Lugones acreditava que a “missão civilizatória” é um eufemismo para o acesso brutal aos corpos. Segundo ela, a colonização efetuou, de modo pejorativo, uma associação entre os corpos subalternizados e a natureza. Na narrativa-livro, a floresta, a cidade e a mulher são violadas pelo homem anônimo, que se apropria do território saqueando-o, destruindo-o, colonizando-o.
Em livro Memórias da minha inexistência (2020), partindo das observações de David J. Morris – ex-fuzileiro naval e autor de um livro sobre transtorno do estresse pós-traumático – de que o TEPT é muito mais comum em sobreviventes de estupro do que em veteranos de guerra – “pense nisto: ser estuprada é quatro vezes mais perturbador, do ponto de vista psicológico, do que ir para a guerra e levar um tiro ou uma explosão de granada” (Solnit, 2021, p. 58) –, a escritora americana Rebecca Solnit analisa, com certa desconfiança, as narrativas sobre violência de gênero, principalmente as midiáticas:
Em geral, quando as pessoas escrevem sobre a violência de gênero, descrevem o trauma como causado por um evento ou um relacionamento horrível e excepcional, como se alguém de repente levasse um tombo e caísse no mar. Mas e se você estiver nadando nesse mar durante a vida toda, sem terra firme à vista? (Solnit, 2021, p. 59).
Segundo a escritora, viver como uma mulher na sociedade é como nadar em um mar de instabilidade e perigos iminentes, na medida em que estamos constantemente à deriva, vulneráveis a todo tipo de violência contra nossos corpos. Ser mulher é ter um corpo e não poder se esquecer disso, uma vez que sempre à vista e à cobiça alheias (ainda que o alheio também, muitas vezes, possa ser íntimo, próximo).
2. O grito da reapropriação
Socorro tô num mato sem cachorro ou eu mato ou eu morro e ninguém vai me julgar E foda-se se me rasgar a roupa te arranco o pau com a boca e ainda dou pra tu chupar Pra ver como é severo o teu veneno Eu faço do mundo pequeno E Deus permita me vingar
“P.U.T.A.”, Mulamba
“Gritemos. Um grupo de luta, de indagação: o que é que a gente faz com tanta informação sobre a violência praticada contra mulheres? (…) As informações por si só já eram um susto. O que restava era gritar” (Aquino, 2021). A invocação ao grito é também uma urgência pela interrupção do silenciamento que vitimiza e cala os corpos femininos violentados. Gritar é, ao mesmo tempo, expor-se e impor-se diante da brutalidade direcionada às mulheres em uma sociedade patriarcal, capitalista e misógina. Lívia, assim como Tatiana, interrompe o silenciamento de sótão para atravessar o luto cotidiano de ser um corpo-alvo em uma sociedade falocêntrica.
Em Teoria King Kong, Virginie Despentes também grita e relata histórias de estupros (inclusive o próprio), deslocando-se do lugar de vítima para o lugar dona das escolhas, desobrigada de produzir sedução masculina:
Escrevo daqui como uma mulher inapta a atrair a atenção masculina, a satisfazer o desejo masculino e a me contentar com um lugar à sombra. É daqui que escrevo, como uma mulher não sedutora, mas ambiciosa, atraída pelo dinheiro que ganho sozinha, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela cidade mais do que pelo campo, sempre excitada pelas experiências e incapaz de me satisfazer apenas com a descrição que me fazem delas. Eu não me importo de parecer dura com os homens que não me fazem sonhar (Despentes, 2016, p. 9).
Com esse movimento, Despentes promove uma escrita (e uma vida) calcada na resistência a uma tradição narrativa falocêntrica despreocupada com as consequências das violências contra os corpos femininos. Ao retirar o estupro (e a continuação da vida após a violência) do lugar da vítima eternamente traumatizada, Despentes rompe a barreira do silêncio e derruba o confinamento “de sótão” a que as mulheres-vítimas deveriam se submeter diante do crime: “A ferida de uma guerra que se trava no silêncio e na obscuridade” (Despentes, 2016, p. 31). Falar (e escrever) sobre a violência perpetrada no corpo torna-se um escape para a sobrevivência deste corpo.
Caminhando nessa mesma direção do escape, no fabuloso Potência feminista, a socióloga argentina Verónica Gago propõe uma conexão entre as violências a partir da perspectiva compartilhada, específica e expansiva, crítica e que enlaça experiências. Segundo ela, quando não perdemos de vista a singularidade dessas violências, podemos “produzir uma linguagem que vai além de catalogar as mulheres como vítimas” (Gago, 2020, p.79). Tatiana Salem Levy, buscando imaginar o inimaginável, retira o trauma de seu lugar de irrepresentabilidade, dessacralizando-o por meio de uma linguagem ativa na produção de uma máquina de justiça (Gago, 2020) que torna a imaginação uma política de escrita promotora da transformação do corpo-vítima em um corpo-vívido. Como recurso criativo, Tatiana se ancora no sexo, na linguagem crua do ato sexual, que é, ao mesmo tempo, início e fim do luto. O sexo foi o trauma, mas também foi a cura.
Estávamos muito excitados, o pau dele na minha boceta, a minha boceta no pau dele, os nomes se colocando às coisas, um alívio junto com o tesão, o alívio dando tesão, o tesão dando alívio, só erguíamos as máscaras de vez em quando, para nos beijarmos, mas um de vez em quando que se repetiu várias vezes, longo o tempo que ficamos ali, fazendo sexo na cabana, de quatro, deitados, sentados, de lado, as mãos dele sobre o meu corpo, as minhas sobre o corpo dele, o hálito bom da boca dele, os gemidos, as máscaras, a porta da varanda aberta, a brisa (Levy, 2021, p.72).
Júlia inicia seu processo de luta e de cura por meio do sexo consentido e desejado com outro homem, este sim escolhido por ela, a convite dela. Permitir-se o tesão é uma contestação ao boicote imposto pela violência, que impõe o silêncio e a morte do desejo. A personagem, ao entregar-se ao sexo prazeroso e consentido, escreve outra história em seu corpo, em outro cenário, com outro coadjuvante, todos presentes por sua livre escolha, a seu convite. Gozar o sexo é uma ferramenta de justiça contra a violência perpetrada em seu corpo. “Um pau numa boceta é outra coisa”: “o pau dele na minha boceta, a minha boceta no pau dele, os nomes se colocando às coisas, um alívio junto com o tesão, o alívio dando tesão, o tesão dando alívio” (Levy, p.79 e 72).
Em O inventário das coisas ausentes, Carola Saavedra revela fragmentos dos diários escritos pela personagem Nina, desaparecida ainda jovem na ditadura chilena. O narrador do texto nos lê os diários de Nina e nos invoca a angústia do desaparecimento repentino de uma jovem estudante universitária de 23 anos. O corpo de Nina, uma espécie de ausência-presença, revela-se em sua escrita, como uma continuação natural de sua constituição física. Estar com os diários de Nina é também sentir seu corpo próximo.
Meu corpo se revela onde terminam as minhas frases, uma interrogação, um ponto final, até mesmo reticências, basta um pequeno silêncio e ele perde seus contornos, restando apenas essa massa moldável, o movimento. Células, tecidos, órgãos que não chegam a se formar. Não é fácil ter um corpo, não é algo necessariamente natural, para isso é preciso coragem. Faço alguns ensaios. Abro um pote de creme, passo pelas pernas, coxas, braços, o creme promete manter a pele brilhante e elástica. Uma pele que não se desfaça, que mantenha órgãos e vísceras ordenados naquele espaço vazio, ou o que menos dê limites a esse espaço. O corpo é uma rede que nos envolve (Saavedra, 2014, p. 46).
“Meu corpo se revela onde terminam as minhas frases”. De modo orgânico, sabemos o corpo de Nina, quando acompanhamos suas linhas escritas, em uma espécie de rede, rizoma, que interconecta na complexidade do que é e se revela sobre a personagem. “O corpo é uma rede que nos envolve”. O corpo e as palavras de Nina formam uma aliança que revela e esconde ao mesmo tempo sua história. A escrita passa pelo corpo porque começa no corpo. Júlia afirma mais de uma vez em seu relato-carta que a violência, apesar de não pronunciada, está escrita em seu corpo. E é também no corpo que ela escreve a história que deseja para si: o sexo com prazer e consentimento, a gravidez, a corrida. Assim como a escrita do trauma começa e termina no corpo, a experiência de atravessamento do luto começa e termina na floresta.
Quando achei que o efeito do peiote fosse passar, senti a terra subindo embaixo dos meus pés, as raízes das árvores se esticando, dobrando, até alcançarem as minhas pernas, me puxando para baixo, me enterrando aos poucos, era como se meu corpo fosse se desintegrar na mata e de repente me faltou o ar, as raízes se enroscavam no meu pescoço, eu não conseguia respirar. Levei as mãos até o colar da minha avó, talvez ele fosse me apertar, tentei tirá-lo sem sucesso. Só voltei a respirar quando senti a mão da mulher me puxando, quando ouvi a sua voz, vem, vamos andar, a sua voz doce e terna que me acalmava, que me fazia ir da angústia para a sensação de paz.
A noite passou entre os delírios que iam e vinham, alegria e tristeza. O regresso ao meu estado normal foi tranquilo, claro e suave. Os homens deixaram de parecer monstros, e as mulheres não me traziam nenhum conforto em especial.
(…) Tive então a certeza de que precisava retornar ao lugar de onde havíamos partido, ao ponto da mata onde aquela sensação tinha me paralisado.
(…) Agora, ao contar essa história para vocês, me dou conta de que o luto é assim: a gente enterra na floresta, enterra na análise, enterra no trabalho, enterra na vida que segue, mas há sempre uma parte que volta (Levy, 2021, p. 9-10, grifo meu).
A experiência alucinatória do estupro narrado na primeira parte da carta-livro de Júlia é repetida em uma floresta na cidade de Tulum, no México, em um ritual de mascação de peiote. México, assim como o Brasil, um país marcado pelas violências contra os corpos femininos, foi o lugar escolhido por Júlia para ir em busca de amenizar o aperto que a consumia diariamente (Levy, 2021, p. 47). O país foi a escolha da personagem por conta das histórias que sua avó, já falecida, lhe contava sobre as viagens que fez para lá. E é exatamente ao enterrar o colar que sua avó lhe deu de presente que Júlia enterra também o aperto que a paralisou em ambas as florestas: a do Rio e a de Tulum. O luto pela ausência da avó, o luto pela violência sofrida no corpo e o luto da alucinação reveladora do ritual com o peiote.
Assim como a vida de Júlia, a cidade maravilhosa é atravessada por lacerações de fenômenos em seu corpo, do asfalto à floresta, derivadas das ações do sujeito masculino patriarcal capitalista que torna a vivência no território uma experiência permeada de fascínio e caos. Historicamente, a cidade do Rio de Janeiro, um dia capital do império e do país, sofre com o desmatamento e as consequências dessa erosão imposta à terra por sistemas econômicos insalubres e insustentáveis. A filósofa ecofeminista Karen Warren (1996) identifica que há interconexões entre a dominação das mulheres e a dominação da natureza (não humanos, plantas e ecossistemas). A floresta, única testemunha da violência sofrida por Júlia, também é parte de um sistema exploratório que a violenta desde o início da colonização masculina, branca e europeia.
e de repente penso que de dentro da terra surgirão as violências sofridas naquela terra, as violências sofridas por aquela terra; como a água, a lama e as árvores, deslizarão também as dores, os ossos, os pedaços de carne ali arrancados, arrastando as histórias, a memória, enquanto sirenes de bombeiro invadem meu ouvido, e digo a mim mesma que a salvação virá da terra ou não virá, a floresta invadindo e devorando a cidade, a mata comendo o asfalto, a salvação para o Rio é, sempre foi, a sua própria morte (Levy, 2021, p. 106).
A salvação do Rio, assim como a de Júlia, passa pelo luto, que é morte e, também, renascimento pela terra, reflorestamento, grito.
* Glaucia Moreira Secco é aluna do doutorado em Literatura Comparada do PPGCL/UFRJ, membra no Laboratório de Teorias e Práticas Feministas (PACC/UFRJ) e professora adjunta do Colégio Pedro II, RJ.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
AQUINO, Lívia. Parem de nos matar!. [Entrevista concedida a] Luciana Veras. Continente, CEPE Editora, ano XXI, n.247, p. 28-41, julho de 2021.
DELEUZE, Gilles; Félix, GUATTARI. Mil platôs. V.1. São Paulo: Editora 34, 2011.
DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo, n-1 edições, 2016.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.
FIGUEIREDO, Eurídice. Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk, 2020.
GAGO, Verónica. Potência feminista. São Paulo: Elefante, 2020.
LEVY, Tatiana S. Vista chinesa. São Paulo: Todavia, 2021.
“Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
A minha alucinação
É suportar o dia a dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais”
(Belchior, “Alucinação”)
Este artigo pretende construir um diálogo entre dois eventos realizados pelo PACC – Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – no ano de 2021, em plena pandemia. O webinário “Literatura e Feminismo”, coordenado pela professora Beatriz Resende, com intenção de trazer para o debate a literatura produzida por mulheres hoje, e o projeto “Livres Livros”, nascido do Coletivo Mulheres nas Quebradas ligado à Universidade das Quebradas coordenado pela professora Heloisa Buarque de Hollanda, também coordenadora do PACC, que nasceu da necessidade apresentada pelas mulheres periféricas em partilhar suas histórias.
Diante do cenário pandêmico, do impedimento de encontros presenciais, diversas mulheres tiveram a possibilidade, através desses eventos, de se manifestarem mostrando a capacidade de organização e a necessidade de ação no horizonte do feminismo. Por um lado, o webinário apresentou a competência e o talento de diversas escritoras e algumas ativistas multifacetadas, como María Galindo, que utilizarei para a composição deste artigo. Por outro, o “Livres Livros” através das oficinas de escrita e leitura promoveu o entrecruzamento da literatura e vivências que ultrapassam as fronteiras da universidade. Os dois movimentos apresentam a urgência da discussão de novas epistemologias exigidas neste momento histórico pelos estudos culturais; em especial, os ligados às questões como raça, etnicidade, gênero e cultura popular.
A literatura contemporânea tem incorporado modos heterogêneos de ser na cena cultural global, como estratégias para repensar o cânone literário. As formulações feministas, por exemplo, propõem uma nova concepção para a produção do conhecimento. Isso revela tanto o processo artificial de construção de unidades conceituais, desconstruindo sínteses das unidades e das identidades tornadas naturais, quanto postula a noção de que o discurso não é somente um reflexo de uma suposta base material, mas produtor e constituidor da materialidade, em um movimento dialético.
Sendo o cânone masculino, branco, heterossexual, fica clara a necessidade da problematização dos sistemas de representação e o compromisso feminista em expor criticamente o sistema de poder que legitima certas representações em detrimento de outras. As autoras contemporâneas precisam enfrentar avaliações canônicas para avançar nas estruturas do conhecimento e esse é um dos pontos de encontro entre esses dois projetos. A legitimidade vem dos pares para quem está na universidade, mas também é dessa forma que funciona para quem está fora do que consideramos o centro do saber. A lógica que rege a aprovação ou valida o que é considerado conhecimento ou não é uma lógica de disputa, uma lógica patriarcal. É contra essa forma de fazer, de saber e de conhecer que lutamos.
É necessário compreender que reivindicações de conhecimento são sempre reivindicações de verdade e durante muito tempo (e talvez até agora), nós, mulheres e corpos dissidentes, fomos desautorizadas a interpretar a ciência a partir da nossa perspectiva e essa desautorização não inibe somente coalizões epistêmicas críticas, inibe também nossa capacidade de interpretar o mundo e de descrevê-lo da forma como o entendemos. Portanto, é preciso, segundo Linda Alcoff (2016), mudar a “geografia da razão” e, em diálogo com Heloisa Buarque de Hollanda (1994), podemos dizer que esse é o momento de sairmos da “crítica do desagravo” para a “luta pelo poder interpretativo”.
Essa luta pelo poder interpretativo ficou mais clara para as mulheres da minha geração, a partir das jornadas de junho de 2013, quando utilizamos nossos corpos para reivindicações que já não estavam na ordem do dia de quem nos representava. No livro Explosão Feminista (2019), Heloisa Buarque de Hollanda faz uma análise de como seria impossível para ela escrever sozinha aquele livro, já que as demandas por representação estavam fora de questão. Era preciso dar espaço àquilo que as ruas diziam por meio dos corpos corajosos, em especial os das mulheres, servindo como plataformas e dispositivos para suas próprias reivindicações. Ou seja, para além de criticar severamente o sistema em que estamos inseridas, passamos a disputar a interpretação de mundo desse sistema e, por meio dessa disputa, as demonstrações de nossas interpretações aparecem em diversas instâncias da vida vivida, neste momento, dentro e fora das telas por causa da pandemia de Covid-19.
O Webinário “Literatura e Feminismo” foi um importante espaço de interpretação desse mundo em que vivemos. Ele teve início com a participação polêmica de María Galindo, ativista feminista, argentina, anarquista e uma das fundadoras do Coletivo “Mulheres Creando”. Inicialmente, Galindo questiona o formato do evento, não gosta da lógica de webinários, promovidos na tentativa de nos mantermos ativas. Sua crítica é contundente e, ao mesmo tempo, contraditória. Ela se preocupa objetivamente com a ausência dos corpos e com uma outra subjetividade que vai emergir da normalidade com que temos tratado esses eventos:
(…) são eventos sem corpo e que, de alguma forma, invisibilizam o público e ao mesmo tempo são eventos que, muitas vezes, estão funcionando como algo que encobre, uma espécie de biombo, um telão de teatro que está servindo para camuflar o tempo em que estamos vivendo, como se esse fosse um tempo ótimo quando, na verdade, a gente está vivendo um tempo profundamente difícil e conflitante e que talvez precisasse da nossa atuação de uma outra forma, mas enfim estou aqui (Galindo, 2021).
Apesar de concordar, em parte, com a crítica trazida pela ativista, penso em outros aspectos a partir da ausência dos corpos, como por exemplo, as distâncias geográficas que impedem encontros presenciais. Existe alguma materialidade promovida através das telas, afinal, a ausência do corpo físico e do encontro em espaços físicos não tira a condição de, também nos espaços virtuais, acontecerem encontros nos quais o corpo físico se faz presente a partir de outros sentidos que participam ativamente do processo, tais como a visão, a audição, a fala e, incluo aqui a expressão escrita, sem filtros, que aparece nas intervenções feitas pelo público/plateia/participantes nos espaços disponíveis para tanto. A realidade virtual traz, em potência, a participação de diferentes corpos distantes geograficamente e a possibilidade de manifestação sem censura, sem regramentos rígidos, com incentivo à criatividade e questionamentos que, provavelmente, de forma presencial poderiam ser cerceados.
Nos encontros virtuais da oficina Livres Livros, vivenciamos a questão mencionada, ou seja, o oposto da crítica apresentada por Galindo. No final da oficina, no primeiro semestre, ouvimos das participantes que, se a oficina fosse em outro tempo (tempos não pandêmicos), elas não poderiam participar. Algumas questões ligadas a essa constatação me fizeram pensar que não seria somente a distância geográfica a nos separar, já que tínhamos mulheres de Norte a Sul do país, mas também a distância intelectual que inviabilizaria a participação plena daquelas que não se sentem à vontade de participarem presencialmente de espaços onde exista alguma autoridade ou forma hierárquica, ou ainda, um determinado modo de agir com o qual não são socializadas, e, por fim, a falta de recursos financeiros que vão desde pegar mais uma condução até ter que pagar alguém para ficar com os filhos e filhas, uma vez que nossos espaços dentro das universidades, em geral, não são pensados para mulheres que precisam caminhar vida afora com seus rebentos. Fato é que o Coletivo Mulheres nas Quebradas, nesse tempo de pandemia, reuniu mulheres de diversas localidades, raça/etnia e classe social para que juntas dessem conta de suas demandas. Além disso, outros coletivos nasceram nesse tempo de isolamento social, momento em que a rede mundial de computadores ganhou status de local de encontro e troca de experiências.
Outro ponto de contato que percebo está na utilização das linguagens artísticas. As diferentes formas de leitura e de interpretação dos textos e depois realização de atividades feitas na oficina Livres Livros abarcava o potencial criativo das participantes, tivemos produção de poesia, prosa, letras de música, desenhos, uma série de representações artísticas. No webinário, María Galindo fala das linguagens utilizadas pelo movimento do qual faz parte, uma espécie de combinação entre as histórias produzidas pela comunidade e uma forte conexão com a sociedade. Galindo aproveitou para ressaltar seu especial apreço pelo grafite e o papel que ele cumpre no movimento de interpretação do mundo feito pelas mulheres na Bolívia:
(…) o que podemos sempre fazer é comprar um spray e sair escrevendo nos muros. Eu gosto muito quando a poeta negra diz que a poesia é barata porque precisa de um lápis e um papel, eu acho isso fascinante! Então o grafite que a gente faz é um livro teórico sobre feminismo boliviano escrito de maneira gratuita nos muros das ruas. No início da pandemia foi incrível, na Bolívia a gente tinha uma militarização nas ruas, um regime fascista como o do Bolsonaro e a pandemia foi usada para irradiar medo, a gente utilizou o grafite para desmontar o medo, desmontar o fascismo. O grafite nas ruas era a diferença entre um fique em casa e um fique calado, que não é a mesma coisa (Galindo, 2021).
Aqui no Brasil nossa resposta à pandemia não foi tão grande quanto nosso engajamento nas redes. Ficamos em casa, nos isolamos, tivemos medo. Estatisticamente, nós mulheres sofremos com a sobrecarga dos serviços domésticos, com, ainda, o aumento da violência doméstica, o aumento do feminicídio. O fique em casa aqui foi um remédio para a pandemia e, um veneno para uma sociedade que sofre com profundas desigualdades sociais. O incentivo à violência, discurso de ódio, preconceituoso e misógino por parte do chefe da nação junto com o abismo social em que estamos inseridos serviu e vem servindo como um autorizo para o horror que acompanhamos diariamente nos noticiários.
A ativista já havia manifestado sua indignação diante da forma como as autoridades trataram a pandemia desde o seu início. Em uma publicação, em 2020, chamada Sopa de Wuhan, ela apostava que o vírus não seria mais letal que a política de extermínio dos pobres, com destaque para os corpos dissidentes e das mulheres que vem acontecendo em toda a América Latina. Situação que vivenciamos no Brasil, nas periferias, comunidades e favelas cotidianamente. Impossível deixar de registrar que a primeira morte em decorrência do novo coronavírus, naquele momento ainda pouco conhecido, mas que já clamava pelo isolamento social para sua não propagação, foi de uma empregada doméstica que não podia se valer do isolamento social e contraiu o vírus em seu local de trabalho.
Mais uma vez, percebo que o questionamento em torno dos motivos que ainda nos levam a perguntar quem é a pessoa que escreve, quem é o intelectual, quem é o criador, conforme fala Galindo no webinário: quem está autorizado “a nomear os fatos, de dar um corpo teórico a eles e as lutas?” (Galindo, 2021) é muito próximo do questionamento feito pelas participantes da oficina Livres Livros. O “fique em casa” aqui no Brasil criou a possibilidade do encontro neste projeto através da internet, ou seja, isoladas, mas não caladas intelectualmente. O encontro promovido pelo coletivo Mulheres nas Quebradas possibilitou através do trabalho de leitura e escrita, a conscientização, reconhecimento e pertencimento. Além de ampliação de repertório, as mulheres demonstraram sua capacidade crítica de interpretação do mundo e escreveram suas próprias histórias. Histórias que se entrelaçaram com os contos de Conceição Evaristo.
Tanto Galindo quanto as quebradeiras repensam em seus atos de fala e suas ações o papel da intelectualidade, da academia e se questionam por qual motivo insistimos em atribuir a universidade o monopólio da produção teórica e escrita, enquanto os espaços de ativismos são tratados, muitas vezes, como espaços de mera reprodução de ideias e ações, e não de desenvolvimento de pensamentos.
Academia e ativismo seriam vistos como locais distintos de produção do conhecimento, deslocando a produção intelectual do já consagrado espaço acadêmico, que se sobrepõe aos espaços criativos de ação. Quebrar a noção hierárquica entre a dimensão da produção intelectual acadêmica e o ativismo é fundamental para abrirmos espaços que não dividam nossas produções, mas sim nos aproximem como produtoras de conhecimento. Para Galindo, “o espaço da luta social é um espaço onde permanentemente são construídos filosofias e pensamentos, um lugar onde pensamos o que fazer, onde sonhamos e esses sonhos são realizados e devem ser escritos” (Galindo, 2021).
Com um exemplo acerca do “objeto de estudo”, Galindo elucida a necessidade de distanciamento acadêmico acerca daquilo que se pretende estudar, interpelar e analisar:
Seus objetos de estudos se mantêm à distância, em um deslocamento em que através da terceira pessoa se enxerga ou se constitui um objeto de estudo a ser interpretado, pensado, analisado pelo acadêmico, nomeado pelo acadêmico, escrito e descrito pelo escritor, pela escritora (Galindo, 2021).
Na oficina Livres Livros, autorizamos e fomos autorizadas por nós mesmas a produzir o conhecimento que nos interessava e a compartilhá-lo. A noção de hierarquização imposta pela academia que se sobrepõe aos espaços criativos de ação ou de ativismo, conforme já citado, parece ter sido rasurada pela capacidade de encontro entre intelectuais consagradas academicamente como Heloisa Buarque de Hollanda e outras tantas intelectuais orgânicas e ativistas. A experiência de quebrar a hierarquia acadêmica e valorizar o ativismo como um saber não aconteceu de forma simples, já que não é fácil desmontar nossa visão de mundo acerca das estruturas que estamos submetidas.
Gostaria de destacar o fato de que a produção do conhecimento científico/acadêmico tem sido historicamente considerada como um domínio ‘reservado’ aos homens, ainda que isso não exclua, necessariamente, as mulheres. Essa suposta não exclusão, que comprova a regra de que todos têm acesso, explicita que as resistências existentes à nossa presença no campo científico são ainda inquietantes. A existência de um sujeito do conhecimento universal neutro tem sido questionada por projetos como esse e falas públicas como a da Galindo no webinário.
A apropriação ou transformação dos problemas reais vivenciados pelas pessoas em objetos de estudo, nos leva a questionar a escrita em terceira pessoa, que transforma esses sujeitos em objeto de estudo; para Galindo, esse objeto de estudo não deve ser considerado um agente passivo, mas sim uma potência. Esse suposto objeto de estudo é também um produtor de saber, de conhecimento e pode falar por si próprio como vemos no Livres Livros, com a escrita em primeira pessoa que leva em conta o sujeito que vive, fala e produz conhecimento de forma ativa, reivindicando a “escrita como um direito da palavra em primeira pessoa, mas também uma potência poética e filosófica da palavra em primeira pessoa” (Galindo, 2021).
A oficina Livre Livros nos mostrou, na prática, o que María Galindo apontou em sua fala. Ela não se conforma com o lugar de matéria prima a ser extraída pela academia, pelo contrário, reivindica, sim, o ethos de ser matéria prima, mas não produto para extração, não informante para estudos através de olhares que não do sujeito em si. Ler, escrever e ser capaz de produzir seu próprio material de veiculação de ideias, falar de si através de seu repertório, segundo Galindo, não é uma condição narcísica, mas um ato importante de explicitação das próprias experiências e da capacidade de falar delas e sobre elas para a construção de outras possibilidades de mundo, para a construção de futuro, exercitar a criatividade para buscar saídas para o bem viver.
(…) somos poesia, somos corpos, somos palavra em primeira pessoa e é esse lugar que a gente reivindica tantas e tantas vezes. A potência da palavra em primeira pessoa, a potência da construção do conhecimento em primeira pessoa porque essa é a única maneira, a única porta, a única janela através da qual a gente pode quebrar o monopólio racista, classista, sexista, histórico que pesa sobre a escrita, sobre o livro impresso, sobre a teoria construída (Galindo, 2021).
Mais um ponto importante nesse diálogo é a concepção de testemunho como uma potência de escrita do sujeito que faz, pensa e age, o objeto de estudo tendo agência da sua fala fora do âmbito acadêmico, a mim, parece, uma experiência que vivenciamos nas oficinas. Diferente do que nos traz Galindo quando critica a condição de testemunho utilizada por investigações outras, tais como as da antropologia, que colhe (extrai) os saberes e os transforma, em uma tentativa de interpretar ou dar inteligibilidade a partir do lugar de observador (mesmo que participante) e construtor de um conhecimento que não vive ou que viveu de forma extraordinária para produzir determinado estudo. Sua crítica está ligada à nulidade de poder do objeto.
O objeto de pesquisa é sempre aquele que não tem poder. Eu quero ver uma etnografia sobre a classe média brasileira que não seja uma novela da Globo, eu quero ver uma etnografia dos problemas do parlamento, dos problemas dos deputados, mas o que vemos são etnografias dos gays, putas, sem poder de fala (Galindo, 2021).
O caso de Moema Viezzer, escritora brasileira, autora de um livro em que fala sobre e através de testemunho de Domitila Chungara, elucida, para mim, a crítica que Galindo traz acerca do assunto. Domitila foi uma mulher boliviana que viveu nos anos setenta no garimpo na Bolívia. O livro Se me deixam falar é, segundo Galindo, muito bonito, traduzido para mais de dez línguas e faz parte do acervo dos livros contemporâneos na Bolívia. Porém, Domitila Chungara morreu faz poucos anos muito pobre, sem ter o dinheiro suficiente para acessar os tratamentos que precisava. E daí vem outra provocação absolutamente necessária, que não está ligada somente à autoridade de quem pode escrever ou de quem é o intelectual, mas está intimamente ligada à indústria cultural, aos modelos que utilizamos para a venda dos saberes produzidos academicamente ou não.
Em nossa oficina abordamos contos de Conceição Evaristo, reconhecida como intelectual há pouquíssimo tempo, mas podemos buscar outros exemplos para dizer que no Brasil também padecemos do mesmo mal que assolou Domitila Chungara. Carolina Maria de Jesus morreu pobre, sem reconhecimento da sua obra que foi traduzida para aproximadamente 14 línguas e hoje, apesar de todo o resgate da vida e obra, sua família padece do oportunismo promovido pela indústria cultural.
Levantando mais algumas questões, as perguntas feitas por Galindo acerca de Domitila podem ser estendidas à Carolina e a tantas outras escritoras das quais nem o nome sabemos. Causa um certo desconforto pensar, como intelectuais produtores de saber, o que seria mais justo nesse jogo da produção e validação, mas esse incômodo é capaz de nos tirar da zona de conforto para que pensemos juntos em novas formas de construção dessas relações. Seguimos com Galindo (2021):
Então eu pergunto os direitos de autoria deste livro, onde eles ficaram? Onde foram parar? Onde estão? Eu respeito muito a autora, o ato que ela fez de recolher o testemunho e publicar esse relato, mas esse ato não deixa de ter todo esse conjunto de contradições que eu estou trazendo aqui para vocês entre autor ou autora e ativista como matéria prima, entre autor ou autora como mediador ou intermediário, intelectual que tem esse poder patriarcal, colonial de nomear e escrever e como a ativista é desinvestida ou destituída dessa potência da palavra em primeira pessoa.
A partir deste exemplo, é possível observar o testemunho como forma de extração do conhecimento que interessa academicamente e, por isso, é autorizada e validada socialmente. Caso a própria Domitila contasse sua história, dificilmente, teríamos condições de acessá-la por questões ligadas à validação da sua escrita, à publicação, à distribuição, entre outras, mas sendo uma autora que está validada academicamente por titulações ou outras relações de poder temos a chance de conhecer a história de vida e luta de Domitila, mesmo que esse conhecimento não tenha garantido a ela (objeto de estudo) direitos a ganhos materiais. Parece mesmo um pouco injusto. Afinal, nessa obra, está a sua própria vivência, experiência, memória e história. Neste ponto fica clara a necessidade da retomada da discussão pós-colonial proposta por Gayatri Spivak (2010) sobre a condição de fala do subalterno. Na leitura de Galindo (2021),
o problema central não está na capacidade do subalterno falar, de fazer poesia, teoria, propostas, mas sim a quantidade de filtros hierárquicos instalados desde a academia até o mundo editorial para silenciar o subalterno, fazendo com que esse silenciamento pareça partir de um sujeito incapaz de falar.
E se o problema central está nos filtros hierárquicos, na vida de Galindo essa hierarquia operou de forma muito violenta: ela lecionava em três cursos em universidades públicas (segundo a própria, nunca lecionaria em universidades privadas), foi expulsa dos três cursos porque sua postura enquanto professora transgredia as normas propostas pelas universidades, porque seu pensamento feminista incomodava.
Partindo da premissa de que a universidade normatiza ou expulsa a diferença, por meio do silenciamento “daquele que não sabe”, ou seja, dos estudantes, Galindo (2021) não propõe saídas individuais para a resolução desta questão:
(…) eu não acredito que essas questões possam ser resolvidas em sala de aula. Eu tentei resolver isso em sala de aula e acabei ficando de fora da universidade. Mas acredito que há elementos para trabalharmos, em primeiro, a bibliografia e a metodologia porque toda essa construção das universidades latino-americanas, que eu conheço e que são muitas, trabalham com bibliografias eurocêntricas, nas ciências sociais, humanas e em departamentos de estudos de gênero, que não me convencem de jeito nenhum, porque mesmo ali não lemos outras autoras, não discutem outras autoras, não convidam outras autoras. Respeito muito Judith Butler, por exemplo, mas ela já veio em nosso continente dez milhões de vezes porque a gente sente a obrigação de lê-la, mas não há um intercâmbio, não há, por exemplo, uma pesquisa sobre o pluralismo de gênero pré-colonial em nosso continente.
Ela observa também que assim como no Brasil, a partir dos governos populares e democráticos, o perfil da universidade na Bolívia vem se modificando. Muito mais na Bolívia do que aqui no Brasil, a universidade pública é um lugar que foi tomado pelos setores populares, incluindo as mulheres. Cinquenta e um por cento da população universitária nas universidades públicas bolivianas é composta por um contingente de mulheres, diz Galindo (2021).
Quando eu dava minhas aulas, eu entrava na sala de aula e perguntava quantas de vocês são filhas de mulheres profissionais? Nenhuma, era a resposta. Quantas são filhas de mulheres analfabetas? E tinha uma porcentagem grande. Quantas de vocês são filhas de mulheres que não chegaram ao ensino médio? Eram todas!
Então, apesar da mudança no perfil dos estudantes e das estudantes, tanto no Brasil quanto na Bolívia, ainda enfrentamos uma questão central para o avanço em termos de produção e validação do conhecimento produzido por nós. As universidades do centro do sistema, de forma extrativista compram e absorvem os conhecimentos produzidos por nós, inclusive nos movimentos sociais ou não acadêmicos de forma geral, mas não têm nenhum compromisso em devolver esse conhecimento, essa relação não é de troca. Na verdade, é uma relação de alienação daquele que produziu o conhecimento que já não se identifica como seu produtor, mas sim como consumidor do que é produzido, supostamente, fora da América Latina. Para deixar mais clara essa ideia:
Eu tenho um livro, com um pequeno capítulo sobre o pluralismo de gênero na cultura Aymara, mas ele não tem chance de disputar o mercado em igualdade de condições com quaisquer teóricas de gênero norte-americanas ou europeias. Isso tem a ver com o colonialismo no pensamento, com uma forma de pensar construída, isso não é um problema meu, só meu. Faz tempo que a gente resolveu publicar as nossas produções, nós nos vendemos, nós publicamos sem apoio institucional nenhum (Galindo, 2021).
Isso tudo não significa deixar de acreditar no poder que as universidades, enquanto instituições públicas, têm para a mudança social, como o novo perfil dos estudantes demonstra. Mas não basta ocupar fisicamente com outros corpos, é preciso um rompimento cognitivo com a colonialidade do saber, não é mais possível que todas as ideias relevantes, importantes e canônicas estejam calcadas na produção do norte global. É fundamental
(…) um movimento descolonizador da universidade, mas esse movimento não vai se dar através das professoras, por melhores que elas sejam, quem vai fazer esse movimento são as estudantes como está acontecendo na Universidade Autônoma do México. Onde por exemplo, em humanidades elas pegaram o departamento por três meses e isso foi muito importante. Como estamos estudando o corpo na medicina, estamos estudando com manuais franceses do século XX?! Esses manuais da anatomia do corpo são centrados na anatomia do corpo masculino e falam dos corpos das mulheres por analogia ou diferença e, acabou por aí! (Galindo, 2021)
Galindo diz estar convencida de que precisamos superar teorias obsoletas e garantir que o horizonte da luta pelas modificações necessárias gire em torno de três matrizes teóricas filosóficas fundamentais:
(…) os feminismos, entendidos como despatriarcalização, as propostas de descolonização e toda a matriz de descolonização e, por último, a matriz em torno dos animalismos e os ecologismos. Eu estou convencida que essas são as matrizes que vão constituir os horizontes com os quais vamos pensar o futuro. Agora, para mim, pessoalmente, eu respeito a matriz da descolonização que é uma matriz transformadora, revolucionária e imprescindível, no entanto, jamais uso a categoria decolonial, apesar de me batizarem de feminista decolonial. Não uso essa categoria porque ninguém dos meus interlocutores entende o que isso significa. Eu trabalho em um contexto sócio-histórico que preciso e busco ser compreendida. E a palavra decolonial é uma palavra acadêmica para a academia. A palavra descolonização é mais compreensível quando eu penso a partir do conhecimento popular. Também, existe um fenômeno no interior na matriz da descolonização, existe um fenômeno acadêmico, uma espécie de retorno da academia norte-americana da teoria decolonial absorvida das lutas sociais processada filosoficamente e desenvolvida de uma maneira incompreensível, isso existe e, eu repudio isso. (…) repudio a construção dessas hierarquias, dessas epistemologias que não levam em consideração que o pensamento da descolonização é um pensamento subalterno, nascido do pessoal de baixo, então é preciso que se garanta a soberania do lugar que produziu esse pensamento (Galindo, 2021).
E, por fim, ela nos ajuda a refletir sobre os feminismos, sem negociação possível com o sistema neoliberal. Observa que a América Latina desenvolveu um conjunto de discursos em torno dos direitos das mulheres e problematiza o quanto de liberal caminha junto com esta pauta.
A única coisa que estão fazendo é a constituição de um discurso pseudofeminista que funciona como legitimador de uma ordem neoliberal que pretende capturar as mulheres como amortecedoras do custo do neoliberalismo, o típico discurso que retrata essa realidade é o discurso do empoderamento. De fato, nas relações sociais o poder é um problema, o problema é o poder mas, o poder não é uma questão política que é resolvida facilmente… eu tenho uma frase muito pequena, muito simples, sincrética, que diz: perante o poder você não se empodera, você se rebela! Todas as teorias de empoderamento que pretendem colocar o poder como algo que você vai adquirir por meio de uma série de habilidades, o que estão fazendo é construindo uma ficção neoliberal de manutenção do status quo. Eu, pessoalmente, acho que é necessário abandonar o projeto de direitos das mulheres porque ele foi sequestrado pelo neoliberalismo. Abandonar os discursos de empoderamento porque se fala de empoderamento para indígenas, populações negras, trabalhadoras sexuais, mulheres, mas não se fala de empoderamento ou desempoderamento de banqueiros, da polícia ou dos juízes que julgam causas sem terem ouvido ou entendido o que estão julgando (Galindo, 2021).
O feminismo apresentado por María Galindo no webinário “Literatura e Feminismo” está carregado de críticas ao modelo capitalista, produtivista, extrativista e propõe como uma das alternativas possíveis nos aproveitarmos das nossas supostas insuficiências. A crítica ao código patriarcal machista passa, necessariamente, pela construção de outras formas de viver. O sentimento de inadequação que toma conta das mulheres, que estão sempre atrás de um modelo a ser atingido, deve nos levar a construir outras bases materiais para uma outra sociedade, nos aproveitando desse lugar de inadequação como um lugar valioso, um lugar a ser explorado, reinventado.
O que eu quero dizer é que a gente tem que construir a sociedade das fracas, das defeituosas, das gagas, das pessoas sempre dispostas a se perguntarem: o que está acontecendo comigo? Eu não estou bem (…) esse sentimento de inadequação, de se sentir fora de lugar, isso é um lugar poético, histórico e potente que não podemos abandonar! (Galindo, 2021).
Não é possível que para nos colocarmos como sujeitas de autoridade dentro dessa estrutura precisemos apresentar validadores de conhecimentos, inclusive metodológicos que só vamos atingir depois de fazermos todo o percurso acadêmico. Para Galindo, as estudantes têm o direito de quebrarem as normas (normas inclusive que não são claras e muitas vezes com as quais não somos socializadas). Completar essa observação, na esteira do pensamento de Galindo, dizendo que as professoras também devem fazer esse movimento e ambas não podemos ser repreendidas por tentar buscar formas diferentes de construir o conhecimento.
Ainda precisamos nos perguntar quem diz quais são as referências fundamentais e mais: quais assuntos são “importantes” para o mundo? A função normativa da epistemologia diz respeito não apenas à questão de como o conhecimento é produzido, mas quem é autorizado a produzir, como a presunção de credibilidade é distribuída e como os objetos de investigação são delineados. O regramento vai além: ele normatiza como e de que forma o conhecimento deve ser produzido, como a credibilidade de quem produz é construída.
Voltamos às nossas indagações permanentes, um mundo de muitas perguntas e poucas respostas. Quem valida o conhecimento e a arte produzidos nas sociedades? Por que, muitas vezes, o conhecimento produzido atende às demandas relativas a uma determinada classe social? Qual seria o objeto artístico ideal? Por que os saberes e criações produzidas pelas mulheres são considerados menos relevantes? Por que a questão de gênero coloca em xeque a produção de conhecimento? A quem interessa que o conhecimento produzido academicamente seja hermético? Por que, em pleno século XXI, as mulheres ainda enfrentam dificuldades para que suas problemáticas sejam tratadas como questões sociais e não questões marginais?
A oficina “Livres Livros”, assim como o webinário “Literatura e Feminismos”, mobilizou um conjunto de mulheres acadêmicas e ativistas para tentar dar respostas a parte dessas questões. Acredito que juntas, sem medo da discussão e com muita criatividade, estamos caminhando para um lugar de saber mais amplo do que o que vivemos até agora!
* Drica Madeira é mulher, feminista, mãe de dois filhos e uma filha. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura na UFRJ com bolsa CAPES. Mestra em Direito e autora do livro: Lei Maria da Penha: entre a teoria e a prática (2019). E-mail: madeiracoutinho@letras.ufrj.br.
Referências
ALCOFF, Linda Martín. Uma epistemologia para a próxima revolução In: Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016.
BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa. Tendências e Impasse – o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1994.
BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa. Explosão Feminista: arte, política, cultura e universidade. 1ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG (2010 [1985]).
RESENDE, Beatriz. Literatura e Feminismo: Criação, Crítica, teoria. Mulheres nas Quebradas, 2021. Disponível em: https://youtu.be/Men-Cz-w5Lg. Acesso em: 06 de agosto de 2021.
Discutir o sexo dos anjos é por definição uma tarefa fracassada. A expressão tem origem numa história curiosa: no século XV, na cidade de Constantinopla, enquanto autoridades clericais discutiam, entre outros temas, se os anjos tinham ou não um sexo, os turco-otomanos empreendiam os violentos ataques que determinaram a perda dos territórios controlados por reinos cristãos.
Lembro essa anedota por uma irresistível tendência à autoironia. Afinal, em tempos de ataques à democracia, discutir sexo e gênero na vida e na literatura poderia nos equiparar àqueles teólogos que examinam minúcias irrelevantes enquanto sua própria terra é devastada pela violência dos bárbaros.
Mas se aquelas autoridades estivessem discutindo política ou matemática, o efeito teria sido muito diferente? Afinal, que poder imediato tem o território do debate diante da violência?
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Em muitos aspectos, vivemos uma época pornográfica. Pornografia dos incêndios, do desmatamento, das armas, do estupro: o sexo em performance violenta, a exibição crua de um mecanismo ao alcance imediato das teclas.
A pornografia (etimologicamente, escrita da prostituição), na forma como se difunde na era industrial, implica produção e consumo de imagens sexuais imediatas. Umberto Eco, em Seis passeios pelos bosques da ficção, propõe que podemos reconhecer um filme pornográfico pela ausência de elipses: na elaboração audiovisual da fantasia masturbatória, o tempo do ato sexual filmado tem que ser semelhante ao de um ato sexual real, e essa obrigação contamina mesmo as cenas não sexuais dos filmes do gênero. Um filme pornográfico deve satisfazer o desejo de ver cenas de sexo explícito, mas não pode ficar uma hora e meia mostrando sexo sem parar, pois seria cansativo demais; como ninguém tem intenção de contar ou assistir a uma história razoável, tudo o que não é sexo explícito leva o mesmo tempo que levaria no cotidiano. O teste definitivo seria este: se, num filme, duas personagens demoram para ir de A a B o mesmo tempo que demorariam na vida real, estamos diante de um filme pornográfico. (É claro que as cenas de sexo explícito também são indispensáveis.)
O erotismo, ao contrário, é feito de elipses. Ele implica a existência de uma vida interior (Bataille). O erótico exige imaginação, ambiguidade: numa palavra, linguagem.
É triste quando a pornografia se torna a única forma de alfabetização do desejo.
[Ideia para um curta-metragem: a câmera exibe casais que veem TV em motéis e em aposentos diversos enquanto se ouve o som de ritmo constante. Nas telas mostradas em zoom, martelos, batedeiras, máquinas de lavar e montadoras de carros fazem seu trabalho.]
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Tanto em hebraico (מַלְאָךְ, malach) quanto em latim e grego (ângelus, ἄγγελος), anjo é sinônimo de “mensageiro”. Cabe ao anjo ser o elo transmissor entre o homem e o Criador.
Na tradição judaica da Torá, anjos são entes inteligentes, mas dependentes do poder divino, e podem assumir diversos tipos de tarefas que, aos olhos humanos, podem ser boas ou más. É o caso do anjo da Morte.
São Tomás de Aquino dividiu os seres celestiais em três esferas, numa hierarquia de três tríades que repete a obsessão triangular do cristianismo. A primeira é constituída por serafins, querubins e tronos. Da segunda esfera fazem parte os domínios, virtudes e potestades. A terceira esfera é povoada por arcanjos e anjos.
Anjos também podem ser maus. Lúcifer era um anjo de luz, que se revoltou contra Deus, e, como Prometeu, foi expulso do céu com seus seguidores, convertidos em Satanás e demônios. E há ainda os anjos barrocos, anjos cupidos de Caravaggio, de olhar malicioso e sorriso ambíguo.
(Cada tempo tem as classificações de sua preferência. Brinco com esta ideia: poderíamos falar hoje de uma angeologia dos gêneros?)
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Em Asas do desejo, de Wim Wenders (no original, O céu sobre Berlim), um anjo de sexo masculino decide se tornar humano quando começa a ansiar pelas sensações do corpo: uma xícara de café quente, o esfregar das mãos no inverno, o olhar e o toque de uma mulher.
A mulher desejada é uma jovem trapezista que voa, vestida com asas enormes, cabelos em cachos. O anjo a contempla, do seu mundo em preto e branco, um quase anjo sempre na iminência da queda.
Como num espelho, ambos se contemplam, dois corpos invertidos: o homem um anjo que cai, a mulher que brinca com sua ascensão. O sexo dos anjos é ascético, não asséptico.
Nossa terra: o sexo dos anjos.
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Eu poderia contar uma história pessoal do erotismo através das minhas leituras.
Começaria com Henry Miller, com a garota de 14 anos lendo as palavras do narrador atormentado, sentindo fisgadas de prazer quando uma cena comum rapidamente escorregava para um outro mundo. Era um roupão que se abria quando a mulher se inclinava para entregar uma toalha, uma conversa trivial que de repente era rasgada como uma roupa, até que as coisas explodiam em palavras obscenas junto com o desejo.
Desde então, eu nunca entenderia o fascínio por Bukowski. Era uma traição a Henry Miller que eu não estava disposta a consumar. Ao folhear os livros adorados pelos garotos, a precariedade do estilo, as cenas em que as mulheres pareciam bonecas de montar, a boemia, tudo me parecia uma pose triste e patética.
Ou talvez tivesse começado antes, com os best-sellers de Harold Robbins e Irving Wallace, com suas heroínas hollywoodianas hiper desejadas e destroçadas pela cobiça.
As primeiras marcas no meu imaginário vieram de homens.
Depois viriam o Complexo de Portnoy, de Philip Roth, e Lolita, de Nabokov, o desejo excitante dos homens.
Portnoy, em sua masturbação feroz enquanto a mãe rechonchuda tagarelava atrás da porta do banheiro, me comovia como a futura mãe judia que eu seria, a personagem mais inesquecível da vida do filho. Humor, autoironia, paixão trágica e desejo desesperado eram um coquetel poderoso para a imaginação.
Já Lolita entrava num terreno mais perigoso. O início deslumbrante (“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.”) era o prelúdio da trama monstruosa encoberta pela voz do narrador de nome burlesco. Em sua peça de defesa, Humbert Humbert se dirige ironicamente aos seus juízes, aos membros do júri e ao leitor: “Senhoras e senhores membros do júri, quase todos os pervertidos sexuais que anseiam por uma latejante relação com alguma menininha são seres inofensivos, inadequados, passivos e tímidos…”. A narrativa nos lança em uma zona ambígua, em que amamos e odiamos esse Humbert duplicado: um personagem e outro narrador, um pervertido e outro um esteta nostálgico do perfume da infância, o homem que seduz e é seduzido pelo feitiço da ninfeta, o homem que estupra, mas é condenado pelo assassinato do rival amoroso, Quilty, o verdadeiro culpado (guilty). A própria Lolita é ambiguidade encarnada: entre criança e mulher, entre menina e menino, espontaneidade e premeditação, crueldade e generosidade, fraqueza e força, anjo e demônio.
(De algum modo, eu inscreveria mais tarde Nelson Rodrigues nesses registros: os desejos inconfessáveis por trás das portas das famílias, as adolescentes amorais como bichinhos de avenca.)
“Para mim, um romance só existe na medida em que me proporciona o que chamarei, grosso modo, de volúpia estética…”, escreveu Nabokov. Lolita não apenas entrega volúpia estética, mas uma estética erótica, ambígua, que mostra e esconde sua força (sua forca) nos véus da linguagem.
Com mais ou menos a idade da protagonista do livro de Marguerite Duras, O amante se tornou meu livro de cabeceira.
A menina de 15 anos e meio atravessando o rio Mekong era a menina que lia. Aquela que sabia que não são as roupas, ou os cuidados de beleza, ou os adornos caros que definem a beleza. Mulheres que se vestem para nada, que enlouquecem, que são abandonadas. “Esse desrespeito que as mulheres têm por si mesmas sempre me pareceu um erro”, escreve Duras. O desejo existia ou não existia, desde o primeiro olhar: “era a percepção imediata de um relacionamento com a sexualidade ou não era nada”.
Em O amante, em A doença da morte, a menina-mulher aprendia o corpo do amante com um desespero antigo, o desejo misturado ao desprezo e à morte. A mulher que ela seria estava ao mesmo tempo ali, na crueldade do quarto, e na mãe desesperada de abandono, aquela que, no entanto, de tempos em tempos lavava o piso da casa como quem lava a alma, leve como o esquecimento.
Clarice Lispector era diferente. O desejo contido à beira da explosão, da loucura. As mulheres e a náusea: a barata, o rato, o búfalo eram o fascínio do corpo, do sexo, da morte à espreita. Eu entendia e me embalava em Clarice; nas ruas, convocava epifanias; o mundo se sexualizava em abismo, imenso como o próprio desejo feminino.
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Haveria um sexo ou gênero dos textos? É possível reconhecer se um texto foi escrito por um homem, por uma mulher? Os textos teriam marcas femininas, masculinas, híbridas, neutras? Devemos falar em literatura feminina ou em literatura de autoria feminina?
Muitas mulheres escreveram sob pseudônimos e passaram perfeitamente por homens: Mary Ann Evans / George Eliot, Aurore Dupin / George Sand, todas as irmãs Brontë, Nelle Harper Lee / Harper Lee, Karen Blixen / Isak Dinesen e mais recentemente Joanne Rowling / J. K. Rowling. Se a escrita feminina estava a princípio associada a um estilo mais intimista, delicado como se supunha fossem as mulheres, essas escritoras teriam abraçado um imaginário prestigiado como masculino? Seria por isso que Jane Austen adotou uma saída irônica, ao assinar seu Orgulho e preconceito com o pseudônimo “a Lady”?
Desde então, a literatura de autoria feminina se expandiu em muitas direções.
Um panorama relativamente recente dessa literatura pode ser traçado a partir de pesquisas realizadas na Universidade de Brasília com romances publicados pelas principais editoras de 1990 e 2004 (Dalcastagnè, 2007). Embora hoje o resultado possa ser um pouco diferente, especialmente se considerarmos a emergência de uma rica literatura produzida por mulheres negras e homossexuais, elas revelam um retrato interessante de uma tendência. As pesquisas mostraram que as autoras não chegam a 30% do total de escritores editados, menos de 40% das personagens são do sexo feminino, as mulheres têm menos acesso à posição de narradoras, e estão menos presentes como protagonistas. Constroem uma representação feminina mais plural e mais detalhada, incluem temáticas da agenda feminista que passam despercebidas pelos autores (quando as personagens são brancas, o que ocorre na maioria desses romances). Entre outras diferenças significativas, um dado que se destaca é que na literatura de autoria feminina as mulheres são muito mais saudáveis. Há um número muito grande de personagens doentes e com dependência química entre os autores, numa representação mais fragilizada da mulher que combina com outros índices que as fazem dependentes: são donas de casa, ou muito jovens (em geral atraentes, magras, loiras e com cabelos longos). São os medíocres descendentes temáticos de Lolita: homens de meia idade em crise que recuperarão a virilidade diante de moças ardentes, de preferência deslumbradas.
Quanto à sexualidade, as autoras descreveram mais cenas sexuais e com maior detalhamento; suas protagonistas não só fazem sexo com mais frequência, como possuem um número maior de parceiros do que aquelas escritas pelos homens. As mulheres traem mais e são mais traídas; sentem-se menos satisfeitas com o sexo do que os homens.
(A invisibilidade de todos esses livros de mulheres liberadas entre os críticos e leitores fala por si.)
Para além de dados quantitativos que revelam determinados imaginários sociais e sexuais, potências literárias explodem há tempos os mapas traçados, gerando outras configurações.
Conheci Hilda Hilst tarde na minha vida literária. Hilda, a mulher que perseguia o amor nos versos e de frente; a porca sagrada mergulhada nos mistérios do corpo e do tempo; a feminista paradoxal eternamente à procura do pai; o talento que se debatia em pele de mulher. Contraditória, apaixonada, Hilda rejeitava a literatura “intimista” enquanto sofria o “grande preconceito contra a mulher escritora” (“Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência tão grande. […] Você tem que ser mediano e, se for mulher, só falta te cuspir na cara”).
Profana e sagrada, erótica e grotesca, cômica e sublime, anjo e demônio, Hilda busca radicalmente, no corpo da linguagem, a confluência entre o humano e o divino. Mas sua busca esbarra num mundo de não leitores: um mundo deserotizado. Para seduzi-lo, seria necessário lidar com a pornografia. Na despedida da literatura, a pornografia como política, instauradora de um campo radical de desordem.
Lóri Lamb vem cumprir esta difícil missão: Lolita radicalizada, escrachada do comportamento à linguagem. O Caderno Rosa nos esfrega na cara um imaginário pornográfico, tipicamente masculino, com crueza chocante. Hilda Hilst, HH, qual um Humbert Humbert invertido, em vez de adensar o estupro com a névoa do estilo, o torna raso como um mecanismo. Nem anjos nem demônios, apenas renúncia e auto escárnio.
Que não se confunda aqui obsceno com pornográfico. O obsceno (o que está fora da cena) por definição não coincide com o pornográfico, que implica exibição e consumo. A senhora D é obscena; Lóri Lamb, pornográfica. Louca senhora D.
Ao mesmo tempo alegoria e prática da prostituição da literatura, Hilda nem assim foi entendida. Nem pelos leitores que supostamente seduziria, nem pelos que já tinham sido seduzidos.
(Sinto uma tristeza infinita por Lóri Lamb, por Hilda, por mim.)
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Eu também poderia contar uma história pessoal do erotismo através da minha escrita.
(Não apenas de como tenho sido lida, mas daquilo que em mim nunca foi lido.)
Ian McEwan disse uma vez que é muito difícil escrever cenas de sexo. Desde que li a descrição de Proust que associa a sonata de Vinteuil, com sua frasezinha musical encantadora e fugidia, à sua paixão por Odette de Crecy, sonho com correspondências entre música, sexo e literatura.
Foi pensando em Proust que, em meu romance A feira, tentei descrever esse fascínio: “Com satisfação, extraiu os primeiros gemidos; umedeceu a orelha esquerda com uma lambida, a mão no seio direito pressionando devagar, ritmicamente; era como música, mas, enquanto alguns se contentavam com melodias e ritmos básicos, ele procurava as variações, adágios e scherzos, crescendos e diminuendos… Os dedos roçaram o bico do seio esquerdo; enquanto o sentia endurecer aos poucos sob o tecido, calibrava a velocidade segundo os arquejos e gemidos, acelerando progressivamente, cada vez mais, como num carrossel, enquanto a outra mão subia pelas pernas e, afastando a calcinha, chegava ao pequeno botão de carne.”
Ou, do ponto de vista da mulher:
“Ela era tão boa naquilo que um dos seus casos, um improvável estudante de administração que conhecera num barzinho do Bairro Boêmio num dia tedioso, lhe dissera, em êxtase, Você precisa escrever uma apostila!! O Poeta Suburbano chegara a escrever um longo poema à floração da sua boca – tinha certeza de que se referia a ela! –, no qual veludos de pétalas, pedras e cachoeiras se alternavam em imagens febris. Segundo amante uma ova. A Promessa afasta o rosto, em suspense; com a palma da mão, circunda ternamente a glande, aproveitando o líquido viscoso que ela regurgita como um bebê; com um olho vigia o segurança e com o outro contempla o amante. O rosto retorcido a enche de desejo e – por que não dizer? – de amor. É neste momento que o corpo dele lhe foge com um baque surdo.”
Bem antes disso, em Judite no país do futuro, vesti-me de garoto de 12 anos, saído de livros e lares burgueses:
“Sentado no sofá, com o ar-condicionado na máxima potência, ele ouvia o barulho do chuveiro vindo das dependências de serviço. Aquilo lhe atiçava o sangue: imaginava-a no quartinho trocando de roupa, tirando o sutiã de renda preta igual ao que vira na Playboy, os mamilos como dois pratos marrons, o biquinho espetado enfim livre. Ela entraria no minúsculo banheiro e se ensaboaria com movimentos de serpente, desviando a grande bunda da pia e da privada que ficavam bem próximas ao jato d´água. Ela era toda cheia de curvas, gostosa, bem gostosa (repetiu a palavra que os amigos falavam tanto, ao mesmo tempo alarmado e orgulhoso com o volume que crescia debaixo do seu short de menino), e estava ali, ao alcance da sua mão. Só precisavam esquecer que ele só tinha 12 anos.”
No mesmo romance, vivo um corpo adolescente de menina:
“Mariana ri e aperta mais a mão dele. Não tem o que dizer, só sabe que está com ele e o céu é de um azul louco. (…) Ele a arrasta pela multidão até a parede lateral de um prédio que forma uma espécie de galeria com o muro arruinado em frente; no fundo, algumas lojinhas estão enfeitadas com bandeirolas do Brasil. Um cheiro de mijo misturado a suor velho a atinge quando os corpos deles se apertam e ele cola a boca na sua. A pressão que a move para baixo é suave, mas insistente, e a deixa confusa. Ela faz o que imagina ser correto: beija o pescoço dele, enfia os dedos por baixo da blusa, e quando se dá conta está praticamente de joelhos. A coisa toda é muito rápida: ele abaixa as calças, mostrando um pau duro e brilhante; ela sente o gosto de cueca usada e fecha os olhos, ignora um pelo que enrosca na sua língua. Concentra-se em abarcar com a boca tudo o que pode, deixando-se levar pelo vaivém das mãos sobre os seus ombros; ele não deve perceber a sua inexperiência. Olha para cima: o rosto dele é uma máscara de agonia. Por favor, que tudo acabe logo. Uma voz vibra nos alto falantes, as pessoas aplaudem. O ar está parado, o suor cola na sua testa. Finalmente, num último sacolejo, ele lhe foge da boca e despeja um líquido viscoso no seu decote.”
Não tenho medo de escrever o sexo, tenho medo de escrever má literatura. Toda boa literatura é erótica.
*
Em tempos de brutalidade semiótica, que às vezes chamamos de “polarização”, antessala da violência concreta, debater o sexo dos anjos é uma tarefa urgente.
Contra os gêneros e as formas fixas, contra os clichês e as ideologias congeladas, as configurações ambíguas da arte e da literatura. Hoje, essas novas configurações estão acontecendo principalmente por obra de mulheres.
Anjos, esses seres misteriosos, femininos e masculinos, crianças e adultos, puros e maliciosos, mensageiros entre aquilo que é humano e o que o ultrapassa. É nesse campo de debate que a partida assume novas formas, o momento em que entramos no jogo e passamos a também dar as cartas.
* Adriana Armony é escritora, professora do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, e doutora em Literatura Comparada pela UFRJ, com pós-doutorado na Sorbonne Nouvelle (Paris 3). É autora dos romances A fome de Nelson (Record, 2005); Judite no país do futuro (Record, 2008); Estranhos no aquário (Record, 2012), premiado com a bolsa de criação literária da Petrobras; A feira (7Letras, 2017), finalista do Prêmio Rio de Literatura; e Pagu no metrô (Ed. Nós, 2021).
Referências
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
DALCASTAGNÈ, Regina. Imagens da mulher na narrativa brasileira. O Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira, [S.l.], v. 15, p. 127-135, dez. 2007. ISSN 2358-9787. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/3267>. Acesso em: 18 out. 2021. doi:http://dx.doi.org/10.17851/2358-9787.15.0.127-135.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das letras, 1994.
Aos alunos da disciplina Biografias e Vida Literária (2020.2),
do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNIFESP
Ao longo das últimas décadas, junto com a demanda crescente por biografias no mercado literário, vimos a crítica biográfica impor-se como nova e dinâmica vertente nos estudos literários acadêmicos e suas extensões profissionais no campo da cultura. Se no circuitão do mercado o interesse dos leitores por biografias não chega a ser novidade, no circuito especializado a invasão do biografismo representou algo como uma revolução. Ela veio em paralelo ao fato de se ter aberto e prosperado, no mercado das biografias, o nicho das biografias literárias, o interesse pelas biografias de escritores. O nicho se expandiu para abranger, sob seu guarda-chuva, também biografias romanceadas, biografias de escritores imaginários, autoficções, assim como entrevistas, diálogos, testemunhos e memórias, reais e fictícias.
O emergir da crítica biográfica ocorre pois em diálogo com a relevância adquirida na cena literária por essa escrita biográfica proliferante, seja na forma canônica das biografias documentais clássicas, seja na miríade de formatos assumidos pelas combinações entre o documental, ou real, e o ficcional. Novas tendências críticas estão sempre associadas à emergência de novas práticas e à refuncionalização de velhos princípios. O discurso crítico renovado é tanto pedagogia quanto poética subjacente àquilo que está surgindo. Crítica biográfica e prática da escrita biográfica andam juntas e se existe hoje “evolução” ou “diversificação” formal desta última, ela se dá na intercomunicação entre ambas. A crítica é a dimensão reflexiva e autorreflexiva das práticas discursivas.
O viés do biográfico na contemporaneidade é indissociável do autobiográfico. Remetem ambos a relatos de vida, respectivamente a de terceiros ou a sua própria. Por seu turno, eles se manifestam em dois aspectos. De um lado, relacionam-se com a ubiquidade da narrativa de vida nos circuitos de consumo cultural e de entretenimento, culto ou comercial. De outro, são marcados pela contingência de vida em que se situa e sobre a qual atua o trabalho artístico em geral. Ambos, consumo (ou circulação/recepção) e produção (criação) emergem contra o pano de fundo do que pode ser definido como tendência de época nestas primeiras décadas do século: o imperativo da primeira pessoa, a implicatura do eu nos discursos de arte e de política, assinalando-se a presença de elementos auto e biográficos em boa parte da melhor ficção e poesia literária contemporâneas.
Através da referência à pessoa real de quem escreve, o texto literário contemporâneo busca evidenciar a circunstância concreta de sua produção, explicitando a materialidade do ato da escrita. O real perfura a cortina do ficcional, mas este, por seu turno, fagocita o primeiro, incorporando-o ao jogo de espelhos narrativo. Daí o topos do autor ou narrador referindo-se ao momento em que digita o texto em seu computador, buscando criar efeitos de presentificação e simultaneidade entre o ato da escrita e a leitura. A presença no enunciado de indicadores do processo de criação, ou de seus bastidores, é procedimento que encontra análogos nas artes expositivas, no cinema, no teatro. Narrar ou encenar o processo de criação torna-se a criação ela própria. Entre a mimeses e o reality show.
A presença reiterada de personagens escritores na ficção contemporânea, como em Paul Auster, Gonçalo Tavares, Roberto Bolaño, entre muitos outros e outras, atesta que o ego scriptor é objeto de desejo e interesse na cultura contemporânea. Se antes se dizia que de poeta, louco e filósofo todos temos um pouco, parece que no século da visibilidade total todos reivindicam ser escritores. Nos laboratórios de novas escritas que são as oficinas nas periferias urbanas, assim como nos grupos de slam, com destaque para os “slam das mina”, vive-se um clima de conquista do direito à escrita, a conquista da escrita como direito social, esse direito sendo exercido primordialmente via textos autobiográficos e biográficos. Ao lado da nova importância assumida pela poesia oralizada e pela poesia-performance, a escrita prossegue como instrumento incontornável de subjetivação e ressubjetivação, de elaboração de crise de subjetividade, de ressignificação dos signos recebidos. Somente na escrita o eu se encontra e desencontra, em movimento reflexivo verbal. O devir do(s) sujeito(s) se dá na prótese do escrito.
Mais do que simplesmente um movimento literário, e com potencial para implodir a própria noção de “movimento” ou “tendência” literária, a democratização radical do direito à escrita através do recurso ao literário como “bioescrita” (Chiara et al., 2017) integra-se a processos mais amplos. Estamos na era do artivismo, das impurezas, dos hibridismos e justaposições. Mesmo as mais estetizantes produções precisam autolegitimar-se criticamente frente às guerras culturais em curso. Estamos no terreno da pós-autonomia, tal como definida por Josefina Ludmer (2010).[1] A ficção já não obedece a critérios autárquicos, internos, mas também não se subordina de maneira simples aos imperativos do seu fora. A escrita que a sustenta põe em jogo o poder do ficcional. Nesse jogo entre ficção e não-ficção, a escrita do eu tem sido filtro por meio do qual se reelabora a vivência do despertar histórico de subjetividades coletivas, minoritárias ou excluídas. O coletivo político hoje é a soma por justaposição de experiências individuais irredutíveis. Já não se trata de um nós que se impõe como Voz homogênea capaz de falar por todos dentro de um grupo. O “nós” é cacofonia conjunta de vozes singulares.
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Tais determinantes sociais podem e devem ser situadas no âmbito abrangente da Comunicação. O campo literário é parte do universo da comunicação, com seus múltiplos circuitos e redes de suporte e significação. Narrar o vivido por si ou por outrem é hoje o traço de união entre os múltiplos circuitos e suportes da comunicação. Narrar o vivido é a seiva da midiasfera em que se transformou a esfera pública e que absorveu a totalidade da cultura. Trata-se do “espaço biográfico”, condição definida e descrita por Leonor Arfuch, em duas obras de referência para a crítica biográfica continental: O espaço biográfico (2002) e La vida narrada (2018). A esfera pública é midiasfera e a midiasfera é espaço biográfico.
O ponto de partida da autora é a cultura escrita entendida como prática de produção discursiva e sua meta a descrição e construção de uma tipologia flexível das transformações sofridas pelas expressões literárias, resultantes das novas dinâmicas discursivas na civilização midiática dominante. A cultura escrita, e a cultura literária como segmento institucionalizado da cultura escrita, uma condicionada pela outra, estão engatadas na dominante simulacral. Entenda-se por simulacro a imagem tecnicamente produzida (televisual, virtual), condutora de informações e narrativas nas redes proliferantes dos circuitos comunicacionais que constituem o que Ludmer chama de “imaginação pública”.
Colado às redes cambiantes da comunicação, o eu se constitui como encenação e performance, presentificado no espaço virtual.[2] Narrar-encenar. Não que já não fosse assim antes, mas a condição encenada do sujeito no simulacro é explicitada e exteriorizada e sobretudo explorada em novas identidades e comportamentos, no devir das novas subjetivações – não há como deixar de apelar a ecos de um vocabulário deleuziano. Busca-se porém uma visão mais sociologizante dos processos de subjetivação enquanto devires coletivos de diferenciação na arena pública. Pragmaticamente, numa civilização onde os modos de vida e mesmo o corpo físico já não são mais herdados como imperativos de uma normatividade transparente e inquestionada, a subjetivação pode ser processo calculado de invenção, vivência/experiência de automodelagem diferencial. Ou seja, a escrita do eu como automodelagem, que significa desafiar modelos preexistentes. Criação individual e coletiva de modos de ser. Novas convenções. A automodelagem, enquanto processo, antecede a convenção. Eis aí um lugar importante para a escrita literária, particularmente a ficcional.
Na dominante midiática, prevalecem os discursos autenticados por experiência, ou seja, as histórias de vida, que serão pretensamente reais, documentais, nas ciências sociais e nas etnografias, mas desfrutarão da liberdade de serem reais ou ficcionais, ou uma mescla de ambos, no campo propriamente literário e em interfaces do literário, como no caso de textos filosóficos ficcionalizados. Diz Arfuch (2010), sobre o modo de ser discursivo das culturas contemporâneas: “um crescendo da narrativa vivencial que abarca praticamente todos os registros – uma trama de interações, hibridizações, empréstimos, contaminações – de lógicas midiáticas, literárias, acadêmicas” (p. 63). Esse é o contexto em que biografia e autobiografia remetem uma à outra. Lemos mais adiante: “espaço cuja significância não está dada somente pelos múltiplos relatos, em maior ou menor medida autobiográficos (…) mas também pela apresentação biográfica de todo tipo de relatos (romances, ensaios, investigações, etc.)” (Arfuch, 2010, p. 63-4).
A nova crítica biográfica, o retorno da pesquisa biográfica e o interesse renovado pelas biografias de escritores ocupam portanto seu lugar num campo literário agora redefinido como parte do espaço biográfico contemporâneo e na literatura recortada como objeto de atenção no interior de uma teoria ou problemática geral dos discursos. A literatura é discurso entre discursos, por um lado fixado como instituição, por outro circulando como valor em circuitos variados. Essa teoria geral dos discursos é uma teoria geral da Comunicação. Ela recolhe como ferramentas úteis todas as metodologias de leitura recebidas das antigas filologia, retórica, poética, assim como, seguindo a linha do tempo, das poéticas e teorias do século 20.
Do sujeito da enunciação ao sujeito autoral: textualismo X biografismo
Detenhamo-nos nessas últimas. A chegada do biografismo teórico e crítico nas primeiras décadas do século atual inverteu os valores, princípios e metodologias dominantes nos estudos literários ao longo de toda a segunda metade do século passado, com raízes nos deslocamentos estéticos e epistemológicos da primeira metade. As teorias (doutrinas) que marcaram esse período despediram o historicismo positivista do século XIX. A despeito das distinções entre elas, as teorias tiveram em comum o fato de especificar o texto como objeto de conhecimento empírico e a visão da leitura crítica como método disciplinar científico cumulativo, por oposição ao impressionismo, subjetivismo e falta de rigor das interpretações que adornavam os esquemas históricos do século XIX. Os discursos críticos e métodos de análise das novas teorias do século XX lançavam mão de esquemas de compreensão que descartavam ou colocavam em segundo plano tanto o dado biográfico, quanto a redução do literário à ilustração (mimese) de elementos contextuais e históricos, geralmente formulados em termos de nação. A positividade do texto como valor absoluto foi colocada no lugar da positividade do autor, de seu tempo e lugar.
No sistema escolar, na formação intelectual, a história literária não mais podia se ater à sequência cronológica de autores e épocas, na medida em que desde fins do século XIX e mais intensamente na primeira metade do XX foi preciso dar conta da diversidade de formas e poéticas trazidas pelas ondas de modernidade e vanguardismos. Cada nova teoria era na verdade uma poética ligada a determinados valores e práticas estéticas inovadoras, impondo a reconceituação do literário a partir da revelação de novas facetas e camadas de significação. Desenvolveu-se um arsenal de metodologias de análise textual. O formalismo russo e o primeiro estruturalismo (eslavo) conceituavam o literário em diálogo com o futurismo. O new criticism era ferramenta para lidar com as complexidades do modernismo anglo-saxônico. O estruturalismo francês conectava-se criticamente ao nouveau roman. Sua desconstituição pela desconstrução conectava-se ao “telquelismo”.[3]
Ultrapassar o positivismo biográfico do século XIX significara deixar de lado a tematização da criação autoral, empurrado-a para domínios extra-acadêmicos, alheios ao labor crítico e seu viés normatizador. Nessa empreitada, as seculares disciplinas filológicas foram abandonadas ou marginalizadas em favor das sofisticadas ferramentas de análise voltadas para produzir formalizações dos jogos de sentidos intrínsecos a cada texto. Buscava-se determinar aquilo que o texto produzia de sentido por si próprio, sua lógica intrínseca, independentemente de seu gesto criador original.
A teoria literária, como disciplina institucionalizada, desenvolveu procedimentos de crítica e análise dos textos que exerceram impacto importante na reflexão mais ampla sobre a formação social do sentido em geral. O impacto pluralizador das vanguardas, das novas correntes e experimentações literárias das primeiras três décadas do século inviabilizavam um conceito unívoco (romântico ou realista) do literário. Paralelamente, a teoria dialogava intensamente com as novas disciplinas humanísticas do século XX, elas também vanguardistas – a linguística, a psicanálise, a etnologia, o marxismo na história e nas ciências sociais. A teoria e crítica literárias tornaram-se parte das ciências humanas. O sentido literário, dado pelo texto e não pelo projeto autoral, ampliava-se para ser entendido como manifestação, projeção, emanação, articulação de um ou mais sistemas de sentido metadiscursivos sobredeterminantes, encarados de formas diversas, mais ou menos dinâmicas, em cada disciplina das ciências humanas.
A positividade autoevidente da figura autoral biográfica deu lugar ao sujeito da enunciação, reconhecível pelo jogo interno do texto, com suas camadas remissivas, perceptíveis pelo que parecia na época ser operação lógica possibilitada apenas pelo ato da leitura e análise e hoje fica mais claro que se tratava de reorganização do repertório canônico. O sujeito da enunciação podia ser a ideologia, o inconsciente, a fórmula ou esquema, dimensões de sentido que conectavam o interior do texto com seu contexto de textos, também ele visto como produtividade de sentido transcendente ao criador, ao agente, em suma. O agenciamento era do jogo de sentidos imanentes ao texto.
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Nesse sentido, a noção teórica e prática de texto ia além das clássicas distinções de gêneros literários, abrindo caminho para a incorporação da teoria literária a uma teoria dos textos em geral. A leitura e análise de objetos da cultura (linguagem, artefatos, discursos) passa a empregar conceitos e metodologias desenvolvidas pela teoria da literatura, buscando identificar estruturas de formação de sentido, a partir do que se identifica como matriz linguística (ou linguajeira) de todo sentido. Relações multidisciplinares podem ser estabelecidas entre “textos” de todo tipo – literários, cinematográficos, etc.
Não que a biografia literária tivesse sumido completamente do cenário, banida pelo textualismo dominante. O que houve ao longo do século passado foi o aprofundamento do cisma entre formação especializada, de um lado, e, de outro, circulação da literatura na cultura e na vida, como bem e como valor. Aprofundou-se o abismo entre a cultura literária como parte da cultura artística e intelectual na esfera pública e a cultura literária dos especialistas, professores e críticos. A autonomia de cada esfera discursiva corresponde à autonomização do grupo social que a sustenta. A cultura especializada apartava-se do “mundo da vida” (evocando o termo de Habermas), de sua circulação no mercado e nos circuitos da consagração, os quais podiam ou não reproduzir avaliações da crítica especializada, já que muitos profissionais desta atuavam dos dois lados. De um lado, o mundo pulsante da vida e da comunicação, a literatura como entretenimento culto e instrumento de autocompreensão individual e coletiva, impulsionadora ou desconstrutora de ideologias. De outro lado, o mundo austero e intrépido da formação universitária, a literatura como passaporte de entrada e saída para a filosofia e ciências humanas. De um lado, a vida literária. De outro, a indagação técnica pelo sentido. De um lado, a tradição das belles lettres, de outro a teoria literária. De um lado, a confraria difusa das pessoas cultas (ou cult). De outro, a república dos professores.
Nesse contexto, durante todo o período em que o textualismo dominou a crítica especializada, o mercado literário nunca deixou de existir, sempre vicejante a oferta de publicações de caráter biográfico, dos coffee table books com fotografias e recordações de grandes autores, às memórias de escritores ou sobre escritores. Sempre existiu lugar para o cultivo de celebridades e mitos nos tribunais e palcos da história das culturas letradas, oscilando entre a devoção religiosa dos mais eruditos e a crônica mundana dos mais superficiais. As vidas de grandes escritores atraíam tanto interesse quanto as vidas de grandes compositores, pintores, interesse contíguo ao dirigido às vidas de personalidades históricas, políticas e outras – não se pode esquecer que as Letras constituem uma república, em vários sentidos da metáfora. Em estantes de livrarias americanas, viam-se seções distintas para “belles lettres”, de um lado, e “literature” ou “theory of literature”, de outro. Nas primeiras, as biografias, os álbuns sobre escritores, os panoramas e histórias de capítulos de vida literária, os volumes de correspondência, os diários de escritores. Na seção “literatura”, os títulos “sérios” de teoria e crítica estudados na universidade, que educaram gerações e gerações de PhDs em humanidades e ciências sociais desde os anos 1950 e 1960, pelo mundo afora.
Sujeito autoral e nova crítica biográfica
Com a guinada biográfica na teoria e prática da literatura no século XXI, sai de cena o sujeito da enunciação e entra o sujeito autoral. Atente-se: trata-se do sujeito autoral, portanto não exatamente, ou não somente, o “autor” como totalidade bem constituída, tal como concebido pelo biografismo empirista/positivista banido pelo século da teoria. O autor empírico fora substituído pelo texto como empiria. Sim, há agora um elemento forte de retorno do autor, ente pragmático, real, empírico, identificado a si como um corpo e registrado no Estado com a identidade civil de seu nome e sobrenome. Mas ele não deve ser confundido com a categoria propriamente teórica e crítica de “sujeito autoral”.
Se é certo que o “autor” opera uma volta[4], um resgate, polarizando a noção contemporânea de sujeito autoral, o fato é que, no momento pós-teórico trazido pelo século XXI, ele incorpora em nova síntese as desconstruções operadas pela hiperconsciência metodológica da era anterior. Depois da psicanálise e de tudo que se desvendou sobre as camadas latentes de sentido textual, não há como voltar a paradigmas críticos que, sob certos aspectos, nos parecem ingênuos, diante, por exemplo, do total anacronismo de noções de consciência frente a problemáticas de linguagem, como se pudesse existir pensamento de si fora da linguagem. Não se vê caminho de volta por aí. O caráter transcendental absoluto da linguagem (ou dos jogos da linguagem, conforme Wittgenstein[5]) para pensar o humano é talvez o mais importante legado filosófico do século XX, depois do materialismo histórico legado pelo XIX. No século XX, leu-se cultura como linguagem. Deve-se ler, hoje, comunicação.
Se o autor como categoria biográfica íntegra pressupõe uma consciência estável, o sujeito autoral é um dado de linguagem, e também de moldura institucional, na linha do que se pode apreender no texto seminal de Michel Foucault, O que é um autor? Seria de fato ingenuidade ou anacronismo crer que o abismo entre o sujeito biográfico e o sujeito da enunciação pudesse ser simplesmente eliminado pela “retorno do autor”. Este se dá refuncionalizado, noutra economia discursiva. O abismo é transposto por um ato de força externa ao texto, externa à produtividade intrínseca do texto. Voltamos ao termo usado anteriormente: na nova escrita biográfica, o texto é perfurado por sua exterioridade. O sujeito autoral contemporâneo redefine as relações entre “autor” e “narrador”, na medida em que o sujeito da enunciação vigente no textualismo era uma diferenciação interna da categoria “narrador”. O sujeito da enunciação era, por assim dizer, a subjetividade latente ou não manifesta do narrador, jamais do autor. Essa subjetividade que animava o narrador era discernível apenas pelo ato da leitura analítica. Os embates metodológicos, naturalmente sustentados pelas diferentes teorias, fizeram desse ato uma batalha entre decodificação unívoca versus interpretação das entrelinhas, molduras e superposições intertextuais.
Assinalamos então que, sim, por um lado o autor retorna como agente manifesto do discurso, da escrita, retorna como figura-fetiche nos dois lados do campo literário, o mercado e academia. Um retorno que não deixa de ser um desrecalque. O desrecalque da referida implicatura universal do eu. Um resgate correspondente ao resgate da agência em ciências sociais. Porém, como mostra Diana Klinger (2016), o caráter de agente do sujeito autoral é performático e pode ser prismático (eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, diz o poema de Mário de Andrade). Deve ser enfatizado que no espaço biográfico da comunicação, que define uma civilização da visibilização, as facetas inconscientes e latentes dos signos e dos comportamentos tendem a se exteriorizar. Para dar um exemplo: no lugar de um gênero sexual masculino que sufoca seu lado homossexual ou feminino, temos agora sujeitos que são explicitamente homem/mulher ou vivem processos trans e flex, rejeitando o binarismo das identidades de gênero. Não há propriamente “inconsciente”, mas exteriorizações performáticas de possibilidades de ser.
O retorno do autor ocorre também fora das fronteiras disciplinares do campo literário. A implicatura do eu transforma os espaços disciplinares. Como vimos, a escrita de si torna-se elemento de todo discurso de conhecimento, o qual, ao mesmo tempo que conhece, relata a experiência de conhecer. O discurso do conhecimento passa cada vez mais a situar-se em seu aqui-agora, indagado em sua condição concreta de produção e circulação, sua materialidade. Todo saber é situado e, como tal, dialógico, pois não existe escrita de si sem interlocução, mesmo que virtual. Estar situado exige a implicatura do eu e vice-versa, são dimensões mutuamente necessárias. Situar-se é uma afirmação de perspectiva, é uma operação do olhar. De modo que a implicatura do eu é ao mesmo tempo de raiz literária e visual.
Um recorte epistemológico é um ponto de vista sobre a empiria, sobre a matéria do social-cultural-comunicacional. A partir daí, tomamos como exemplo o discurso da psicanálise. Ele é questionado em sua universalidade, por seu viés masculino, branco, burguês, classe média, eurocêntrico, ocidental. As linguísticas estruturais e sistêmicas são desconstituídas em sua logicidade pelo pós-estruturalismo e deslocadas em relevância por filosofias da linguagem situacionais, historicizantes. Na antropologia, cai a máscara: o que se narra é a relação do etnólogo/etnógrafo com o grupo com que interage.
O situar dos enunciados (dos dizeres) em sua própria historicidade faz eclodirem os novos campos disciplinares que definiram campos de saber e ideologias nas duas últimas décadas do século passado: estudos feministas, pós-colonialismo, estudos culturais, estudos queer, novas ancestralidades, antropoceno. As pessoas comuns são reconhecidas como sujeitos, suas histórias de vida tornam-se matéria prima de conhecimento. O trabalho de campo e as pesquisas qualitativas invadem a sociologia, que passa a ter na entrevista e na narrativa da história de vida um de seus instrumentos mais importantes. As entrevistas de escritores são incorporadas ao material crítico e biográfico dos estudos literários. O trabalho de campo logo se torna ativismo político-social, seu papel é dar voz a processos de subjetivação e apoiar a articulação de grupos marginalizados. Assumir a voz até então calada se faz pela performance pública ou pelo exercício da escrita, refuncionalizando a relação entre a intimidade silenciosa do literário e a intervenção personalizada/personificada no espaço público.
Dar voz é desrecalcar. À medida que se aproxima o final do século XX, o exercício da memória adquire urgência, o século volta-se para seu passado recente, desrecalca a consciência dos grandes crimes cometidos, reabrem-se arquivos, multiplicam-se depoimentos, testemunhos de tantos derrotados, perseguidos, vitimados – o trauma do Holocausto, o trauma da conquista da América, o trauma da escravidão negra, tantos genocídios. As guerras, os genocídios, as epidemias, os desastres nucleares. Narrar a experiência, narrar o vivido é conteúdo, mas também incrusta-se como forma e moldura determinante do sentido, como sistematizam os estudos de Leonor Arfuch. A narrativa do vivido como suporte formal dos discursos em geral faz do texto jornalístico o modelo ou coração secreto da criação textual verbal e escrita. Modelo a ser emulado ou guerreado.
Cena brasileira
No Brasil, a consolidação do biografismo nos estudos literários contemporâneos associa-se a um movimento paulatino de retorno ao arquivo, como nos aponta Eneida Maria de Souza no livro Janelas indiscretas – Ensaios de crítica biográfica (2011). Depois da consolidação da hegemonia da pedagogia textualista dos anos 1960/1970, emerge nos 1980 uma renovação da história literária e um novo interesse pelo bom e velho tema de Brito Broca – a vida literária. Não existem textos se não existem autores, não existem autores se não existe vida literária, vida que transita entre o artístico e o intelectual, vida que tem sua própria política (falamos de uma “república das letras”). Por ser histórica, por existir dentro da história e entrelaçada a histórias e histórias e instituições, a vida literária toca o político-social.
Porém, a renovação, nos anos 1980, do interesse pela história e vida literárias tem uma forte motivação propriamente crítica. É que o modernismo canônico do século, na sua dualidade conflitiva entre anticonvenção e convenção, começa a ser visto de maneira distanciada, como algo já pronto e monumentalizado, à medida inclusive que vão desaparecendo seus protagonistas, ou vão chegando a idades provectas. Aproximando-se do final do século XX, a crítica literária brasileira vê-se então na contingência de historicizar, relativizar, colocar em perspectiva o modernismo. A noção mesma de modernismo perde sua auto-evidência. Já não se está inquestionavelmente dentro do modernismo. Conformam-se terreno, olhar e gestos pós-modernos. Entre eles, o novo biografismo emerge como releitura do cânone modernista.
Eneida Maria registra a pré-história desse processo, apontando como momento inaugural a doação, em 1971, dos manuscritos de Miguel Angel Astúrias à Biblioteca Nacional da França, gesto que, segundo a autora, motivou a criação da Coleção Archives/Arquivos, por onde vieram a ser publicadas algumas memoráveis edições críticas de grandes obras latino-americanas, incluindo algumas brasileiras. O tombamento do acervo do escritor Astúrias, mesmo além-mar, em Paris, assinalava seu momento panteônico, sua domiciliação, no sentido de Derrida em Mal de arquivo. Era a domiciliação arquivística de um escritor latino-americano integralmente moderno, integralmente século XX. Cabe assinalar que neste mesmo ano de 1971 foi publicado no Brasil um dos grandes marcos do biografismo de escritores, o livro A juventude de Machado de Assis, de Jean Michel Massa.
As antigas disciplinas filológicas, que até os anos 1950/1960 se dedicavam sobretudo à pesquisa sobre romantismo e século XIX, foram resgatadas, em novo diapasão intelectual. O trabalho realizado por notáveis pesquisadores para a Coleção Archives repercutiu no crescente interesse da crítica universitária pela pesquisa nos arquivos de grandes escritores do século[6]. Nesse primeiro momento, marcado pela produção das edições críticas de autores brasileiros para a coleção, o mergulho no trabalho de arquivo ateve-se à crítica textual da velha cepa filológica (descrição das variantes) e à crítica genética (interpretação das variantes). E assim tivemos na coleção Archives as edições críticas de Macunaíma, A paixão segundo GH, Crônica da casa assassinada, Triste fim de Policarpo Quaresma. Em todos esses volumes havia uma seleta de textos da fortuna crítica sobre o autor e elementos de um dossiê, com fac-símiles de cartas, algumas fotos, etc. Seguir-se-iam os volumes de Manuel Bandeira (Libertinagem) e Oswald de Andrade (Obra incompleta).
Mário de Andrade, Clarice Lispector, Lucio Cardoso, Lima Barreto, eram todos grandes autores do século cujos acervos vinham sendo domiciliados naquele momento, ou recentemente, em instituições como o Instituto de Estudos Brasileiros da USP e o Arquivo-Museu de Literatura da Casa de Rui Barbosa. Atravessar o umbral do arquivamento era para pesquisadores em Letras penetrar no oceano revolto da história a ser escrita ou reescrita. Ocorre, no entanto, uma inflexão metodológica e prática nessa trajetória da cultura crítica. Podemos tomar 1988, ano em que veio à luz a edição Archives de Macunaíma, como referente cronológico para assinalar a mudança na maneira como nossos estudiosos passaram a procurar os acervos de escritores. O interesse deixou de ser primordialmente textualista ou filológico. Descobriu-se que um acervo de escritor pode conter muito mais coisa interessante além de seus manuscritos. Sua biblioteca, por exemplo.
Tais descobertas assinalam o advento de um novo tipo de domiciliação/arquivamento, representado pelo Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, em contraste com os modelos clássicos do IEB-USP e da Casa de Rui Barbosa. Naquele, o interesse biográfico adquire valor expositivo. A reconstituição do gabinete de trabalho de cada escritor introduz o dado da vida literária, da vida íntima literária, inseparável da reconstituição de suas redes de relação – sua participação na vida literária. O arquivo é museu num sentido propriamente expositivo, externalizado. Museu de exposição e não mausoléu de papéis velhos.
Intensifica-se a partir daí o boom dos estudos de correspondências, diários, crônicas, todo um material paralelo até então esquecido ou relegado para o segundo plano de mera crônica mundana da vida literária do modernismo. As pesquisas desenvolvidas pelo Setor de Filologia da Casa de Rui Barbosa resgatam autores e cronistas ditos pré-modernistas, instaurando uma visão crítica que desloca a noção de modernidade cultural brasileira de uma compreensão excessivamente centrada na Semana de Arte Moderna paulista.
O interesse pela edição de cartas e diários tornou-se uma autêntica paixão literária que dominou a virada para o atual século e prossegue até hoje. Poucos textos literários terão exercido tanto impacto sobre a pesquisa acadêmica, e sobre a formação crítica atualizada, quanto as publicações das cartas de Mário de Andrade à qual se vinculou produção crítica robusta. Todos nós da área de literatura brasileira mergulhamos vorazmente na leitura da correspondência de Mário de Andrade. Por meio dela, revivificava-se o drama das vidas literárias interconectadas em seu tempo – era o espaço biográfico e era a anamnese do modernismo, agora enquadrado pelo olhar fora, entre etnográfico (a etnografia das redes de relação em estudos de vida) e histórico. A correspondência de Mário passa para o século XXI como um dos principais monumentos literários legados pelo século anterior. Esse trabalho de monumentalização e ao mesmo tempo devoração antropofágica desenvolveu-se num primeiro momento sobretudo nos departamentos de letras da USP, da UFMG, da PUC-Rio. A fascinação pela correspondência de Mário disseminou o interesse pelas correspondências de outros autores, como nas pesquisas e publicações de Nádia Batela Gotlib. De maneira pioneira mas bastante representativa de todo um espírito de época, toda uma transformação do gosto literário, Nádia caminhou da epistolografia para a biografia, tornando-se a autora das imprescindíveis e amorosas biografia e fotobiografia de Clarice Lispector.
Cânone e extracânone
Por ser transformação no gosto, a paixão pelas cartas e biografias de escritores esteve desde sempre articulada a movimentos de interesse no público geral não especializado, afetando a estrutura do mercado e por conseguinte a definição mesma de literatura e de seus princípios de valoração crítica. Na relação entre instituições de ensino/pesquisa/exposição e mercado literário, não se sabe qual dos dois exerce mais influência sobre o outro como fonte de valores, conteúdos, consagração de obras. Ler literatura deixou de significar ler apenas ou principalmente romances ou poemas e peças canônicos e passou a incluir em pé de igualdade a leitura de cartas, diários, biografias, memórias. Resulta desse movimento a ampliação do conceito de literário, situando-o no espaço biográfico. Trata-se de um movimento de desierarquização e descentramento na economia dos gêneros textuais, na medida em que o que era sub ou para literário passou a ocupar o centro do cenário junto com as matrizes romance, poema, drama. Foram rompidas as fronteiras entre os gêneros canônicos e sancionaram-se a porosidade e toda sorte de hibridismos, particularmente entre o discurso crítico e a criação ficcional.
O campo do literário cindiu-se e existe hoje de maneira dual, simultaneamente canônico e extracanônico. A referência ao canônico confere identidade ao campo todo, sempre no entanto elusiva nas famílias de textos extracanônicos. Surgem dinâmicas na produção e circulação do literário que podemos compreender melhor fazendo analogia com a distinção entre criação artística moderna e movimento geral da criatividade na pós-modernidade, segundo o crítico de arte Mário Pedrosa (1981).[7] A poética extracanônica é contínuo exercício de criatividade, mais que criação solidificada em obra acabada.
Temos então, de um lado, o terreno canônico, convencional, herdado de uma longa tradição institucional de origem europeia, espraiada globalmente à medida que se universalizava a cultura intelectual e artística ocidental. Terreno ainda plenamente vigente, referência central nos circuitos dominantes do mercado e da formação escolar, definido pela clareza de fronteiras entre os gêneros discursivos que o constituem: as formas curtas e longas da prosa ficcional, a poesia em versos épica e lírica, a tragédia antiga e o drama moderno. Na economia geral dos discursos, o literário histórico se recorta, segundo a conceituação emprestada de Aristóteles, pela verossimilhança versus a verdade do fato, pela mimeses versus relato histórico. A possibilidade de autonomia do literário reside na poiesis ficcional, que se distingue, diga-se de passagem, da mentira factual, do engodo criminoso, da demagogia política.
Do outro lado, o terreno pós-autônomo, pós-moderno, pós-crítico, pós-canônico, contemporâneo. É nesse terreno que se insere a contribuição de Eneida Maria de Souza ao giro biografizante da crítica no Brasil. A presença ubíqua do prefixo “pós” aponta para a permanência fantasmática do modernismo. Na verdade, o pós-canônico consolida-se como extracanônico, suplementar ao canônico.[8] Em termos de uma hermenêutica, o sentido do prefixo “pós” indica um esquema histórico que é posterior e devedor de um cânone moderno e simultaneamente contíguo e parceiro, num jogo de semelhanças, diferenças e desvios. O campo literário é definido pela duplicidade constitutiva entre cânone e extracânone.[9] Na história intelectual recente, o debate-movimento do “pós” (anos 1980, ápice) de certa forma estabiliza-se no cenário alternativo do “extra”, a pulsão pelo desbordar convivendo com a persistência da herança. Quem vem depois está tão fora quanto dentro de sua herança.
O terreno extracanônico se define pela revolução, pela abertura das fronteiras entre os gêneros da tradição, rejeitando seu caráter normativo e autoevidente. É a norma (aquilo que dá formatividade ao desejo) do não-normativo, das antinormas. O gesto estético e narrativo se dá como ato mesmo de abrir fronteiras discursivas. Os gêneros clássicos, com suas identidades, permanecem presentes, como referência, pois para haver abertura, é preciso que algo esteja sendo aberto.
Nesse âmbito, a autobiografia literária e a biografia, no sentido clássico ou canônico, passam a ser encarados como modalidades discursivas, numa família de gêneros afins, puros e híbridos. São formas matriciais, modelos referenciais herdados da tradição, muitas vezes quase como resíduos em relação aos quais se situam suas derivas modernas, pós-modernas e contemporâneas, como planetas mais ou menos desgarrados, com destaque para a autoficção de um lado e as múltiplas combinações entre fato e ficção na escrita biográfica. Biografia e autobiografia passam a ser atributos do discurso biográfico, que abarca o autobiográfico, modalidades de uma mesma escrita, bio, bioescritas, a biografia e a autobiografia.
Os gêneros clássicos são formas matrizes que ajudam a balizar as aproximações por afinidade dos proliferantes e livres gêneros extracanônicos. Constituem um repertório de fundo (o cânone) de pretensão universal a que recorre de maneira própria cada ato idiossincrático de formação e criação literária (criação verbal escrita). No terreno do pós-autônomo, os gêneros são agrupados por afinidades, são famílias de textos, como sugere Leonor Arfuch (2010), situando sua proposta no campo wittgensteiniano das Investigações, propondo em lugar da lógica da construção conceitual, os agrupamentos vocabulares por “semelhanças de família”. Por seu caráter indutivo e pelo fato de que o espaço biográfico é comunicacional, portanto, dialógico, essa visão remete às teorizações sobre gêneros discursivos de Bakhtin.
Tais movimentos arqueológicos na epistemologia do literário obrigam a reposicionar todos os conceitos herdados da tradição canônica, passando a perspectivá-los de maneira dual. Isso acontece também, como não poderia deixar de ser, com os conceitos de autobiografia e biografia. Eles passam a ter dupla inscrição. Por um lado, ainda devem ser concebidos na sequência da tradição, em que constituem gêneros relativamente bem estabelecidos, cujas fronteiras são auto-evidentes. No caso da biografia, as fronteiras são circunscritas ao universo disciplinar da História e ao pacto do compromisso com a veracidade documental. Em torno dessas fronteiras, constitui-se o “pacto biográfico”, evocando o “pacto autobiográfico” de Philipe Lejeune (2014).
O pacto com a verdade factual empiricamente documentada é inescapável na forma matriz da biografia. Por lidar muitas vezes com um imbróglio documental, essa verdade é, no mais das vezes, puramente interpretativa, chegando, claro, ao limite da funcionalização. Embora não seja de modo algum determinante ou dominante, o lugar da ficção numa biografia pode se fazer presente desta e de outras formas, diante da necessidade de preencher lacunas documentais. Sem poder escapar de sua definição como gênero histórico, a biografia convencional não deixa de ocupar um espaço fundador no campo literário, senão como gênero, certamente como catalizador de suas ideologias, mitos, políticas, versões. Biografias de escritores são o núcleo dos estudos de vida literária, material imprescindível para a história literária, assim como autobiografias e memórias. As biografias de escritores e as histórias da vida literária sustentam o valor de fetiche do literário, ou seja, seu valor como mercadoria e pedagogia.
Grafias de vida, escritas de si
Na literatura, a biografia pode ser tida como o romance documentado da vida real de uma personagem histórica. O recorte conceitual muda de figura no âmbito da ciência geral dos discursos e da comunicação. Procuramos traços “bio” na urdidura de assinaturas autorais. O espaço biográfico é nuvem em expansão, perpassando os discursos. Ele se superpõe sobre todo escrito, como atmosfera, e imiscui-se em toda letra, como oxigênio. O que chamamos de discurso autobiográfico, ou elemento autobiográfico, tanto pode se apresentar de forma plena na autobiografia, como pode subjazer a quaisquer outros tipos de textos, em dosagens (ou intensidades) variadas, a serem rastreadas e sopesadas pela leitura crítica. Apropriamo-nos do termo escrita de si, tal como trabalhado por Diana Klinger (2016) a partir do conceito de Foucault, termo adequado como guarda-chuva para agrupar famílias de textos e elementos textuais.
São escritas de si as autobiografias reais ou ficcionais, as memórias, as autoficções. A escrita de si abrange ainda cartas, diários, entrevistas, sem esquecer sua presença dominante (embora não exclusiva) no âmbito do bom e velho, e bem brasileiro, gênero literário que é a crônica. A crônica brasileira seria uma manifestação avant la lettre do pós-autônomo, entre o profissional e o amador, entre o casual (uso comum da língua, interessado) e o literário (uso artístico, desinteressado no sentido kantiano). Pode-se dizer que o gesto literário por excelência combina a gratuidade inerente ao “não-interessado” à necessidade pessoalizada de dizer.
Já para designar a família ou o traço definidor do recorte crítico capaz de abarcar a variedade de gêneros biográficos, não faltam fórmulas – da “vidaobra” de Augusto de Campos sobre Pagu, à “escrita da vida” em vários autores de diferentes áreas[10], à bioescrita, ao “escreviver” de Guimarães Rosa e à “escrevivência” de Conceição Evaristo. Adota-se aqui a preferência pelo termo grafia de vida, cunhado por Silviano Santiago (2014, 2015, 2020a, 2020b) em dois ensaios marcantes de sua produção nos anos 2010, retomado em Fisiologia da Composição, estudo crítico-metodológico recentemente lançado. Neles, o crítico e mestre revisita e complexifica a questão autobiografia/biografia que sempre lhe foi cara, intervindo no debate da crítica biográfica intensamente travado no campo literário brasileiro desde os anos 1990. Sua persona autoral de prosador encenaria criativamente esse estágio do debate no par formado pela autoficção de Mil rosas roubadas e por Machado, híbrido de romance, biografia e ensaio. Como se sabe, a obra inteira de Silviano Santiago aborda seus temas ora no suporte teórico, ora no suporte ficcional, e poderíamos estender isso biograficamente para o suporte docente. Essa ida e vinda num entrelugar categorial regido pela lógica do suplemento fez de sua obra pioneira na mescla entre ensaio e ficção.
No vocabulário proposto nos ensaios referidos, autobiografia, biografia e romance são reunidos sob o guarda-chuva da categoria grafias de vida. Nesse sentido, o estudo de autobiografias, memórias, diários, correspondência, biografias reais ou ficcionais incluem-se entre estudos de grafias de vida. A própria escrita de si será portanto um tipo de grafia de vida. A amplitude da noção de “grafia de vida” (Silviano Santiago) corresponde à amplitude da noção de espaço biográfico (Leonor Arfuch). A noção de “grafia de vida” projeta o dado sociológico-comunicacional sobre a problemática da letra. É a gota de sangue de cada poema, o dado “bio” de todo discurso-prática-performance artística.
Os modelos paradigmáticos da grafia de vida são a biografia convencional e o romance moderno clássico (de Cervantes ao romântico-realista). Neles, um biógrafo ou um ficcionista conta a vida de uma pessoa do nascimento à morte, seguindo linearmente a sequência cronológica das idades e fases (as “edições” machadianas) e declaradamente comprometido com a verdade factual daquilo que narra. Os limites desse modelo serão parodicamente explorados em obras como Tristam Shandy de Sterne, Orlando de Virginia Woolf, assim como, em modo autobiográfico, as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Dom Casmurro de Machado de Assis.
Atenção: por verdade factual, na ficção literária (romance, conto), entenda-se a verossimilhança interna, ao passo que na biografia histórica, entenda-se comprovação documental. A verdade é um gradiente que vai da composição da verossimilhança ao grau de comprovação documentada do factual. Comprovação factual e interpretação constituem o gradiente em que se movem a escrita e a leitura do documental. O recurso à interpretação exige a construção de verossimilhança. E assim se fecha o círculo. A exigência de verossimilhança é o pedágio pago tanto pela interpretação quanto pela criação ficcional.
Biografia e romance moderno são diferenciações históricas na grafia da vida. A reflexão de Silviano Santiago, de natureza ensaística, faz uma linha do tempo singular, ao situar a biografia em espaço próprio, originado das grafias de vidas ilustres dos anais e verbetes enciclopédicos às biografias propriamente ditas desde a Antiguidade. São evoluções do registro, do relato, do epitáfio. A biografia canônica mantém no seu DNA o compromisso de narrar a vida de pessoas que a priori possuem nome ou posição na esfera pública. Nesse sentido, ela se distingue claramente das histórias de vida de pessoas anônimas no espaço público, tal como vemos nas histórias de vida da sociologia, da etnografia, da história oral e mesmo da psicanálise. Nesta última, as histórias de vida são anamneses quebradiças, de certa forma ritualizadas e dialogais, que constituem “casos” clínicos.
Possivelmente, os problemas práticos da escrita biográfica (incluindo aqui as escritas de si), assim como de sua crítica, exigem uma combinação entre fantasmas ou resíduos de categorias da escrita psicanalítica, refratadas pelas percepções advindas das ciências sociais e estudos culturais, além de uma pragmática linguística reanimada pelo prefixo multi de “multilinguismo”, “multilíngua”. Cabe terminar lembrando que biografias de pessoas “comuns” ou anônimas podem catapultá-las como “nomes” na esfera pública, assim como personagens de romance acabam por tornar-se nomes públicos, tanto quanto os de realmente existentes políticos, celebridades, artistas, intelectuais, músicos, filósofos e, por fim, escritores. Grafar é lançar sobre a pedra seu traço de vida.
Rio de Janeiro-Guarulhos, 2020/21
(Ano da Pandemia)
* Italo Moriconi é ex-Professor Associado (aposentado) do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Professor Visitante (2019-2021) do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro, 7Letras, 2016. 3ª. edição.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – de Rousseau à internet. Belo Horizonte: EdUFMG, 2014.
LUDMER, Josefina. “Literaturas postautónomas”, in Florianópolis, Revista Sopro, 2010, trad Flávia Cera.
MASSA, Jean Michel. A juventude de Machado de Assis. Trad. Marco Aurelio de Moura Matos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, 1ª. ed. S. Paulo, Ed. Unesp, 2009, 2ª. ed.
[5] O Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Ele não gostaria de ver seus “jogos de linguagem” chamados de transcendentais ou absolutos, já que esses jogos se propõem como avesso de qualquer pretensão transcendental da linguagem. Deve-se distinguir “linguagem” de “sentido”.
[6] Sobre a Coleção, ver Souza e Miranda (org.), 2003.
[7] Sobre o mesmo assunto, Otília B. F. Arantes, 1991.
[8] Refiro-me aqui à “lógica do suplemento” tal como formulada por Silviano Santiago em diversos trabalhos, a partir de leituras de Jacques Derrida. O suplemento é o elemento que se agrega a algo já completo. Ele vem depois, pressupõe um antes e se agrega ao que já existe marcando diferença, replicando em diferença. Ver Santiago, 2020a e 2020b. O leitor e a leitora reconhecerão na polaridade cânone/extracânone aqui proposta (ver a seguir) a dívida para com as trilhas hermenêuticas abertas pela obra crítica de Santiago.
[9] Observe-se que no presente texto deixo de lado o campo da “literatura expandida”, em que o extracanônico extrapola a escrita fonética, a dimensão verbal, e transborda em hibridismos e combinatórias com outros suportes, basicamente visuais. Mencionem-se os trabalhos de Flora Sussekind, de Florencia Garramuño.
[10] Ver Dosse, 2015, para uma apresentação abrangente da questão biográfica, na área da História, em viés francófono.
O presente artigo apresenta um estudo do espetáculo Medeia por Consuelo de Castro, realizado no formato de teatro e filme. Vinculado pela internet ao contexto da pandemia em 2021, a proposta do teatrofilme é objeto para a reflexão sobre contaminações entre espaços, elementos e teorias próprios aos dois campos de trabalho, sempre tomando como referência o contexto da nova versão da tragédia da dramaturga.
A encenação de Medeia por Consuelo de Castro foi veiculada pelo canal da companhia de teatro Br116 na internet em meio ao agravamento de uma nova onda da pandemia da Covid-19 e da descoberta de novas variantes ou mutações do vírus. Tanto o vírus quando seu sentido de contaminação, desenhado diante da impossibilidade dos encontros, geraram uma nova procura ou medida de novos espaços-linguagens entre áreas historicamente já contaminadas:
Hoje, temos a obrigação de pensar em todas as formas de contágio. O vírus não é transmitido apenas por gotículas de saliva, mas também pelas palavras. A palavra metáfora vem do grego μεταφορά, que significa transferência, mudança, transporte. O que nos leva de novo ao início: metáforas do vírus (Mello, 2020).
Essa metáfora é útil para nós, pois o que apresentamos aqui, a problematização do teatro enquanto experimento de filme, considera três aspectos: primeiro, a impossibilidade ou inviabilidade do encontro vivo entre pessoas no contexto da pandemia; segundo, a linguagem da arte em sua constante contaminação e mutação; e terceiro, a encenação em busca de espaços e corpos no tempo atual. Assim, a linguagem é como um vírus – a palavra expelida pelo corpo e a palavra ingerida pela imagem. Em um estudo sobre a metáfora viral e o sentido do lugar da escrita em William Burroughs (Burroughs, 1967), o psicanalista Pedro Teixeira Castilho coloca:
Ilusões e imagens são criadas pelas palavras que vêm de fora, pois, essas palavras atacam, viroticamente, os seres humanos e instituem a concepção binária da diferença sexual. A diferença sexual é um efeito da virulência da linguagem, a relação homem/mulher só existe porque os corpos estão submersos na linguagem. Por um outro lado, segundo Burroughs, o pensamento binário estabelece o desejo de união que não pode ser nunca atingido porque os opostos nunca podem se transformar em um “won’t be two” (Castilho, 2005).
Esse deslocamento promovido pelo vírus, em conjunto com a ideia da contaminação imposta pelo isolamento, remete ao mesmo tempo ao dilema da abordagem binária teatro/cinema e, também, à impossibilidade de teatro e cinema se situarem como um só. A ideia de contaminação pressupõe um novo contato, se lembrarmos que o teatro, e principalmente o cinema, sempre estiveram associados a um lugar híbrido. Paulo Emilio Sales Gomes, num estudo inaugural, irá pensar as relações entre teatro, cinema e literatura através do personagem de ficção. Tendo em vista tal campo relacional, ele estabelece uma base para sua análise:
os melhores filmes e as melhores ideias sobre cinema decorrem implicitamente de sua total aceitação como algo esteticamente equívoco, ambíguo, impuro. O cinema é tributário de todas as linguagens, artísticas ou não, e mal pode prescindir desses apoios que eventualmente digere. Fundamentalmente, arte de personagens e situações que se projetam no tempo, é sobretudo ao teatro e ao romance que o cinema se vincula (Sales Gomes in Candido, 2002, p. 106).
Durante o processo de construção de Medeia por Consuelo de Castro, a atriz Bete Coelho e membros da trupe compartilhavam na rede algumas referências sobre a experiência e o processo de montagem de um espetáculo em forma de teatro e de filme:
A tragédia nunca se fez tão presente na realidade da população mundial e, principalmente, do povo brasileiro. Esse gênero continua latente até os dias de hoje porque ele representa o que há de mais belo e monstruoso no ser humano: a incapacidade de agir somente pela razão (@cia.br116, 2021).
Outra postagem veicula a palavra ao ator Matheus Campos, que atua como Apsirto:
Atuar em Medeia foi um momento de reencontro como ator depois de sete meses sem estar nos palcos. O vírus me fez lembrar como somos frágeis diante de um inimigo invisível e o gênero trágico nos faz lembrar dessa eterna condição humana. A vida é efêmera quando não se é um deus (@cia.br116, 2021).
A divulgação virtual objetivava antecipar um processo, viralizando na rede e suas conexões (cartaz-megafone do romantismo mambembe intermediado por câmera e tela, já que tudo hoje é câmera e tela), a necessidade de um filme a partir de uma peça e a expectativa de um novo encontro permitido por algum sentido proposto no limiar entre teatro e cinema, deslocando-os para um terceiro lugar.
Susan Sontag lembra que:
Pelo fato de a câmera poder ser utilizada para projetar uma espécie de visão relativamente passiva e não-seletiva (…) o cinema é um meio tanto quanto uma arte, no sentido de que pode abranger qualquer uma das artes de representação tornando-a uma transição fílmica (Sontag, 1987, p.100).
Grande parte dos trabalhos de teatro veiculados nesse contexto de isolamento social tinha seu resultado derivado dessa dualidade do cinema: simples meio de veiculação do registro de uma cena; ou do cinema como linguagem – permitindo usar o automatismo do registro e do olhar da câmera, seu trabalho de fragmentação e montagem sobre o ator, o espaço e o tempo como elementos de intervenção artística na cena. Diante da impossibilidade do encontro vivo, o teatro lidava, particularmente nesses tempos, com esse binarismo na defesa de territórios de prática e contaminação, tentando estabelecer uma discussão que já vinha sendo levantada desde o surgimento do cinema, e mais ainda, retomada na contemporaneidade, em torno da presença de recursos digitais audiovisuais como parte do espetáculo teatral.
A produção de eventos e debates no formato, em palcos diferentes e numa mesma temporada foi e continua constante, pois, ainda no momento da escrita deste texto, não vemos a saída para o atual estado viral do homem. O teatro permitido pelo meio cinema talvez nunca tenha sido tão acessado pelo público (o público próprio e cativo do teatro) e, também, por um novo público. Um detalhe importante e definidor dessa dualidade entre meio e linguagem é que o evento, ou peça, tornou-se registro, cópia, e pode ser visto e revisto nos arquivos ou cinematecas da rede. Sontag (1987, p.100) esclarece:
Uma pessoa pode filmar uma peça, um balé e um acontecimento esportivo de forma que o filme se torne, falando-se de maneira relativa, uma transparência, e parece correto dizer que se está vendo o fato filmado. No entanto o teatro (ou dança) nunca é um meio.
Em Medeia por Consuelo de Castro a proposta de contaminação e deslocamento já estava presente no termo teatrofilme atribuído pelos diretores Gabriel Fernandes e Bete Coelho para nomear a nova produção, desenhada no atual contexto. A proposta do teatrofilme “testa os limites de coexistência entre o teatro e o cinema, assim como todos os limites de trabalho e relação humana passaram a ser reavaliados durante a pandemia” (@cia.br116, 2021). O diretor, vindo de experiência com a presença do audiovisual no espaço do teatro, acrescenta:
O ator, mais que o diretor, é quem está mais próximo do autor, expõe suas falas, dá vida, corpo, razão e emoção às personagens. Minha função foi, através da câmera e da edição, criar o terreno para florescer o trabalho dos atores e a história da Consuelo (@cia.br116, 2021).
Se a proposta de teatro e filme não seguia pelo caminho do encontro vivo e presente, e do que se repete como novidade a cada apresentação nos palcos, e nem mesmo do ao vivo das transmissões mais comuns do período de isolamento, a proposta mantinha na posição de frente a vontade de teatro, contaminando-a e deixando-a se contaminar por uma ideia de um suposto filme. A cena viva se estabelece num limiar entre texto-ator-espaço; promove-se, assim, um encontro com as possibilidades de registro da câmera sob um projeto de montagem (cinematográfica e teatral); e, por fim, um modo de encontro com o público é arquitetado. O que poderia ser algo binário, teatro-teatro, filme-filme, torna-se diálogo e os lugares passam a se confundir. Esse encontro, teatro e cinema, nunca foi novo e é sabido que o cinema sempre se desenvolveu a partir desse atrito, entre assumir sua cena e linguagem específica, na encenação a partir das formas plásticas puras, e de um cinema que economicamente precisou se associar ao texto e às intrigas originárias do teatro e do romance no início do século XX. De forma correlata, o teatro soube reagir ao cinema desde sua consolidação e procurou buscar suas especificidades próprias. Essa busca esteve presente nos escritos dos maiores pensadores do teatro e cinema do século XX, e parece não ter fim. As contaminações recíprocas atualizam-se e o surgimento do digital e do amplo acesso ao dispositivo câmera/tela só vem reforçar tal parceria.
A presença de um texto para guiar a cena foi relevante para buscar elementos de distinção entre os dois procedimentos – a peça no teatro (mais presente ou ausente como centro irradiador da cena) e o roteiro, o texto dramatúrgico no filme (mesmo que mais presente ou ausente como estruturador da cena). A definição desses dois lugares em torno do efêmero do roteiro (fadado ao esquecimento e à lata do lixo depois de terminadas as filmagens) e à sacralização do texto do teatro (resgatado e repensado a partir de novas e sucessivas encenações) são possibilidades e distinções. O texto da versão de Medeia pela dramaturga Consuelo de Castro será a base para a encenação do teatrofilme e o ponto de partida para se estabelecer a realização – texto, ator, espaço, tempo, câmera e montagem (agora o termo apropriado em seu sentido cinematográfico). A palavra é dita e a cena é dita, reafirmando sempre a fidelidade ao texto, em detrimento da crença na imagem, ou simples paisagem, na força da natureza no mito de Medeia como potência a ser explorada.
No estudo sobre a relação entre texto e encenação, Raymond Williams destaca os quatro elementos centrais ao teatro: fala, movimento, espaço cênico e som; e apresenta quatro categorias de ação nesse espaço: a fala encenada, a representação visual, atividade e comportamento. Sobre a fala encenada ele lembra a tragédia clássica, onde todos os detalhes são tidos como pré-determinados e cita suas convenções, mas destaca que, entre as quatro ações, cabe a interferência e os pesos delegados pela sua efetiva encenação:
no teatro a relação entre texto e encenação não é nada estável. (…) as variações devem sempre ser compreendidas segundo os termos dos métodos possíveis e mutáveis de representação e escrita dramática” (Williams, 2010, p.219).
Por sua vez, o cinema se organiza a partir da autonomia da imagem e da possibilidade de abandonar a centralidade do ator e mergulhar em outros elementos da cena. Na sua História do Cinema Mundial, Georges Sadoul aponta para aquilo que funda o cinema e o separa do teatro desde o seu surgimento:
o cinematógrafo Lumière era uma máquina de refazer a vida. Já não eram fantoches que se agitavam na tela, eram personagens do tamanho natural, nas quais se distinguiam, melhor que no teatro, as expressões e a mímica. E, graças a um milagre que nuca tivera um equivalente no palco, as folhas agitavam-se ao vento, o ar espalhava o fumo, as vagas do mar vinham quebrar-se na praia, as locomotivas precipitavam-se sobre a sala, os rostos aproximavam-se dos espectadores. “É a natureza tal qual”, exclamaram com maravilhado espanto os primeiros críticos (Sadoul, 1983, p.52).
Entre a força do texto, a fala e a encenação com o irrepresentável da natureza, no teatrofilme, a cena nunca se desvia de Medeia e os personagens que a cercam. Fazer da paisagem o agente evocativo de sensações, tensões e ações – a ruína, o mar, a tempestade, o lugar possível da memória dos personagens, animar e humanizar a paisagem, talvez pudesse trazer a proposta de encenação mais para o lugar lembrado como específico do cinema. Em Medeia por Consuelo de Castro, a encenação está no nutrir-se do texto, sempre através dos atores, que nunca abandonam a cena. Nessa adaptação, o texto, o ator e a utilização da descentralização da cena talvez deslocasse a sua parte filme apenas como única forma e meio de encontro com o público. Mas não é o que ocorre. Algo nos intriga nessa Medeia, e com o trabalho do filme (câmera e montagem) chegamos a algum lugar. Onde o cinema (e o teatro) viria, aqui, reivindicar o seu lugar?
Se por cinema entende-se a liberdade de ação em relação ao espaço, e a liberdade do ponto de vista em relação à ação, levar para o cinema uma peça de teatro será dar a seu cenário o tamanho e a realidade que o palco materialmente não podia lhe oferecer. Será também liberar o espectador de sua poltrona e valorizar, pela mudança de plano, a interpretação do ator (Bazin, 2014, p.164).
O teatrofilme de Medeia parece problematizar essa colocação de André Bazin, no seu celebre estudo sobre o teatro filmado. No teatrofilme, a parte teatro nos parece sempre reivindicado, sempre presente, dada a sua interdição, como origem do projeto divulgado pela trupe. Todos os atores estão ali no set do filme em deslocamentos – isolados e contaminados pelos dois espaços. O espaço do palco resiste ao local real das ações demandado por um filme mais usual. A trágica personagem de Medeia, exilada de seu reino, não pode mais voltar, está exilada também de seu lugar (o palco). Esse desenho parece claro pois o set do filme insiste em elementos cenográficos deslocados, metafóricos e imaginários como um cenário fabricado para o espaço do teatro. Não se trata da reprodução do real em um estúdio. A natureza aparecerá nessa leitura apenas para libertar Medeia com sua vingança.
O espaço do teatro é bem demarcado na cena em que Medeia planeja sua vingança contra a traição de Jasão, que irá se casar com a filha do rei Creonte. Ela vai presentear a futura noiva com o vestido de ouro que seu avô, o sol, lhe deu de presente de casamento com Jasão. Ela nos conta que, ao vesti-lo, a rainha arderá em chamas junto de seu palácio e cidade. Na cena, a câmera espreita Medeia em seu monólogo sobre um chão coberto de carvão. Sobreposições sobre uma aparente tela trazem para esse espaço a imagem exterior da devastação. Ela, então, se curva e retira do carvão o vestido de ouro. Existe a recusa do corte cinematográfico, que inaugura a magia nos efeitos especiais mais comuns do cinema. O propósito do gesto é realçar seu simbolismo e não a surpresa ou o realismo da revelação do vestido enfeitiçado. O ambiente sempre imerso em um fundo infinito negro, sua rotunda invisível, e projeções/sobreposições de outros espaços exteriores à cena (luz, telas translúcidas) como recursos associados ao audiovisual. O propósito desse espaço imaginário e simbólico é apresentado pelo diretor de arte Cássio Brasil, no exemplo do uso cênico do carvão:
Como subproduto do fogo, ele carrega a qualidade ambígua daquilo que já́ foi queimado ou ainda está por queimar criando, portanto, uma elipse narrativa no espaço. Perde-se a referência entre passado e futuro (@cia.br116, 2021).
Quanto às projeções e sobreposições, fica a dúvida se são elementos cênicos, hoje comuns com o acesso às ferramentas digitais do audiovisual, ou se esses elementos na cena foram acrescentados na finalização do filme. O indexical inerente ao gesto fotográfico da câmera, a imagem técnica como documento e vestígio do ato de se ter efetivamente testemunhado os fatos e a cena (onde os atores se encontraram), não se faz menos ambíguo. Não sabemos ao certo se essas sobreposições e encontros são fruto de uma posterior composição cênica. Os recursos de manipulação digital das imagens, muito acessíveis hoje, jogaram por terra essa certeza do encontro real. Hoje podemos trabalhar a imagem do filme com a mesma liberdade que temos diante de uma tela de pintura, acrescentando ou subtraindo elementos, ajustando cores, acrescentando camadas e inserindo recortes. Não seriam esses recursos o equivalente às rotundas pintadas compondo o cenário tradicional de um determinado espetáculo teatral? Essa questão lança questões sobre um dado específico da realização do filme, que é seu material bruto. Não há dúvidas que todas as cenas do teatrofilme foram filmadas em diversas tomadas de cena, algumas tomadas únicas, ângulos, aproximações, afastamentos, erros, acertos, repetições. Desse material bruto registrado em um suporte de filme, as cenas foram articuladas e manipuladas no momento da montagem ou edição propriamente dita. Ou seja, o encontro entre os personagens e algumas cenas se deram somente no suporte do filme, depois de articulado e manipulado digitalmente o material na ilha de edição. Assim, podemos perceber esse jogo de interferência da imagem retocada nos encontros de Medeia com a Ama, sempre em planos paralelos ou sobrepostos, os encontros (reais?) entre Jasão e Creonte, contra o fundo de espelhos. O toque explícito de mão e rosto entre Creonte e sua filha Glauce. Medeia e o fantasma do irmão. A cena do pedido de perdão e comunicado da sentença de Jasão a Medeia, intermediado por um vidro ou transparência, onde os rostos ora estão paralelos ou se sobrepõem para quase formar um só. Essa plasticidade da imagem ganha força máxima de encenação quando Medeia procura Creonte para fingir arrependimento, em um jogo de sedução e início de vingança: Medeia surge aos poucos através da textura da tela de fundo negro. Creonte surge como uma projeção desproporcional do primeiro plano de seu rosto, com texturas ou manchas da parede sobre a pele. Houve o encontro vivo dos atores entre si e com o jogo da câmera? Ou é tudo montagem?
Quando o teatrofilme testa a presença dos atores, o teatral no cinematográfico, o corpo ganha força, e o ator e o processo de encenação do teatro invadem a paisagem – o vento, o chão queimado, a natureza. E o corpo do ator diz: eu sou Medeia, eu sou Creonte, eu sou Jasão, eu sou ator e personagem, assumindo sua teatralidade ou “aquilo que, na representação ou no texto dramático, é especificamente teatral” (Pavis, 2008, p.372). Mas a vontade do filme suposto para o teatro persiste. Podemos tentar mensurar o grau de intervenção da encenação do filme sobre a presença dos atores nessa dosagem de teatralidade, previamente prevista ou roteirizada pelo texto referência da tragédia de Medeia. Se o gesto de cinema no teatrofilme não se limita apenas a ceder o espaço que lhe é mais característico, talvez possamos pensar na presença do filme no espetáculo Medeia por Consuelo de Castro; não na fabricação do filme mais usual de ficção, mas sim na encenação do filme documentário:
A parte documentária do cinema implica que o registro de um gesto, de uma palavra ou de um olhar, necessariamente se refira à realidade de sua manifestação, quer esta seja ou não provocada pelo filme, mesmo ele sendo um filtro que muda a forma da coisa (Comolli, 2008, p.170).
Sob essa ótica, o filme como linguagem interventora no teatrofilme ganha enorme força ao trazer atores contaminados pela presença do teatro e, ao mesmo tempo, presenças contaminando o realismo do filme – e, em conflito, uma ideia de ator dissociada do realismo ou naturalismo demandado pelo cinema: “No cinema, a presença específica do corpo se sobrepõe a qualquer arte de composição. (…) o código do natural é muito mais opressivo no cinema: não basta imitar, sugerir, é preciso ser” (Roubine, 2002, p.54). Isso para lembrar que, dada a qualidade do gesto fotográfico, que toma um ator no espaço, a câmera do cinema registra um corpo que já se manifesta no simples recorte, na manipulação de seu tempo e espaço no quadro. O ator é imediatamente registrado em algum suporte técnico de imagem, numa ação fadada à repetição, sem o menor risco do erro, ou do desvio no corte final. No cinema, a presença do ator está irremediavelmente marcada por essa propriedade, o que permite, por exemplo, eleger um simples passante no instante da filmagem como um ator e torná-lo parte da cena do filme. O cinema permite esse ator que é único, um ator cotidiano (Barba, 2012). Ator esse, fundido com a pessoa e despossuído em suas ações (seu corpo e seu gesto) do estudo e da técnica para a cena (geralmente buscados nos estudos de teatro) e que, todavia, dado o projeto de um tipo de filme, é colocado em cena, não apenas como pessoa, mas também como personagem. O filmeteatro parece documentar o ator na cena da tragédia.
Bete Coelho está em Medeia por Consuelo de Castro na sua presença documentária. Aliás, todos os atores do teatrofilme estão disponibilizados para a cena como atores sociais na leitura de Bill Nichols em seus estudos sobre o filme documentário. Segundo o autor, o termo surge:
para enfatizar a dosagem em que os indivíduos representam a si para os outros; (…) O termo também é utilizado para nos lembrar que os atores sociais, as pessoas, trazem sua ação dentro da arena histórica, onde eles performam (Nichols, 1991, p. 42).
O primeiro olhar, o olhar do cinema, nos diz que o teatrofilme deixa-se impregnar primeiramente pela pessoa Bete Coelho em um estado de atriz de teatro, no lugar que deveria ser, se possível, o do teatro, para depois, em um segundo olhar, nos deixar identificar e impregnar por Medeia, participar da sua trama e tragédia. Embora uma atriz muito reconhecida, principalmente pelo teatro, não é a questão de falar em tipagem: “O tipo define o conjunto das características físicas e vocais de um ator na medida em que elas se encaminham para um certo gênero de papeis, e somente para este gênero” (Roubine, 2002, p.75), e nem no sentido de mito: “Nas sucessivas encarnações através de inúmeros atores, permanece a personagem de Hamlet, enquanto no cinema quem permanece através das diversas personagens que interpreta é Greta Garbo”, coloca Paulo Emílio Sales Gomes (in (Candido, 2002, p.115). A presença da atriz Bete Coelho e seus pares é a perfeita representação do ator interditado do teatro, apresentando-se em filme, no rastro de uma presença como na bela colocação de André Bazin (2014, p.174):
É errôneo dizer que a tela é absolutamente impotente para nos colocar “em presença” do ator. Ele faz isso à maneira de um espelho (que, é ponto pacífico, substitui a presença do que se reflete nele), mas de um espelho com reflexo diferido, cujo aço retivesse a imagem.
O magnetismo da atriz, o corpo expressivo, uma forma de falar – presente no filme numa espécie de desvio – para além do estranhamento que testa e, a um só tempo, compõe uma só presença na atriz em processo de fabricação ficcional da personagem trágica de Medeia. A teatralidade na pessoa e personagem (e com certeza os outros atores parceiros do teatrofilme estão nesse mesmo desenho de presença) é aqui o material para o filme – a sedimentação do personagem não na pessoa comum (aquele passante no instante da cena do filme) mas no ator, vestido de uma técnica pessoal ou códigos preexistentes a serem utilizados na cena proposta pelos encenadores/realizadores. E não faz parte do projeto de teatrofilme que a paisagem real se desloque para o centro do drama e, no seu poder de evocar sentidos e sensações, conduza uma parte da tragédia. Bete Coelho e os atores da trupe são três: a pessoa, o ator, a personagem. Os três em estado de contaminação pelo espaço e pela presença de dois lugares. Na encenação do filme, o espaço, o tempo, o acaso, associado à ilusão do real, são os elementos que indicam para o ator uma direção ao natural, à desconstrução técnica, até que sua fabulação encontre a pessoa no personagem. Ator esse que não interage diretamente com a câmera, mas joga com ela. Diferentemente do teatro, o ator nesse espaço não tem nenhuma resposta ou troca imediata com o espectador e não pode atualizar reações e novas ações. Como ressalta Jean-Jacques Roubine (2002, p.78)a partir do teatro: “qualquer natural é, apesar de tudo, histórico”.
Além de ser criada a partir de um encontro vivo no momento do set do filme, e atualizada no momento do encontro com o espectador mediado por uma tela, a imagem no cinema é uma imagem imposta pelo ponto de vista da câmera/realizador sobre as ações. Para Ismail Xavier (2003, p.37), no filme:
junto com a câmera, estou em toda parte e em nenhum lugar: em todos os cantos, ao lado das personagens, mas sem preencher espaço, sem ter presença reconhecida. Em suma, o olhar do cinema é um olhar sem corpo.
Já na sala do teatro estamos mais livres. O direcionamento do nosso olhar sobre a cena pode ser direcionado pelo foco da luz ou pelo do gesto do ator, mas o que sustenta esse encontro são os lugares imaginados, as falas encenadas, os personagens muitas vezes deslocados nos seus atores – a mulher faz o homem, o homem a criança, o belo faz o feio, assim por diante, e tudo isso também nos é crível. Dois encontros e dois acordos.
O olhar sem corpo do espectador tem, no filme, a possibilidade de adentrar a cena e acompanhar os atores do melhor ponto de vista possível, ou do ponto de vista que nos é dado ver, sem escolhas, por isso, também, olhar imposto. Esse olhar fragmenta o espaço, as ações e os corpos, numa aparente descontinuidade, que através da montagem reconstrói uma totalidade para nós e, principalmente, um novo espaço no mundo. Pactuamos com o caráter mais automático do gesto fotográfico, que determina um poder de crença no que vemos, de tomar como real prontamente a cena apreendia pela câmera e fixada em um suporte técnico, naquele instante de um certo teatro.
No cinema, para além de uma primeira etapa, da criação de uma mise-en-scène próxima ao teatro, o ser atuante em um espaço e tempo, o processo avança para uma próxima etapa de encontro dessa cena com o jogo de intermediação da câmera. Assim, como vimos anteriormente, a opção pela condução do drama no teatrofilme está pautada pela fala encenada dos personagens da versão de Medeia por Consuelo de Castro, mais do que o predomínio das representações visuais ou da simples paisagem. No momento de encontro com a câmera percebemos que o gesto do realizador é deixar a apreensão da cena em planos longos, com as ações dos atores em fluxo.
A fascinação do plano longo sempre repousou mais ou menos sobre a esperança de que, nessa coincidência prolongada do tempo do filme com o tempo real (e o tempo do espectador), algo de um contato com o real acabe advindo (Aumont, 2004, p.66).
Assim lembra o teórico Jacques-Aumont sobre a autoria de alguns realizadores. E a presença em fluxo também é uma característica teatral. O real em Medeia, está determinado pelo seu projeto inicial, a tragédia e suas convenções atualizadas “na realidade da população mundial e, principalmente, do povo brasileiro” (@cia.br116, 2021). Trabalha-se no momento do set do filme com as limitações desse instante de isolamento social e do encontro vivo, no set do filme e no palco do teatro.
No espetáculo tudo está traduzido no projeto do filme: o teatro interditado, a imagem imposta do cinema e o drama imaginário dos personagens e atores. Em Medeia, na sua estreia, o encontro com o espectador não foi veiculado ao sabor do ao vivo, buscado por outros espetáculos ou teatros advindos dessa mesma situação de isolamento social. Portanto, é importante colocar a questão: No encontro com sua parte filme, como foi aproveitado os recursos narrativos permitidos pelo cinema? Nesse jogo de assumir espaços e corpos contaminados, podemos eleger uma ou duas sequências do teatrofilme e analisar três elementos reconhecidos pela teoria como vedados ao teatro: a câmera subjetiva, ou a possibilidade, no filme, do espectador assumir o olhar e ponto de vista do personagem; o plano e contraplano da ação tornando tudo, 360 graus, o mundo real da cena; e o plano detalhe, que permite não só descentralizar a cena, mas buscar no rosto ou olhar o que não precisa ser dito ou ampliado pelo gesto do ator.
O monólogo é comum ao teatro e ao cinema, mas a exteriorização do monólogo pela fala tem uma força teatral. No mundo real do espaço no cinema, salvo em algum contexto especial ou experimento formal, o monólogo se expressa em off (fora de quadro da cena). Não só porque na vida expressamos nossos pensamentos e sentimentos verbalmente através do diálogo ou de uma escuta direta, mas porque no filme a câmera tem propriedades especiais sobre a cena. A aproximação da câmera tem a capacidade reconhecida de ler, adentrar o personagem e ressignificar os objetos os quais ela destaca: “Mecanicamente, uma simples lente pode a seu modo ser suficiente para revelar a natureza íntima das coisas” (Epstein, 2012, p. 296). O que Medeia verbaliza estaria no detalhe de suas mãos tensas, no seu rosto, nos seus olhos que expressam o ódio, a vingança. Bastaria no filme o silêncio ou a inserção das maquinações e angústias de Medeia, apenas no silêncio de seu pensamento. A opção de encenar o monólogo de Medeia sem levá-lo para o extracampo da imagem e da fala direta, não diminuiu a força de profusão dos detalhes no rosto, boca, olhos, corpo e mãos da atriz. Os planos são belíssimos e, algumas vezes, encenar o conflito de uma Medeia atualizada, não poderia ser mais eficiente que sua fala trágica e cortante sobre o rosto expressivo da atriz. A presença de Medeia no teatrofilme é quase todo em primeiros planos e planos detalhe. Nesses planos, além da expressividade formal associada ao texto, da atriz-personagem-pessoa, a plasticidade da imagem em preto e branco não deixa claro se a sua força dramática parte do teatro para o filme ou do filme para o teatro. Temos como exemplo a cena em que Medeia lança seu feitiço sobre Glauce. Um plano detalhe do rosto da princesa em êxtase e agonia é pressionado e deformado pelas mãos de Medeia (ou são, na verdade, as mãos da própria atriz/Glauce?), enquanto segue o monólogo em off ou extracampo: “(…) agora meus materiais de sortilégio, os mais daninhos, os mais dolorosos, os venenos (…)” (@cia.br116, 2021). Talvez, a predominância do plano detalhe não seja apenas para aproveitar a porção filme no espetáculo: “o teatro da pele”, na exata definição de Jean Epstein (in Keller, 2012, p.272), mas para traduzir em imagem o que Bete Coelho, diretora, coloca sobre Consuelo de Castro: “é uma das poucas dramaturgas que percebe a embocadura do ator e seu movimento interno: ‘é como se ela entrasse na carne das personagens’” (@cia.br116, 2021).
A câmera torna-se subjetiva quando abandona a observação externa da cena, permitindo ao espectador assumir o ponto de vista do personagem dentro da trama. Com a câmera subjetiva, o espectador vê o que o personagem vê, através do seu olhar e do seu corpo, proporcionando um outro modo de identificação. Fazer com que o espectador assuma o corpo e olhar sobre o mundo do personagem da trama é operação claramente negada ao teatro. Nem mesmo a interferência de recursos audiovisuais em algumas peças teatrais são suficientes para incorporar esse elemento do cinema. São experimentos formais sobre essa impossibilidade. No teatrofilme somos todos observadores de fora e essa barreira nos parece, mais uma vez, a opção de o encenador/realizador estabelecer um desenho para o encontro conosco, que também é o do teatro.
Em Medeia, mesmo que presentes no mesmo ambiente o encontro do teatro com o filme, o que se representa é o isolamento. Os encontros estão sempre separados por camadas de imagens, telas, projeções, texturas e recortes. O próprio corte cinematográfico já é em si um elemento de separação e projeto de articulação posterior, fora do momento do encontro no palco-set do filme. Nos momentos dos diálogos do texto da tragédia, a frontalidade da cena, em algumas sequências, dá lugar à tradicional montagem em plano e contraplano. Essa articulação tem a característica do filme em colocar as ações e reações dos personagens na totalidade do mundo onde se encena. Tudo é parte do lugar real da história. Nessa articulação da montagem, o aparato técnico – câmera, luz, som e equipe, desaparece e, ali no espaço real da cena, passam a existir somente os personagens e o mundo.
Uma cena representativa e forte sobre a frontalidade da cena, que se soma ao conflito do texto dramático, pode ser observada na mesma cena quando Medeia dialoga com Creonte, para apresentar o vestido a ser presenteado para sua filha, e no jogo de sedução que se estabelece. Plano e contraplano não se efetivam e o dado visual é produzido pela separação entre Medeia presente e a imagem de Creonte mediada por uma tela, em proporções desiguais, em um espaço de encontro que não escapa aos aspectos mais próximos do palco. Assim, também, na cena seguinte, no encontro de Medeia com Jasão.
Esses elementos que interferem na cena, e que fundam o espaço do filme, testam especificidades, mas jamais conseguiram inaugurar um binarismo da cena. O teatrofilme, na sua releitura do mundo de Medeia, apresenta um final muito significativo, inclusive para exemplificar o recurso do plano e contraplano na espacialidade do filme. Ao aproximar-se de seu desfecho trágico, a cena é levada para a natureza. As folhas se movem ao vento, o chão queima, Medeia está vingada, mas recebe de Jasão a notícia da morte dos filhos. Na montagem do diálogo em plano e contraplano, os atores estão imersos no mundo. Tudo participa da cena, não há coxia, não há camarim (o teatro não acontece para o espectador em seus bastidores, apenas no espaço traçado do palco). O poder de encenação visto no interior do enquadramento da imagem é tão forte quanto a cena que se esconde no fora de quadro, ativa, participando do contexto da trama. Enquanto vemos o encontro final de Jasão e Medeia, em outro lugar, algo está acontecendo, os argonautas preparam o navio, o tosão de ouro está sendo roubado, e o mundo prossegue paralelamente à cena.
Esses elementos do teatrofilme se efetivam nos instantes finais da tragédia, quando o espaço do cinema parece que vai se sobrepor definitivamente ao espaço da peça. Tudo é terra devastada. Porém, um novo corte, leva a cena de volta ao espaço imaginário do palco possível, das projeções, sobreposições, do fundo negro infinito e de objetos simbólicos. O teatrofilme chega ao seu desfecho, e de volta ao seu lugar mais contaminado. A cena readquire a frontalidade em fluxo. Medeia, em um gesto muito significativo, olha ao longe e lança o olhar acima do olhar da câmera, para o infinito da plateia imaginária, mergulhada no escuro. Ela apresenta seu monólogo final sobre sua desgraça e maldição e parte com os argonautas. Nesse momento, e somente nesse instante final, Medeia olha para a câmera, e a câmera somos nós. Medeia esboça um leve sorriso, e seu corpo se movimenta ao sabor do mar também imaginário. O teatrofilme suposto para o contexto atual se efetiva. O direito ao deslocamento, estar fora das convenções de um naturalismo demandado pelo filme realista, por parte da presença do ator e do lugar do cenário, transporta a realização e a montagem de Medeia por Consuelo de Castro de volta para o local mesmo do mundo em contaminação, dos espaços interditados, negando o binarismo inaugural que se experimenta sempre na intervenção do vírus, no encontro entre teatro e filme.
* Rafael Conde é doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, pós-doutorando em Cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP e Docente do Programa de Pós-Graduação em Artes das Escola de Belas Artes da UFMG. Entre seus trabalhos em cinema destacam-se: Uakti: Oficina Instrumental, A Hora Vagabunda, Françoise, Samba-Canção, Fronteira. É autor do livro O ator e a câmera: Investigações sobre o encontro no jogo do filme (Editora UFMG, 2019).
Referências
AUMONT, Jacques. O olho interminável [cinema e pintura]. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
BARBA, Eugenio; Savarese, Nicola. A arte secreta do ator: um dicionário de Antropologia Teatral. São Paulo: Realizações, 2012.
BAZIN, André. O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014.
BURROUGHS, William S. The ticket that exploded. New York, Grove Press, 1967.
CANDIDO, Antonio (Org.). A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002.
CASTILHO. Pedro Teixeira. “O mais além da escrita na obra”; “The ticket that exploded” de Williams Burroughs. Em Tese, Belo Horizonte, V. 26 N. 1, p. 245-252, 2005. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/3667. Acesso em fevereiro 2021. DOI: 10.17851/1982-0739.9.0.245-252
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
KELLER, Sarah; PAUL, Jason N. (org). Jean Epstein: critical essays and new translations. New York: Amsterdam University Press, 2012.
Este artigo trata sobre os embates prático-discursivos de memória política entre correntes do pensamento social (democrática x antidemocrática) em constante rearranjos narrativos conforme o momento temporal e o contexto espacial. Para efetuar uma análise sociolinguística dos vieses político-ideológicos de memória/esquecimento na apropriação simbólica do antigo Prédio do DOPS-RJ, utilizaremos de alguns arquivos virtuais envolvendo o Movimento OcupaDOPS – que tenta transformar antigo prédio do DOPS no Centro do Rio de Janeiro em um centro de memória contra a ditadura –, apontando para a possibilidade de superação psicossocial e consolidação democrática micro e macropolítica. Através do legado prático e teórico brasileiro e internacional sobre justiça de transição (direto à memória, reparação, punição e superação) e cidadania efetiva (vivida, garantida, percebida e ativa) no Brasil, expressos na esfera pública pelos trabalhos da Comissão da Verdade e Anistia, se tenciona reconhecer a urgência da ressignificação cultural dos espaços de memória associados ao terrorismo estatal na Ditadura brasileira – mas também a resistência estudantil a ela, como no caso do inacabado Memorial da Anistia do prédio do “Coleginho” da UFMG, proposto pelo governo federal na Era Lula.
Em 2013 participei ativamente das Jornadas de Junho em diversos levantes populares contra um Estado refratário aos movimentos e demandas sociais, rarefeito em sua vocação de escuta e participação política. Entre as diversas manifestações históricas que ocorreram nessa época acompanhei mais de perto duas: do OcupaRio, como cidadão dos grupos de trabalho, e, como mestre de memória social, do OcupaDOPS. Ambos os movimentos pareciam ter mais em comum entre si do que com a global franquia “Occupy”. Com o passar do tempo segui acompanhando e estudando os esforços da Comissão da Verdade e da Lei de Anistia, como voluntário da paz conflitual.
Em 2017, fui convidado para ir a Brasília conhecer alguns dos integrantes da Comissão da Anistia no Ministério da Justiça, quando fora aprovado nas instâncias preliminares para me tornar mobilizador do Memorial da Anistia em Belo Horizonte (MG). No entanto, logo depois, o concurso foi cancelado sem motivo aparente e a Revista da Anistia, inviabilizada, pelo que consta, por falta de papel em função da crise econômica que se anunciava, e que culminou com o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Mais do que um mal-estar pessoal, percebi que, a partir dali, o país começaria a se debater em um duelo de forças antitéticas sociodiscursivas, o que nos levaria, uma vez mais, para a perda de estabilidade política e jurídica. Ainda era cedo para prever que os fantasmas dos extremismos autoritários de direita e românticos de esquerda (ou vice-versa) voltariam à cena principal do debate público, para além do âmbito da questão da justiça de transição. O fato é que a justiça não foi, de fato, feita, e, por isso, ficamos sem transição, eternizando o bordão do país sem memória.
O artigo que aqui se consolida é uma versão atualizada do texto aprovado pelos pares da Comissão da Anistia, a partir também da minha pesquisa teórica prévia sobre o campo da Memória Social, baseada em autores franceses como Halbwachs (memória individual, coletiva, histórica, espacial e temporal) e pós-halbwachiano (memória subterrânea ou história oficiosa, história oficial, lugar de memória, memória e esquecimento, identidade social e política). Assim como os trabalhos da Comissão, ele também teve até aqui o mesmo destino de mordaça e esquecimento. Mas, doravante, não mais, afinal, pois eis que ele ressurge nesta relevante revista.
Utilizar-me-ei como pano de fundo ilustrativo da discussão teórica o fato histórico e antropológico, no caso, a manifestação OcupaDOPS em 2014: mais especificamente, a polêmica sobre o uso do prédio antigo do DOPS-RJ (Museu da Polícia X Centro de Memória da Resistência). Ao final, peço licença para fazer uma digressão ensaística sobre a relevância de nos familiarizarmos com esses temas da justiça de transição transicional, democratização cidadã e memória coletiva no contexto brasileiro atual de desmantelamento das políticas públicas humanistas e culturais. Inicialmente, faremos uma rápida contextualização para os não iniciados no assunto da Justiça de Transição para explicar como ela surgiu no contexto internacional dos direitos humanos no final do século XX.
Contexto
O legado do pensamento de transformação social de Lélio Basso e seus parceiros na defesa e colaboração em processos de justiça de pós-conflitos em vários continentes pode ser contemplado em iniciativas como o Tribunais Russel I e II[1] e o Tribunal Permanente dos Povos. Esses eventos ajudaram a consolidar a jurisprudência de que crimes políticos, crimes internacionais e violações dos direitos humanos não atentam somente contra o indivíduo, mas todo o escopo societal – em suas dimensões políticas, econômicas, sociais, jurídicas e culturais (Abrão; Torely, 2013).
Tal mudança de perspectiva do direito da pessoa humana para o direito dos povos (Fillippe, 2013) permitiu compreender que o autoritarismo e a onipotência do Estado não poderiam ser irrestritos e inquestionáveis por parte dos governados. Regimes totalitaristas, devido à banalização do mal institucionalizado (Arendt, 1999) através da violência disciplinar física e/ou panóptica (Foucault, 1997), mormente sobre grupos dissidentes ou antagônicos, atentam não somente contra a boa prática de governança política-jurídica, mas também contra os valores do humanismo, da democracia e dos direitos humanos universais. A diretriz da ONU (2004) sobre o tratamento criminológico em justiça de transição defende a conexão do direito à memória, à justiça, à reparação e à reconciliação (Parmentier, 2003): explicitar fatos do passado, punir os agressores, reparar as vítimas do passado à luz do presente para reconciliar possíveis contradições para que não ocorram recorrências totalitaristas no futuro.
Documento
Reproduzo a seguir a “Petição pela imediata transformação do prédio do antigo prédio do DOPS/RJ em Centro de Memória da Resistência pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro”, dirigida ao governador Sérgio Cabral (disponível em http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR69613, acesso em 28/12/2015):
O prédio que abrigou o antigo DOPS/RJ, inaugurado em 1910, localizado na esquina da Rua da Relação com Rua dos Inválidos, no Centro do Rio de Janeiro, foi construído para sediar a Polícia Central da República. Esta polícia teve como objetivo principal a perseguição à “vadiagem”, a criminalização das práticas de capoeira e de cultos religiosos afro-brasileiros. Ao longo dos anos, o prédio abrigou distintas polícias políticas responsáveis por coibir reações de setores sociais que supostamente pudessem comprometer a “ordem pública”, em especial nas ditaduras vividas no Brasil. A partir de 1962, funcionou no prédio o Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (DOPS-RJ), um dos principais órgãos de perseguição política, tortura, morte e desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura civil-militar. Tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), o edifício ainda está sob a administração da Polícia Civil e encontra-se em péssimo estado de conservação, com arquivos em deterioração, o que evidencia a destruição e o abandono do poder público para com o patrimônio histórico. Além disso, há indícios de que o plano atual do governo do estado é estabelecer o Museu da Polícia e uma galeria de lojas neste espaço, a despeito do compromisso assumido pelo Governador Sérgio Cabral, em 8 de maio de 2013, durante a posse da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, de transformar aquele prédio em um centro de memória. Frente ao inegável atraso do Brasil em matéria de Justiça de Transição, faz-se urgente a destinação do prédio, por parte do governador do estado, para a construção de um espaço comprometido com a memória da resistência e das lutas sociais, e que explicite a relação entre as violações cometidas pelo Estado no passado e no presente, estimulando medidas que impeçam a repetição de tais práticas. É preciso transformar o prédio integralmente em um espaço voltado para as políticas de Direitos Humanos, de modo que seja dinâmico, congregando a produção, guarda e circulação de informações, documentações, acervos, projetos e propostas voltadas ao direito à memória, verdade e justiça. Para isso, os distintos movimentos sociais devem ser os atores centrais na construção e gestão deste espaço, com poder decisório efetivo. A reparação dos danos causados pelo impacto da violência de Estado no conjunto da sociedade se faz através de medidas concretas, como a criação de suportes de memória, ou seja, a implementação de instrumentos que reivindicam o reconhecimento de um passado deliberadamente soterrado, esquecido e silenciado pelas versões oficiais da história, e contribuem com a formação de princípios éticos para a construção democrática do presente e do futuro. O Estado brasileiro e o governo do Rio de Janeiro têm esta dívida histórica pendente. Tornar público o que ocorreu em tempos sombrios fortalece a cidadania, revigora a democracia e pavimenta um futuro de mais justiça. Assim, no intuito de fazer do prédio do antigo DOPS/RJ um marco na defesa e promoção dos direitos humanos no Rio de Janeiro, exigirmos do Governo do Estado do Rio de Janeiro que o compromisso se efetive e que seja realizada a imediata transformação do prédio da Rua da Relação n. 40 em um espaço de memória da resistência e das lutas sociais!
1. Memória histórica e coletiva
Percebem-se no trecho citado conflitos de memórias identitários e políticos entre a condição de memória subterrânea e a oficial (Pollak, 1992). No conflito prático-discursivo de uma estratégia tácita de “esquecimento orquestrado” (Ricouer, 2007) por parte das autoridades estatais militares “antidemocráticos” e outra, explícita de memória negativa, por parte dos movimentos sociais civis “democráticos”, vemos duas correntes de pensamentos sociais (Halbwachs, 2004) que tentam se apropriar da memória socioespacial do prédio do DOPS-RJ. Entre a defesa da instituição policial militar militarizada com o AI-5 (e muitos do regime militar) e da sociedade civil crítica às instituições totais (Goffman, 2010) totalizantes como o DOPS (e muitos da polícia militarizada), dois grupos sociais em disputas territoriais e simbólicas têm como background prévio a truculência policial na contenção das manifestações sociais após 2013, tidas por setores conservadores, como ato de vandalismo.
Após esse período, a polarização política que passamos a viver no Brasil, sobretudo por meio das guerras culturais digitais, resultaram em um empobrecimento dos matizes ideológicos existentes e futuros, que fizeram aflorar velhos fantasmas políticos como a monarquia, o coronelismo e a ditadura. Como uma espécie de karma coletivo, parece haver alguns conteúdos psicopolíticos traumáticos do período militar que ainda nos aprisionam em um dualismo epistemológico (esquerda x direita) que ainda estrutura o campo de batalhas mentais e comportamentais dos brasileiros na fila do banco. A confusão é maior porque ela não envolve somente uma briga por causa da cor da tinta do editorial da memória coletiva nacional, mas sim sobre os significados históricos e usos presentes do espaço do patrimônio edificado de prédios estatais. Tudo leva a crer que de fato há uma relação metafísica entre memorialismo e espacialidade, como parece mesmo sugerir, heuristicamente, a palavra “memorial”. Examinaremos essa máxima à luz do documento supracitado.
2. Memória e espaço
A frase da petição (“É preciso ocupar a memória, para não esquecer nossa história”) aponta para uma forma de ritualização da “memória impossível” através de “lugares de memória” (Norra, 2015), já que, em relação ao antigo prédio do DOPS, tanto os grupos militares quanto militantes reivindicam o uso do patrimônio material para construir um memorial (patrimônio material e imaterial). A necessidade de lembrar com um determinado viés, salvacionista para os militares, martirizante para os manifestantes, através de um anteparo físico e poético, está ligada ao risco do esquecimento, o que geraria o risco da repetição das supostas arbitrariedades humanísticas). O não cumprimento da promessa política do governador Cabral de transformar o local em Centro de Memória e Resistência revela como a memória militar ainda tem alguma pregnância em alguns setores mais conservadores, até porque há a tendência de as correntes de pensamento coletivo imitarem a matéria inerte – apesar dessa estabilidade ser só aparente (Halbwachs, 2004). Sendo os significados coletivos do prédio associados à tortura física e psicológica de supostos comunistas subversivos, o silenciamento sobre esses “silenciamentos” dessas vítimas dos crimes de Estado cria um espiral de violência invisível ad aeternum. O esquecimento cordialista, sem autenticação crítica da memória no tempo presente, seria aqui uma forma de endosso oculto do passado, haja vista que a sensação de impunidade é o principal motivador para que esses crimes voltem a ocorrer no futuro.
A estratégia de terapêutica psicanalítica pela transformação do espaço de memórias recalcadas (trauma coletivo) em memória associada à resiliência política permite reconciliar simbolicamente, ao menos, o grupo que enquadra o momento político-histórico pós-64 como ditadura e não revolução, os efeitos deletérios do terrorismo de Estado e o resgate dos Direitos Humanos e do Estado do Direito. Não é outro também o sentido da construção do Memorial da Anistia em Belo Horizonte (MG) e do Memorial da Resistência (SP), assim como as iniciativas da Comissão da Anistia em suas ações interinstitucionais de implementação de estátuas em homenagem aos mártires do terrorismo do Estado, as “Trilhas da Anistia”.
3. Memória e tempo
O enquadramento temporal na ancoragem de memória coletiva por meio de datas comemorativas permite uma estabilidade aparente para as correntes de pensamentos coletivos (Halbwachs, 2004). Aparente porque a duração é irreversível e contínua, enquanto a memória (individual-coletiva) é situacional e seletiva (Bergson, 2015), tendo em vista que:
A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória. Isso é verdade também em relação à memória coletiva, ainda que esta seja bem mais organizada. Todos sabem que até as datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. Esse último elemento da memória – a sua organização em função das preocupações pessoais e políticas do momento mostra que a memória é um fenômeno construído (Pollak, 1992, p. 204).
A ineficácia para a solidariedade social da multiplicidade de durações individuais suscita, então, essa tendência de lembrar em e através dos grupos (Bergson, 2015). No caso do prédio do DOPS, 1º de abril é uma data estratégica para ambos, apesar dos recortes duracionais distintos sobre seu significado. O OcupaDOPS de 21 de março e a Marcha pela Família com Deus pela Liberdade em 22 acionam a mesma data de abril. Apesar do escrutínio da história educacional já vilanizar genericamente os militares, o que também é um erro historiográfico – já que houvera membros das Forças Armadas contrários ao regime que também foram perseguidos e torturados –, a mudança de caráter do prédio para Museu da Polícia cria uma batalha pela memória na iminência dos cinquenta anos do golpe após as jornadas de junho de 2013. Execrando e estigmatizando como “vândalos” (em equivalência ao comunismo nos anos 1960) os militantes do novo século, a mídia e a sociedade brasileira parecem reviver psicodramaticamente as correntes de pensamento coletivo no jogo político histórico e identitário durante o período militar. Porém, de forma ambígua em relação a temporalidades e fracionamentos ideológicos de versões de história (ou melhor, “hestórias”) do contexto político globalizado pós-guerra fria e neoliberal. A presidente Dilma (PT), outrora guerrilheira política, era entusiasta dos trabalhos da Comissão da Verdade e, como defensora da estabilidade política enquanto partido da situação, também da ação truculenta militarizada empreendida nas manifestações sociais de 2014 durante os jogos olímpicos.
4. Memória e indivíduo
Nessa manifestação se reivindica o direito à culpabilização e reconciliação por meio de cartazes personalizados com nomes dos torturadores – para além da crítica à época e ao lugar do terror. É necessário ressalvar que o aval sistêmico estatal totalitário legitimou ações violentas individuais desumanizadas (Arendt, 1999), pois o fluxo da ideia de grupo pode impelir a uma ação vivida sistêmica e magicamente como coletiva (Durkheim, 2010). A despeito das dissidências e incongruências internas dos (sub)grupos hegemônicos do poder que sustentaram o golpe, que se rearranjava conforme o momento histórico vivido durante os mais de vinte anos de ditadura (D’Araújo; Soares; Castro, 1995): “Se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos (1992)”.
Sobre memória individual e coletiva, é possível afirmar que a primeira se assenta na segunda. Para Halbwachs (2004), a possibilidade estrita da memória individual não é possível, ao contrário do proposto por Bergson (2004) – o que é sintomático na obra de Durkheim (2010), já que ela oscila entre uma confiança cega e utópica na solidariedade social enquanto imperativo sobressalente do tipo social e um reconhecimento austero da psicologia, das faculdades individuais em complementaridade com o anterior –, o que será mais bem equalizado por Elias a partir de uma interface da sociologia com a psicologia freudiana (1994).
Considerações finais
O pioneirismo do Memorial da Anistia em Belo Horizonte (MG), no antigo prédio da FFCH/UFMG, marco da combatividade política militante na cidade, local depositário que irá salvaguardar os arquivos digitalizados dos fundos do Tribunal Russel II referentes à América Latina (Fundação Issoco, 2012), aponta para usos salutares da memória espacial como fonte de conhecimento e de resistência frente ao autoritarismo estatal. Ao confrontar as correntes de um pensamento social cordialista brasileiro através da ressignificação reconciliatória e terapêutica do patrimônio edificado, esse tipo de iniciativa permite mapear a polifonia das vozes políticas silenciadas e/ou esquecidas dos sujeitos coletivos no país, mormente as mais subalternas. Em prol do fortalecimento da pesquisa e da conscientização política e histórica nacional, vislumbram-se, nesse sentido, condições para a consolidação de uma democracia representativa participativa e inclusiva. A Comissão da Verdade e a Comissão da Anistia (Marca de Memória, Caravanas da Anistia, Trilhas da Anistia, Clínicas do Testemunho) são meios eletivos afins aos processos históricos de radicalização da democracia na sociedade brasileira a partir de 2013.
A perspectiva extraeconômica socioambiental, de justiça e participação, indicadores de desenvolvimento como qualidade de vida, bem-estar, cidadania efetiva (vivida, garantida, percebida e ativa) e direitos humanos (Ibase) passam, doravante, a nortear as diretrizes e critérios de desempenho das políticas públicas das instituições e dos compromissos sociais das empresas. Importância essa premente, já que é influente ainda o capital político (Bourdieu, 2005) de setores organizados da sociedade civil na agenda pública e social. No entanto, defesas entusiastas da manutenção da militarização da polícia e armamento da população civil e do retorno da ditadura militar demonstram quão incipiente é ainda o estatuto da democracia brasileira. Em observância também ao fato de que a Lei da Anistia ampla e irrestrita[2] já tem um papel subliminar de penitência automática aos crimes cometidos, cabe considerar que essas vozes reacionárias servem como desestímulo à realização plena dos pressupostos de uma justiça transicional da Comissão da Verdade.[3] Apesar de serem esses contraditórios a prova cabal da relativa afirmação democrática, paradoxalmente, essa conflitualidade de memória-temporalidade e, muitas vezes, de espacialidade também arrefece a radicalização da democracia (Habermas, 1987) no Brasil com o alargamento do espaço público pela participação cidadã dos sujeitos coletivos em disputa na sociedade civil. Disputas de interesses ideológicos e econômicos que, no entanto, encouraçam o direito à superação dos traumas individuais e coletivos dos horrores do regime de exceção cristalizado através de macropolíticas (identidade representacional) com possibilidades de desterritorialização por novas micropolíticas ou cartografias afetivas (desejo volitivo). Traumas esses que afetam, até hoje, a vibratilidade subcortical dos corpos, que, por sua vez, está em homeostase com a percepção micropolítica do cotidiano (Rolnik, 2014). Impasse que tem nos impedidos, sincronicamente, de virar a página da história e passá-la a limpo a contento, haja vista que, mal resolvido mnemonicamente, ele sempre volta a nos assombrar quando menos se espera, inadvertidamente:
Nós, integrantes e apoiadores da Campanha Pela Transformação do Prédio do ex-DOPS/RJ em Espaço de Memória da Resistência – OCUPA DOPS -, manifestamos nosso repúdio à ameaça e a censura a que fomos submetidos na última quinta-feira, 26/06/2014, Dia Internacional de Combate à Tortura. Nesta ocasião, dois integrantes da campanha foram detidos e ameaçados por policiais civis da 5ª DP, no centro do Rio de Janeiro, que os acusaram de dano ao patrimônio público e crime ambiental por realizar uma intervenção artística de Graffiti nos tapumes da obra do prédio do ex-DOPS/RJ, ainda que exista um decreto municipal (Decreto 38.307/2014) que autorize e incentive o Graffiti em tapumes de obras na cidade do Rio de Janeiro. Após serem prestados depoimentos ao delegado titular e concluído pelo delegado de plantão daquele dia que não havia crime, os integrantes da campanha foram avisados por ele que não poderiam concluir o Graffiti, sob a ameaça de que se houvesse qualquer “confusão” em frente ao prédio, seriam indiciados por “crime”, que ele “criaria um crime”. Tal impedimento se caracteriza como ato arbitrário, de censura e ameaça de criminalização: um ataque à liberdade de manifestação! Contrariando a própria lei que deveria ser garantida por agentes de Estado, os militantes da campanha foram ameaçados de sofrerem a criminalização que tem ocorrido com integrantes de vários movimentos sociais, exclusivamente pelo conteúdo político de sua atuação! O prédio histórico onde funcionou o DOPS no passado ditatorial é um prédio público, que pertence ao Estado do Rio de Janeiro. Inclusive, o ex-Governador havia se comprometido publicamente em destiná-lo a um Centro de Memória, uma reivindicação antiga dos movimentos sociais. A Campanha OCUPA DOPS é mais um passo neste longo caminho na luta por este prédio. Esta é constituída por diversos grupos, entidades e militantes autônomos que lutam por políticas de reparação do Estado, por Memória Verdade e Justiça, e que sempre teve como princípio a defesa dos direitos humanos e a prática da liberdade. Portanto, não toleraremos atitudes arbitrárias de agentes públicos que mantenham práticas autoritárias e opressoras remanescentes do Estado ditatorial. A Campanha OCUPA DOPS não se intimidará! Continuará a realizar seus atos e manifestações em frente ao prédio do ex-DOPS/RJ! Para evitar qualquer tipo de constrangimento futuro, abuso de autoridade, bem como a manipulação de autoridades policiais que levem a criminalização das atividades desta campanha, esclarecemos:
• A expressão “OCUPA DOPS” é o nome dado a esta campanha e não objetiva ou incentiva a invasão do edifício situado à Rua da Relação, 40, popularmente conhecido como “Prédio do DOPS”.
• A campanha OCUPA DOPS, promove através de atos públicos uma ocupação cultural e política, pautada na liberdade de manifestação, sem ofensas ou desrespeito à qualquer pessoa, instituição ou agente público. Ao contrário do tratamento destinado àquele prédio nas últimas décadas, lutamos por sua revitalização e transformação simbólica! Para fazer do prédio do antigo DOPS/RJ um marco na defesa e promoção dos direitos humanos no Rio de Janeiro, queremos a imediata transformação deste em um espaço de Memória da Resistência das lutas sociais! Por Memória Verdade e Justiça! (http://www.global.org.br/blog/campanha-ocupa-dops-denuncia-ameaca-e-censura-durante-intervencao-artistica/, 2017).
Os avanços da sociedade brasileira do autoconhecimento sociomnemônico não podem correr o risco de virar uma nota de rodapé. Por isso, é bastante preocupante essa denúncia de ameaça e censura durante intervenção artística do OcupaDOPS de 26 de junho de 2014, Dia Internacional de Combate à Tortura.
A crise política econômica no Brasil pós-2013 tem desencadeado um revival discursivo extemporâneo psicodramático do polarizado jogo de forças e imagens do período militar e redemocratizante no Brasil com novos e velhos atores. Muitos deles em posições ideológicas agora invertidas, já que, em função do desgaste imagético-moral da esquerda, a nova direita surge como “Messias”, como se, num passe de mágica, monarquistas, militaristas e coronelistas tivessem apagado seu passado associado à consolidação de um modelo macroeconômico internamente desigual e externamente dependente. Esse movimento parece apontar para a tentativa macropolítica de não passar a história a limpo, mas, sim, de arrancar as páginas documentais, escrevendo uma história fake com cronologias didáticas (descontinuidades aparentes) a-históricas em um novo caderno. Contrárias ao fluxo irreversível e criador da história da humanidade que caminha rumo a um “esquecimento inercial”, mas que permite ao homem equilibrar esse imperativo de modernidade (sempre beirando o niilismo) com alguma seleção da história (bem distante de uma memória onipresente), as elites políticas costumam abusar da possibilidade de impor à sociedade uma espécie de “esquecimento ativo” (Nietzsche, 2017), como estratégia patológica de assimilação física e/ou psicológica das massas, capturando suas carências e inseguranças existenciais. O estranho e paradoxal é que, para isso, fazem um uso por conveniência e livre associação do mesmo Nietzsche (1976), que sugere, de fato, que devemos saber a hora exata de lembrar e esquecer porque, com efeito, ressentimento demais não é saudável ao devir da vida.
Quanto às políticas públicas de memória, também tem ocorrido esvaziamento, já que a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos tem atuado, juntamente com Bolsonaro, contra os interesses de memória da pasta, para tornar meramente protocolar a Comissão da Verdade. Nesse sentido, modificaram o perfil dos CEMDP (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos), incluindo no grupo dois militares, um olavista e um “damarista”, que podem comprometer a neutralidade esperada nas decisões – haja vista que eles surgem com forte compromisso com uma visão de que a ditadura civil-militar-empresarial foi uma “revolução” que salvou o país de um mal maior, que seria o comunismo. Além de disso, Damares interrompeu os trabalhos de reforma e adaptação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH-UFMG), o “Coleginho”, para se tornar sede do Memorial da Anistia em Belo Horizonte (em acordo assinado pelo governo federal com a UFMG em 2008). A realização da obra foi a punição positiva dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que poderia servir como mínima compensação moral pelos crimes contra a humanidade (torturas e desaparecimentos políticos) pelo Estado de exceção brasileiro.
Porém, mesmo ações propositivas do Estado estão sujeitas às descontinuidades das políticas públicas em função das oscilações polarizantes de vieses político-ideológicos que, inevitavelmente, tendem a se estender em direção aos espaços de memórias e narrativas – ainda mais quando se trata do tema metalinguístico que é o da história política brasileira. Após um suspeito impeachment presidencial de uma ex-guerrilheira comunista e mineira, foram alvo da operação federal com nome visivelmente antidemocrático “Esperança Equilibrista” (em alusão à canção tema das Diretas, “O bêbado e a equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco) justamente os responsáveis pela obra do Memorial da Anistia. A UFMG passou a ser investigada em 2017 por suspeita de diversas ilegalidades no projeto (aumento do custo da obra, falsificação de documentos e de prestação de contas, desvio de bolsas de estudo de estagiários e pesquisadores), e o reitor da universidade, Dr. Jaime Arturo Ramirez, foi obrigado a depor na Polícia Federal por medida de mandato coercitivo.
O governo alega falta de recursos e que o foco será na célere reparação financeira dos anistiados, apesar de que só no governo Bolsonaro mais de mil pessoas já tiveram pedidos de indenizações negados, mas o fato é que não é de interesse da cúpula militar que a ditadura no Brasil, ao contrário do que vem ocorrendo em outros países da América Latina, ganhe um lugar de memória de alta patente. Pois isso criaria um empoderamento público da verdade através de uma materialização físico-predial para a memória coletiva, que, sem isso, tende a estar mais sujeita psicopoliticamente ao sabor do tempo, sendo lembrada ou esquecida conforme a posição ideológica do Estado. E, dessa forma, a democracia do direito à memória tem se transformado no Brasil em um autoritarismo do dever do esquecimento. Mas como quem é torturado nunca esquece, em alguns casos, nunca é demais relembrar: “tortura nunca mais!”.
Em março de 2021, com a saída sincronizadas dos três comandantes das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), o consenso básico entre militares quatro estrelas com o damarismo bolsonarista, subliminarmente, em torno do esquecimento planejado da revisão da Anistia, no tocante à punição dos torturadores, aponta para os primeiros sinas de recrudescimento, pois não é de interesse desses mesmos oficiais dar tanta projeção midiática às controvérsias dentro das Forças Armadas que possam legitimar revisionismos das legislações sobre seus crimes e privilégios. Ademais, Bolsonaro, por não ter seguido o critério de antiguidade na escolha dos novos comandantes da Marinha e do Exército, começa a desafiar a própria estrutura hierárquica das Forças Armadas, o que contraria o seu vice-presidente, General Hamilton Mourão, que, apesar de ter aceitado “o argumento” pouco iniciático de ser rebaixado na chapa presidencial, sendo vice de um capitão reformado expulso da Aeronáutica, não quer que se altere o samba tanto assim, na tradição de institucionalidade estamental militar – haja vista que isso poderia acender um pavio de pólvora nos quartéis, com insubordinação em massa, gerando um efeito de caos que poderia ser útil para Bolsonaro conseguir se tornar o tenente-coronel Hugo Chávez que tanto criticou e associou, não sem fundamento de todo, à esquerda brasileira.
Apesar da composição demográfica de cargos comissionados no Planalto em 2021, o governo bolsonarista ainda tem em seus quadros muitos militares eméritos, como Bolsonaro tem apontado, em detrimento de uma política de estadista de longo prazo, cada vez mais tendendo para uma autofagia imagética por tratamento temerário e negacionista ideológico-partidário da gestão pública no Brasil. Como temos observado, no tocante à ciência e à saúde coletiva, é possível que haja um aprofundamento do isolamento político do presidente, podendo ele contar somente, doravante, mais com as baixas patentes militares, das quais ele surgiu para a vida pública, para dar algum grau de apoio ao seu curral eleitoral, no caso de ser aprovado algum dos vários pedidos de impeachment (por condução desastrosa na pandemia, apoio a protestos com pautas antidemocráticas, ataques à imprensa, quebra de decoro, improbidade administrativa e tentativa de interferência ilegal em um órgão independente como a Polícia Federal). Cabe lembrar que o último pedido se deve à suposta tentativa inconstitucional de interferência e cooptação das Forças Armadas pelo chefe do Executivo, gerando instabilidade política e institucional.
Tais conflitos internos dentro das Forças Armadas, no entanto, se tornam contornáveis no dia 31 de março de 2021, quando todos eles comemoram juntos o aniversário do Golpe Militar (“Revolução Militar”), com direito a carta oficial do novo ministro da Defesa, Braga Netto, em busca de lapidar uma linha argumentativa que consiga extrair a pureza das intenções democráticas por trás dos crimes de censura, tortura e genocídio cometidos contra a humanidade no Brasil. Precisamos considerar que, assim como os nazistas se viam como “ingênuos genocidas” cumpridores de tarefas sistêmicas (Arendt, 1999), os militares, mesmo os autoritários e torturadores, não se pensam e não querem ser vistos e lembrados pela sociedade e pelas suas respectivas famílias como ditadores antidemocráticos – buscando negociar, tacitamente ou não, uma narrativa historiográfica ou um gesto ritualístico que aponte para um messianismo jihadista de suas ações deletérias.
Tal litígio num campo de força usualmente afim ao presidente-capitão pode contribuir para que a pauta da memória volte a ser lembrada pela sociedade civil em prol da democracia afirmativa e da cidadania plena, pois somente depurando as Forças Armadas como um todo é que será possível consensualizarmos uma narrativa que permita uma autocrítica da extrema direita nos 21 anos de ditadura, bem como a desconstrução de uma narrativa ufanista e sacralizada da ditadura, da qual se beneficiam até hoje grupos políticos clientelistas e/ou econômicos patrimonialistas de interesses conservadores e não humanitários.
Intentei mostrar, com a polarização prático-discursiva em torno do uso do antigo prédio do DOPS no Rio, que o impasse se deve justamente ao fato de a historiografia marxista (hegemônica no estudo da História Política e que legitima o OcupaDOPS) não abrir espaço para revisionismos tão revolucionários como os militares desejam para salvar as suas biografias pessoais e/ou institucionais. O pensamento de Marx sobre o capitalismo expropriador de trabalhadores e nações nos parece problemático em relação à calibragem epistemológica, sobretudo pela questão da ênfase no materialismo (estrutura) em detrimento da cultura (superestrutura), mas a sua análise historiográfica, ao contrário de sua solução revolucionária (comunismo), costuma mais acertar do que errar. Tendo isso em vista, nos parece relevante uma autocrítica do campo esquerdista no Brasil dos anos em que estiveram no poder com Lula e Dilma para que possamos transcender essa Guerra-Fria-em-nós que nos convida a um eterno-retorno de um cabo de guerra. Feita essa ressalva, afirmo que, enquanto não passarmos a limpo a nossa memória política recente, continuaremos sem virar as páginas, reféns desse jogo de disputas narrativas e ideológicas geradoras de uma crise também historiográfica e epistemológica, que tenta dourar a pílula para vender como presidente exemplar um contraventor no melhor estilo Boca de Ouro.
Em função disso se vê a importância do estudo conexo de Ciências Políticas e Sociais, Direitos Humanos e Direito Urbano, haja vista que esse procedimento nos permite compreender a história do espaço presente aliado ao entendimento da antropologia do espaço passado e vice-versa. A democratização de espaços estatais – que somente por isso já deveriam ser públicos ou abertos ao público –, sobretudo, aqueles ligados à opressão ou à resistência antidemocrática, é uma estratégia de tecnologia preventiva de paz sociocultural que aponta a salvaguarda da democracia/memória política e urbana. Um equipamento de memória espacial pode permitir uma ancoragem tangível do tempo pretérito, justamente para que a consciência histórica e jornalística resulte em responsabilidade eleitoral (votar com consciência crítica). O que serve de imunizante contra o vírus do Alzheimer coletivo de alguns tipos de revisionismos negacionistas, que tentam aplicar a dialética contra ela mesma para banalizar o banal. Mas, sem tese propositiva a ser defendida nesses projetos de destruição da própria ideia de cidadania político-urbano por meio de uma corporalidade civil que une o cidadão com sua cidade (Sennet, 2008), o público com o espaço público – lembrando que pólis, em grego, significa cidade-Estado –, eles não passarão se nós, passarinhos, estivermos “caminhando e cantando” com o tão combativo e tão combatido Geraldo Vandré sobre as flores poderosas da comunicação violeta (não violenta).
*Frederico Le Blue Assis faz pós-doutorado em Artes Visuais na EBA/UFMG; é doutor em Planejamento Urbano IPPUR/UFRJ; mestre em Memória Social PPGMS/UNIRIO; graduado em Comunicação Social pela FIC/UFG; pesquisador associado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ); coordenador do LAH-AQUI (Laboratório de Artetetura e Humanismo de Ações para Questões Urbanas Insolúveis); idealizador do Movimento Artetetura e Humanismo; e editor da Editora Brasilha Teimosa.
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Notas
[1] Este versava sobre os crimes violações dos direitos humanos na América Latina, produto da consolidação de uma rede de atuação e solidariedade a partir da Fundação Basso, Chris Farley e Ken Coátes (Fundação Issoco, 2012). Na ocasião do encontro de Basso em Santiago (1971) com os membros do Comitê de Denúncia da Repressão no Brasil (CDRB), no caso, Betinho de Sousa, Almino Afonso e Armênio Guedes, o presidente do Comitê, Pablo Neruda, e o conselheiro, Darcy Ribeiro, bem como o presidente do país-sede, Allende, pedem a ele que fosse incumbido de apurar e julgar as denúncias de violações de direitos humanos relativas ao Brasil (ibid.).
[2] Essa lei, que, na sua primeira fase irrestrita para os dois lados (guerrilheiros e militares), funcionou como anistia do esquecimento e da impunidade da liberdade reparação, que fora consolidada em 1988, tem um caráter, num segundo momento, de comissão especial sobre mortos e desaparecidos políticos (1995-2007), em que se originam também ações como Comissão da Anistia, o que permite ao estado reconhecer seus crimes (direito à memória e à reparação econômica). Atualmente, a tendência conjuntural parece apontar para a urgência de uma terceira fase da revisão estrutural da lei, no sentido de assumir que sem verdade não pode haver justiça. Essa se daria por meio dos movimentos sociais “Movimento dos Escrachos”, “Levante Popular da Juventude”, “Aparecidos Políticos” (ambos surgidos na descomemoração dos 50 anos do Golpe em 2012), cujo impacto de ressonância pode continuar sensibilizando a Corte Interamericana de Direitos Humanos a condenar maciçamente a autoanistia e graves violações do direitos humanos no Brasil da ditadura militar-civil-empresarial, como na sentença do caso Estado na Guerrilha do Araguaia (comandada pelo lendário guerrilheiro “imorrível” Oswaldão) – o que obrigou a uma nova posição da Câmara Criminal do Ministério Público Federal (Abrão, Torely, 2012). No entanto, o Supremo Tribunal Federal é mais resistente a essa transformação de mentalidade cultural no Brasil, já que em 2010 endossa inconstitucionalmente a lei de outrora. Atestando que ela fora bilateral, não se aplicaria, destarte, a crimes contra humanidade e não pode ser modificada pelo judiciário, no que considera estado de direito o período militar e o seu pacto político da anistia proposto em momento de repressão política, que camufla crimes judiciários e negou proteção judiciária para as vítimas do estado por tanto tempo (ibid.).
[3] Na votação da Câmera do impeachment presidencial da ex-guerrilheira de esquerda Dilma, o deputado Bolsonaro (PP/RJ) dedicou seu voto à memória do coronel Brilhante Ustra, conhecido por ser chefe responsável pela tortura de muitos perseguidos políticos.
Este ensaio propõe uma leitura sobre o bairro de Sacramento, usando como norte o percurso da linha de ônibus são-gonçalense 54A. Situado no município de São Gonçalo, o bairro é cercado por regiões de conflito armado, sendo ele próprio palco de constantes tiroteios. Suas estruturas urbanísticas são precárias, carecendo de meios indispensáveis para a vida, como o saneamento básico ou o acesso eficiente a tratamento médico público. O ensaio Necropolítica (2016) e o livro Crítica da razão negra (2014), ambos escritos pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, fornecem o aporte teórico para pensar em Sacramento e suas tessituras. O objeto de análise é o bairro de Sacramento e a linha de ônibus 54, representados na arte feita por mim: mulher, negra, moradora do bairro e passageira da citada linha de ônibus.
54A – uma janela para o Sacramento
O que mais me aproximou do pensamento de Mbembe em Necropolítica (2016) e Crítica da Razão Negra (2014) foi identificar em suas palavras sobre raça e sociedade a imagem de Sacramento, um bairro onde os ônibus lotados vão para “despejar” os trabalhadores no começo da noite. Lembrei-me desse local onde resido. Um lugar repleto de pessoas pobres e em sua maioria negras – é importante notar que entendo como pessoa negra aquela que é preta, mas também aquela que é parda.
O Negro, nomeado com tal por alguém que não ele mesmo, é a figura multiplicada a habitar tanto as páginas de Mbembe como o meu Sacramento. Pontuo isto tendo como base o axioma de Mbembe (2014), que cirurgicamente investigou o termo Negro, para expor a origem de caráter fetichista e reificadora dessa palavra enquanto ferramenta de construção do Outro. Sendo o Outro, o indivíduo nomeado Negro torna-se candidato ao “alterocídio” (Mbembe, 2014, p. 26).
Essa pessoa, nem rica, nem branca, é o trabalhador instrumentalizado para ser usado pelo sistema capitalista até que se esvaiam suas forças, ou até que seja abatido pela violência sistêmica. O “esvai-se” escrito aqui representa a realidade de uma parcela considerável de trabalhadores que não gozam de uma calma aposentadoria, pois precisam complementar a renda para sobreviverem. Dessa forma, “mesmo aposentados, 21% dos idosos continuam trabalhando, revela pesquisa CNDL/SPC Brasil” (CNDL, 2018).
Ser não negro, no entanto, não afasta o trabalhador da reificação que tende a acometê-lo quando se é pobre. Para Mbembe (2014, p. 21) estamos caminhando cada vez mais em direção a um “devir-negro do mundo”, em que trabalhadores da modernidade vivenciam a precarização do trabalho em todos os âmbitos, tal ocorrera sistematicamente com os laboriosos negros ao longo da história. Exemplo disso é a retirada de direitos sofrida pela classe trabalhadora brasileira nos últimos anos. Para discorrer sobre a precariedade do trabalho reflito, principalmente, acerca da mobilidade entre locais de trabalho e residência.
Quando o ônibus da linha 54A – Alcântara x Meia Noite abrolha no ponto de parada em Alcântara, minha família abdica de todos os afazeres não concluídos e embarca imediatamente na referida condução, geralmente afoita. Não importa se ele partirá em cinco ou vinte e cinco minutos, o importante é ocupar seu espaço no raríssimo 54A e voltar para casa, com as bolsas pesadas. A imprevisibilidade é uma característica da tão estimada linha, então poucos deixam passar a oportunidade de apresentar seu Rio Card à máquina do Meia Noite.
Acontece que o dito ônibus, em seu percurso, passa pela rua Domício Porto Filho, que corta o bairro de Sacramento, situado no município de São Gonçalo. A um custo de três reais e noventa e cinco centavos, ele carrega os passageiros aos sacolejos, até o movimentado polo comercial de Alcântara. Sem asfalto nem calçadas, a Domício Porto Filho se transforma em um desafio ao fim de um dia exaustivo de trabalho ou estudo. Percorrê-la a passos médios custa de quinze a vinte minutos, em meio a densa poeira, temperaturas altas e perigos urbanos, por isso o ônibus torna-se um alento para os moradores da região.
O bairro de Sacramento, sacramentado em sua ausência de urbanização ou até humanização, segue sem rede de esgoto tratado, sem ruas asfaltadas e com poucas possibilidades de locomoção, como serviços de transporte como Uber e 99, pois a região é temida por seus constantes confrontos armados. Não posso deixar de ressaltar que os Correios também temem Sacramento. Não são feitas entregas postais nessas cercanias sacramentadas.
O temor que Sacramento impõe não parte do receio de seus visitantes de perder os bens materiais em um assalto. Não. Nesse bairro, residencial, o que acomete os de fora é o risco da “destruição material de corpos humanos” (Mbembe, 2016, p. 125). Aqui emprestei as palavras de Mbembe novamente, para lembrar que o ato de entrar no bairro em um automóvel, não baixar os vidros das janelas, não ligar o pisca-alerta e não acender o farol do carro é arriscar a própria vida. O bairro, germinado em um vale densamente povoado, é fruto de disputa entre facções rivais. Os tiroteios se abundam quando de tempos em tempos os “alemães” tentam invadir o local: “Troca de tiros entre traficantes deixa morador ferido no Sacramento em São Gonçalo – Facções disputavam o controle das drogas” (Troca…, 2017). As máquinas de guerra desfilam entre transeuntes acostumados à guerrilha urbana, à luz do dia, em meio à movimentação sempre acalorada do bairro, bem servido de comércio e delícias palatáveis, como um copo grande de açaí coberto por doces e afins a um preço razoável. Às vezes, os tiros trocados impedem a passagem do 54A. Isso é lamentado fortemente pelos adeptos da apreciada condução.
Sacramento pode ser pensado como um bairro dormitório, abandonado pelas autoridades, mas fervilhante de vidas que insistem em preencher seus espaços. É uma zona repleta de terra batida, com casas precárias e gente trabalhadora e desassistida. Esses proletários, que no sentido mais puro da palavra produzem proles, são os pais das crianças e adolescentes que brincam ou vagam pelas ruas de Sacramento, a despeito das balas que passam traçantes ou da poeira que o 54A levanta quando surge sacolejante. Eles são meus alunos no CIEP Mora Guimarães, eles são filhos de alguém, mas antes de tudo, eles são do vale ainda repleto de árvores, cravado em um município com aproximadamente 1.091.737 habitantes, segundo o IBGE (2020).
Essas meninas e meninos, “a prole”, passam pela vida com um tom de efemeridade. Foi nesse Sacramento que uma bala perdida atingiu Yasmin Cristina Gomes Silva, de 14 anos, no ano de 2018. A aluna do CIEP Mora Guimarães não retornou às aulas, pois perdera a visão dos dois olhos por causa do ferimento à bala. O seu corpo seguirá marcado pela guerra urbana, e, ao contrário das vítimas pensadas por Mbembe (2016), Yasmin não pode encarar a marca que lhe foi imposta.
Esses corpos trazem em si mesmos uma memória tatuada, como um arquivo vivo, palpitante, que alerta aos moradores e visitantes onde eles estão. Eles não estão nas zonas protegidas, cercadas de muros erguidos pela classe média, eles não estão nos condomínios de luxo da classe alta, eles estão em Sacramento, onde as memórias são faladas, às vezes sussurradas, mas raramente escritas.
Achille Mbembe, em Necropolítica (2016, p. 123), apresenta o pressuposto de que a soberania se situa na potência de eleger quem vive e quem morre. Nesse cenário, aqueles que portam as armas, que possuem falos e detêm a autoridade provida pelo crime organizado ou pelo Estado exercem o “direito de matar”. Yasmin viu-se impotente, em meio aos projéteis que lhe cobraram os dois olhos. É provável que o 54A não tenha podido passar pelo Complexo do Anaia no fatídico dia em que a bala encontrou a aluna do CIEP 423.
Ainda pensando no conceito de permissão para viver, como proposto por Mbembe (2016), é válido citar que Sacramento não tem um posto de saúde. O mais próximo da localidade é o posto do bairro vizinho, Barracão, que serve aos moradores do entorno. A pequena unidade médica, no entanto, sempre é acometida pela partida repentina de seus médicos. Assustados com a dinâmica da região, os clínicos vêm e vão, não permanecendo no posto nem o suficiente para que seus nomes sejam aprendidos pelos pacientes. Quaisquer tratamentos mais refinados requerem o deslocamento para longe das cercanias de Sacramento. Ademais, andar pelas ruas do bairro se torna um desafio e tanto para aqueles que têm alguma dificuldade de locomoção.
Ainda assim, nem só de agruras vive Sacramento. O bairro ainda tem o privilégio de possuir uma persistente parte da Mata Atlântica e plantas vindas de outras regiões. Assim ele exibe fartas mangueiras, suntuosas palmeiras, coloridos ipês, leucenas abundantes, flamboyants, cajueiros, jaqueiras e goiabeiras e, ainda que pareça improvável, também altos pinheiros.
O local é um exemplo da preservação da floresta nativa que ocupa cerca de 30% do estado do Rio de Janeiro, segundo o INEA (2020). A fauna do bairro também é variada: saguis, pica-paus, jiboias e gambás misturam-se a inúmeros animais domésticos como cabras, vacas, cavalos, porcos, gatos e muitos cachorros. O 54A, em sua passagem pelo bairro, vez ou outra diminui sua velocidade para respeitar a passagem de rebanhos que seguem sem pressa.
As ladeiras de Sacramento, por sua vez, são imperiosas. Elas cobram do viajante grande vigor e empenho. Não é à toa que no bairro existe um local apelidado Morro do Céu. Os que vivem lá têm o costume de subi-lo em zigue-zague, na esperança de que a caminhada de um lado ao outro e um pouco para cima amenize o penar da subida. Quem faz esse caminho é curiosamente observado pelas famílias de saguis. Do alto do Morro do Céu é possível divisar não só quase todo o Sacramento, como os bairros do Barracão, do Pacheco, da Amendoeira e do Bichinho. Bichinho, por sua vez, é um pedaço de Sacramento, área de forte confronto e limite de alcance para os mais assustados. É pelo Bichinho que o 54A passa para sair de Sacramento e rumar, bairro a bairro, até chegar em Alcântara.
O 54A – Alcântara x Meia Noite tem um irmão gêmeo: 54 – Meia Noite x Fórum. Com extensão maior de percurso, essa linha parte do Anaia e vai até próximo ao Clube Mauá, no centro de São Gonçalo. Enquanto o 54A tem um total médio de 9,7 km, o 54 tem 17,5 km. Sua frequência é ainda menor que a de seu semelhante. Outra linha que despontava em Sacramento era a 553 – Legião x Niterói, mas desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil a linha perdeu sua regularidade, passando raramente pelas cercanias do bairro. Segundo o site Moovit, a linha 54A – Meia Noite x Alcântara tem 37 paradas, com duração de viagem de vinte e dois minutos em média, funcionando em todos os dias da semana.
As três linhas não têm ar-condicionado, mas evitam uma caminhada na Domício Porto Filho, tomada por lama e poeira, ou a sensação térmica alta nos verões do Rio de Janeiro. Assim, quando as estações de calor chegam, o 54A se torna imprescindível para a saúde dos moradores de Sacramento. O bairro está localizado em um município com a média de temperatura em torno de 35°C.
São Gonçalo, estabelecida como tal em 1890, tem a extensão territorial de 249,25 km² e pertence à região metropolitana do Rio de Janeiro. O segundo maior colégio eleitoral do Estado, caracteriza-se por sua segregação socioespacial. A heterogeneidade de classes no município destaca-se pela diferença entre bairros bem assistidos pelas autoridades, habitados pela classe média, e bairros desassistidos, habitados pela classe baixa.
O artigo “A segregação socioespacial no município de São Gonçalo, RJ: uma análise a partir do acesso ao saneamento básico” (Britto et al., 2017) discute a desigualdade no município a partir da reflexão acerca do saneamento básico. Seus autores, Ana Lucia Britto, Andreza Garcia de Gouveia, Thiago Giliberti Bersot Gonçalves e Rosa Maria Formiga Johnsson, concluíram que, embora a região apresentasse recortes elitizados, como a presença de shoppings, por exemplo, a população pobre segue negligenciada.
Sacramento está inserido na parcela desassistida de São Gonçalo, mas mesmo dentro de seu próprio espaço o bairro apresenta bolsões de territórios privilegiados: as cercanias que beiram a estrada de Santa Izabel têm inúmeras farmácias, comércios alimentícios de toda sorte, lojas de roupas, eletrônicos e cuidados pessoais. As residências têm acabamento e as ruas próximas à estrada começam a esboçar algum concreto. Aqueles que vivem perto da estrada não dependem do 54A. Eles são servidos pelo 01 – Santa Izabel x Alcântara, que vez ou outra disponibiliza ônibus com ar-condicionado.
Barulhento e musical, Sacramento apresenta fartura em apreço por ruídos e pavor pelo silêncio. Até os animais do bairro se esforçam determinadamente para excluir toda possibilidade de calmaria. Os rádios em alto som disputam entre si, entoando sambas de raiz, pagodes, louvores e o já tradicional funk “proibidão”. Nessa efervescência de sons, o bairro agita-se cedo nas manhãs e dorme tarde da noite, a despeito da pandemia.
Seguindo a tradição musical, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Sacramento foi fundado em 1996. A agremiação tornou-se pentacampeã em São Gonçalo entre os anos de 1999 e 2003. A vermelho e branco de Sacramento tem como seu símbolo um pégasus, tendo homenageado os funkeiros Claudinho e Buchecha em 2003 com o enredo “Os meninos de São Gonçalo que encantaram o mundo, Claudinho e Buchecha”.
Faz-se aí, na história da Unidos do Sacramento, um intento de arquivamento. A história da escola de samba é uma das poucas informações a respeito do bairro encontradas na internet, além das notícias sobre a violência urbana, é claro. O registro escrito da história contemporânea de São Gonçalo encontra-se espalhado ao vento pela web. A oralidade, no entanto, é a ferramenta furtiva, que narra e faz lembrar as histórias desse lugar à margem.
É a partir desses constructos de imagens psíquicas entrelaçadas (Mbembe, 2014, p. 180) que é tecida a memória à qual recorro para entrar no campo da representação, aqui exposta em palavras e ilustrações. Nelas o apreço pelo 54A vem borrifado com pitadas de uma indignação saturada. Vem ao lado do desalento por não termos ruas pavimentadas. Vem de mãos dadas com a constatação de que nossas necessidades não são visíveis aos olhos das autoridades. Mbembe (2014) concluiu que quem tem a potência de decidir o que deve ser visto e o que não deve ser visto na colônia manda. Reflito que é daí que vem essa inquietante invisibilidade de Sacramento. Nesta cegueira planejada o próprio trabalhador deixa de se enxergar. Deixa de ver as agruras e as bonanças que o cercam. Ao não se ver ele se anula, perdendo o precioso poder de massa que classe trabalhadora possui.
Ao tornar-se novamente vidente a classe tem a potência de encarar-se outra vez. De ver os calos das mãos e a insistente lama nos pés. Embora as bocas possam reclamar da precariedade da locomoção no bairro, são os pés as verdadeiras testemunhas torturadas que percorrem a lama, a poeira, os buracos e as pedras. São eles que se apressam quando o confronto armado chega. Então é justo que eles, os pés cansados, sejam aqui representados na ilustração Pés Cansados.
São os Pés Cansados que sustentam o peso do corpo e têm contato com o solo desnudo. São neles que se agarra a amálgama formada na via não pavimentada. Longe de ser como uma romântica terra fresca bucólica, essa amálgama é composta por lixo, excrementos de animais de toda sorte e água empoçada. As poças insistentes, que retornam a despeito da tentativa dos moradores de enterrá-las, tornam-se referência para quem quer indicar determinado ponto da rua Domício Porto Filho: “Ali! Logo depois da poça perto da igreja!”.
Por isso, nesta ilustração, assim como na ilustração Poças da Domício Porto Filho, o requadro da imagem é baixo, para que possamos ver ao nível do solo. Para que possamos olhar o que está perto do chão, fazendo toda a dinâmica do avançar e do carregar acontecer. Não é por acaso que esses Pés Cansados, que sustentam todo o corpo e seus acessórios, se assemelham com a massa de trabalhadores esmagados pelo sistema capitalista liberal.
Trabalhadores sacramentados
Essa região é apenas mais uma de muitas. É produto de um sistema capitalista liberal que sustenta as diferenças de classe, que racializa e depois nega o racismo, que ignora as questões de gênero e que abandona o trabalhador afogado numa multidão a se proliferar. Nesse cenário o laborioso torna-se uma máquina endividada cuja vontade própria já se encontra esquecida. O respeito por si, por sua condição humana, por seu trabalho, é eclipsado pelo desejo de possuir os “espelhos e miçangas” que a modernidade oferece em troca da sua labuta dura e incessante.
É através do desejo que a colônia domina o colonizado (Mbembe, 2014, p. 205). Foi esse o grande segredo que o filósofo camaronês compartilhou em seu livro. Assim, numa confusão que emaranha o “bem estar” com o “possuir”, o trabalhador segue tentando captar e acumular um capital que raramente é acumulado por ele, uma vez que a mobilidade entre classes é rara e a própria existência de classes – tão distanciadas entre si – condena o trabalhador a viver incessantemente uma réplica cristalizada de sua subalternidade. Mbembe observou que estamos muito distantes de uma era pós-racial, da mesma forma que nos encontramos distantes de uma justiça de classes.
Ainda assim é possível tomar para si o nome “trabalhador”. É possível apoderar-se dele subvertendo-o em favor do grupo. Mbembe (2014) comentou como um termo abjeto, como a palavra Negro, difundida pelos colonizadores, pôde ser subvertido e transformado em beleza, orgulho e insurreição. Uma reviravolta que toma o nome das mãos dos colonizadores e o transforma em combustível para a resistência. Negro torna-se poder.
O “devir-negro do mundo” tem sua amostra nesse bairro da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro. Aqui, onde a música só para quando os tiros começam, os trabalhadores seguem repetindo um misto de viver e sobreviver. Seguem desconhecendo a força que têm como categoria e classe. Sem perceberem que, assim como a palavra “Negro” fora subvertida em prol do empoderamento e da luta contra o racismo, a palavra “Trabalhador” pode tornar-se uma potência, capaz de revolucionar a sociedade e entregá-la a quem sempre a sustentou.
Sacramento é a realidade da imutabilidade de um bairro invisível aos olhos das autoridades competentes. Os anos se passam, o bairro cresce demograficamente, preenche-se de comércios diversos, mas segue sem asfalto, sem calçadas, sem previsão. Mesmo assim, para além da permanente insistência do descaso para com Sacramento, lá está o 54A, a esperança de que não vamos carregar as bolsas pesadas a passos cansados. Isso, é claro, se apresentarmos nossos Rio Cards à máquina do Meia-Noite.
54A!
*Nataly Costa é licenciada em Educação Artística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestranda em Artes Visuais pela UFRJ, ilustradora e quadrinista independente. Referências
IBGE. População estimada: Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Estimativas da população residente com data de referência 1º jul. 2020. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/sao-goncalo/panorama, acesso em: 14 set. 2020.
O livro mais recente de Paloma Vidal, Pré-história (2020), conta em fragmentos o relacionamento de um homem e uma mulher, do encontro inicial – não o primeiro, mas o mais marcante na memória da narradora – até o afastamento definitivo. Essa história, porém, é contida entre duas declarações de intenção que põem para funcionar a obra, uma no começo e outra no final do romance. A primeira é: “Este livro é a sombra de um outro que eu queria escrever para te ferir”, que lemos num fragmento em itálico (o único italicizado) que explica que a narradora desistiu de escrever um livro para escrever outro (Vidal, 2020, p. 12). Há, assim, um livro desejado e um livro possível; este é o que lemos, aquele podemos apenas intuir. Na última página antes dos agradecimentos, lemos a outra declaração de intenções: “Ninguém pode terminar por mim” (idem, p. 120), explica a narradora, que deve então escolher como fechar o romance. Esse gesto narrativo – declarar que estamos lendo algo escrito sobre a sombra de um livro ausente, um livro desejado, e que esse livro possível termina porque, afinal, todo livro precisa terminar – parece indicar um pathos que distingue o romance dentro da cena contemporânea. Este é um romance sobre a impossibilidade de afirmar – impossibilidade de escrever o que se deseja, de se chegar ao fim da história –, impossibilidade sobre a qual ergue-se essa obra literária.
A pré-história (prelúdio de uma história que não é contada) começa com o encontro da narradora, filha de um casal de psicanalistas argentinos radicados no Brasil, com um adolescente de 13 anos que usa uma estrela do PT. Esse marco mítico do relacionamento ocorre em agosto de 1989, antes do primeiro turno das eleições presidenciais que levariam Fernando Collor de Mello à presidência. Em fragmentos curtos, dirigidos a um “você” que identificamos com o homem que um dia foi o adolescente com o broche de estrela, ficamos sabendo de alguns detalhes do relacionamento de três décadas do casal: um encontro na praia, um beijo, um tempo de distância, o reencontro, o namoro, o filho que tiveram, os interesses em comum, desentendimentos e a separação, quando ela percebe que a sensibilidade dele “em algum momento deixou de estar onde eu a esperava” (idem, 66). Deixou de ser aquela imaginada por ela a partir da figura do jovem com a estrela do PT. Esse momento parece ocorrer perto do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, embora a narradora apresente indícios anteriores de não comunicação.
O romance, portanto, é a história de um relacionamento, narrada pela mulher e direcionada ao homem. Os fragmentos curtos narram cenas dessa relação ou refletem sobre ela, divagam sobre a história (do Brasil, da Argentina e da família da narradora), sobre as indecisões da escrita e sobre as incertezas das identidades de uma família que veio para o Rio de Janeiro fugindo da ditadura argentina. Num efeito curioso, essa estrutura em fragmentos, que acentua a impossibilidade de escrever a história de um relacionamento que se desfaz na política (talvez mais do que “por causa da política”), produz uma espécie de solidão, como se a narradora escrevesse sobre si mesma e para si mesma, apesar de a história (ou pré-história de uma história que não está no livro) falar de um presente que podemos chamar de concreto e apesar do livro ser endereçado a um “você”.
Muitos dos elementos que encontramos no romance já haviam sido explorados pela autora em contos (de A duas mãos, de 2003, e Mais ao sul, de 2008), poemas e romances (como em Algum lugar, de 2009, e Mar azul, de 2012): o jogo com a autobiografia e a ficcionalização do eu; o fragmento; a identidade nacional e os vestígios das história nacional (especialmente traumática nos países latino-americanos que passaram por ditaduras) nas histórias de vida; e os relacionamentos familiares e amorosos do ponto de vista da mulher. Aqui, no entanto, eles são direcionados mais claramente para a política do que em seus livros anteriores, algo que tem sido uma tendência da ficção contemporânea (sobre isso, ver Bandeira de Melo, 2020). Afinal, o “tema” do livro – a maneira como as tensões políticas do presente produzem cisões ideológicas onde antes parecia haver harmonia – é quase o mesmo de dois romances publicados no mesmo ano do livro de Paloma Vidal, Solução de dois Estados, de Michel Laub, e A tensão superficial do tempo, de Cristovão Tezza. O interessante de Pré-história é que, apesar de tocar nessas questões contemporâneas, ele parece insistir em algo que chamo aqui de “direito à dúvida”, que produz um tipo de literatura que tira sua potência da negatividade, isto é, daquilo que o romance não consegue falar a respeito do presente.
Isso se dá principalmente pela estratégia formal, começando pela moldura: as duas declarações de intenção que anunciam o início e o fim da obra. Outro elemento que conforma essa estratégia são as repetições, espalhadas pelo texto, de frases e palavras em torno de um tema principal, enunciado logo na abertura em itálico do romance: o que é simples e o que é complexo?; as coisas são complexas ou nós as complicamos? É como se essa dúvida (a narradora se pergunta se estaria complicando as coisas, como “você”, o destinatário, costumava acusá-la de fazer) se projetasse na estrutura do livro, coalhado de tempos verbais ou advérbios que significam indecisão (“É o que me fez escrever ‘talvez’ 14 vezes até agora”, encontramos na página 32). Essas estratégias parecem marcar um desejo de fugir da assertividade, de neutralizar “a natureza assertiva da língua”, como sugeriu Roland Barthes (2003, p. 90), isto é, evitar o simples recorrendo à simplicidade de uma pergunta constante: foi assim mesmo que aconteceu? Essas dúvidas são reforçadas por reflexões sobre a própria escrita, como quando a narradora explica escolhas (“Volto às frases curtas. Uma de cada vez. São como passos”, diz na página 47), e pela deriva entre relato (pretensamente autobiográfico) e ficção (“As palavras não me dizem mais nada e eu começo a inventar”, lemos na página 36).
São esses os elementos que minam qualquer tentativa do romance de dar uma interpretação fixa do presente (do esgarçamento do tecido social pela radicalização política), ao mesmo tempo que aceita o desafio de comentar o presente. É dessa impossibilidade, transformada em forma, que o romance tira seu efeito: a história daquela mulher e daquele homem termina no presente porque houve uma pré-história que os separou, mas contar essa história – encontrar sua origem pré-histórica – é um ato desde o princípio fadado a fracassar.
Se essa descrição estiver correta, parece que o romance tensiona duas experiências literárias: por um lado, o impulso de fundamentar a narrativa nos debates correntes; por outro, de transformar o romance em um espaço propriamente literário, que fala sobre o desejo de escrever, sobre a luta com a página em branco, sobre a solidão do escritor, da obra e do leitor. Aqui, claro, estou me referindo à ideia blanchotiana de “espaço literário”: desviando sempre da afirmação para a dúvida e pronunciando o silêncio, é como se o escritor quebrasse o vínculo com o não literário e, com isso, “o vínculo que une a palavra ao eu” (Blanchot, 2011, 17), ao mundo real, ao referente exterior da literatura. Desse modo, o uso da primeira pessoa por Paloma Vidal, um “eu” que o tempo todo reflete sobre suas limitações enquanto narradora, parece muito mais a anunciação de um lugar de dúvida do que o lugar do signatário de um pacto autobiográfico. Por isso ela tenta alcançar alguma segurança narrativa na busca pela “primeira pessoa do plural” (Vidal, 2020, 96), um nós impossível, que seria capaz de dar alguma segurança à história.
O outro impulso, aquele que ancora a narrativa no presente, porém, não deve ser esquecido. Pelo contrário, a especificidade “temática” de Pré-história é importante. Não é à toa que o romance use essa forma fragmentada, sempre na deriva entre a afirmação e a negação, entre o eu enunciativo e o nós impossível, para construir uma história que fala de tensões contemporâneas. Na verdade, é essa impossibilidade que, paradoxalmente, comunica algo sobre o contemporâneo e dá ao romance sua qualidade (ouso dizer) política. Esse algo é uma interrogação. Dar conta desses destinos (o destino de uma geração – caracterizada no romance pelas citações do rock brasileiro dos anos 1980 – que assistiu à volta da democracia representativa e sua crise) é impossível, como é impossível assumir uma primeira pessoa do plural, porque nenhuma das respostas é certa: nem a simplicidade, nem a complexidade. A literatura não vai responder às nossas angústias; ela pode apenas instituir um espaço de solidão num presente que pede que sempre busquemos respostas. É o direito à dúvida que me parece que o romance de Paloma Vidal recupera. É também o direito à individuação, mas uma individuação que não abre mão de compartilhar as experiências coletivas. E esses direitos, contrapostos à certeza de quem vê o mundo como simples, não significam isolamento, isenção e impotência, mas resistência.
*Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.
Referências
BANDEIRA DE MELO, Lucas. Dívida e castigo: o apocalipse da nova classe trabalhadora na ficção de Fernando Bonassi, Remate de Males, Campinas, SP, v. 40, n. 1, p. 41-68, 2020, DOI: 10.20396/remate.v40i1.8657538.
BARTHES, Roland. O neutro. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2002].
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011 [1955].
VIDAL, Paloma. Pré-história. Rio de Janeiro: 7letras, 2020.
VIDAL, Paloma. Mar azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
VIDAL, Paloma. Algum lugar. Rio de Janeiro: 7letras, 2009.
VIDAL, Paloma. Mais ao sul. Rio de Janeiro: 7letras, 2008.
VIDAL, Paloma. A duas mãos. Rio de Janeiro: 7letras, 2003.
Na poesia de Angélica Freitas (Pelotas, RS, 1973), Ítaca é não mais a ilha para a qual o herói volta, mas um lugar para onde o viajante deve levar Hipoglós; a escrita pode ser feita com o corpo ou com a ajuda do Google; e o poema pode transfigurar em palavra uma obra de Iberê Camargo ou se transfigurar em performance. Com três livros de poemas – Rilke Shake (2007), Um útero do tamanho de um punho (2012) e Canções de atormentar (2020) –, além da graphic novel Guadalupe (2012), em parceria com Odyr Bernardi, Angélica é uma das principais poetas contemporâneas. Como escreveu Heloisa Buarque de Hollanda, “Angélica abriu para as jovens o caminho da desobediência, do corpo, de que escrever é investigar o avesso das regras que regem a poesia”.
Nesta entrevista, concedida em 4 de outubro, a poeta e tradutora fala sobre seus caminhos artísticos, sobre a vida em Berlim, para onde foi como artista residente do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), e sobre seus novos projetos.
Beatriz Resende: Queria que você falasse um pouquinho sobre como é que está viver longe do Brasil, que deve ter muita coisa boa, umas coisas mais complicadas, e o que que você está fazendo por aí.
Angélica Freitas: Eu acabei de entregar há trinta minutos a tradução para a editora Fósforo de um romance, acho que é mais uma novela que um romance, de uma escritora alemã chamada Katharina Volckmer, e essa foi a primeira coisa que eu fiz depois da minha residência do DAAD, que durou doze meses. Eu vim para cá com um projeto de escrita e na verdade acabei fazendo outra coisa. Escrevi muito, mas mudei de projeto no meio do caminho, até por causa da pandemia. Porque eu vim para cá, mas em novembro do ano passado tudo fechou, e todo mundo fica dentro de casa, porém em Berlim. Mas dava para sair para dar umas voltas e esta cidade é muito legal, porque tem muitos parques. Então, por mais que não pudesse ir ao cinema, ao teatro, não pudesse sair para ouvir música, dava sempre para dar uma volta, caminhar num parque. A cidade é bem verde e é uma cidade onde é muito bom caminhar, então apesar da pandemia deu para aproveitar bastante.
AugustoGuimaraens Cavalcanti: E você mora na parte oriental ou ocidental?
AF: Eu moro na parte ocidental bem para o sul de Berlim. É um lugar bem diferente do que a gente – não sei qual é a ideia que vocês têm de Berlim, mas antes de vir morar aqui eu imaginava muito os bairros como Kreuzberg ou Neukölln, que têm a cara de Berlim. E aqui onde eu moro é para o sul de Berlim, é uma área super residencial, não é muito badalada. É perto de uma universidade – a Freie Universität – e é muito tranquilo e calmo, tem muitas árvores, dá para ver raposa passeando à noite, tem umas árvores aqui atrás do parque onde eu moro, ali a gente sempre vê esquilo e um monte de pássaros. O Rio de Janeiro deve ter muito disso também, se você estiver em Santa Teresa dá para ver os micos. Eu moro em São Paulo há mais de uma década.
Mas acabei ficando aqui depois da bolsa, porque, conversando com a Juliana [Perdigão, namorada de Angélica Freitas], a gente achou melhor prolongar a estada. Afinal a gente ficou muito tempo dentro de casa e agora as coisas começaram a voltar a uma certa normalidade. Hoje saí para cortar o cabelo e tive que mostrar um certificado de vacinação e que ficar de máscara. Para você comer num restaurante também tem que mostrar um teste ou um certificado de que você já tomou as duas doses. Então a gente decidiu ficar para poder aproveitar um pouco mais a cidade, e também porque agora no Brasil não teria, principalmente para Juliana, muito o que fazer, já que ela é da música e, como ela mesma diz, tudo o que ela faz depende de aglomeração.
A gente está aqui agora tocando alguns projetos. Eu continuo escrevendo como sempre, mas já estou tentando retomar algumas performances, traduzir algumas coisas para o alemão das performances que eu tenho com a Juliana, também estou tocando paralelamente um livro a partir das pinturas do Marcelo Cipis, que é um artista lá de São Paulo. E durante a residência eu comecei a escrever um livro de prosa autobiográfico em que falo da minha infância. Na verdade, eu já vinha há tempos querendo escrever sobre a minha experiência de ser mulher e de ser lésbica, então eu resolvi começar pela infância, foi só isso. Durante a residência eu fiz uma primeira versão e estou deixando descansar um pouco para voltar e tentar trabalhar nele. Tem sido uma experiência bem diferente, porque a prosa tem que ter uma certa resistência, uma persistência, e achei muito difícil encontrar o tom para contar a história. Estava falando com um amigo meu que disse que eu posso contar essa história de duas maneiras: com amor ou com ódio. Meu amigo disse: conta com ódio, com ódio é mais interessante. É uma experiência nova, mas eu também já não quero ficar limitada a escrever poesia, tenho questionado muito essa coisa de me ater a um só gênero de escrita.
AGC: Eu li numa entrevista sua que você começou a ler poesia em uma enciclopédia que você ganhou e que tinha poemas do Lewis Carroll, adivinhações, com um humor muito forte. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre como sua poesia costuma estar atrelada a uma ludicidade. O que marca a sua poesia para mim é essa profanação dos mitos sagrados da literatura, desde o Rilke shake. Poder homenagear uma referência literária, mas sem aquele púlpito literário, sem a torre de marfim. Trazer as referências literárias para a horizontalidade do chão, como você traz a Gertrude Stein para uma banheira, soltando pum, depois você descreve a bunda da Gertrude Stein saindo da banheira. Você nunca teve essa atitude de olhar para cima para a poesia, ou de escrever de uma torre de marfim, mas sempre de escrever ao rés do chão.
AF: Eu não sei, eu fico pensando nessa parada do humor. Eu definitivamente acho que associei escrever poesia com humor já desde muito pequena. Acho que a raiz disso são justamente os poemas que eu li primeiro, que tinham uma pegada nonsense. É claro que eu li outros tipos de poemas, mas esses foram os que ficaram. E eu acho que tem uma coisa do humor que deixa o poema muito fresco e muito vivo. Tem uma energia neles. Acabei de falar sobre o tom que o livro de prosa teria que ter, se de amor ou de ódio – a gente está falando de sentimentos e da energia que move esses sentimentos. Essa coisa tem que ser rápida e esperta. Acho que, pelo meu temperamento, eu gosto muito disso. Não quer dizer que eu não seja uma pessoa séria ou que fique rindo o tempo inteiro, sabe? Eu acho até que eu sou bastante séria, mas enfim, é isso, né? Talvez cause muita estranheza, porque a gente associa a poesia a um lugar dos grandes questionamentos, das grandes questões, o que de fato é, mas acho que sempre teve algum poeta ou outro que usava humor, que praticava o humor. Eu não sou humorista, eu não sou comediante, mas acho que os meus poemas têm uma energia que é do humor, mas também têm outros em que o humor não está presente. Como você mesmo falou, acho que tem a ver com esse primeiro contato com a poesia e com o ter sido incentivada a escrever desde pequena. O que aconteceu foi que eu tinha professoras de português que me pediam poemas, ficavam me incentivando, daí eu acreditei naquilo, sabe? Elas pediam os poemas – um poema, sei lá, sobre o Dia das Mães – e elas ficavam: “Nossa, que legal!”. Acho que foi como qualquer criança que é incentivada a fazer alguma coisa, tocar um instrumento, desenhar. Eu nunca mais parei de fazer isso. Mas eu conservo essa coisa da energia, da emoção, que tem a ver com o humor, e acho que é o que me faz mais feliz como poeta.
BR: Angélica, esse livro Canções de atormentar começou como um show, que a Adriana assistiu ao vivo.
Adriana Azevedo: Eu queria entender qual foi o processo. Você primeiro criou essa performance ou os poemas foram entrando na performance que você foi construindo com a Juliana? Eu vi você falando numa entrevista que comprou um violãozinho na Índia, pequenininho, de viagem, e que isso te estimulou a construir essas performances. E você também fala sobre essa questão de dar corpo ao poema. Eu queria saber como foi, para você e a Juliana, estarem no palco juntas fazendo a performance e como foi o encontro desses seus corpos e dessas poesias com um público que eu suponho que seja um pouco diferente do público de feiras literárias e de debates sobre poesia.
AF: Eu sempre gostei de fazer música. Na verdade, eu ia dizer musiquinha, porque não é nada sério e geralmente são músicas engraçadas. Você já matou a charada, eu comprei um violão quando estava viajando e eu acho que os instrumentos, os materiais nos influenciam completamente. Comecei a fazer umas músicas que tinham a ver com sereias, não sei muito bem por que apareceu esse tema, e aí eu fui gravando no celular. Eu estava fazendo uma residência na Índia e fui mandando para a Juliana. Quando voltei para o Brasil me convidaram para participar de um evento de poesia musicada lá em São Paulo, que se chamava Zapoeta, organizado pelo Joca Reiners Terron, e que tinha sempre a participação de um poeta e de alguém da música. Ele me convidou e eu falei com a Juliana: bom, já tenho aqueles poemas musicados, vamos apresentar lá. E foi a minha primeira vez… não, talvez não tenha sido minha primeira vez num palco, acho que eu já havia lido poemas num palco, mas num projeto de poesia e música foi a minha primeira vez.
Enfim, é uma coisa muito louca, principalmente para mim. Eu me considero tímida, não sou muito de querer aparecer nem nada, mas tem uma energia muito inacreditável num palco. Eu acho até que ficar nervosa potencializa essa energia. Foi um encontro brutal com quem está do outro lado, que é uma coisa que não acontece tanto no livro. Quando alguém está te lendo, no máximo pode te dar um retorno e te escrever depois, te contar alguma coisa, mas quando você está fazendo uma performance, está vendo as pessoas, o rosto delas ali, e como elas estão reagindo. Corporalmente é muito forte. E é muito, mas muito mais legal do que só brincar num livro ou em qualquer outro lugar. É uma outra experiência e você tem que saber entregar a coisa, e esta é a minha pesquisa agora: como você entrega o texto. A vocalização ao vivo dos poemas eu digo que é performance, mas para mim qualquer coisa que não seja ficar olhando para o livro e lendo sem me mexer já se classifica como performance. Mas eu não sou muito performática, não. Acho que meu negócio é meio um minimalismo performático.
BR: E a Índia, que entrou no livro Canções de atormentar? Como foi essa experiência?
AF: Eu fui para lá duas vezes. A primeira vez fui fazer uma residência e a segunda eu fui participar de uns festivais. Isso foi em 2015-2016, depois em 2017. Foi muito louco porque fui convidada pela Embaixada do Brasil na Índia e lá eu podia escrever sobre o que quisesse. Fiquei morando três meses lá e viajando. Algumas viagens entraram nos poemas, eu escrevi poemas sobre a Índia, mas não publiquei ainda. Acho que para mim é mais fácil escrever sobre um lugar quando já estou longe deles, mas é um país muito diferente de tudo o que já tinha visto e acho que me abriu a cabeça para outras coisas.
Jucilene Braga: A partir do que Adriana falou eu fiquei pensando que alguns poemas de Canções de atormentar a gente lê cantando, não é? Eu não sei se você tem essa impressão, mas tem a repetição das sílabas, e em um poema você faz um jogo de palavras, “entrei no grande magazine”, e vai trocando os versos, o que dá muita vontade de ler cantando. Como você falou da compra do instrumento e do título das canções, essa mobilização do ritmo, eu queria saber se no seu processo de criação dos textos a música interfere. Você também escreve cantando, a música aparece como uma motivação?
AF: Então, Jucilene, sim. Eu acho que no início talvez não conscientemente, mas depois sim, eu sempre quis escrever coisas que pudessem virar música. Quando era adolescente eu gostava muito de ler uma revista chamada Bizz Letras Traduzidas. Eu sempre gostei de ler letra de música e letra de música sempre me causou um estranhamento. Porque a gente não sabe direito se é um poema, se não é, e a letra de música traduzida ainda contém um estranhamento maior, e eu gostava muito desses estranhamentos. Acho que eu ter lido letra de música foi tão importante quanto ter lido poemas. E acho que a melopeia, que a música do poema, se não é a coisa mais importante, é das coisas mais importantes para minha escrita. Eu sou completamente guiada por vogais. Eu amo vogal, eu vou na minha cabeça criando uma musiquinha, pego todos os meus poemas, vejo como eu gosto de separar as vogais e entendo perfeitamente por que fui por aquele caminho: porque as vogais me levaram. O que é uma forma de compor também. E gosto de sons e ritmos, então acho que esse caminho é muito natural para mim.
AA: Falando dessa questão das vogais, eu me lembro do poema “us enimaos”, que é uma loucura, é maravilhoso.
AF: Eu tenho uma série de poemas em que troco as vogais de modo aleatório. Eu só publiquei esse, mas tenho vários. Uma época em que só eu achava aquilo engraçado, mas não fiquei também perturbando muitas pessoas com isso. Mas eu quis fazer essa homenagem à Veronica [Stigger], daí entrou no livro. Eu gosto de tudo que a poesia pegou emprestado da música, gosto de repetição, gosto de refrão. Eu acho que teria sido muito feliz naquela época em que o mundo era jovem e a poesia, a música e a dança eram a mesma coisa.
AGC: Você disse numa entrevista que o Morrissey e The Smiths foram responsáveis pela sua primeira epifania musical.
AF: Não sei se foi a primeira, mas eles foram muito importantes para mim. O Morrissey foi muito importante por ele ser gay e por ter um tipo de humor ferino que eu gosto. Agora ele está super-reacionário, né? O que é uma pena, mas esses dias eu estava ouvindo uma música do Morrissey que dizia: “We Hate It When Our Friends Become Successful”. Eu acho muito engraçado o tipo de tirada que ele faz.
AGC: Esse humor ácido do Morrissey está muito presente na sua poesia.
AF: Mas eu sou um amor comparada ao Morrissey, sou um docinho. Eu queria dizer também, sobre essa ligação entre música, dança e poesia, que talvez a última pessoa que eu vi fazendo isso foi a Kate Bush naquele vídeo do “Wuthering Heights”. Vocês conhecem a coreografia que ela fazia no final dos anos 70. Então, aqui em Berlim tem um pessoal que se junta todos os anos para fazer a coreografia. É muito engraçado, um monte de gente vestida de vermelho, inclusive os homens de vestido vermelho, no parque fazendo coreografia e cantando juntos. Pretendo participar do próximo “Wuthering Heights”.
BR: Mas também tem política nesse livro, só que ela tomou para mim um sentido um pouco maior por esse passeio pelo mundo e pelos efeitos do capitalismo: a roupa que veio da Ásia, a pobreza da Índia. É como se você se espalhasse e tivesse uma visão um pouco de fora, talvez até por estar em Berlim. Estou certa?
AF: Talvez. Acho que eu sempre tive uma visão meio de alguém que está do lado de fora, como nasci em Pelotas e já saí várias vezes do lugar onde estava para poder olhar para trás e pensar e inclusive para poder voltar para esse lugar. Mas o que você falou de capitalismo, eu acho que é meio impossível não pensar nisso como um problema global.
AGC: A sua poesia me faz pensar muito no Oswald de Andrade, naquela posição de amalgamar o alto e o baixo, o erudito e o popular, e naquela frase clássica: “Um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico”. A mesma postura se encontra presente no disco Tropicália (1968) e um pouco na poesia marginal. Como você coloca a música pop num mesmo nível hierárquico da poesia, gostaria que comentasse que importância teve a Tropicália e o Oswald para a sua escrita?
AF: Você sabe, Augusto, que eu tenho um problema muito grande com a questão de nacionalidade, né? Fico sempre questionando o que significa ser brasileira afinal. E, para mim, eu sei que sou lá de onde o Brasil termina ou começa (se você olhar de baixo para cima), então é uma relação um pouco estranha a que tenho com o Brasil. Tem muitas coisas que eu não identifico como minhas, mas eu definitivamente me sinto parte dessa coisa que a gente chama de “Brasil” quando eu ouço o Tom Zé. E não é só o Tom Zé, já que você falou de Tropicália, mas me identifico mais como Tom Zé. Mas é óbvio que se ouvir o Caetano Veloso aqui, dependendo do dia, eu posso até chorar.
A Bruna [Beber] foi a grande responsável por eu ouvir a Tropicália. A gente se conheceu por volta de 2005 e na época a Bruna dizia: baixa aquele disco do Jorge Mautner que está na minha pasta, baixa aquele outro disco lá de não sei quem. Eu acabei baixando muita coisa, e nesse período eu ouvi muita música brasileira. Em 2006-2007, baixei tudo que consegui do Tom Zé quando estava na Argentina. E, como eu sou uma pessoa muito ligada em música, isso obviamente acabou respingando no que eu escrevo.
Então é isso, eu acho que o Oswald chegou para mim primeiro por meio da Tropicália mesmo. Depois eu fui ler um tanto tardiamente, porque durante muito tempo eu escrevia poesia sim, mas eu não achava que ia publicar, ou pelo menos não tinha uma previsão e não me preocupava muito em ser poeta, em estudar poesia. Eu ia lendo o que caía nas minhas mãos e foi só depois que eu tentei fazer uma leitura mais programática e ordenada da literatura brasileira. Até porque eu queria entender o que estava acontecendo, o que tinha acontecido. Bateu esse interesse genuíno pela história da poesia. Eu digo que cheguei tarde porque eu fui ler o Oswald com uns 30 e poucos. Sempre lembrando que eu sou do interior do Rio Grande do Sul e o que estava disponível nas prateleiras das bibliotecas era o que eu lia.
BR: E o erótico na poesia?
AF: Não sei, acho que a minha poesia pode ser levemente aproximada do erótico, mas um erótico que também é meio amoroso. Nesse meu último livro eu tenho um poema, acho que vários poemas, que não sei se são eróticos, mas que são sobre o corpo da mulher. Não sei se você está se referindo a alguma coisa em particular.
BR: Acho que é corpo mesmo. Corpo da mulher, o olhar que contempla, o olhar feminista. Acho que o erótico passa por isso tudo.
AF: Pensando no último livro, eu tenho um poema sobre tetas caídas. No Rio Grande do Sul a gente fala “teta”. Acho até que dá para dizer “peito”, mas normalmente em Pelotas a gente fala “teta”. E tem um outro poema que é muito em código que é… Ah não, vou deixar assim, ele é muito em código, mas tem a ver com o sexo lésbico. Entendedores entenderão.
AA: Eu queria fazer uma pergunta dialogando com tudo que a gente está falando até agora. Fiquei lembrando que na performance sua com a Juliana na Audio Rebel tinha umas zines. E aí acaba sendo inevitável pensar na ligação entre a capa dessa edição da Companhia das Letras [Canções de atormentar] com o Riot Grrrl, movimento punk feminista. Vocês já pensaram nessa relação entre as tetas caídas, os pentelhos brancos e as “Canções de atormentar”, essa sereia que se rebela contra o marinheiro?
AF: [O título] Canções de atormentar foi por causa dessa série que eu escrevi sobre as sereias, e para fazer um jogo com a canção de ninar, uma canção para não dormir, para deixar a pessoa meio atormentada. Originalmente os marinheiros. Mas eu tenho um grande apreço por essa coisa do punk e por esse “faça você mesmo”. Os zines são totalmente isso. Quando estava fazendo faculdade nos anos 1990 fazia zines também, que cortava com estilete, colava e levava para o xerox e era uma grande alegria fazer. Os zines que a gente fez foram todos cortados um pouco antes de ir para a cópia, um pouco antes também de passar o som. Na ida para o lugar onde ia se apresentar a gente passava num xerox. Eu acho que as pessoas gostavam disso também, os zines foram um grande sucesso. A gente vendeu todas as cópias, vendia tudo. Eu acho que tem muito espaço para fazer zine ainda, edições independentes.
JB: Vou juntar duas perguntas em uma. Você falou sobre esse projeto de um texto em prosa em primeira pessoa. Quando eu li um primeiro poema seu, “Laranjal” [de Canções de atormentar], fui convocada a essa ideia memorialista, a um passeio pela infância, a menina depois de 16 anos, então eu não sei se já tem, em alguma medida, um traço dessa escrita de memória no poema. Essa é a primeira questão, e a segunda é que eu te ouvi na Faculdade de Letras da UFRJ relatando que escreveu Um útero do tamanho de um punho para falar sobre coisas que você queria ter lido. Queria saber se nesse livro de agora se encontra presente também a busca por experiências esplêndidas, a possibilidade de vivenciar e de experimentar novas possibilidades e vivências.
AF: É uma pergunta bem ampla, Jucilene. Vou tentar responder, mas vou começar lá pelas primeiras coisas que você me perguntou. O livro novo tem a ver com essa série, mas ela é bastante sobre o entorno, sobre o meu pai lavando o carro na entrada da garagem, sobre o cara que lutava kung fu na praia. Acho que sobretudo o que tem em comum [com o poema] é o lugar onde as coisas acontecem, elas começam nessa praia que se chama Laranjal, lá em Pelotas, no sul do Brasil.
Eu acho que a infância sempre é um lugar de onde você vai tirar as coisas mais loucas. Tem um livro que eu gosto bastante de um artista visual chamado Joe Brainard que se chama I Remember (1975), vocês conhecem esse livro? Ele é só um livro de frases, e todas começam com “I remember”. E ele fica no meio: “ah, me lembro do primeiro cigarro que eu fumei”, “eu me lembro da primeira vez que eu vi um pacote de camisinhas”. Enfim, a partir dessas lembranças ele vai puxando as coisas. Ele não fala só assim: “vi um pacote de camisinha”, ele fala mais coisa: a marca era tal, sobre onde viu. Acho que puxar essas coisas da infância sempre produz uma sensação. E eu tive uma infância bastante esquisita, então acho que tem muita coisa lá.
E a outra coisa que você falou sobre sensações, eu acho que sim, que, se a gente se colocar, se estiver disponível para as coisas acontecerem, isso acaba fazendo com que a gente escreva e produza coisas mais interessantes. Tanto é que talvez as coisas que a gente escreve que têm mais impacto são escritas quando a gente está sob uma forte emoção. Ou quando a gente está apaixonado, ou quando a gente perdeu alguém, quando alguma coisa aconteceu que te revira. Se você se dispuser a isso acho que você vai acabar escrevendo com uma energia diferente. Eu acho que tem a ver com isso. Por que a gente escreve, o que move a gente, que tipo de emoção ou sentimento nos move na hora de escrever? Voltando lá no início, amor, ódio, mas certamente alguma coisa a mais acontece para a gente querer escrever um poema.
BR: Mas quando você muda [para a prosa], que é aquilo a que você está se propondo, é uma outra voz que vai falar. Na prosa, o fundamental dessa emoção, pelo que você está apresentando, já se foi. Quando você faz um poema sobre uma emoção ou quando você vai narrar hoje alguma coisa que você já viveu, não faz diferença?
AF: Acho que totalmente faz diferença, mas você pode de repente entrar num fluxo de escrita que é influenciado por algum tipo de emoção quando você está contando isso. Não sei, certamente alguém deve ter estudado isso, eu só fico aqui intuindo, tentando me aproximar de alguma coisa que eu acho que me move…
BR: Eu acho que não tem um material vasto sobre isso não. Isso é uma coisa que eu estou muito preocupada, com essa voz das mulheres que escrevem em primeira pessoa. Que voz é essa?
AF: Essa coisa de eu ter que procurar o tom para contar essa história e também certas escolhas de não romancear, de não pegar a minha história e transformar numa história de ficção, que eu vou mudando para tornar as coisas mais interessantes. Porque acho que tem muitos casos de pessoas que escrevem – como é que se chama isso? Quando é autobiográfico, mas também é ficção?
BR: Autoficção! Não, não se trata de autoficção.
AF: Porque, por exemplo, a Vivian Gornick escreveu aquele livro lá muito bom e que saiu há pouco tempo, acho até que foi pela Todavia… Afetos ferozes. Numa entrevista ela chegou a falar que criou alguns personagens para o livro, que teve diálogos com pessoas que não existiam. Que ela criou diálogos e criou personagens. Ela foi questionada, e disse que achou que isso foi um recurso que ajudou a contar a história. Então é uma escolha que você faz, eu na verdade não quero fazer autoficção. Mas também outra questão que aparece é você ter certa responsabilidade com as pessoas que são de verdade e aparecem no que você está contando. São coisas com as quais estou tendo que lidar. Por exemplo, meu pai e minha mãe já morreram e eles aparecem muito nessa história, às vezes eu acho que eles não concordariam com algumas coisas que estou falando, mas enfim. São muitas questões que para mim poderiam até aparecer em alguns poemas, mas que [na prosa] contêm um outro modo de pensar.
Lucas Bandeira: Angélica, já vi você falar mais de uma vez que o poeta e a poeta funcionariam como uma antena do que está se passando. E eu queria entender um pouco mais essa imagem, que no seu caso funciona de uma maneira muito clara por causa da força que seus livros tiveram para uma geração toda de escritores, de poetas, principalmente poetas mulheres, mas acho que não só.
AF: Então, quem é que falava que o poeta era a antena da raça? Era o Ezra Pound. Poderíamos atualizar a sua frase para: “O poeta é a antena da praça”. Acho que tem um elemento mesmo de antena. A Inês Lourenço, aquela poeta portuguesa, numa entrevista fala que a palavra “vate” tem a mesma raiz de vaticínio, que os poetas conseguiriam antecipar as coisas que estão por vir. Não estou dizendo que eu faço isso, mas eu acho que por me dedicar a isso acabo desenvolvendo uma sensibilidade para os acontecimentos.
LB: Uma escuta, não é?
AF: É, eu acho que é por aí, acho que a gente tem uma relação com o mundo e com a linguagem que é bem acentuada. Acho que talvez seja uma capacidade de percepção do mundo mesmo, que é uma coisa que você sempre tem que estar desenvolvendo. Acho que a antena pode parar de funcionar se você não se colocar no modo de escuta e de observação, de tentar ficar aberta. Tem a ideia de uma “mente de principiante” que vem do zen budismo. Eu gosto bastante da ideia de que, se você se considera sempre um principiante, por mais tempo que tenha de ofício, sempre pode ter a cabeça de alguém que está vendo a coisa pela primeira vez, o que é muito difícil. Tentar refrescar o olhar, tentar refrescar a cabeça, tentar “desviciar” a mente e o olhar. Porque a gente sempre acaba indo pelos mesmos caminhos de pensamento, não é? Tem um cara, o Michael Pollan, que escreveu um livro sobre psicodélicos, Como mudar sua mente, e ele fala que a nossa mente está sempre acostumada a ir pelos mesmos caminhos. Você pode imaginar um morro coberto de neve e as pessoas começam a descer de trenó, daqui a pouco todas as pessoas vão descer pelo mesmo caminho de trenó. Então nosso pensamento costuma ir sempre pelos mesmos caminhos. Ele fala que os psicodélicos ajudam a mudar isso. Acho bem na moda falar sobre psicodélicos, mas, do pouco que eu sei, eu sei que é verdade. Acho que é tentar manter a cabeça boa para esse tipo de transação com as coisas que estão acontecendo. Acho que faz parte para mim do que interessa em ser uma pessoa que escreve.
AGC: A gente não tocou no tema do feminismo. Gostaria que você falasse um pouco sobre a sua relação com a poesia argentina, já que foi lá que você primeiro teve contato com um feminismo orgânico, de combate, um feminismo do dia a dia que foi tematizado no livro Um útero é do tamanho de punho (2012). Além disso, o poema que dá nome ao livro foi composto para uma amiga que abortou na Cidade do México. Lá, no hospital mexicano, umas católicas ficavam mostrando fotos de fetos mortos às mulheres que iam abortar. Gostaria que você comentasse sobre o impacto que esta experiência teve na sua escrita.
AF: A poesia argentina mudou tudo para mim. Em 2006, que foi quando eu fiz a minha primeira leitura em público, lá na Casa das Rosas, eu conheci um poeta argentino, o Cristian de Nápoli, e ele naquela mesma noite me convidou para participar de um festival que organizava em Buenos Aires, chamado Salida al Mar. Eu fui e ele me apresentou um monte de poetas que eu não conhecia e que comecei a ler. Fui morar na Argentina no ano seguinte, morei lá dois anos e meio. Acho que eu tenho muita afinidade com a poesia argentina. Lembro que uma das primeiras coisas que o Cristian me perguntou foi se eu conhecia a Susana Thénon, e eu acabei traduzindo a Ova completa dela, que saiu pela Editora Jabuticaba em 2019. Mas mudou tudo para mim também porque o que encontrei lá era muito diferente do que eu estava vendo e vivendo no Brasil. Eu ter ido morar na Argentina e ter tido amigas que se consideravam feministas foi muito importante para mim, porque no Brasil eu não tinha nenhuma amiga feminista. Eu tinha amigas que diziam “não sou feminista, mas…”, e hoje elas são super feministas, mas em geral eu tinha muita amiga que passava pano para machismo, muito amigo machista também, e eu sempre achava muito estranho. Certas coisas aconteciam e eu perguntava: “Bom, vai ficar por isso mesmo?”, e “Eu tenho que rir dessa piadinha?”. As coisas mudaram muito no Brasil e nossa, eu nem sou a pessoa mais feminista que conheço hoje.
Falando do México, porque, enfim, eu sou lésbica, eu não me relaciono com homens, então a possibilidade de eu ficar grávida sem querer não existe. Meu relógio biológico a essa hora já era, já passei da idade, mas o fato de você acompanhar alguém que está passando por essa situação não é uma coisa que fica só na teoria, você vê e sente o que está acontecendo. Afinal, quem é que manda no teu corpo? Quem é que vai te autorizar a fazer certos procedimentos? Tem que passar por uma série de instâncias de autorização para você poder decidir alguma coisa sobre o seu corpo. Isso é que foi importante para mim, eu presenciar a violência de você ter tomado uma decisão, uma decisão difícil, de repente ninguém te apoiou, mas você vai lá e ainda tem que lidar com pessoas religiosas que chegam tentando te dissuadir com fotos de fetos e depois ficavam com megafones na frente do centro de saúde. Na Cidade do México o aborto é (ou pelo menos era naquela época) legalizado.[1] Foi uma experiência muito louca e eu fiquei com vontade de escrever sobre isso e acabei fazendo. Acho que foi o poema mais longo que eu escrevi.
BR: Para terminar, gostaria que você falasse sobre a experiência de ser lésbica na Alemanha. Quando você irá tomar coragem para voltar para o Brasil?
AF: Eu estou sendo lésbica basicamente aqui em casa, não tive contato com outras lésbicas além da minha namorada, mas acho que a coisa é bem mais avançada aqui. Mas eu só fico no achismo mesmo, porque não sei. Mas eu me sinto bem segura aqui. Acho que as pessoas aqui não são muito de demonstrar afeto em público, mas quando eu demonstro afeto em público não me sinto ameaçada, e acho que isso é uma grande coisa. Quanto a voltar para o Brasil, não é nem que falte coragem, sinto muita saudade da minha casa, do meu apê lá em São Paulo. Mas eu acho que por enquanto a gente vai continuar em Berlim. Eu estou fazendo uma série de leituras, tudo que eu não fiz durante a pandemia estou fazendo este mês. Quero tentar fazer mais contatos e melhorar o meu alemão. Estou estudando alemão todos os dias, a minha intenção é tentar traduzir algo do alemão. Tem vários motivos para continuar aqui por algum tempo, mas a gente vai voltar sim. A gente deve voltar no mais tardar em 2023. Dependendo do resultado das eleições a gente volta antes, mas vamos ver.
* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Augusto Guimaraens Cavalcanti é escritor e faz pós-doutorado pelo PACC/Letras/UFRJ com bolsa da Faperj; Jucilene Braga é doutoranda do Programa de Ciência da Literatura da UFRJ; Adriana Azevedo é professora substituta de Teoria Literária na UFRJ; Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/Letras/UFRJ, com bolsa da Faperj.
Nota
[1] Desde 2007 é permitida na Cidade do México a interrupção da gravidez de até 12 semanas. Em setembro de 2021, a Suprema Corte mexicana descriminalizou o aborto no país. (N.E.)
Miriam Moreira Leite foi uma das feministas mais brilhantes da geração que viveu a segunda onda sob a pressão da ditadura. Seus estudos sobre imagem e narrativa se tornaram fundamentais porque faziam perceber a mão pesada do patriarcado sobre as mulheres em retratos de família e textos dos viajantes no século XIX. Além disso, Miriam fez um resgate triunfal de Maria Lacerda de Moura, militante anarquista nascida em 1877, crítica ferrenha da moral sexual burguesa e defensora da educação sexual dos jovens, do amor livre, do divórcio e da maternidade consciente.Mas o que me parece mais importante na carreira de Miriam foi, de fato, ser a pioneira em estudar a imagem com uma perspectiva feminista. Precisamos conhecer e aprender com Miriam, que foi uma amiga cheia de amor, cuidado e delicadeza. Miriam foi pesquisadora visitante do PACC quando éramos ainda CIEC – Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos.
Saudade grande dessa amiga genial.
Heloisa Buarque de Hollanda
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo
Em 2008, Miriam Lifchitz Moreira Leite completou 82 anos de idade. Sua reflexão sobre a questão das imagens e da memória tem inspirado e influenciado muitos pesquisadores do campo das Ciências Humanas, justamente pela sua capacidade de provocar outras reflexões, provocar outros olhares. Partindo desta inquietude, própria à obra de Miriam, sentimos ser este um momento privilegiado para rever sua obra e biografia, procurando retraçar os caminhos de suas escolhas e inquietações. Neste movimento, produzimos um documentário no qual buscamos praticar a metodologia criada por Miriam em suas pesquisas: mobilizando a memória a partir das imagens e, assim, tecendo sua biografia. Neste percurso, nos debruçamos sobre o material produzido pela autora, sua pesquisa sobre a feminista Maria Lacerda de Moura e suas caixas e álbuns de fotografias pessoais. Desta forma, nasceu Caminhos da memória – Miriam Moreira Leite (2008, 35 min), vídeo dirigido pelas autoras desta entrevista, o qual compõe a Série Trajetórias nas Ciências Sociais, produzido no âmbito do Projeto Temático Alteridades, Construções da Realidade e Expressões Culturais do Mundo Sensível, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (2003-2007).
Publicamos aqui uma entrevista produzida neste contexto em que a autora nos brinda com importantes elaborações sobre a imagem, em especial a respeito das relações entre fotografia e memória[1]. Cabe dizer que, em sua trajetória acadêmica, Miriam reflete sobre as construções da realidade social nos livros de história, produz um importante estudo sobre as imagens do Brasil presentes na literatura produzida pelos viajantes e o seminal estudo sobre a estrutura da representação da família a partir de imagens fotográficas, entre outros.[2] A entrevista aqui apresentada é um pequeno fragmento da profundidade que há no trabalho e na biografia de Miriam.
Andréa: Como apareceu a ideia de trabalhar com fotografias? Como é que a fotografia entrou na sua vida de trabalho?
Miriam: Eu sempre gostei muito de olhar álbuns e verifiquei, vendo álbuns de famílias de origens muito diferentes, que as figuras eram muito parecidas. Havia uma semelhança muito grande entre as fotografias de um álbum e de outro, não propriamente da fisionomia das pessoas, mas da posição, da maneira e da frequência com que tiravam retratos. Isso que me orientou para fazer uma coleção, exatamente, de retratos de filhos e de famílias de imigrantes para São Paulo, em um período em que a pose era um problema, quer dizer, a pose era muito longa, porque o filme era muito lento. Então, realmente isso era um fator identificável e que fazia com que todas fossem meio parecidas. As pessoas todas precisavam ficar retas, olhando de cara para a câmera, de frente e cansadas de tanto esperar. Então eu fiz essa reunião de fotos de família e a partir daí eu fiquei examinando o que a fotografia trazia e o que não trazia.
Para mim foi extremamente útil perceber que, em vários momentos, no caso de algumas fotografias que são muito repetidas, você acaba não vendo mais, justamente porque é muita repetição. Tanto que, no fotojornalismo, as pessoas recorrem a elementos extremamente exóticos para chamar a atenção, porque senão a saciedade da percepção é muito grande, e você acaba não vendo aquela coisa que se quer mostrar. O próprio retrato de família, de uma, duas gerações colocadas em fileiras e, frequentemente, os mais velhos bem no meio e as crianças sentadas na frente, foi colocado, até por um dos estudiosos de fotografia, como exemplo de uma fotografia invisível, pois como todo lugar tinha, você acabava não vendo. O que também me chamou a atenção é que a questão da pose acabou se tornando um sinônimo de retratar, porque fazia parte da fotografia você estar sendo observado, então você ficava numa atitude de quem está sendo visto.
Francirosy: Você considera Retratos de família[3] um livro de metodologia de análise de imagem?
Miriam: Eu tenho impressão de que é um ponto de partida. Na verdade, cada tipo de fotografia tem uma lógica própria. Eu até pensei em fazer, primeiro, de um grupo pequeno que seria a família, depois, de um grupo médio de festas, ou o movimento social, e depois, de grandes grupos, como os comícios e revoluções. Essa última ideia não vingou na medida em que você acaba não vendo a expressão das pessoas, você acaba tendo a ideia de um mundo de pessoas que você acaba não enxergando e nem podendo tirar nada dali. No caso, por exemplo, de outro trabalho com o qual eu colaborei, que foi Retratos de carnaval,[4] realmente existe uma outra maneira, apesar de todos serem redutíveis a retratos de família. Isso fez com que eu insistisse nele, porque, inclusive, nos retratos de carnaval, existe a família que aluga o carro para o ‘corso’ e aquilo se torna um salão que, de certa maneira, é uma forma privada de festa. E, a partir daí, também as famílias de projeção acabavam pondo seus retratos nas revistas ilustradas, e o retrato que era uma questão privada e apenas exibido para as pessoas de dentro da casa ou amigos passou a ser uma coisa pública. Todos esses elementos da fotografia acabaram aparecendo nesse trabalho – sempre à procura de um equilíbrio entre aquela visão imediata que você tem do conteúdo da fotografia à primeira vista e a falta de percepção quando você não consegue mais ver a fotografia, dada a sua repetição.
Francirosy: E, neste ponto, você fala dos quatro vetores…[5]
Miriam: Na verdade, a fotografia exige muito mais do que um texto escrito para sua revelação, porque você precisa levar em conta tanto o produtor da foto, como as pessoas retratadas, aquilo que as pessoas retratadas gostariam que aparecesse, quer dizer, elas realmente fazem uma pose daquilo que elas querem que apareça e aquilo que o fotógrafo acha que melhora o seu produto, de maneira que existe uma porção de ângulos que você precisa levar em conta para conseguir extrair da fotografia aquilo que não é imediatamente visível.
Francirosy: O que me chama bastante atenção no Retratos de família é a maneira como você conseguiu articular tanto os autores da História, da Sociologia, da Antropologia e da Psicologia. Isso foi um caminho que você acabou optando para a análise dessas imagens, dessas fotografias, ou essas referências foram aparecendo?
Miriam: Elas foram aos poucos aparecendo. Uma coisa, por exemplo, que eu tive de usar sempre foi a questão da percepção visual que é muito estudada pela Gestalt,[6] a psicologia da forma, que tenta entender a forma e o fundo, e tudo isso aparece na fotografia. Para você poder ver o que está na foto, você precisa ver o que está no foco e o que está em torno, que é uma das técnicas da Gestalt. No caso, por exemplo, da Antropologia Visual, o trabalho que a Margareth Mead e o Bateson fizeram em Bali[7] foi um trabalho que me inspirou muito, na medida em que eles procuraram perceber como uma criança adquire sua forma de ser balinesa. Aí eu percebi que a fotografia é principalmente sobre o espaço e, para você obter a dimensão do tempo, você precisa construir esse tempo. Precisa ter várias fotografias, em vários momentos, para obter a dimensão do tempo. Isso é verdade não só para o caso das crianças que iam crescendo, que iam adquirindo formas de vida e comportamento, como também para qualquer fotografia. É preciso ter várias fotografias, tiradas em vários momentos, para você poder compreender o que é aquilo. A fotografia isolada é muito difícil de ser analisada, você precisa de uma sequência que te revele o conteúdo.
A fotografia por si não fala. É preciso que os fotografados revelem a sua identidade, quando tiraram, por que tiraram, o tipo de recurso que tinham. No caso do Retratos de família, eu tive que fazer entrevista com todos eles, porque muitos deles me revelaram também um outro elemento muito importante: que a memória da fotografia é muito diferente da memória de um texto escrito. A sua memória é feita através de uma convocação de outras imagens parecidas. É dessa forma que você consegue compreender aquela imagem. E no caso, por exemplo, desse meu arquivo fotográfico de famílias de imigrantes, eu tive a oportunidade de ter depoimentos, tanto de descendentes como às vezes dos fotógrafos que tinham tirado essas fotografias. E assim, as lembranças que eles tinham e a revelação dessas lembranças me permitiram perceber o que era aquela fotografia.
Francirosy: Você lembra de alguma história interessante que você ouviu mostrando essas fotografias? Você se deparou com algum silêncio?
Miriam: Isso apareceu no exame dos álbuns. Os álbuns tinham realmente algumas ‘cruzinhas’ em baixo, que às vezes revelavam que a pessoa que estava organizando queria aparecer ou, por outro lado, algumas eram recortadas. Demorou um pouco para eu entender o que isso queira dizer. Na verdade, alguns casos eram pessoas que eram malvistas na família ou que pretendiam afastá-las da família, então elas retiravam do retrato. Depois eu percebi que, em alguns casos, elas retiravam das fotografias (que é uma diminuição, uma redução da realidade, ela nunca é só uma reprodução), elas retiravam aquilo para colocar em relicários. O relicário em camafeus ficava mais próximo das pessoas, de maneira que são movimentos praticamente opostos e que são revelados por um ato que você só vê manuseando não só a fotografia como os seus invólucros, que são os álbuns ou até, às vezes, caixas de sapatos.
Andréa: Como você reuniu o arquivo de fotos de família?
Miriam: Foi uma coisa inteiramente empírica, não foi, digamos, uma coisa representativa. Eram pessoas do meu convívio, que se interessaram pelo trabalho e que eram descendentes de imigrantes, aliás, em São Paulo, você encontra uma quantidade bastante variada dessas pessoas. E elas me emprestaram os seus álbuns, alguns, uma quantidade enorme, alguns, algumas fotografias. A reunião delas eu uniformizei, reproduzindo todas no mesmo tamanho, no mesmo tipo, porque havia tamanhos muito diferentes, fotografias pintadas também, coisas que eram muito difíceis de você comparar, e a comparação é a base do trabalho. Então foi necessário fazer esse arquivo provisório com o qual eu trabalhei. Depois eu apresentava o arquivo que eu tinha feito para as pessoas, que me falavam daquilo que lembravam da fotografia.
Andréa: Você não reapresentava os álbuns delas, você mostrava a organização que você fez do material?
Miriam: É, porque aí elas tinham o afastamento do material, que permitia que a memória funcionasse melhor, porque aquelas que elas viam sempre acabavam sendo esmaecidas da sua memória. Esses experimentos que eu fiz de percepção visual contaram com o depoimento das pessoas retratadas e, também, em assessorias que eu dei às pessoas que queriam trabalhar com fotografias. Elas traziam núcleos diferentes de fotografias, e a gente tentava classificá-las e tentava ver até que ponto a gente conseguia extrair delas o que elas não tinham de aparente ou o que elas tinham de latente. Assim como no texto escrito você precisa fazer uma crítica para aceitá-lo, na imagem é da mesma maneira, você precisa fazer essa crítica externa e interna. A externa você verifica o tipo de conservação, onde foi conservado. A interna é essa visão de cada um, porque as pessoas estão lá, a posição em que elas ficam, por quê é que elas são assim e aquelas que são mais comuns, o que leva as pessoas a tirarem foto do nenemzinho de bruços e nuzinho. Também existem as coisas que não são fotografáveis, por exemplo, não se tira fotografia de banheiro. Aliás, hoje em dia, nos filmes, tem aparecido muita gente em banheiro, mas é uma coisa muito recente, até pouco tempo o banheiro era interdito à máquina fotográfica.
Ana: Existem dois aspectos diferentes: uma coisa é trabalhar com a imagem como objeto de pesquisa e outra é como forma de construir um diálogo com seu interlocutor, o sujeito que você está estudando. As fotografias acionam as memórias, como você discute essa relação entre imagem fotográfica e memória?
Miriam: Na verdade, acabou ficando para mim que o retrato é um instante congelado da memória. A memória é um processo muito dinâmico, e o retrato é uma fixação de um momento. Mas, a memória que você tem é a fixação de vários momentos sucessivos. É verdade que eu trabalhei muito, não com uma história da família pelo retrato, mas com o retrato como um instrumento de percepção e forma de compreensão da imagem fixa. A imagem móvel, como o cinema e a televisão, traz toda uma série de outros problemas que eu não tratei, porque aí entra uma questão de como o tempo é resolvido, a sequência das cenas. E na foto não, a foto fica parada e ela é aquela só e aquele momento único, e tem essa vantagem que você pode olhar quantas vezes quiser e ir tirando, aos poucos, tudo aquilo que você pode tirar da contemplação. A imagem móvel passa muito depressa, você perde muita coisa. Estou tendo agora a experiência de ver vários filmes várias vezes, e a quantidade de coisas que você perde é muito grande, tanto que é muito difícil dizer que você lembra de cena a cena. Já a fotografia permite essa análise muito mais profunda, e em alguns casos essa análise é obtida por uma ampliação da fotografia, porque a fotografia é redução da realidade. Você pega uma coisa de três dimensões e reduz para duas e, também em relação à chapa e aos negativos, ela é diminuta. Nesse sentido, a ampliação às vezes é necessária para você ampliar o seu olhar. Naquele filme Blow up, o Antonioni[8] se aproveitou dessa condição do fotógrafo diante de alguma coisa que ele não vê e que, a partir de várias ampliações e de dias de contemplação, ele consegue entender que ali atrás está um homem morto.
Andréa: Você disse que a pose tinha uma questão prática, que a pessoa tinha de ficar parada muito tempo porque o filme era lento, mas também a questão da escolha, da composição do quadro, porque posar deste jeito, os objetos que se escolhem, por exemplo, criança com cavalinho, a paisagem pintada no fundo. Você chegou a pensar neste rol de significados que compõe o quadro?
Miriam: Isso acontecia muito na fotografia de imigrantes, em que eles tentavam, não só na sua roupa como também na imagem de fundo, apresentar um lugar distinto, ou plantas, móveis antigos, retratos também, retrato dentro do retrato e depois a roupa domingueira com que eles se apresentavam para serem fotografados. Tudo isso eram maneiras para se apresentar e poder exibir, para as pessoas que ficaram na terra ou para as outras pessoas da família, como eles estavam bem. Uma outra dificuldade desses retratos é a diferença. Você não consegue distinguir a classe social e econômica dos fotografados, porque eles procuram melhorar muito as suas imagens. Eu tenho um retrato de um antigo marceneiro com a mulher, e os dois têm uma pose e uma postura que você tem a impressão que eles são da nobreza, isso dificulta muito, é um dos limites da fotografia.
Andréa: Você falou que a fotografia também serve como troca de significados entre as pessoas…
Miriam: Porque, na verdade, a fotografia tem também a qualidade de ser objeto de culto dos antepassados, aqui eles estão e continuam presentes, mas é também uma forma de exibição, que é também uma maneira de você mostrar, para os outros, quem você é. Isso existe muito, tanto entre os imigrantes como nos outros. Havia muitos fotógrafos que tinham fantasias de outros lugares ou fantasias muito bonitas e que eles forneciam para os fotografados para que eles pudessem tirar as fotografias.
Ana: Lembro de um artigo que você produziu há algum tempo que se chamava “Atirei no que vi, acertei no que não vi” (Leite 2002:193-202), em que você comentava as poses de mulheres publicadas em revistas femininas, mas você comentava também como a mulher não deveria ser fotografada, poses que não se deveriam mostrar, pensando em representações sobre a mulher…
Miriam: Não é que não deveriam, mas as mulheres não gostavam, por exemplo, de ser retratadas naquele afogamento de tarefas intermináveis que a mulher tinha. Ela precisava se preparar para tirar a fotografia, mesmo quando a pessoa queria tirar na sua cozinha, ela dizia: não, eu preciso limpar, eu preciso arrumar. Era uma necessidade muito grande, porque aquilo fica fixo, você na memória pode apagar, mas na fotografia ela é fixada, ela é a imagem.
Andréa: E o que foi que você não viu e que você acertou, com esse trabalho das imagens das mulheres nas revistas femininas?
Miriam: Como eu estava muito interessada em fazer retratos de grupos, então de cara eu descartei fotografias individuais, mesmo porque as individuais são muito mais difíceis de analisar, você precisa de uma sequência muito grande de fotos da mesma pessoa para conseguir ter a análise. Então eu inicialmente descartei essas fotografias, existem muitas de primeira comunhão, por exemplo, também de pessoas mortas e todas essas eu inicialmente descartei, mas depois eu verifiquei que havia vários elementos que essas fotografias podiam me trazer, na medida em que eu poderia compará-las com mulheres de outros grupos, por exemplo, as mulheres e as imigrantes em geral, elas não sorriem, elas não têm do que sorrir, estão sempre muito sérias e muito preocupadas sempre. E o sorriso para a máquina é uma coisa da classe alta que depois foi se generalizando.
Francirosy: Eu tenho uma curiosidade, Miriam, já que a gente está conversando sobre fotografias, sobre memória. Hoje a gente não tem mais álbum, depois da câmera digital você fotografa tudo, você arquiva um monte de CDs que você demora quinhentos anos para olhar de novo e você se afoga nessas quinhentas mil fotos. Outro dia eu me deparei com uma imagem que eu não conseguia nem lembrar quando nós tiramos, quem tirou, mas a foto existe, ela está lá no meio das quinhentas mil fotos digitais que estão lá arquivadas. Eu tenho os álbuns até uma certa idade, o primeiro álbum de cada um. O primeiro filho a gente fotografa muito, o segundo diminui e o terceiro quase nada… Mas com a câmara digital, isso mudou, você fotografa qualquer respirada da criança hoje em dia, ele mexeu o dedinho você fotografa. Será que isso muda na análise da imagem? E a gente não faz mais ampliações como fazia antes, de uma ou outra, às vezes você até esquece, só tem em CD mesmo…
Miriam: Você olha muito menos o CD do que você olha uma fotografia, ele exige recursos mecânicos que a fotografia não exige. Houve um filme, eu não me lembro muito bem o nome, mas que as pessoas que tinham retratos de família eram seres humanos, os outros não tinham.[9] Essa é uma referência a isso que você está dizendo, mas as pessoas não vão usar o CD como usavam a fotografia, é uma outra coisa.
Andréa: É que a gente ainda não sabe como vai ser, porque estamos em uma fase de transição. É muito difícil, a gente se perde e perde as fotografias, porque quando a gente tinha que revelar, a gente era obrigado a fazer essa seleção, olhar, escolher, escolher a ordem que você vai pôr no álbum. É um relacionamento físico…
Miriam: E o tempo que você leva com ela é muito maior.
Andréa: Há um elo entre você e a fotografia impressa e aquelas imagens lá no computador parecem não criar elos…
Miriam: Elas não exigem de você nem seu tempo, nem sua atenção.
Francirosy: A gente cria álbuns virtuais, por exemplo, no Orkut. Então fotos mais recentes estão lá e outras mais antigas também. Você vai montando esses álbuns virtuais, mas é um outro tipo de relação, e essa garotada hoje em dia é muito rápida. Não tem nem a preocupação de guardar…
Miriam: Eu acho que a própria relação com o tempo dos mais jovens é diferente, é uma necessidade de velocidade que a gente não tinha, as coisas eram mais compassadas. E agora a coisa fica muito difícil de você adaptar um comportamento que era essencial, das famílias, pelo menos de classe média e alta, para as coisas de hoje. Hoje você consegue ter uma câmera digital até razoavelmente barata. E a fotografia tradicional exige muito mais de tempo, de dinheiro e de atenção.
Ana: Queria voltar um pouquinho à pesquisa sobre Maria Lacerda de Moura. Durante as gravações do vídeo, fizemos uma viagem para Guararema (São Paulo), quando fomos fazer uma segunda entrevista com a Dona Norma Campagnoli, e você levou fotografias dos pais dela, dos tios… Era um segundo encontro que tínhamos com ela. No primeiro encontro, ela havia sido muito seca, lacônica e, nesse segundo encontro, a partir do momento em que você entregou as fotografias, ela passou a contar muitas histórias, que era o que a gente estava buscando e não tínhamos encontrado até então…
Miriam: A fotografia é um instrumento de pesquisa fundamental, quer dizer, é possível que você chegue a não ter mais, mas em todo caso é muito importante. Nesse trabalho da Olga Von Simon sobre o carnaval nas primeiras décadas do século XX, ela usou o método frequentemente com os chefes de escolas de samba, as próprias fotografias deles que ela reunia e depois apresentava para eles dizerem o que eles tinham na memória sobre aquilo que estava ali.
Ana: Nessa situação com a Dona Norma, ela contou a infância, a história do tio, a partir daí a gente pode reconstruir um pouco do que foi aquela comunidade de Guararema. Interessante como a foto remeteu a esse outro tempo, as histórias dos antepassados, a infância…
Miriam: Pois é, mas dentro disso que estamos examinando, eu acho que daqui a pouco vai ser um instrumento que não vai ter mais, vamos ter que recorrer a outras formas de evocação da memória.
Andréa: A fotografia para você também serviu como um procedimento metodológico para evocar a memória?
Miriam: Foi, sem dúvida! Tanto que todas aquelas fotografias que vocês filmaram são todas fotografias de minha família e que me trouxeram vários momentos da minha vida que tinham se apagado.
Andréa: O que despertou que você tinha deixado apagar?
Miriam: Vimos fotos de umas tias com nenê no colo, que era um tempo em que eu estava muito longe delas…, mas eu tinha um entusiasmo por elas. São umas coisas assim, momentos de emoções que passaram e que voltam com a fotografia.
* Miriam Lifchitz Moreira Leite (1926-2013) formou-se em Ciências Sociais e História, pela Universidade de São Paulo (1947), tendo sido uma das fundadoras do NEMGE – Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher da USP, em 1985 – desde 1998 participava do GRAVI – Grupo de Antropologia Visual (LISA – USP). Realizou seu pós-doutorado pela Eastman Foundation-KODAK (1990), foi professora-doutora de pesquisa em imagem do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. Dedicou-se a várias áreas do conhecimento, entre elas: gênero, família, fotografia e memória. Publicou 15 livros, mais de 30 artigos em revistas especializadas, contos, poemas e outros textos.
Artigos
LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 2003. “Janela da Alma”. Cadernos de Antropologia e Imagem, 15(2):177-180.
______. 2002. “Atirei no que vi e acertei no que não vi”. Gênero, 2(2):193-202.
______. 2002a. “Luce Fabri e o anarquismo contemporâneo”. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção.
______. 2002b. “Trajetória de uma rebelde”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 415:85-97.
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______.1975. “O Ensino de história no primário e no ginásio (cinco anos depois)”. Revista de História USP, 103:627-637.
Livros:
LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; FELDMAN-BIANCO, B. (eds.). 1998. Desafios da imagem (Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais). 2ª ed. Campinas: Papirus.
LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1997. Livros de viagem (1803-1900). 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
______. 1997a. GUT: o ritmo vivaz. São Paulo: EDUSP.
______. 1997b. Diário do Barão E.de Langsdorff (1824-1825). 1ª ed. Campinas: Unicamp; Manguinhos: Fundação Oswaldo Cruz.
______. 1995. Pedagogia da Imagem e Imagem da Pedagogia. 1ª ed. Niterói, UFF: Faculdade de Educação da UFF.
______. 1994. “Caetano de Campos: fragmentos da História da Instrução Pública em São Paulo”. 1ª ed. São Paulo: Associação de ex-alunos do IECC, vol. 1.
______. 1993. Retratos de Família (Leitura da Fotografia Histórica). 3ª ed. São Paulo: EDUSP-FAPESP.
LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; SIMSON, O. V. (eds.). 1992. Reflexões sobre a pesquisa sociológica. 1ª ed. São Paulo: Textos CERU 3.
LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1991. A infância na história do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Contexto.
______. 1984. A condição feminina no Rio de Janeiro século XIX. 3ª ed. São Paulo: HUCITEC/Pró-Memória/INL.
______. 1984. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. 1ª ed. São Paulo: Ática.
LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; MOTT, M. L.; APPENZELLER, B. K. 1982. A mulher no Rio de Janeiro no século XIX. 1ª ed. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.
LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1980. Iniciação à história social contemporânea. 3ª ed. São Paulo: Cultrix.
______. 1969. O ensino de história no primário e no ginásio. 3ª ed. São Paulo: Cultrix.
Capítulos de livros publicados:
LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. 2002. “Aspectos do Segredo”. In: FUKUI, Lia (org.). Segredos de família, p. 61-69. 1ª ed. São Paulo: Annablume; NEMGE; FAPESP.
______. 2001. “Morte e fotografia”. In: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (org.). Imagem e memória (ensaios em antropologia visual), p. 41-50. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond.
______. 1999. “O opaco e a transparência no texto visual”. In: ECKERT, Cornélia; MONTEMOR, Patrícia (orgs.). Imagem em foco (novas perspectivas em antropologia), 105-114. 1ª ed. Porto Alegre, RS: Editora da UFRS.
______. 1999a. “Trabalho em andamento” In: KOSMINSKY, E.V. (org.). Agruras e prazeres de uma pesquisadora: ensaio sobre a sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz, p. 69-76. 1ª ed. São Paulo-Marília: Unesp-Marília-Publicações; FAPESP.
______. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1+2), 2009, p.354.
______. 1999b. “Prefácio ao Diário da baronesa E.de Langsdorff (1842-1843)” in: Diário da baronesa E.de Langsdorff (1842-1843). 1ª ed. Florianópolis, SC: Editora Mulheres.
______. 1998. Maria Paes de Barros. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. (org.). A vida cotidiana em São Paulo no século XIX. 1ª ed. São Paulo: Ed. Unesp.
______. 1998a. “Imagem paradigmática no passado e no presente”. In: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico, p. 35-40. 2ª ed. São Paulo: HUCITEC; CNPq.
______. 1997. “A infância no século XIX”. In: FREITAS, Marcos Cesar de. (org.). História social da infância no Brasil, p. 19-52. 3ª ed. Bragança Paulista: USF-IFAN; Cortez Editora.
______.1997a. “Mulheres viajantes no século XIX”. In: SCHPUN, Mônica Raisa. (org.). Gênero sem fronteiras, p. 35-44. 1ª ed. Florianópolis, SC: Editora Mulheres.
Notas
[1] Entrevista realizada pelas antropólogas Andréa Barbosa, professora adjunta do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz, realizando pós-doutorado no Departamento de Antropologia da USP e membro do Grupo de Antropologia Visual (GRAVI/USP) e do Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama (NAPEDRA/USP), e por Francirosy Ferreira, bolsista PRODOC no Instituto de Artes Unicamp, pesquisadora do GRAVI (Grupo de Antropologia Visual) e do NAPEDRA (Projeto Temático – Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual). Publicada na revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1+2): 339-354 (2009).
[2] Veja lista das principais publicações da autora ao fim desta entrevista.
[3] Moreira Leite, Miriam. 1993. Retratos de Família. São Paulo: EDUSP. Prêmio Jabuti.
[4] Miriam faz referência à Tese Brancos e negros no carnaval popular paulistano – Tese de Doutorado de Olga Von Simon (FFLCH/USP, 1989).
[7]Balinese Character, a photographic analysis. New York: New York Academy of Sciences, 1942.
[8] Referência ao filme Blow up, depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni, Inglaterra/Itália, 1966, 114 min.
[9] O filme referido é Blade Runner, o caçador de androides, Ridley Scott, EUA, 1982, 116 min., onde num mundo habitado por homens e androides, só os primeiros tinham memória, essa encarnada pelas fotografias de família.
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