Ano XIX 01
Dossiê
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CRÍTICA E CURADORIA NA ESCRITA DE SEGUNDA MÃO E NA EXPERIÊNCIA DO PAGINÁRIO CPLP

Em 2023, como parte das comemorações do Dia Mundial da Língua Portuguesa[1], fui convidado a elaborar um mural da série Paginário em Lisboa. O projeto havia sido criado por mim em 2013, no seio de um momento de crise política materializado de maneira dramática nas manifestações nacionais desencadeadas em junho daquele ano, e desde então tivera em torno de 70 realizações de norte a sul do Brasil, a maior parte instalada no espaço público, além de encarnações em Porto, Coimbra, Oeiras e Madri. Em comum entre esses vários Paginários, o conceito básico de montagem de murais compostos de fotocópias de páginas de diferentes livros a partir de uma curadoria coletiva, às vezes seguindo um tema específico, outras vezes trabalhando com o gosto pessoal dos participantes; além da noção de percurso de leitura como criação, e da proposta de uma obra visual se vista de longe e convidativa à leitura se vista de perto.

Pós-moderno em sua valorização das apropriações, descontinuidades, deslocamentos e agrupamentos de diferenças, o Paginário guarda também resquícios de uma visada utópica, por ser uma forma de arte na qual uma noção de educação das sensibilidades se relaciona intimamente com uma proposta de mudança na cidade ou na nação. No horizonte utópico do projeto, estão a inserção da leitura de literatura como possibilidade aberta no circuito das ruas, o circuito urbano; a exposição da leitura (o que toca um outro durante a leitura, e que ele seleciona e sublinha) como meio de contato com o desconhecido; e por último, a expressão de uma relação desabusada com livros, ou seja, menos preenchida por um respeito receoso e distanciador, e mais próxima, física, manual, concreta, cotidiana e simbólica – dado que o espaço da rua não anuncia distinções ou hierarquias em suas paredes e muros.

A principal referência para o projeto encontra-se em espaço público, a céu aberto: a Escadaria Selarón, situada entre o bairro da Lapa e o de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Assim como o Paginário, a Escadaria pode ser pensada como uma instalação, que de acordo com o pensamento de Boris Groys, seria uma obra feita de curadoria, uma obra feita de diversas outras obras. A reunião dessas foi concebida pelo pintor chileno Jorge Selarón, que recebia azulejos enviados por pessoas de todo canto do planeta. Essa relação de parentesco com uma obra composta de azulejos animou o projeto Paginário CPLP no sentido de especularmos uma conversa com toda uma tradição, dado o lugar central que o azulejo ocupa na cultura portuguesa desde o século XIV e a sua anterior utilização por povos árabes no Antigo Egito e na Mesopotâmia, na Antiguidade.

Em conversas com o Departamento Cultural da Missão Brasil junto à Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), setor que havia feito a mim o convite para realizar o Paginário em Lisboa, decidimos, após algumas trocas de fotografias e medições de espaços, que o lugar a hospedar o mural seria o paredão do Largo do Correio-Mór, imediatamente em frente à sede da CPLP, entre os bairros de Alfama e Castelo. Definido o local – que terá sua relevância, geográfica e histórica para o projeto, comentada mais adiante neste artigo –, o processo de elaboração do novo Paginário CPLP se tornou também, para mim, um momento de revisão das bases conceituais do projeto, concebido uma década antes.

Nesse artigo, vou buscar precedentes e referências a partir do modernismo brasileiro (seção 3) e faço uma recapitulação de como o projeto veio articulando arte, literatura e política enquanto trabalhava determinados modelos de curadoria, crítica e criação (seção 4). Na sequência, escrevo mais concentradamente sobre o mural realizado em Lisboa (seção 5), dando foco a como curadoria, crítica e criação se modularam em nosso processo coletivo de seleção de textos, na proposta de trabalhar o pluricentrismo da língua portuguesa – discuto desafios e forças deste tema –, nos motivos para o projeto de formas, imagens e cores do mural, e na maneira como o trabalho dialoga com características do local onde foi instalado. Mas antes desenvolvo uma revisão (seção 2) de alguns conceitos muito utilizados, por mim e outros pesquisadores, em artigos e livros que recentemente trabalharam o tema da escrita e da textualidade produzidas por meio da reciclagem e rearranjo de escritos pré-existentes.

Contexto e revisão de termos: a escrita de segunda mão

Tradicionalmente, a curadoria é o trabalho de pensar, selecionar e colocar obras de arte dentro do espaço da exposição. Essa atividade se difere da atividade do artista no seguinte sentido: ao contrário do curador, o artista pode trabalhar para expor objetos que não são considerados objetos de arte. Ou seja, ao artista é reservado o direito de propor que objetos que não são arte se tornem arte, enquanto o curador seleciona, desses objetos então propostos como arte, quais deles farão parte de um determinado espaço e tempo. Naturalmente, é claro, a curadoria atua assim como quem confere força institucional à afirmação questionadora proposta pelo artista. A rigor, no entanto, dessa maneira, a criação seria considerada primária e a seleção, secundária, tendo cada uma dessas atividades um determinado potencial crítico.

O que estamos vendo acontecer nas últimas décadas é uma crescente flexibilização das fronteiras entre curador e artista, a qual vem se dando por um movimento de mão dupla: pelo lado do curador, a liberdade para disposição espacial das obras, agindo na dimensão relacional delas entre si, ou com o tempo, ou com o espaço, e a força de proposição de temas e narrativas, bem como a de orientar a produção de artistas (especialmente aqueles mais voltados para galerias e museus), alargaram o espectro de ação do curador até um ponto em que nos perguntamos sobre o estatuto do seu gesto, e se não seria ele mesmo um produtor de efeitos potencialmente artísticos. Pelo lado do artista, na verdade, desde Marcel Duchamp, desde o início do século XX, o ato de selecionar pôde se tornar artístico – obviamente, a depender do que é selecionado e do contexto em que é apresentado. Esta proposta foi adquirindo mais espaço na segunda metade do século XX, devido à institucionalização (por parte de museus, universidades, e novas gerações de artistas) das vanguardas como verdadeiras escolas de arte. Este borrar de fronteiras se intensificou ainda mais com a ascensão da arte da instalação. Para Boris Groys,

Pelo menos desde os anos 1960, os artistas têm criado instalações para demonstrar suas práticas pessoais de seleção. As instalações, no entanto, não são nada mais que exposições curadas pelos artistas, nas quais objetos feitos por outros podem ser – e são – representados tão bem quanto aqueles feitos pelo artista. Assim, os curadores também estão livres da obrigação de exibir somente os projetos pré-selecionados pelos artistas. Os curadores, hoje, sentem-se livres para combinar objetos de arte selecionados e assinados por artistas com objetos retirados diretamente da “vida”. Resumindo, uma vez que a identidade entre criação e seleção estiver estabelecida, os papéis do artista e do curador também se tornam idênticos. Uma distinção entre a exposição (curada) e a instalação (artística) ainda é comumente feita, mas é essencialmente obsoleta. (Groys, 2015, p.120)

Assim, observamos uma identificação entre criação e seleção. Quando falamos em arte verbal, poesia, literatura, e o assunto é a relação entre o uso de textos pré-existentes e a proposição de texto novo, nas últimas décadas ganhou espaço a expressão “escrita não-criativa”. Surgida entre fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 nos Estados Unidos como uncreative writing para apontar o fenômeno do aparecimento de uma boa quantidade de obras textuais produzidas por meio de deslocamento (seleção e edição) de textos pré-existentes, ou áudios pré-existentes que seriam transcritos, a maioria dessas obras apresenta propostas de leitura desafiadoras. É um fenômeno ligado intrinsecamente a um tempo histórico de aprofundamento do capitalismo tardio, e é por isso que ele tem seu nome próprio. Fora as vantagens de disseminação advindas da língua inglesa e de um mercado editorial mais robusto, se os vetores que engendram o fenômeno com suas marcas contemporâneas são produzidos anteriormente, em termos materiais, nos EUA (computador, digital, consumo, oferta), é natural que pesquisadores daquele país tenham realizados diagnósticos e debates que logo chegassem a acordos entre conceitos ou nomenclaturas.[2] Este tempo produzido é um tempo marcado, no âmbito da circulação de bens, pela digitalização e a quantidade assombrosa de ofertas de tudo que for possível, as quais nos alcançam sem pedir licença – como se, sufocados, já fosse difícil encontrarmos o que se convencionou chamar de “voz própria”. No mercado editorial, as oficinas de escrita criativa floresceram e geraram certos padrões de escrita, que ocupam as prateleiras e lojas online – produzindo também uma atmosfera de avanço e profissionalização que, pelo retrovisor, anunciava certo esgotamento. No campo artístico, ganhou mais proeminência um contexto de troca intensa das outras artes com a literatura, como as instalações, vídeos de montagem e a música eletrônica, tudo isso dentro de um ambiente cultural em que as máquinas eletrônicas pessoais e o ambiente digital produziram uma situação de fácil manipulação dos objetos verbais, além de uma valorização da “interação” – marcada, no conceito de Marjorie Perloff, pela ideia de moving information.[3]

Como nos Estados Unidos a própria categoria de escrita criativa está enraizada nas instituições, tanto de cursos livres quanto universitárias, pareceu aos poetas e pesquisadores Craig Dworkin e Kenneth Goldsmith que seria necessário cunhar um termo que se mostrasse radicalmente oposto a esse estado de coisas. A radicalidade de boa parte das obras praticadas e estudadas pelos dois, majoritariamente estadunidenses, advém de publicarem intervenções ou deslocamentos em/de apenas uma fonte, por vezes gratuitos ou obtusos, encarando processos de proposição de ready-mades textuais mais do que a artesania de misturas, colagens e montagens que na América do Sul marcaram a obra de Valêncio Xavier e Juan Luís Martinez a partir dos anos 1970, e depois, especificamente no Brasil, Ana Cristina Cesar, Waly Salomão, Paulo Leminski, Sebastião Nunes, e contemporaneamente Leonardo Gandolfi, Alberto Pucheu, Angélica Freitas, Nuno Ramos, Veronica Stigger, e, para usar três casos em outra variante de língua portuguesa, Rui Pires Cabral, Adília Lopes e Pedro Eiras, em Portugal.

Em 2014, o pesquisador e poeta Alberto Pucheu chegou a usar a nomenclatura “escrita não-criativa” para se endereçar à poesia de caráter citacional feita por Leonardo Gandolfi. Mas este é apenas um dos modos que o pesquisador e poeta usou na ocasião, e cada uma das expressões ressalta um aspecto da prática gandolfiana. Pucheu também a descreve como “pós-poesia”, devido à utilização de matérias de fora da literatura, trazendo para a poesia o que não seria específico dela, como trechos de letras de Roberto Carlos e diálogos de filmes de espião. O termo proposto por Pucheu ainda é útil para descrever uma espécie de humor da poesia gandolfiana, de poucos acentos, sem grandes arroubos, uma poesia em tom menor que não teria no espanto – para Pucheu, o afeto-fonte da tradição poética ocidental – o seu disparador ou motivo, o que leva o poeta e pesquisador a caracterizar tal produção tanto como pós-poesia como “poesia do pós-espanto”, marca de uma época em que as sensibilidades foram tão estressadas que ela virou o seu avesso, a insensibilidade, a falta de espanto. A respeito da poesia de Gandolfi, Pucheu diz que o procedimento da “descriação”, ou do gesto “não original”, faz com que o poético e o não poético convivam:

retirando, conjuntamente, ao máximo, a força de criação autoral, que, paradoxalmente, retorna de um novo jeito, já que em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita, ainda que desejosamente fragilizada. (Pucheu, 2014, p. 43- 44)

Essa seria uma das chaves para pensarmos tais autorias que são tecidas por meio de autorias anteriores – ou de materiais sem autoria, ao qual darão caráter artístico, como que por um segundo uso. De maneira que o descriativo é retirar-se do ato tradicional de criação, fazendo “a menos”, e não fazendo “a mais” – mas obviamente resulta em obras criativas. Assim com a escrita não-criativa, como já vimos, nomenclatura oriunda de ambiente institucional, também, quando bem feita, resulta em obras criativas. De maneira que, talvez, para privilegiar menos a oposição ou a diferença, possamos dar destaque à relação, à posição, à diferença dentro da reprodução, e à fisicalidade do gesto: uma escrita de segunda mão. Recordemos que aqui não falamos de um jogo de signos em constante atuação na sociedade, ou de artigos que são escritos como respostas a ideias anteriores, mas sim da própria materialidade da escrita, ou seja, falamos de intervenções e jogos de duplicações, reproduções e deslocamentos textuais materialmente detectáveis. Não é um leitor ideal ou abstrato que de maneira metafórica reúne as leituras em si, mas a encarnação dessa figura como quem se retira da origem de uma escrita para lançar-se a um gesto que produz, para fora da consciência do leitor-autor, um rastro do outro em um objeto visível.

Heranças da potência crítica da paródia modernista antropofágica

Dos anos 2000 para cá vimos propostas de escritas de segunda mão ganharem voz em diversos lugares. No México, com as necroescrituras de Cristina Rivera-Garza, na Argentina, com a obra El Aleph engordado, de Pablo Katchadjian, a qual podemos compreender a partir do artigo “A nova escritura”, de Cesar Aira, no Uruguai, com o neoconceitualismo de Carlos Almonte e Alan Meller, na Espanha com parte da obra de Agustin Fernandez-Mallo, entre outros.

Do ponto de vista brasileiro, e a partir de um recorte temporal do moderno, as recentes escritas de reciclagem de Veronica Stigger, Angélica Freitas, Roy David Frankel, Nuno Ramos, Giselle Beiguelman, Luiz Ruffato, Daniel Arelli, Leonardo Gandolfi, e até Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa, derivam como possibilidade de projeto, da devoração antropofágica proposta pelos modernistas nos anos 1920. Diferente das iniciativas europeias que lhe serviram de impulso, como o dadaísmo e o futurismo, as quais formando uma imagem de futuro praticaram uma crítica de negação, avessa aos critérios então tradicionais da arte, os modernistas brasileiros, ao mesmo tempo em que propunham novas sintaxes, assim como o reconhecimento de um novo ritmo das artes e da vida e uma valorização da oralidade, recorreram ao passado nacional em busca de referências temáticas. Mesmo que inevitavelmente banhados pelo ponto de vista de uma origem burguesa, então em decadência, seus membros promoveram uma escavação renovadora do passado brasileiro e, por consequência, da presença indígena, europeia e africana em nosso território.[4]

O desejo de renovação artística guardava uma vontade não de abandono ou recomeço do zero, mas de reinterpretação ou releitura dos discursos historicamente estabelecidos para colocá-los em seus então supostos devidos lugares. Uma espécie de gesto que, na nomenclatura atual, poderia ser pensado como anticolonial, e que modulou o Brasil para um movimento de tomar posse de si mesmo – uma espécie de segunda mão que seria ela mesma uma tentativa de investigar e plasmar a verdadeira cultura nacional, apagada pela primeira mão do colonizador.

Se há um primeiro autor na literatura brasileira que se propôs a produzir uma fricção entre a literatura então pensada como universal e a literatura periférica (em termos globais), usando textos pré-existentes, reescrevendo ou reelaborando a literatura em seu corpo textual, e assim praticando uma curadoria com finalidade crítica, é Oswald de Andrade. Um dos recursos mais praticados pelo escritor paulista foi a paródia como releitura histórica, o que vemos no poema “As meninas da gare”, publicado no livro Pau-Brasil, de 1925:

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
(Andrade, 1925, p. 26)

Oswald se vale de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro documento textual de que se tem notícia no Brasil. O poema de Oswald justapõe, em nossa imaginação, o texto de Caminha que versa sobre a chegada dos navegadores portugueses ao Brasil à visão de alguém que se aproxima de prostitutas, que costumavam trabalhar na gare (em francês, uma estação de estrada de ferro) na São Paulo do início do século XX. Na carta original, enviada para Dom Manuel I em Portugal no dia 1º de maio de 1500, diz Pero Vaz de Caminha:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (Caminha, sem data, p. 4-5)

Enquanto o escrivão português trata de como os navegadores não sentem vergonha de olhar para as vergonhas das indígenas porque elas mesmas seriam muito inocentes, no texto de Oswald os homens não sentem vergonha de olhar para as vergonhas daquelas mulheres porque elas são prostitutas tentando conquistar clientes. O poema associa – com finalidade crítica – a imagem das indígenas à de prostitutas e a imagem dos navegadores a homens em busca de sexo. Por meio da paródia, Oswald questiona o primeiro olhar que os navegadores portugueses lançaram sobre a população nativa, e os primeiros contatos. Assim, de certa forma ele desnuda o ar civilizador do colonizador e pergunta, por meio do texto do “civilizado”: afinal, quem são os verdadeiros selvagens?

A estratégia resulta na criação de uma dialética. O gesto de Oswald dá à Carta de Pero Vaz de Caminha um novo ente com o qual conversar. A paródia, vista como sobreposição, faz com que o texto original sofra uma fricção: há um ruído entre a visão expressa na carta de Caminha e a sua crítica expressa em “As meninas da gare”. Assim, a função crítica é colocada em funcionamento a partir do gesto da seleção e da reescrita. Tal devoração crítica envolveria, nos termos de Haroldo de Campos, uma “transvaloração”, ao inserir novos valores, critérios e olhares por dentro da tradição, como um invasor que ao mesmo tempo a abraça, mas para lhe dar uma complexidade desagradável, dura de engolir pelos olhos da tradição. Para o poeta e tradutor brasileiro, com a antropofagia oswaldiana, “tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal” (Campos, 1992, p. 234). Por isso, podemos pensar o movimento antropofágico como a primeira iniciativa a elaborar, como programa estético, político e ideológico, no Brasil, uma revisão das relações entre centro e periferia, metrópole e colônia, original e derivado, e uso paródico de texto pré-existente como recurso crítico-dialético.

Se essa condição de território secundário, onde se cultiva uma cultura derivada, sofreu alterações em sua dimensão e projeção pelo mundo ao longo do século XX e do XXI, com o Brasil superando Portugal em matéria de capacidade de influência externa, ao mesmo tempo tal condição se manteve internamente, em razão da força dos fundamentos históricos na nação e sua inquebrantável permanência, mesmo que atacada, perfurada, inquirida, matizada. É esta a condição – alargada para todo um continente, o qual, seja onde se fala a língua portuguesa ou a espanhola, tem na Europa o seu referencial primevo – que levou o escritor e teórico brasileiro Silviano Santiago a caracterizar, em 1971, o que chamou de “o entre-lugar do discurso latino-americano”:

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana. (Santiago, 200, p.26)

A proposta de releitura da cultura brasileira, para Oswald de Andrade, passava pelo reconhecimento de que estávamos aprisionados na Carta de Pero Vaz de Caminha, que para ele se torna assim alvo de agressão – não se trata de celebração ou irmandade, mas de crítica e oposição. É devoração, não é diluição.

A posição, descrita por Santiago, requer do latino-americano a ocupação de um espaço que de origem, é do outro (a língua, a escrita, os símbolos), em um misto de tomar o que há de possibilidade no outro para si, enquanto ao mesmo tempo, produz um cruzamento, propondo a sua diferença ao habitar desordeiramente (para o olhar dos outros) o terreno consagrado (por outros). Isto não é tanto uma ação específica, calculada, que certo escritor pode operar ou não. É mais uma condição da qual se parte.

Identificação entre seleção e criação: curadoria ampliada ou criação reduzida

No processo de cada encarnação do Paginário, a curadoria realizada por mim e pelos colaboradores é tão afetiva ou celebratória quanto desrespeitosa. Não escolhemos uma obra de arte para exibir. Nós seccionamos obras de arte, reconhecendo o valor de sua parte, para experimentá-la em diálogo com outros seccionamentos. Este fragmento criado é de suma importância para quem o escolhe, sendo assim um gesto de reconhecimento e de mutilação – que será ofertado ao passante na rua. Mas aqui cabe ressaltar uma diferença para a intervenção, o seccionamento, a destruição de símbolos evocada nas vanguardas do início do século XX. Enquanto nas vanguardas a destruição ou intervenção era um gesto de abandono do conteúdo ou imagem original, para que fosse produzida a imagem de sua rasura e proposta uma outra imagem sobreposta àquela, aqui o que motiva a intervenção ou a secção do original é o reconhecimento de seu valor. O livro sofre intervenção, simbolicamente (pois na prática é fotocopiado), em nome do valor que pode haver mesmo em uma pequena parte dele, e de seu poder de atrito ou ressonância ao lado de outras pequenas partes que podem ter também seu próprio valor – umas atritando ou ressoando as outras. Existe uma valorização da herança literária. Uma valorização do gesto do leitor como afirmação de um eu. E existe o reconhecimento do espaço público como a afirmação do coletivo social. É a criação de uma triangulação entre o texto do autor, o texto do leitor e o texto da rua. O projeto opera, assim, a partir de uma ideia de arte não autônoma, tanto socialmente quanto materialmente e esteticamente. Portanto, o que ocorre não é um esvaziamento oriundo das práticas de celebração da diferença e do pluralismo, mas sim uma procura da inserção da diferença por um conjunto de efeitos estéticos, mas também, principalmente nos murais a céu aberto, sociais.

Exceção feita o desenho (formas e cores) do trabalho, que não se encontra nos textos originais usados, sendo portanto um “acréscimo de criação” – é quando seccionamos obras de arte para nos servir de uma pequena parte de cada uma, que a ideia de exercer uma curadoria se problematiza, pois aí agimos “demais” sobre a obra para que o ato seja pensado como uma curadoria típica. Não fazemos nem como o curador, que protege as obras inteiras, levando-as para o museu ou galeria que julgar interessante, nem como o artista, que recolhe objetos mundanos ou estranhos, que não são obras de arte, e, em seu ateliê, cria alguma diferença neles ou com eles, a qual se aceita por um curador como arte, arte se tornará. Um fragmento de uma obra de arte é o quê? Não é nem a obra de arte nem um objeto fora da arte. É mais que um objeto fora da arte e é menos que uma obra de arte. Curadoria ampliada, criação reduzida.

Figura 1: Foto de Líbia Florentino do mural Paginário em Lisboa.

Instalação de um mural “lusófono” da série Paginário em Lisboa

Nessa penúltima parte do artigo pensarei mais diretamente a relação entre curadoria, crítica e criação a partir da experiência do Paginário CPLP, principalmente por meio de quatro elementos. 1. O tema e a pesquisa para seleção de textos. 2. Efeitos da forma mural. 3. Função crítica nas cores e imagens. 4. O lugar como parte da obra e o potencial crítico de seu uso. É necessário dizer que, do ponto de vista em que me encontro, como quem esteve imerso em sua criação e desenvolvimento, embora depois de 10 anos consiga alguma distância de observação, o projeto se trata justamente de diferentes meios trocando saberes entre si – a poesia, a ficção, a escrita, a arte visual, a arte urbana, o artesanato, a performance, a colagem, a escadaria de azulejos, o remix, a história, a arquitetura e a geografia, o urbanismo… – mas, para pensar o projeto, facilitará quebrá-lo em diferentes camadas ou características (e haveria outras a pensar ainda, como o processo de montagem e aquilo que pudemos observar da recepção do público).

Figura 2: foto ampliada das fotocópias de páginas de livros no mural do Paginário.

O tema e a pesquisa para seleção de textos

Decidi junto ao Departamento Cultural da Missão Brasil que o tema do mural seria a variação linguística da língua portuguesa em cada um dos países que falam oficialmente o idioma. A literatura – principalmente ficção, poesia e ensaios – seria, obviamente, o canal a expressar esta variação. A afirmação dessa variação, sendo realizada em Portugal, de imediato ganha contornos críticos, pois coloca a variação de origem não acima das outras, mas lado a lado dela, expondo tanto o que ela é quanto (em maior quantidade, somando todas as outras) o que ela não é. Atualmente, há um debate sobre a possibilidade de chamarmos a variação linguística do português no Brasil de “pretuguês”, para marcar as diferenças locais para a variação de Portugal, principalmente aquelas advindas das línguas africanas que chegaram em território brasileiro por meio do sequestro de africanos que foram escravizados, e que hoje estariam nas origens de mais de metade da população brasileira. É uma ideia interessante e que merece maior estudo da minha parte. No entanto, até o momento, parece-me ainda mais interessante, politicamente, não se isolar em uma língua oficialmente apenas sua e de nenhum outro país, e sim disputar a categoria “língua portuguesa”, impondo a variação brasileira como tão valorosa e legítima como qualquer outra. Provavelmente, pela sua diversidade de absorções, ainda mais rica do que a variação praticada na ex-metrópole.

Para que esta variação fosse mais bem expressa, propus que fosse formada uma equipe de colaboradores. Assim, a curadoria seria dividida entre quem conhece melhor cada variação local. O mural ao todo recebeu 900 páginas feitas de entre 400 e 450 fragmentos de textos duplicados. Essas foram selecionadas por 31 pessoas, contando comigo. A equipe formou-se com pessoas de oito países: professores, escritores, pesquisadores, poetas, diplomatas, artistas, jornalistas, slammers e membros de algumas unidades do Instituto Guimarães Rosa sediadas em países membros da CPLP.[5]

A premissa para a decisão temática é a de que a língua portuguesa é uma língua pluricêntrica – a noção de que a língua portuguesa é praticada em diversos centros, cada um com suas características e nenhum com prevalência sobre o outro. Esta premissa, após o início das pesquisas, foi desafiada pela realidade. Se temos o conceito de um mural formado por fotocópias de páginas de livros, já tomamos uma decisão que é tanto estética quanto política – trabalhar a partir da palavra escrita, e perturbando a sua forma tradicional de veiculação, o livro. Se no início do projeto Paginário, em 2013, este critério era visto em função de trazer à rua um tipo de texto que lá não estava, nem pela oralidade das batalhas de slam, nem pelos traços do grafite ou do pixo, nem pelo texto escrito em si, disputando o espaço com publicidade e informação de direção ou lugar, neste Paginário CPLP ficou mais aparente não só o que acrescentamos à rua, mas também aquilo que ficaria de fora do mural. Ao operarmos a partir do lugar latino-americano entre a submissão ao código e a transgressão ao mesmo, acabamos por conhecer outros lugares, de língua portuguesa, que vivem situação semelhante como povo colonizado, mas nos quais as relações com o código da palavra escrita, e em português, encontram-se em outras situações. O mercado editorial é incomparavelmente mais pujante no Brasil e em Portugal, em relação a como funciona em Angola, Cabo Verde, Moçambique, e onde ainda é mais incipiente, Timor Leste, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe. Se o trabalho tivesse como meio oralidades gravadas, nada impediria uma igualdade de participação na obra final, mas como nosso recorte é a literatura escrita, é inevitável que as diferenças se façam materialmente presentes na obra. Tal diferença de presença política e cultural, a favor de Brasil e Portugal, nas ações de promoção da língua portuguesa, leva alguns linguistas a questionarem a ideia desta língua como pluricêntrica, afirmando que, na realidade, seria uma língua bicêntrica, com a população brasileira a praticando sob determinadas normas e todas as outras populações a praticando sob normas cuja ingerência é de Portugal – o que, ao mesmo tempo, como reação a uma “ameaça” mais clara e impositiva e oficialmente mais duradoura, produziu uma sólida resistência à língua portuguesa e um cultivo das línguas crioulas nos países africanos que não encontra paralelo no Brasil.

Aliás, a partir do contato direto por telefone ou mensagem com os 31 colaboradores, tornou-se mais notável a necessidade de mais iniciativas de intercâmbio cultural direto entre Brasil e os países africanos ou asiáticos de língua portuguesa, sem passar por Portugal. É claro que a situação está melhorando, como podemos perceber pelos departamentos de literaturas africanas ou lusófonas. Mas, em geral, nossa ignorância em relação a tais países é imensa e causa até embaraço ver a defesa de línguas crioulas em países como Cabo Verde, por exemplo, ante a falta de circulação das línguas autóctones no Brasil. Conversando com o pesquisador, e colaborador neste Paginário, Dênis Rubra, brasileiro que realiza doutorado na Universidade de Lisboa, onde é orientado por Ana Paula Tavares, professora e escritora angolana, soube que de todos os autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, apenas um não foi publicado (ou seja, mercadologicamente testado) antes em Portugal. E todos os outros, publicados em Portugal depois no Brasil, foram em Portugal publicados por um concentrado de apenas três ou quatro editoras). De maneira que, apesar das melhoras, ainda mantemos a ex-metrópole como um farol para orientar nossas trocas culturais.

Se limitamos o escopo do trabalho para literatura publicada em livros, inevitavelmente privilegiamos a participação das variantes brasileiras e portuguesas no mural. Não houve como contornar essa questão. Criamos gradações. Do mural que foi finalizado com aproximadamente 900 páginas de texto (fotocopiadas em folhas A4) e 25 metros de comprimento por quase 3 metros de altura, ficaram em torno de 20% destas medidas para a literatura do Brasil, 20% para de Portugal, 12,5% para Angola, 12,5% para Cabo Verde, 10% para Moçambique, 10% para São Tomé e Príncipe, 10% para Guiné Bissau e 5% para Timor Leste. Deparamo-nos com o fato de que, embora presente na CPLP, Guiné Equatorial tem o espanhol como língua majoritária, e não encontramos literatura nativa deste país publicada em língua portuguesa, de maneira que sua presença no mural ocorreu – como uma gambiarra – com o texto do seu hino nacional em uma versão traduzida por nós mesmos para português. Por isso, cabe dizer que seria necessário pesquisa mais longa do que a feita para este artigo para dizermos se a ideia de bicentrismo é a mais acertada. O que podemos dizer, no momento, é que o fato desta desigualdade se refletir em nosso trabalho devido à escolha por uma determinada materialidade não indica, em absoluto, que a ideia de pluricentrismo estaria incorreta.

Figura 3: foto ampliada das fotocópias de páginas de livros no mural do Paginário.
Figura 4: Língua Lengua, poesia retirada do livro Pesado demais para a ventania, de Ricardo Aleixo.

Efeitos da forma mural

É notável que, quando Flora Süssekind formula, em 2013, seu pensamento sobre objetos verbais não-identificados, que seriam distinguidos por uma literatura-coral, a pesquisadora mencione não somente textos, mas também instalações e performances textuais. Estas se apresentariam como um coro, um aglomerado de vozes que se avolumam, se pronunciam, somem, retornam, como um registro de emissões de diferentes origens.

Coralidades nas quais se observa, igualmente, um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário, fazendo dessas encruzilhadas meio desfocadas de falas e ruídos uma forma de interrogação simultânea tanto da hora histórica, quanto do campo mesmo da literatura. E que não à toa conectam este campo a outras áreas da produção cultural. (Süssekind, 2013, p. 2)

O risco de todo projeto que pretender trabalhar a noção de agrupamento e simultaneísmo, ainda mais quando o trabalho envolve texto – por ser um meio que exige mais tempo do que uma imagem para ser decodificado –, é o bloqueio da profundidade em favor de uma sequencialidade formada por descontinuidades, ou seja, a dispersão. Aqui, lembro da crítica de Antonio Candido a Marco Zero, obra em dois volumes de Oswald de Andrade, apresentada pelo autor como romance-mural. O crítico considerou o tema do livro o melhor possível, qual seja, resumidamente, diversos membros de diferentes classes sociais, às vésperas da revolta de 1932, comportando-se de maneira cada vez mais extremada e, portanto, de maneira a impedir qualquer compatibilidade ou convivência harmonizada entre si. Porém, quanto à forma, Candido escreveu:

Quantas vezes não paramos no meio da leitura d’A revolução melancólica para tomar fôlego, cansados de esperar uma solução literária para as perspectivas que o romancista vai abrindo a pequenos golpes. A impressão é de rodada em falso, movimento que não progride. Na poeira das pinceladinhas, Oswald de Andrade vai largando tintas de muitas cores, e não parece que elas consigam dispor-se conforme o afresco que ele intentou. Mesmo porque (palpite de leigo) não creio que o pontilhismo seja a técnica mais indicada para os murais. (Candido, 2017, p.24).

Esta é uma crítica que podemos usar para pensar o formato mural em diálogo com texto. No caso do mural, estas descontinuidades e novos começos são assumidos – e caberá ao visitante leitor estabelecer continuidades ou não. Saímos de uma organização pela sequencialidade para uma organização pela constelação. A dispersão, no entanto, pode ser combatida, ou suavizada, pelos temas dos murais, como curadores determinam temas de exposições. Assim, as ligações entre os fragmentos são facilitadas e se tornam mais consequentes. Isto certamente se deu no Paginário CPLP.

A colocação lado a lado de textos nos mais diferentes portugueses historiciza a língua portuguesa. Distribui-a em seus variados sotaques. Amplia a visão do que é a língua portuguesa. Isto, ao ser realizado no coração da capital do centro irradiador da língua portuguesa, parece-me ter uma força crítica. Espacializa a língua portuguesa, como uma dobra da sua dimensão territorial, sendo caracterizada, diferente do espanhol ou do inglês, por exemplo, por uma quantidade considerável de países sem que nenhum deles guarde fronteira terrena com o outro. Nessa maneira de se apropriar, não é um texto que é justaposto a outro simbolicamente, como fazia Oswald. O texto é colocado lado a lado com outro, e um texto não foi feito diretamente como resposta ao outro. A dialética, neste caso, não se dá entre o original e o derivado (e por isto não se trata de paródia crítica ao estilo modernista), mas entre diversos textos, nenhum mais original do que o outro, implicando assim, visual e metaforicamente, em igualdade de condições. Materialmente, todos os textos são fotocópias, de modo que o texto da ex-metrópole e os textos das ex-colônias não se diferenciam de imediato. Não há nada em suas aparências que os tornem distintos dos outros. Só com a leitura será indicada a procedência – até porque inscrevemos nome de autor, título de livro e país de origem em cada uma das folhas (operando com a multiplicidade característica do ímpeto democrático e a fluidez característica do digital, mas sem a perda de referência geográfica e histórica). A fotocópia é uma tecnologia vista como suja, precária, barata, sem duração – é a gambiarra puxando pra baixo, ao nível do chão, o que preferia ficar acomodado em uma prateleira alta. É uma espécie de grande conversa ao mesmo tempo que é uma grande conversa muda – a troca de palavras entre os elementos só acontece a partir da ativação do visitante que, ao percorrer a leitura espacialmente, também as conjuga uma à outra no tempo.

Figura 5: poema Os livros, retirado do livro Como se desenha uma casa, de Manuel António Pina Portugal.
Figura 6: poema Em que língua escrever, retirado do livro Entre o ser e o amar, de Odete da Costa Semedo.
Figura 7: fragmento retirado do livro A estética do oprimido, de Augusto Boal.
Figura 8: fragmento retirado do livro Owé/Provérbios, de Mãe Stella de Oxóssi.
Figura 9: fragmento retirado do livro Poesia para encher a laje, de Renan Inquérito.
Figura 10: poema Expresso-me, retirado do livro Menino da Tabanca, de Seco Silá.

Função crítica e simbolismo nas cores e imagens

Em relação às cores do Paginário CPLP, elas decorrem de um cálculo em torno de quais são as cores mais frequentes nas bandeiras dos países membros da CPLP, e suas vivacidades funcionam como uma espécie de positividade a atrair para a negatividade tanto das imagens que formam quanto da releitura histórica. As cores são vivas, alegres, e formam uma embarcação. Até que, ao final, há uma cruz pegando fogo. Com esta imagem, pretendi, criticamente, sugerir o legado das navegações: a colonização mental e corporal pelo cristianismo. Tal é a herança deixada para trás, ao fim do barco, que já se dirige a outro ponto, para, possivelmente, fazer o mesmo com outro povo. Em uma segunda camada, pretendi deixar ambivalente a imagem da cruz em fogo. Ela é tanto a “batata quente” que os portugueses deixam nas mãos das ex-colônias, que com ela precisam se virar, uma espécie de cavalo de Tróia sem a necessidade de guerreiros, e assim é muito mais eficaz, e ao mesmo tempo ela é a cruz atacada, a cruz incendiada pelos povos que a recebem em sua terra. Ou seja, é tanto opressão quanto reação, recusa, negação, contra-ataque. Este complexo de imagens – assim como a convivência entre textos que naturalizam a escrita em português e outros que não o fazem – poderia ser pensado como herdeiro do barroco, ao trazer em um complexo a afirmação e a negação, uma determinada alteridade (as navegações, a embarcação) e a sua condição alterada (a chaga, a violência implicada na imposição de um sistema de crenças e sagrados). Ao comentar a prática de transcriação de Haroldo de Campos, o pesquisador e professor Álvaro Faleiros diz que, para o poeta concreto,

a manipulação irônica está no centro da “razão antropofágica” que perpassa o Barroco e que implica numa “desconstrução do logocentrismo”. Os procedimentos utilizados para esse fim seriam a “malandragem” e a “carnavalização”, compreendidos como “espaço lúdico da polifonia e da linguagem convulsionada”. (Faleiros, 2019, p. 30-31)

No caso do Paginário, não se trata de criar um duplo que resulte em dialética, não se trata de penetrar no discurso do outro para transfigurá-lo, mas sim de seccioná-lo para que ele deixe de ser um ente isolado em si mesmo (não abstratamente, mas materialmente) e passe a conviver com novas proximidades – ou seja, trabalhar com esta carnavalização compreendida como espaço lúdico de polifonia. Conectar bordas, como dizia Hélio Oiticica. Ou melhor, rasgar bordas onde elas não existem, para que assim passem a existir, para desnaturalizar a unidade romântica de um todo homogêneo – no caso, a língua portuguesa. De maneira que, especialmente neste Paginário CPLP, haja conflitos, como aquele que pretendemos ao colocar em fogo a cruz, instrumento simbólico de poder para exercer influência orientada para a conversão.

Figura 11: foto do mural do Paginário em Lisboa, o qual reproduz a função crítica por meio de suas cores e imagens.
Figura 12: foto do Largo do Correio-Mor, o qual contém o mural do Paginário em Lisboa.

O uso do lugar como parte do potencial crítico da obra

Quando tratamos de arte pública, o trabalho começa pela escolha do lugar. Precisamos considerar textura da parede, sua cor e sua altura; a sua localização, se ele será visto por mais ou menos pessoas, quem são as pessoas que por lá passam e como se relacionam com aquele espaço; e a história do local, que colocará o trabalho em relação com o tempo. De certa forma, a escolha do espaço já nos coloca numa posição crítica em relação a pré-determinações e expectativas. Um trabalho em um museu ou galeria é imediatamente reconhecido como arte. Um trabalho na rua – e ainda mais feito de material perecível – é algo indistinto demais para proporcionar uma categorização tão imediata. Isto, em si, parte de uma crítica em relação à facilidade com que algo pode ser alvo de um olhar que o considere artístico, bastando para isso o encontramos dentro de uma galeria ou museu. A intenção de fazer um trabalho de arte público é também uma crítica à noção moderna da total autonomia da arte. A histórica do local não foi criada pelo Paginário. O critério de escolha para o local é que, sim, propôs-se como algo que favoreça o desdobramento de sentidos do trabalho. A curadoria da rua, por assim dizer, pode resultar em gestos iconoclastas – caso o local seja um ambiente de memória, um ambiente celebrado. Foi o caso aqui. Missão Brasil junto à CPLP e eu escolhemos nos inserir dentro de uma teia de relações históricas.

O Largo do Correio-Mór é espaçoso, arejado, arborizado, com bancos para sentar – perfeito para um mural, exceto pela sua parede curva. Mas o mais interessante é que este largo tem este nome porque ele fica de frente para o Palácio do Correio-Mór, na freguesia de Santa Maria Maior. Nas suas estruturas de base, que datam de antes do século XVI, foi instalado o Correio Superior, oficial responsável pelas comunicações (inclusive escritas, como cartas) dentro do reino. Na sequência, em 1520, a função passou a ser chamada de Correio-Geral do Reino (ou Correio-Mór), por meio de proposta de Dom Manuel I, confirmada por Dom João III. Na primeira metade do século XVII foi construído, sobre as estruturas de base da construção anterior, o palácio de fato, o qual ganhou o nome de Palácio do Correio-Mór. Nele funcionou esta função até o ano de 1797, pois, durante o reinado de Dona Maria I, a função foi incorporada pela Coroa. Como compensação pela perda de sua função, Manuel José da Maternidade da Mata Sousa Coutinho, o último homem a exercer o cargo, recebeu o título de Conde de Penafiel e o palácio passou a ser sua propriedade sendo transmitido, na sua morte, em 1859, para a filha Maria da Assunção da Mata de Sousa Coutinho, a 1ª Marquesa de Penafiel – motivo pelo qual atualmente ele é mais conhecido como Palácio de Penafiel. Ao longo dos anos a família arrendou partes do Palácio para novos moradores, como ministros e embaixadores, até que em 1919 o Palácio foi adquirido pelo Estado Português, tendo servido ao longo do século XX, como sede da Direção-Geral dos Caminhos de Ferro e o Conselho Superior de Obras Públicas. Dessa maneira, notamos que o local é marcado historicamente por atividades de correspondência, comunicação, transporte e planejamento urbano. É bem possível que nos arredores do largo tenham passado cartas e outros tipos de comunicações oficiais que orientaram e definiram, por séculos, o destino de oito países além-mar. E do próprio Portugal. São esses países que, simbolicamente, por meio de sua literatura, por meio das escolhas de seus pesquisadores, habitantes ou nativos, fazem o movimento oposto: ao invés de serem lidos e comunicados, leem e comunicam-se. Como se a cidade fosse um texto e uma outra leitura a invadisse. Como se a cidade fosse um texto escrito que pede ajustes de uma segunda mão.

Figura 13: foto de Joana Ruth do mural do Paginário em Lisboa.
Figura 14: foto de Joana Ruth de participantes do projeto confeccionando a arte do mural Paginário.

Conclusão

Em. Los muertos indóciles: Necroescrituras y desapropiación, a pesquisadora e escritora mexicana Cristina Rivera-Garza, após trabalhar o tema da apropriação de textos em obras literárias contemporâneas, propõe que olhemos o gesto também pela via da desapropriação: “O que aconteceria se, ao invés do nome de um poeta, ou de um autor, aparecessem nas capas destes livros dialógicos, destes livros escritos, de fato, na mais estrita das coautorias, os nomes de todos os envolvidos? Que tal se não aparecesse nenhum?”[6] (Rivera Garza, 2013, p. 91). Aqui, ela sugere que o deslocamento de texto também o desloque para fora de um sistema de nomenclatura que serve ao mercado, à propriedade, ou seja, um sistema que torna as coisas próprias de cada um. Rivera Garza imagina como poderiam ser se as coisas fossem de todos ou de ninguém. Deixo isto para a imaginação do leitor enquanto me aproprio do termo proposto por Rivera Garza para sugerir uma noção semelhante de desapropriação: aquela que acontece quando, ao nos inserirmos em determinado discurso, invadindo um espaço, retrabalhando, editando, recontextualizando sua materialidade, estamos desapropriando esse objeto (na falta de palavra melhor) de seu lugar único, instaurando uma conversa aonde antes havia um monólogo – e assim ele deixa de ser o único em posição apropriada para versar sobre determinado assunto.

Atuar no Largo do Correio-Mór, região central de Lisboa, é conferir ainda mais historicidade tanto ao local quanto ao projeto. Afirma-se, assim, uma outra forma de curadoria, dado que a curadoria não é somente aquela que coloca as obras dentro do museu ou galeria, mas também dentro da história, não permitindo que cada ação soe pairando isolada, como uma criação isolada de contexto.

Figura 15: foto de visitantes no Largo do Correio-Mór, onde se encontram as obras expostas a céu aberto.
* Leonardo Villa-Forte é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e doutor em Letras pela PUC-Rio.
Referências bibliográficas
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CAMINHA, Pero Vaz. Carta de Pero Vaz de Caminha. Escrita em 1500. Edição sem data. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional. Acessada em 16 de fevereiro de 2024: https://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf.

CAMPOS, Haroldo de. “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

CANDIDO, Antonio. “Estouro e libertação”. Brigada ligeira. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2017.

FALEIROS, Álvaro. “Antropofagia modernista e perspectivismo ameríndio: considerações sobre a transcriação poética em Haroldo de Campos”. Traduções canibais. Uma poética xamânica do traduzir. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2019.

GROYS, Boris. Arte Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

PUCHEU, Alberto. Do tempo de Drummond ao (nosso) de Leonardo Gandolfi; da poesia, da pós-poesia e do pós-espanto. Rio de Janeiro: Azougue, 2014.

RIVERA-GARZA, Cristina. Los muertos indóciles. Necroescrituras y desapropiación. México, D.F.: Tusquets, 2013.

RESENDE, Beatriz. “O escritor latino-americano e a nação: um problema”. Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Sistema de Informação para o Património Arquitectónico. “Palácio Penafiel / Palácio do Corrreio-Mor”. Atualização por Margarida Elias (Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design – CIAUD-FA/UTL), 2014. Acessado em 16 de fevereiro de 2024: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4003.

SÜSSEKIND, Flora. “Objetos verbais não-identificados”. Rio de Janeiro: O Globo, 2013. Acessado em 16 de fevereiro de 2024:  https://pdfslide.net/documents/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-suessekind-prosa.html?page=1
Notas
[1] A partir de uma resolução do Conselho de Ministros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a Unesco oficializou o 5 de maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Segundo a Ata da Conferência, a escolha de um dia para celebração mundial desta que se tornou a língua mais falada do hemisfério sul, justifica-se, entre outros motivos, devido à “contribuição da língua portuguesa na preservação e difusão da civilização e da cultura humanas”, assim também como devido às “garantias oferecidas pelos Estados que têm o português como língua oficial, em relação à salvaguarda, à conservação e à celebração desse idioma, assim como seu compromisso ativo em favor da promoção de um dia mundial da língua portuguesa e da participação nele”. Tradução livre de documento da 207ª sessão da UNESCO, item 43 da agenda de 13 de setembro de 2019. Acessado em 16 de fevereiro de 2024: https://en.unesco.org/sites/default/files/accord_unesco_langue_portuguaise_conference_generale_eng.pdf

[2] No Uruguai, esta situação começou a ser apontada, não apenas teoricamente, mas por meio de publicações de poemas de segunda mão, em 2001. Mas nada disso foi traduzido para o Brasil, as tiragens foram muito baixas já no Uruguai, não chegaram a livrarias brasileiras, não ganharam resenhas ou postagens, e a produção de pensamento não ganhou o volume de comentários e artigos que ganhou nos EUA.

[3] Necessário é lembrarmos que a noção de moving information tem dupla função: apontar tanto a característica de facilitação da manipulação dos conteúdos, na era digital, quanto sugerir que a informação que selecionamos e da qual nos servimos é algo que nos toca, que nos move, que nos mobiliza.

[4] Vale lembrar que a crise financeira que eclode mundialmente em 1929, e a migração em massa, no Brasil, do campo para as cidades durante os anos 1920, fizeram com que as diferenças e contradições sociais ficassem mais aparentes, e os escritores, de certa forma, fossem empurrados a reconhecer realidades antes pouco visadas pelos membros de uma classe social de posses.

[5] São estes, seguidos do país sobre cuja literatura o convidado se debruçou: Dênis Rubra, Joice Zau, Kaio Carmona (Angola). Ana Paula Barbosa, Cida Pedrosa, Felipe Marcondes, Isadora Xavier, João Marcelo Costa Melo, Leonardo Villa-Forte, Lucas Litrento, Luciany Aparecida (Brasil). Edyoung Lennon, Maria do Céu Baptista, Naduska Mário Palmeira, Simone Caputo Gomes (Cabo Verde). Dany Wambire, José dos Remédios, Virgília Ferrão (Moçambique). Janaína Vianna da Conceição, Jéssica Lima, Ivanick Lopandza, Lauro Cardoso (São Tomé e Príncipe). Afonso Cruz, Alice Neto Sousa, Bruno Ministro, Fernando Aguiar, Mafalda Lalanda (Portugal) Eliseu Banori, Ticiana Souza Santos (Guiné-Bissau) Hérica Jorge Pinheiro, Suillan Miguez Gonzalez (Timor Leste).

[6] Tradução livre.