Ano XIX 01
Dossiê
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CURADORIA DE ARTE EM MUSEUS: UMA HISTÓRIA DE REPRESENTAÇÃO E LEGITIMIDADE

A relevância e a legitimidade da curadoria estão vinculadas ao papel dos museus e das galerias como plataformas culturais que constroem narrativas por meio da seleção, apresentação e interpretação de obras de arte. É o cânone da história da arte que avalia a relevância e a distinção das obras com base em sua qualidade estética, sua influência histórica ou cultural, ou seu impacto duradouro sobre a sociedade. No entanto, ainda que obedeça ao cânone, a curadoria de exposições também reflete mudanças sociais, culturais e políticas exercendo um papel de autoridade sobre o que deve ou não ser exposto em meio a disputas no campo das artes.

Este artigo propõe-se a analisar o papel do curador em contextos históricos específicos e o resultado da correlação de forças que sustenta o status quo no mundo das artes. As narrativas modernas operadas pelo Museu do Louvre em Paris no século XVIII e o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) no século XX são observados como exemplo. Em contraste, é visto como, a partir da década de 1970, os curadores de exposições temporárias desafiaram as estruturas ocultas de legitimação do mundo das artes, buscando expandir os formatos expositivos para incluir novas possibilidades e questões propostas por novas formas de arte.

No século XXI, alguns curadores de exposições temporárias têm respondido às vanguardas artísticas conceituais e às questões sociais de seu tempo trazendo artistas de países do sul global, negros, indígenas e mulheres, que disputam narrativas estéticas e representações sociais. No entanto, esses esforços não têm alcançado a legitimidade canônica necessária e os artistas em questão muitas vezes permanecem à margem das grandes exposições de museus. Assumindo muitas vezes o papel da crítica, torna-se fundamental que os curadores continuem a desafiar as normas e a ampliar as fronteiras da arte, garantindo que as exposições sejam representativas e inclusivas a uma variedade de perspectivas e experiências.

Arte, patrimônio e narrativas civilizatórias em Salões, Gabinetes e Museus

O entendimento contemporâneo do conceito de curadoria está relacionado ao cuidado de artefatos da cultura material e tem suas bases nas experiências do mecenato renascentista entre séculos XIV e XVII, quando a Igreja, a nobreza e a aristocracia se mantinham como importantes patrocinadores das artes. Objetos considerados “artísticos” desempenhavam um papel crucial na expressão da fé e na educação religiosa, meios de expressão do gosto pessoal e educação refinada do seu proprietário que reforçavam sua elevada posição nas relações sociais; no caso da nobreza, competindo com outras cortes (Magalhães e Costa, 2021). No contexto francês, a distinção social era identificada por meio de hábitos de “etiqueta” e o privilégio do acesso à arte exercia a função simbólica de prestígio de classe (Bourdieu, 1996). Como observa Norbert Elias (2001), os gestos produzidos por meio do campo das artes teriam mais significado do que os indivíduos eles mesmos.

Figura 1: Quatro horas no encerramento do Salão da exposição anual de pintura na Grande Galeria do Louvre. Pintura de François Auguste Biard (1798-1882), 1847.

Ao lado dos Salões, outra prática de coleção, organização e exibição fundamental na história das exposições acontece entre os séculos XV e XVII nos “gabinetes de curiosidades”, onde se mantinham itens exóticos, principalmente aqueles estranhamente “curiosos”, trazidos em expedições exploratórias e guerras de “descobrimento” no Novo Mundo. Nestes espaços, os visitantes endossavam uma cultura aristocrática, e o conhecimento das “curiosidades” e “maravilhas” servia para a identificação de homens bem sucedidos e cultos; isto porque, “no caso específico dos gabinetes, as instruções ao público davam conta da importância social de admirar objetos ‘realmente’ curiosos, maravilhosos e, portanto, raros” (Amorim & Gonçalves, 2012, p. 226).

Figura 2: Gabinete de curiosidades do Museum Wormianum (1655). Fonte: Richards, Sabrina (2012). The World in a Cabinet, 1600s, The Scientist. Disponível em https://www.the-scientist.com/foundations/the-world-in-a-cabinet-1600s-41184.

No avançar dos ideais iluministas, os gabinetes configuravam-se como espaços de reunião de pessoas eruditas interessadas em abstrair o valor de uso dos objetos em sua função original a favor da ciência, da economia ou da sua própria cultura.

Enquanto apresentavam os itens de seus gabinetes a seu grupo de amigos visitantes, os colecionadores exerciam o papel que exercem ainda hoje: pesquisador, curador a educador (Cintrão, 2010, p. 20). Como cientistas em laboratórios, experimentavam critérios de seleção e catalogação baseados em diferenças e semelhanças entre os seres (indivíduos) e a natureza (macrocosmo)[1]. A raridade, associada à perspectiva infinita da coleção (universalizante), oferecia motivos pelo qual determinados itens deveriam ser preservados e mantidos.

Os gabinetes, assim como os Salões Reais refletiam mais do que erudição, refinamento cultural e posição social na nobreza e da aristocracia. Acima de tudo eram guardiões da ideologia destes grupos privilegiados. Como ambiente de produção de conhecimento, na busca pelo domínio da maior extensão possível do que estava ao seu redor, das maravilhas terrenas às impressões artísticas, o gabinete expressava a cultura e poder dos colecionadores que “se tornavam os guardiões da memória, aqueles que estavam em condições especiais e favoráveis para que o entendimento do processo da criação fosse entendido e, consequentemente, dominado” (Possas, 2005, p. 156).

Se nos gabinetes preocupava-se mais com a produção de conhecimento sobre os itens, nos Salões Reais foram buscadas medidas de segurança, preservação e conservação para controlar o acesso  de um público cada vez mais interessado nas obras-primas dos maiores mestres da arte europeia, riquezas de preço infinito, desconhecidas ou indiferentes à curiosidade dos estrangeiros pela impossibilidade de ver (Alain Roy, 1977) quando restritas aos palácios da monarquia. Técnicas de conservação, organização e exibição foram desenvolvidas por mestre e artistas da Academia que assumiram a função de décorateur dos Salões. As obras recebiam molduras douradas, eram fixadas nas paredes do chão ao teto a uma distância muito próxima entre si, ainda sem a pretensão de chamar a atenção do espectador para características particulares de cada uma delas. Preocupavam-se em padronizar a prática de instalar as obras da melhor maneira de modo que garantisse sua segurança, no entanto, buscavam apresentar desenvolvimentos históricos e similaridades temáticas (Obrist, 2014).

A ideologia que orientava o que deveria ou não ser exposto não deixava de estar em disputa, e a emergência de uma elite burguesa e de novos artistas colocava os Salões como importante meio de conquistar e valorizar a obra de um “gênio criativo” da época (Hauser, 1951). Nos Salões eram abertos espaços a discussões sobre o desenvolvimento de correntes artísticas e a formação do gosto que influenciariam a opinião pública e o mercado das artes. Era evidenciada uma mudança de rota no entendimento do campo artístico com influência do pensamento iluminista representado na crítica de arte. Tal qual a prática crítica empreendida nos gabinetes, nos Salões também é desenvolvida a capacidade e habilidade de examinar, avaliar minuciosamente e finalmente julgar e categorizar. Portanto, a forma como as obras eram dispostas nos Salões indicava a emergência de um sistema de fundamentos construídos para legitimar o que é ou não relevante.

Ainda que a Academia e os ditames da História da Arte mantivessem a reputação dos Salões, as informações sobre as obras de um colecionador deveriam circular pelo mercado das artes e os especialistas, artistas, jornalistas e críticos de arte deveriam preocupar-se com a aprovação pública. Denis Diderot (1713-1784), graduado mestre em Artes pela Universidade de Paris, frequentava os Salões e produzia cartas e ensaios criticando os métodos da Academia em uma escrita que narrava a experiência dos Salões in situ, muito próxima ao espectador que descobre, observa, descreve, analisa e julga as obras de arte expostas (Petitdemange, 2021).

Quando os Salões do Louvre se abrem ao público como Museu Central das Artes da República, após a Revolução Francesa em 1793, o caráter “circulante” das informações sobre as obras de arte operado pelos críticos passa a operar no sentido da educação do público. Buscou-se democratizar o acesso à arte cumprindo o “interesse público” de preservar o patrimônio e orientar a compreensão histórica da sociedade a partir do referencial nacionalista francês. A história narrada ao longo de suas galerias reunia as coleções de obras de Arte antes restritas aos Salões a artefatos retirados de territórios dominados em guerras napoleônicas. As obras e artefatos em exposição serviam de estandarte da soberania francesa, fornecendo os modelos normativos de cidadania, gosto, educação, progresso, etc. (Bennett, 2013; Preziosi & Lamoureux, 1997).

Além da preservação do patrimônio contra a deterioração causada pelo tempo, manuseio do público e o risco de violência ou roubo sob responsabilidade do conservateur de musée, as obras e artefatos eram submetidos a processos técnicos e científicos no que se denominava “cura” (Bruno, 2008). Isso envolvia a seleção, coleta, registro, análise, organização, armazenamento e divulgação desses objetos com o propósito de identificá-los, interpretá-los e prepará-los para exposição. Tais processos envolvem, ainda nos dias atuais, procedimentos presentes na curadoria.

A diversidade de objetos, a necessidade de ordenamento e a exibição levaria a especialização do Museu em disciplinas, inclusive artísticas, e a construção de narrativa histórica a partir da exposição. A organização do acervo do Louvre, no final do século XVIII, buscava responder a categorias universalizantes, separando os elementos a partir do que os diferencia e os reunindo a partir de semelhanças, conforme prescrito nos gabinetes de curiosidades. Os artefatos eram apresentados conforme alinhamento à uma perspectiva de história singular e linear (tempo darwiniano), apresentando as obras em sua totalidade, em caráter enciclopédico e permanente, o que lhe atribuiria o status de “patrimônio” e reforçaria a função pedagógica em direção ao progresso.

Ao analisar o modo de funcionamento dos Museus Nacionais no século XVIII, os historiadores de arte Preziosi & Lamoureux (1997) identificam o desejo de compartilhar certas características comuns e propriedades únicas  quanto à forma ou princípios de formação no que se refere ao indivíduo, nação, grupo étnico, classe, gênero ou raça tal qual as ideologias do nacionalismo romântico. Os autores compreendem que as exposições em museus podem ser vistas como histórias fictícias, artefatos para a criação da narrativa moderna. Os artefatos e obras de arte, utilizados pela história da arte e museologia como objetos de estudo, delineiam aspectos significativos do personagem, nível de civilização, ou grau de conhecimento social, cognitivo ou ético eles representam as histórias de pessoas, mentalidades e povos a partir de evidências convincentes das relações causais do passado com o presente, certos tipos de relacionamentos desejáveis entre nós e outros, encenam narrativas para demonstrar avanço ou declínio de um indivíduo ou nação.

Os Museus de História não são repositórios passivos de artefatos; em vez disso, moldam ativamente a forma como entendemos e interpretamos o mundo. São, portanto, instrumentos sociais – dispositivos orientados à fabricação e à manutenção da modernidade por meio da produção de conhecimento: tecnologias epistêmicas, tal como qualquer outra ferramenta ou aparelho utilizados para compreender e navegar no mundo (Preziosi, 2012). São constituídos, no entanto, por uma rede de elementos em um jogo de poderes e de saberes que, por vezes, incorporam sentidos variados, construindo gêneros de uma ficção imaginativa moderna.

Ainda que os museus tenham empreendido esforços de acessibilidade ao conhecimento erudito produzido e exibido em suas exposições, no século XX as suas narrativas ainda obedeceriam a estereótipos e hierarquias linguísticas. Enquanto tecnologia epistêmica, são operadas por determinados agentes que lutam pela manutenção de suas narrativas e de seus privilégios.

A pesquisa sobre os públicos de museus europeus empreendida por Bourdieu & Darbel (2007) nos anos 1960 indicam que diferentes públicos orientam sua experiência nos museus a partir linguagem simbólica (relativa) traduzida a partir de “um arsenal de palavras que permitem dar nome às diferenças e constituí-las ao nomeá-las (…) Com certeza, é possível amar de paixão, à primeira vista; mas, isso só acontece depois de ter lido muito, sobretudo, em relação à pintura moderna” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 82).

Os discursos expositivos tradicionalmente reproduzem os códigos mantidos pelos conservadores, pessoas provenientes de camadas privilegiadas da sociedade, “escolhidos por cooptação, segundo o jogo das relações pessoais e das tradições familiares (…) Eram, quase sempre, amadores de arte afortunados aos quais o museu não garantia carreira, nem retribuição (ou, então, somente no plano simbólico)” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 145). Não atuavam como administradores ou como pesquisadores, tampouco assumiam o papel de pedagogos, voltando sua prática ao “público que lhe parece digno de sua vocação”. Como uma  ‘sociedade’ (no sentido restrito do termo), reuniam personalidades em relações de interconhecimento bastante estreitas e intensas. “Eles satisfaziam-se com um status global, ambíguo e, por conseguinte, prestigioso, que lhes permitia aparecer, diante dos criadores, como guardiães da Arte e depositários da Tradição; diante dos universitários, como homens de ação e técnicos da Arte; e diante dos marchands, como estetas desinteressados” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 143). Ou seja, a fruição do público não dependeria da decodificação da obra de arte em si, enquanto autônoma e regido pela estética, mas da posse de determinado capital econômico, cultural, social ou simbólico, como Bourdieu (1996; 2011) viria a afirmar posteriormente.

Arte Moderna e contemporânea em perspectiva

Se deixarmos o cenário europeu e migrarmos nosso olhar para o norte-americano, onde foram criados os primeiros museus voltados à arte moderna no início do século XX, observamos que a reprodução epistêmica de determinados códigos de organização do conhecimento se mantém sob domínio de determinadas classes sociais privilegiadas, embora o próprio conteúdo estético se altere.

O Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA foi fundado em 1929 a partir da iniciativa de três colecionadoras de arte moderna: Abby Aldrich Rockefeller, Lillie P. Bliss e Mary Quinn Sullivan. Seus nomes já as identificam como pertencentes à elite aristocrática norte-americana. O modelo de acervo e exposição construído para o MoMA foi dirigido pelo historiador e crítico de arte Alfred Barr (1902- 1981), que ocupou o cargo até 1943. Formado em Harvard, Barr foi aluno de Paul Sachs, ex-diretor do Fogg Art Museum e considerado o fundador da museologia moderna nos Estados Unidos, primeiro doador de obras ao MoMA. Barr esteve na Europa entre 1922 e 1937, quando conheceu as técnicas expositivas menos acumulativas e, com a preocupação de seguir uma narrativa realizadas por Alexander Dorner[2] no Landesmuseum em Hanover, frequentou a escola de arte e design Bauhaus, onde conheceu a teoria do campo de visão de Herbert Bayer (1946)[3], assim como apreendeu as técnicas de vocabulário visual de Willem Sandberg no Museu Stedelijk, na Holanda (1937-1945). Suas referências pessoais no campo das artes indicam a influencia da Academia em seus conhecimentos adquiridos e a possibilidade de viagens ao exterior, o que o destacam em posições de privilégio e oferecem reconhecimento às suas decisões enquanto diretor artístico do MoMA. Entre elas, Barr implementou o modelo arquitetônico do “Cubo Branco”, que, em contraste com a arquitetura e decoração de interiores de museus históricos, oferecia a ilusão de neutralidade e de autonomia das obras (O’Doherty, 2002). A incorporação e integração de elementos arquitetônicos e requisitos estruturais consideravam as habilidades de percepção dos visitantes e os elementos de comunicação e exibição seriam organizados em uma sequência estrategicamente planejada. Além disso, fez uso de suportes de comunicação visual com textos de parede, catálogos expositivos e anúncios das exposições. Este método ainda é utilizado, nos dias atuais, por museus de arte moderna e contemporânea em diversos países.

Figura 3: Cubismo e Arte Abstrata [MoMA Exh. #46, March 2–April 19, 1936]. Fonte: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/2748?installation_image_index=20.
Segundo Thomas McEvilley (1999), a desejada fruição da arte pretendida pela neutralidade do espaço expositivo do “cubo branco” no MoMA ainda ressaltava o status do museu como local elitista e sagrado para o mundo das artes, que espera uma sensibilidade específica do público, uma atitude do espectador, diferenciado em termos de classe e percurso cultural. A resistência das estruturas de poder inerentes ao cubo branco centra-se em condição “[…] de beleza imorredoura, da obra-prima. Mas na verdade é uma sensibilidade específica, com limitações e condições especiais que é tão glorificada. Ao sugerir a eterna ratificação de uma certa sensibilidade, o cubo branco sugere a eterna ratificação das reivindicações da casta ou grupo que compartilha de sua sensibilidade.” (McEvilley, 1999, p. 9). O museu elevava o objeto artístico a uma obra-prima glorificada interferindo, portanto, nas relações de poder entre a arte e o público.

Além da organização do espaço expositivo em “cubo branco”, Alfred Barr organizava as exposições a partir de correntes artísticas como o “impressionismo”, “cubismo”, entre outras, em ordem lógica e cronológica: “diagrama-torpedo”, que começava em 1875 e seguiria em movimento contínuo através do tempo. O diagrama orientava a compra de obras de artistas vivos e as vendas de obras com mais de cinquenta anos (política atualmente extinta). Apontava assim para um ideal de arte moderna como aquela produzida nos últimos 50 anos, enquanto influenciava também no valor das obras, não deixando de lado os critérios historiográficos aplicados à Arte, a quem respondia a seu grupo social de privilégios. Enquanto as vanguardas artísticas buscavam provocar o cânone da história da arte, Barr implementava uma metodologia de apresentação das correntes artísticas que trouxeram para a história da arte e da curadoria o sentimento modernista de ordem, hierarquia e clareza – visão linear eurocêntrica, em um momento histórico de ascensão do totalitarismo na Europa, que ameaçava a própria noção do modernismo emergente que ele mapeava. Mais uma vez, assim como na França napoleônica, os museus (agora dedicados à Arte Moderna de vanguarda) representavam uma narrativa hegemônica específica.

A partir da década de 1960, após a Segunda Guerra Mundial, embora os museus europeus estivessem debilitados e impossibilitados de receber acervos internacionais de arte moderna, a arte contemporânea ou arte pós-moderna despontava com artistas da vanguarda que traziam outras formas, conteúdos e funções. A desmaterialização que marca a Arte Conceitual provocava o afastamento dos objetos físicos em direção a processos, conceitos e experiências como formas válidas de expressão artística (Lippard, 1973)[1] – pop art, arte conceitual, arte minimalista, arte performativa, arte de rua – que não cabiam em narrativas lineares e progressões históricas previstas nos espaços arquitetonicamente programados de museus (Danto, 2006). Na busca por explorar sensações e compartilhar a crítica ao tempo presente, mais do que criar obras, os diretores artísticos passaram a trabalhar muito próximos desmistificando os museus e as galerias como espaços de legitimação das Artes.

Segundo Seth Siegelaub (1969), enquanto projeto político empreendido na época, os curadores, através de formatos expositivos expandidos e receptivos a novas possibilidades e questões propostas por novas formas de arte, seriam potencialmente capazes de desmistificar as estruturas ocultas  do mundo das artes: o papel dos museus, do colecionador e da produção da obra de arte. Em entrevista a Paul O’Nell, Siegelaub (2006) afirmou que os museus e galerias da década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos não atendiam, necessariamente, os desejos e ideias impostas pela própria natureza dos trabalhos artísticos em termos físicos e espirituais. Não se tratava apenas de espaço em termos físicos, mas quanto a ideia de um tipo de espaço sagrado, “semi-religioso” que as pessoas conhecem e visitam regularmente, “espaço de arte”. Afinal, o caráter mitológico do ambiente dedicado à “inspiração” construído como museu na antiguidade transformara-se em espaço canônico exclusivo para ter a existência artística conceitual assegurada. Ainda que alterasse o conteúdo, o público e mesmo as estruturas arquitetônicas ao longo da história, os museus e galerias mantinham essa aura sagrada.

Em um período em que os diretores artísticos de exposições temporárias assumiam uma assinatura criativa – e mesmo artística, autoral – dos eventos artísticos, e seu protagonismo era alvo de críticas pela interferência no efeito das obras de arte sobre o público, não apenas a função dos museus estava em disputa, mas dos artistas, do curador, dos colecionares e críticos.

Desde os Museus Modernos e Bienais de Arte Contemporânea, os sistemas de arte pretendem oferecer uma maior aproximação com os interesses dos artistas e do público oferecendo espaços para a manifestação de novos conceitos e novas narrativas de representatividade com menos códigos elitistas de linguagem.

A crítica de arte também se reposiciona no contexto da arte contemporânea. O filósofo e crítico Luiz Camillo Osório acredita que a crítica deva adaptar-se a novos espaços de produção e circulação para a arte, estar mais próxima do fazer artístico e do tempo da experiência artística nas exposições. Como “testemunha, que deve estar atenta aos fatos para poder trazê-los a público”, deve se deslocar do papel tradicional de um juiz do gosto sobre o objeto artístico. A escrita de um texto crítico não seria “sobre a obra”, a fim de “representar um sentido da obra analisada” –, mas uma “escrita com as obras” – que envolveria uma parcela de criatividade, “para [a crítica] se assumir de modo mais exploratório, participando do processo aberto de criação de sentido” (Osório, 2005, p.15-16).

Segundo o historiador e crítico de arte Terry Smith (2012), menos óbvios no discurso até o momento, mas igualmente importantes para o futuro, são as questões sobre como repensar a plateia, envolver os espectadores como co-curadores e o desafio de curar a própria contemporaneidade – em suas formas presentes, passadas e futuras (Smith, 2012, p.19).

À guisa de conclusão

Até que ponto o sujeito moderno, chamado a participar das experiências conceituais das exposições contemporâneas, como das transformações de design expositivo de Museus Modernos ou mesmo nas orientações pedagógicas de Museus Históricos esteve representado nas estruturas que legitimam as obras de arte?

A produção de narrativas artísticas e históricas existem, mas a direção da sua exposição e, principalmente, seu alcance, são determinadas pelo acúmulo de capital simbólico de grupos sociais em posições de poder dentro e fora das suas instituições. A história ocidental vem sendo contada a partir de narrativas expositivas em museus e exposições que orientaram um ideal de modernidade e procuraram manter determinada forma de compreender a pluralidade de vozes produzidas em diversas partes do mundo. No contemporâneo, no entanto, a direção destas narrativas em museus e exposições são pressionadas pela vanguarda artística, pela crítica e por ativistas sociais que reivindicam uma nova estética, novas categorias críticas e uma nova ética, colocando as remanescentes simbólicas do “sistema das artes” em confronto com o momento histórico.

Na contemporaneidade, a curadoria de exposições de arte tem se mostrado como um campo progressista de entendimento dessas novas experiências de mundo como visto principalmente em eventos “globais”, como as Documentas de Kassel, que abrem caminho a vozes dissidentes, saberes dos povos originários e afrodiaspóricos, além de levarem em conta questões de gênero e sexualidade. Uma disrupção que exige criatividade inovadora, fabulação, novas formas de interpretação do mundo, imaginação e valorização do sonho. A curadoria, assim como a crítica, tem se mostrado muito mais um trabalho coletivo do que uma ação individual.

A figura do curador está associada à intelectualidade e seus múltiplos campos de saberes, isso o capacita a nomear, classificar, validar e também criticar dentro de um arranjo curatorial. Se a curadoria ocupou o espaço da crítica produzindo conhecimento dentro do campo das artes, podemos destacar que, de fato, no contemporâneo algumas exposições são explicitamente críticas e podem aparecer como questionamentos aos produtos artísticos, a criatividade, a fatos históricos e até a injustiças sociais.

Os entendimentos tradicionais acerca da curadoria, de forma geral, podem compreender o espaço expositivo enquanto desenho arquitetônico que prestigia, eleva e mitifica determinadas representações. No entanto, ao assumir o cenário de disputa contemporâneo, os museus, ainda enquanto tecnologia epistêmica, podem se tornar laboratórios de produção de conhecimentos novos, novas narrativas e novas representações cênicas.

* Cristine Carvalho é doutoranda no Programa de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ com bolsa CAPES e foi pesquisadora visitante da Universidade de Miami com bolsa CAPES PRInt em 2022. Atua em projetos de pesquisa voltados à economia criativa e inovação social.
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Notas
[1] Categorizados em Artificialia – objetos criados ou modificados por humanos, Naturalia – criaturas e objetos naturais (com um interesse particular para monstros), Exoticas – plantas e animais exóticos; e Scientifica – instrumentos científicos.

[2] Dorner promove mudanças no pensamento expositivo através da reorganização de quadros, de um modo menos acumulativo e com a preocupação de seguir uma narrativa. Cria, também, material impresso com dados das obras e das exposições e, ainda, etiquetas fixadas ao lado das produções artísticas com informações pertinentes à autoria, por exemplo (Cintrão, 2010).

[3] Bayer (1946) desenvolve a Teoria do Campo de Visão por onde se compreende a exposição como design/desenhos no espaço.