Na proposta de refletir sobre as práticas curatoriais e as metodologias que ensaiamos nos últimos anos com o projeto de arte e pesquisa ambiental “Casaduna: Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona”, decidimos elaborar uma reflexão em torno da noção de (des)ocupação, a partir de alguns exemplos de moradores de Atafona que lidam de maneira inventiva com o processo de perda de suas casas, e de um evento produzido no ano de 2022. Vamos nos referir a experiências de ribeirinhos como Dona Belita e o pescador Fernando, mas também a experiências de moradores oriundos da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes, que construíram casas de veraneio em Atafona. É o caso da Sônia Ferreira, empresária aposentada, filha do falecido Alair Ferreira, influente político da região.
Na antiga casa da moradora Sônia Ferreira, semanas antes da demolição do imóvel construído por seu pai nos anos 1960, onde ela habitava, realizamos o evento (DES)OCUPAÇÃO. Na ocasião, coincidentemente, realizávamos uma residência artística[1] quando Sônia nos disse que planejava pôr abaixo sua moradia pois o mar já havia derrubado o muro e começava a erodir o solo que sustentava sua casa. Anos antes, Sônia havia compartilhado conosco um álbum com fotos feitas por ela em 2008. Foram meses fotografando a queda do prédio do Julinho. Espectadora privilegiada, Sônia viu o prédio ruir pela força da erosão da varanda de seu quarto. Ela tirou fotos diárias e conseguiu flagrar o momento exato da queda, material com o qual realizamos o filme Mar Concreto, finalizado em 2021.
Para construirmos nossa reflexão, vamos retomar alguns momentos anteriores, fundamentais para a elaboração de uma reflexão ética, estética e política em nossas práticas no território, desde a proposta inicial do projeto, iniciado em maio de 2017. Nesta reflexão, vamos abordar temas ligados ao campo da teoria estética, das políticas culturais e patrimônio, operando em campo transdisciplinar e trans-histórico. Nesse sentido, propomos a noção de (des)ocupação como um gesto ao mesmo tempo sociológico (táticas de adaptação ao processo de erosão costeira), artístico (estéticas da existência) e político (porque ele indica uma mudança necessária nas formas de pensar as políticas culturais e uma rearticulação da noção de patrimônio histórico).
O gesto curatorial que criamos através do projeto CasaDuna: Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona inicia-se justamente com a nossa mudança da capital do Rio de Janeiro para o município de São João da Barra, no extremo norte do estado. Esse gesto se efetiva a partir do momento em que alugamos uma casa de veraneio na praia de Atafona, cujo terreno havia sido invadido por uma duna. Um dos muros que protegiam os limites do terreno da propriedade havia sido derrubado por uma enorme duna, fenômeno que era parte do processo de erosão marinha que atinge a praia desde os anos de 1950. Portanto, esse gesto curatorial é também um gesto de habitar um território instável, conviver com um ambiente em franco processo de erosão, enfim, habitar o que passamos a chamar de ruínas vivas, isto é, casas que, apesar de ainda estarem preservadas e em condições razoáveis para habitar, apesar das goteiras persistentes, já estão afetadas pelo processo erosivo. Isso significa assumir uma habitação temporária que necessariamente vai exigir, mais cedo ou mais tarde, a (des)ocupação da moradia. Portanto, não se trata aqui de ruínas de uma cidade ou civilização que desapareceu, mas de uma cidade que está em processo de desaparição e, ao mesmo tempo, a cidade não para de se reconstruir e se adaptar, ocupando e desocupando os espaços. Portanto, este primeiro gesto implica em uma alteração consciente no nosso modo de vida, uma escolha que foi pensada também de um ponto de vista crítico, a partir da compreensão da crise política que se instalava no país a partir do golpe jurídico-parlamentar que destituiu a então presidenta Dilma Rousseff em 2016. Compreendemos naquele momento que viveríamos uma erosão política e social no Brasil, a erosão ecológica já estava em curso no mundo. Atafona nos parecia assim uma metonímia poderosa do momento histórico, uma parte isolada que oferecia a imagem do todo. Nas mansões em ruínas na orla da praia de Atafona víamos o solo das instituições políticas e do modelo civilizatório colonial sendo revirado pelo avesso.
A partir desse gesto de habitar, passamos ao gesto de co-habitar, abrindo nossa casa para artistas interessados em vivenciar o território de Atafona, contemplando nessas vivências outras camadas além da visualidade. Camadas históricas, políticas, geopolíticas, etnográficas, afetivas, estéticas que pudessem abrir novos caminhos de reflexão sobre o contexto local. Esse era um importante objetivo das residências artísticas, nas quais criamos roteiros que incluíam caminhadas pelas ruínas e dunas da orla, visitas a estaleiros de barcos artesanais, conversas com moradores, passeios de barco pelo rio Paraíba do Sul, entre outras atividades. Neste sentido, a ideia de arte contextual foi um dos conceitos orientadores da metodologia do trabalho. Estipulamos parâmetros éticos do trabalho e frentes de ação no território além das residências, que incluíam pesquisa acadêmica, organização de cineclubes e produção audiovisual, a criação de um grupo de teatro, o Grupo Erosão,[2] a realização de uma exposição coletiva inaugural de nosso projeto: Atafona: Museu em Processo (2017).
Outro gesto importante em nossa prática curatorial foi a constituição de um acervo de fotos, vídeos e livros sobre a região. Hoje possuímos um acervo com mais de 300 fotos históricas e cerca de 2 terabytes de fotos e vídeos produzidos por nós desde que nos mudamos para Atafona em maio de 2017. Além disso, constituímos uma hemeroteca digital com reportagens de jornal sobre Atafona recortadas e reunidas por Dona Marilda Soares. Esse trabalho de digitalização foi realizado em parceria com a professora Lilian Sagio Cezar, com a Unidade Experimental de Som e Imagem (UESI) e o Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA), com a professora Simonne Teixeira e o GT Officina do Patrimônio Cultural, ambos do Programa de Políticas Sociais – UENF.
Pesquisamos a viabilidade de práticas curatoriais a partir de metodologias de pesquisa-ação e arte contextual que possam ser idealizadas e produzidas em relação com as demandas, as possibilidades e os interesses locais. Uma vez que esta metodologia se exerce, percebemos que se coloca em xeque a própria ideia de “comum” e outras noções tradicionalmente caras, como a do “artista”, da “originalidade”, em prol da produção de múltiplas vozes em modos de criar sentido e resistência com a destruição.
Apresentaremos brevemente a pequena praia de Atafona, no litoral norte do estado do Rio de Janeiro, margem sul da foz do rio Paraíba do Sul, ponto extremo de uma grande planície formada ao longo de cinco milênios por sedimentos do rio. Outrora habitada pelos bravos guerreiros goitacás, exímios nadadores, caçadores de tubarão, os donos da restinga, dos brejos e manguezais. Povo que foi cruelmente massacrado em guerras desleais promovidas pela invasão colonial europeia. Até o final do século XIX, a praia tinha poucos habitantes. A maior parte da comunidade de pescadores vivia nas ilhas da Convivência e do Pessanha. Com a chegada da estrada de ferro e depois da rodovia, o local passou a ser de interesse de veranistas vindos principalmente da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes. Esses construíram, ao longo do século XX, centenas de casas sobre restingas, brejos e mangues da região. Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento do modelo de ocupação urbana, a maior parte da mata ciliar do rio Paraíba do Sul foi eliminada, indústrias foram construídas em suas margens e, na década de 1950, foi feito um desvio brutal de dois terços de suas águas para o rio Guandu abastecer a região metropolitana do Rio de Janeiro. Em decorrência, a erosão iniciada na década de 1960 já destruiu mais de quinhentas construções na região e segue em curso, ameaçando as casas de pescadores e veranistas.
Atafona não é um caso isolado, outros balneários no Brasil e no mundo também sofrem com o avanço do mar. No entanto, a perspectiva das mudanças climáticas e do colapso ambiental promovido pelo avanço industrial dos últimos dois séculos alerta para o fato de que a erosão costeira poderá se tornar um fenômeno comum no mundo inteiro, obrigando centenas de milhares de pessoas ao abandono de suas casas. Portanto, nos parece que essa reflexão sobre a ação de (des)ocupação é urgente e de interesse global.
Neste texto, não debateremos as causas da erosão local, nem possíveis soluções ou prognósticos futuros. Interessa refletir sobre essa experiência singular de habitar as ruínas de Atafona e especialmente sobre os modos de (des)ocupação. Esses processos de ocupação e (des)ocupação implicam em deslocamento de escombros da praia e composições com agenciamentos marinhos que fazem dançar as estruturas e revirar os fundamentos das casas, mas também os dos conceitos nas práticas curatoriais, nas políticas culturais e em demais produções artísticas e acadêmicas. Interessa pensar as possibilidades da arte como instrumento neste contexto, bem como os alcances da universidade e as micropolíticas que operam nestas estruturas, podendo, eventualmente, promover infiltrações.
Curadoria do patrimônio erodido
A referida realidade no plano macropolítico faz da experiência de viver em Atafona paradoxal: a paisagem real, concreta, se dobra no plano metafórico. Além disso, esse cenário de ruínas está cercado por paisagens belas e aprazíveis, o vento nordeste, a foz do rio Paraíba, as casuarinas, as dunas e o céu da planície litorânea criam uma cama que amortece o caos visual provocado pela imagem das ruínas das casas, com seus destroços, escombros e vergalhões ameaçadores. O resultado é uma paisagem ao mesmo tempo bela, melancólica e selvagem.
Habitar Atafona é uma forma de habitar ruínas, não porque a cidade esteja em ruínas, mas pela intensidade de seu processo – tanto o de arruinamento como o de adaptação. Este não é um fenômeno restrito a Atafona, mas o modo como ele se dá aqui é inteiramente singular. Um espelho quebrado de toda cidade em processo de urbanização no atual regime capitalista global. Uma espécie de cidade semimítica do novo milênio, ou ainda a cidade vanguarda na fronteira da transgressão marinha que apenas se inicia na era do chamado Antropoceno. Uma das primeiras cidades náufragas do segundo milênio da era cristã. “Jesus está voltando”, anunciam os crentes em escritos nas ruínas. “Praia do apocalipse”, “tsunami homeopático”, “terceiro melhor clima do mundo”, “portal para o universo”, “região de contato com óvnis”, multiplicam-se os epítetos e as lendas sobre esta paisagem complexa, cruzamento de rio, mangue, restinga, mar, vento e seres humanos e não humanos. Estranha configuração rústica e aprazível da imaginação apocalíptica de futuro. Nem futuro, nem passado, nem distopia, nem utopia, mas “heterotopia”. Lugares heterotópicos são aqueles que, existindo, fazem que contestemos todos os outros em suas disposições espaciais e funcionais.
[…] as heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham […]. Eis por que as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias […] dissecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática. (Foucault, 2007, p. XVIII)
Lugares que abalam o sentido de nossa organização semântica do habitual. Acreditamos que a heterotopia de Atafona possui um diferencial ontológico pois ela se constitui como tal justamente deixando de existir, pelo descontrole de todo propósito e planejamento humano. Um espaço que, sendo habitado, existe enquanto processo de (des)ocupação.
No processo acelerado de esgotamentos de biomas, mangues mortos, rio seco, poluído, sem força, salinização de lençóis freáticos e avanço do mar, surgem brechas para a invenção de modos de vida resistentes, adaptativos e inventivos em meio às ruínas. Neste aspecto é importante determo-nos, pois ele participa da concepção de nosso modo de trabalho ao optar por habitar o território para compreender as dinâmicas de adaptação e agenciamento nos modos de vida, convivendo com o arruinamento e a recriação cotidiana.
Pudemos perceber isso na própria vivência dos últimos anos e também ouvindo relatos de antigos moradores. Conviver com a erosão não se resume a uma vida penosa e precária, ainda que o seja em grande medida, ainda assim há inventividade, alegria, dignidade, coragem e perseverança. Temos exemplos de pessoas que convivem com a erosão em Atafona e fazem dessa vida uma vida plena, íntegra e bela. É o caso, como veremos, de Dona Belita, que resistiu, vivendo na Ilha da Convivência até o fim de sua longa vida, permanecendo lá mesmo depois de perder sete casas para o mar. Mas também de Nenel, Fernando, Seu Paulo, Miri Carla, Gilson, Neno, Benilda, Nelite, o Ronaldo Não Me Viu, Almir Largado, Nico e tantas outras pessoas, pescadores, caranguejeiras, marisqueiras, sobreviventes que tivemos a oportunidade de conhecer e que continuam habitando a região próxima à foz. São vidas ancoradas em embarcações e não em terra firme. Parte destas histórias pudemos registrar em uma atividade de museologia social produzida em 2020, na qual levamos nosso acervo de imagens antigas para lugares específicos da comunidade, montando um museu itinerante, o Museu Ambulante, no qual a comunidade narra histórias dos territórios onde habitavam, décadas atrás, e que já foram levados pelo mar. Vemos vidas habituadas a naufrágios, a adaptações climáticas e, por isso mesmo, vidas que podem ser consideradas vidas filosóficas. Modos de vida que instauram espaços heterotópicos, vidas outras.
O que significa habitar ruínas e desocupá-las, como um gesto ao mesmo tempo estético e filosófico? Para responder esta pergunta, partimos de um breve depoimento da última moradora da Ilha da Convivência, Dona Belita, que viveu até o fim de sua longa vida centenária nessa ilha. Mesmo depois de perder sete casas para o mar e ver toda a sua comunidade migrar para o continente, seguiu convivendo com a presença ameaçadora do oceano que avançava ano a ano sobre seu território. Ela nos descreve com tranquilidade a ação devoradora do mar de Atafona.
“Eu me conformo com tudo. Nunca disse uma má palavra. O mar comeu as casinhas minhas numa situação feroz, feroz, só Deus!”
As habitações na zona limite da erosão nos ensinam sobre modos de vida adaptativos, pois são vidas que se constituem em constante diálogo com forças ambientais. Ao mesmo tempo se utilizam obrigatoriamente das sobras geradas pelo avanço civilizacional. Não se trata aqui de romantizar essa situação, há certamente ausências graves por parte do poder público e faltam políticas sociais que sejam capazes de compreender as necessidades dessas pessoas que moram em áreas de risco ambiental. No entanto, quando nos aproximamos de algumas dessas pessoas, notamos que elas não se sentem pobres, nem frágeis ou vulneráveis. Elas dificilmente trocariam suas casas na beira da erosão por outras no meio da cidade e longe do mar. Assimilam em seus cotidianos a experiência sublime do mar que “ameaça a tudo engolir”, mas que também oferece o sustento. Eis aí uma forma de teimosia na inconstância, na impermanência.
Entendemos a importância de uma prática engajada, preocupada em contribuir com uma reflexão mais ampla, que incorpore a crítica não apenas no discurso, mas no modo de produção, abrindo brechas e criando problemas para os circuitos institucionais das artes e as políticas culturais governamentais. Nesse sentido é que propomos esta reflexão sobre a noção de (des)ocupação como uma forma de imaginação para curadorias, criações artísticas e políticas culturais e patrimoniais em contextos de crise ambiental. Política cultural, segundo a definição de Canclini (apud Rocha e Brizuela, 2019, p. 14), é o conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, pelas instituições civis e pelos grupos comunitários organizados, a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social. A pesquisadora Isaura Botelho observa a importância de notar diferentes dimensões da cultura e quando se trata da elaboração de políticas públicas, distinguindo “a cultura do plano cotidiano daquela pertencente ao circuito institucionalizado” (Botelho, 2016, p. 19).
Nas definições das políticas culturais, para além dos instrumentos legais e das decisões técnicas, no caso do patrimônio, deve-se ter em mente que esse é um campo de disputas envolvendo identidades, memórias e territórios. A palavra patrimônio é de origem latina, derivado de pater, pai. Segundo Chauí (2004:15), não se trata do genitor (do latim genitor), senão de uma figura jurídica, onde pater, o pai, é o dono e senhor da terra e de tudo que nela há. Deste modo, originalmente o patrimônio é aquilo que pertence ao pai e se configura como herança paterna, ou seja, os bens transmitidos de pai para filho. O termo também é usado como herança familiar, mas tem seu sentido ampliado para patrimônio cultural, referindo-se à herança sociocultural.
A noção de patrimônio histórico e artístico resulta de um longo debate até seu sentido atual, mais amplo, de patrimônio cultural, que inclui o aspecto relacionado à natureza e ao meio-ambiente nela inerente. Este é o sentido que nos interessa para pensar a noção: “o conjunto dos elementos arquitetônicos, urbanísticos, arqueológicos, paleontológicos, ambientais, ecológicos e científicos que indiquem e referenciem a identidade social de um grupo e de um meio geográfico específico” (Assunção, 2003:87). Ou ainda:
O Patrimônio Cultural é composto por monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico. Incluem obras de arquitetura, escultura e pintura monumentais ou de caráter arqueológico, e, ainda, obras isoladas ou conjugadas do homem e da natureza. São denominadas Patrimônio Natural as formações físicas, biológicas e geológicas excepcionais, habitats de espécies animais e vegetais ameaçadas e áreas que tenham valor científico, de conservação ou estético excepcional e universal. (Iphan)
Acreditamos que a situação de Atafona apresenta grandes desafios ao campo do patrimônio, em uma esfera para além da recuperação, manutenção e educação dos centros históricos e áreas de proteção ambiental. Essa praia traz em sua imagem uma dinâmica ambiental que, como vimos, tende a se ampliar, levando a uma necessária ressignificação da relação entre memória e território, erodindo a materialidade do patrimônio.
No Brasil, a valorização do patrimônio imaterial foi uma significativa conquista como estímulo e instrumento para que possam ser revividas ou atualizadas antigas tradições em uma comunidade. Comunidade entendida enquanto um acordo, historicamente situado por um território, entre humanos e não humanos. Neste sentido, desde o século XX, agências internacionais vêm incentivando o trabalho de projetos voltados ao turismo cultural, “experiências” e ao desenvolvimento sustentável. Não raro tais iniciativas acabam promovendo a exclusão das populações residentes nessas áreas. O desafio consiste justamente em incorporar este imaginário que se cria na convivência com as realidades ambientais, sem reproduzir metodologias de trabalho, seja nas práticas artísticas seja nas políticas de preservação, que sejam alienadas do território e das forças vitais que nele se produzem. Algumas regiões e grupos podem reinventar suas performatividades tradicionais e modos diferenciados de ocupar um espaço que confira sentido em uma comunidade imaginada.
Estéticas e práticas de si: Atafona e o sublime no cotidiano
É curioso que Kant, quando se refere à experiência estética, use fenômenos naturais para indicar o evento. Inclusive a imagem do mar revoltoso que ameaça nos engolir. É pouco provável, no entanto, que o prussiano tivesse imaginado, ainda que com sua incrível imaginação, conceber algo parecido com a visualidade do cotidiano de Atafona. A curiosidade está em ouvir o discurso de Dona Belita, que, relatando sua vida na Ilha da Convivência, descreve igualmente o mar como um ser feroz que não só ameaça, como de fato engole as suas casas. No entanto, estas duas experiências com o mar revolto referem-se a contextos muito distintos.
Para compreender esta diferença, propomos uma reflexão a partir da noção de “exercícios espirituais”, noção da filosofia antiga retomada por Pierre Hadot e que Michel Foucault utilizou em suas reflexões sobre “técnicas de si” e “estética da existência”. Esses dois filósofos franceses se interessam pela filosofia prática da antiguidade greco-romana, como um conjunto de técnicas com as quais os indivíduos alteravam a sua própria percepção do mundo, e com isso buscavam se preparar para os acontecimentos adversos da vida. Segundo Hadot, os exercícios espirituais “correspondem a uma transformação da visão de mundo e uma metamorfose da personalidade” (Hadot, 2002, p. 21). Mais interessado na postura estoica e epicurista, Hadot observa os textos antigos de Sêneca e Marco Aurélio, entre outros, e propõe uma associação entre estas práticas filosóficas antigas e a teoria da percepção estética na filosofia moderna e contemporânea, passando por Kant e Merleau-Ponty. Segundo ele, esses pensadores entendiam a experiência estética como uma forma de ampliação da percepção do mundo e uma ruptura com a percepção comum, em nossa experiência cotidiana e utilitária.
Ocorre que, entre os gregos, havia uma escola filosófica que propunha um reviramento desta concepção da filosofia como “suspensão” de um estado de consciência cotidiana. Tratava-se justamente da filosofia cínica de Diógenes de Sinope, uma escola que, segundo Foucault, era o “espelho quebrado” da filosofia grega, onde todas as principais correntes filosóficas da época se viam ao mesmo tempo afirmadas e invertidas. Com Diógenes, vemos a filosofia não só como uma arte de viver, mas como um meio de sobrevivência. As práticas de Diógenes não visam a uma “suspensão” da percepção cotidiana. Mas, ao contrário, trata-se de uma prática que intensifica a atenção ao cotidiano, com intuito de eliminar dos hábitos tudo aquilo que seja desnecessário e artificial e não crucial para a sobrevivência e a satisfação das necessidades.
Uma filosofia que vai para o campo da prática gestual, performativa, cênica. Como vemos com Goulet-Cazé e Branham (2007):
De fato, a expressão mais poderosa da vitalidade do cinismo no início e no apogeu do mundo moderno provavelmente não está no domínio da filosofia per se, mas numa tradição literária de fantasia e diálogos satíricos.
É por isso que Diógenes quebra a sua própria caneca ao ver uma criança bebendo água da fonte com as mãos entrelaçadas em forma de concha. Aqui também há uma alteração na percepção do mundo, mas essa alteração não está dissociada da vida utilitária. Pelo contrário, Diógenes parece indicar que a percepção só muda realmente quando mudamos os hábitos mais elementares de nossa existência.
Mas o que seria o sublime no cotidiano? O sublime em gestos simples de beber água, se alimentar, defecar ou de se masturbar? Todos estes gestos vinculados às necessidades mais básicas do corpo fazem parte do repertório gestual da filosofia cínica. Nas histórias que se contam de Diógenes, ele é visto realizando cada um desses atos em público. Nesse caso, o sublime não pode ser concebido como um sentimento metafísico. O sublime aqui é gerado pelo impacto com a natureza em sua nudez. Não se trata do confronto com uma natureza grandiosa que nos ultrapassa e com a qual nos reconectamos em sentido cósmico, trata-se da percepção mais crua da natureza irredutível de nosso próprio corpo.
Para o cínico, não se trata de pensar o cosmos como compreensão da verdade última do universo, mas sim de percebê-lo no corpo, nas necessidades mais básicas, e buscar não as dissimular, não criar artifícios, desvios, ou subterfúgios para assumi-las na sua nudez e crueza. E é essa natureza do cinismo enquanto a banalidade do sublime que espanta e é escandalosa. O sublime não está apenas na visão extasiante de um mar revolto, está também nas ações que realizamos cotidianamente e que são justamente passagens de substâncias diversas do exterior para o interior de nosso corpo e vice-versa.
Cabe aqui retomar brevemente a questão do sublime em Kant, a fim de contrastar com a experiência do sublime escandaloso do cínico, que pode também ser pensado enquanto um antisublime. Hadot refere-se ao sublime de Kant como uma entre outras teorias que se referem à experiência estética como uma forma de alteração da percepção capaz de nos retirar da percepção cotidiana utilitária da vida. Na abordagem de Hadot, Kant aparece ao lado de outros pensadores e artistas tais como Merleau-Ponty, Bergson, Paul Klee, Cézanne. Hadot observa que as abordagens sobre o fenômeno estético de cada um desses autores são muito distintas, mas todas indicam a ruptura com a percepção cotidiana. Ele nos indica que a percepção estética do mundo é uma espécie de modelo da percepção filosófica, e esta parece ser também a visão do próprio Hadot.
Vejamos então a passagem sobre o sublime em Kant:
Em 1790, na Crítica da faculdade de julgar, Kant opõe, ele também, percepção estética e conhecimento científico. Para perceber o oceano como sublime, não é necessário analisá-lo por meio de associações a conhecimentos geográficos e meteorológicos, mas “é preciso aceder a visão do oceano, somente – como fazem os poetas, unicamente segundo aquilo que se mostra ao olhar, logo que ele é contemplado, seja em repouso, tal um claro espelho d’água, que não é limitado pelo céu, seja quando ele está agitado como um abismo que ameaça a tudo engolir”. (Hadot, 2002, p. 349)
Para Kant, a experiência estética pressupunha uma postura desinteressada do mundo, isto é, livre de qualquer pulsão de interesse ou apetite. Uma experiência, portanto, inútil para a vida ordinária, mas fundamental para experiência da alma. E, pelo menos nesta passagem citada por Hadot, tratava-sede uma percepção ligada principalmente à contemplação visual. Nessa passagem, o elemento escolhido por Kant para descrever o sublime é o mar, e o mar representado ora como calmaria na placidez de um espelho d’água infinito, ora como um ser abismal e devorador, que ameaça nos engolir. Como vimos, esta segunda imagem é muito semelhante à descrição do mar de Atafona feita por Dona Belita.
O sublime de Dona Belita é o cotidiano, não é uma experiência de arrebatamento contemplativo com o mar, mas uma relação cotidiana com o mar que, se, por um lado, a ameaçava, por outro, lhe dava o sustento. O sublime nesta relação é a experiência cotidiana, a vida simples, mas não menos filosófica, isto é, não menos sábia. Dona Belita é um exemplo de uma vida desvinculada do valor monetário, da influência política, ou da produtividade. O valor desta vida está justamente em sua autonomia com relação ao capital, isto é, uma vida que escapa quase completamente ao circuito econômico do capital, uma vida de valor outro.
Haveria assim uma experiência do sublime como um fenômeno perceptivo ou sensorial que nos arrebata completamente os sentidos, indicando a existência de forças cósmicas que nos ultrapassam, isto é, a existência de um outro mundo ao qual podemos apenas acessar por intuições. E, por outro lado, haveria também esta experiência do sublime no cotidiano, algo que nos indicaria uma passagem para uma existência radicalmente outra, isto é, uma vida outra (Naidin, 2021) resultante de uma mudança de percepção. Aqui, nos permitam essa imaginação conceitual, podemos pensar em uma (des)ocupação existencial, isto é, para criarmos e habitarmos novos mundos, precisamos desocupar os modos normativos de existir.
A arte ambiental do pescador Fernando
Quando um pescador diz que o mar é vivo, ele abre uma dimensão da existência que é inconcebível para a nossa consciência particular enquanto sujeitos racionais e que escapa à consciência individual do sujeito, mas que é comum a todo ser vivente. É ela que permite que o pescador Fernando afirme que o mar é vivo, mesmo sem saber explicar por quê. É verdade que em geral esses pescadores acabam por resumir estas forças numa única entidade, isto é, no final tudo “é coisa de Deus”. Mas na prática observamos uma percepção aguda das forças ambientais por parte dessa população que convive diariamente com o processo erosivo. Antes de resumir tudo a Deus, eles caracterizam e diferenciam cada entidade da paisagem e são capazes de perceber os humores e as intenções do ambiente em que vivem.
O modo como o pescador Fernando lida com o com o processo de (des)ocupação de suas residências atingidas pelo processo erosivo poderia ser descrito como uma espécie de obra ambiental processual. Fernando vive na localidade conhecida como Baixada, área urbana extrema do delta do rio Paraíba do Sul, uma pequena vila construída sobre um antigo mangue que hoje está morto. Terreno mais vulnerável à erosão, enchentes e alagamentos em Atafona. Constrói cotidianamente uma barreira com troncos, cordas, sacos de areia, redes de pesca, colchões, tábuas e outros materiais que ele coleta na praia e na cidade, uma barreira que tem o objetivo de retardar a erosão que ameaça a sua casa, mas, segundo ele mesmo diz, “o mar pode vir e destruir tudo em menos de meia hora”. Essa construção do pescador Fernando pode ser lida também como uma carta, escrita com os materiais da erosão. Ele sabe que a barreira não vai impedir que o mar avance sobre sua casa, talvez no máximo retardar um pouco, mas ele a constrói com toda a sua arte, inventando uma arquitetura improvável. Uma obra de arte ambiental naïf? Uma arte ambiental canibal. Uma arte que surge do agenciamento erosão-pescador. Fernando constrói sua barreira como quem instala um mastro em um barco furado. Ele cria, com a linguagem da navegação, os nós, as madeiras, as lonas de um veleiro, tudo construído sobre a terra firme que afunda lentamente. Quando perguntamos a ele se ele considerava a sua construção uma arte, a resposta foi afirmativa. Ele também disse que era uma forma de se comunicar com o mar, ou com Deus. Uma arquitetura espiritual, uma carta sobre o destino naufrágio de seu território. Sua obra é resultado de um esforço físico cotidiano, ele trabalha sozinho deslocando dezenas de toras de madeira que são lançadas pelo mar na praia; trabalha com ajuda de alavancas e do próprio mar nas marés cheias; movimenta ao longo dos meses toneladas de madeira e areia. Todo este trabalho produz uma barreira frágil, quase simbólica. A sua potência não está na capacidade de impedir o avanço do mar, mas sim em seu agenciamento com o processo erosivo, é a maneira que ele encontrou de dar sentido a esse processo que cedo ou tarde vai destruir a sua casa. A barreira é também uma forma de comunicação com as forças ambientais, mensagem escultural que se direciona simultaneamente a seres humanos e não humanos. Uma obra de arte que não se separa da vida, da convivência cotidiana com o mar revoltoso, uma obra efêmera que se constitui na vivência do sublime no cotidiano.
(DES)OCUPAÇÃO – curadoria e pedagogia do agenciamento
Desde 2017, quando começamos a trabalhar em Atafona, tínhamos a ideia de arte contextual como conceito orientador de trabalho em que cada ação proposta seria definida e elaborada a partir do contexto no qual se dava, das condições ambientais e humanas disponíveis em cada caso. Em 2018, Sônia nos apresenta um material de arquivo particular no qual ela acompanhava, fotografando, a queda do único prédio que chegou a ser construído na praia. O “prédio do Julinho”, que se localizava na frente de sua residência e que, antes mesmo de ficar plenamente pronto, já começou a receber os impactos da erosão e não chegou a ser finalizado. Ainda assim, concentrava parte do comércio e do lazer da comunidade em torno de um pequeno centro comercial que formou. Dona Sônia acompanhou o processo de erosão no prédio com uma máquina fotográfica e conseguiu capturar com as fotografias o momento final da queda do prédio. Esse momento foi um marco para Sônia. Sua casa seria a próxima a ser destruída pela erosão. As fotos da queda datam de 2008. Dez anos depois, recebemos como contribuição para nossos arquivos o álbum fotográfico de Sônia, e com ele produzimos um curta metragem documental Mar Concreto (finalizado em 2020) como um modo de trabalharmos com esse arquivo improvável. O filme foi exibido em diversos festivais nacionais e internacionais, recebeu prêmios e é utilizado nas atividades acadêmicas, pedagógicas e artísticas que promovemos.
Quando Sônia, em 2022, nos avisa que vai antecipar-se ao mar que já tinha derrubado parte do muro de sua residência e, por questões de segurança, ia demolir a própria casa, sabíamos do impacto material e simbólico desse gesto em sua vida e na vida da comunidade. Uma casa grande, com belas escadas de madeira, muito vidro e pedras, que impressionava os passantes, a casa foi construída por seu pai, antigo político influente na região, no início dos anos 1980. Na ocasião, estávamos realizando uma residência artística com um grupo de oito artistas em nossa casa, seguindo uma agenda de atividades previamente planejada. No entanto, a iminência da destruição planejada por Sônia apontava para um outro tipo de agenciamento e de produção de sentido. Abrimos um diálogo sobre a situação com as/os artistas residentes e propusemos para Sônia a realização de um evento de despedida de sua casa, que poderíamos produzir juntas, no qual seriam realizadas projeções de filmes, intervenções contextuais, exibição de imagens históricas, venda de seus objetos antigos, encontros inusuais. Decidimos montar uma ocupação artística na casa que já estava esvaziada.
Optamos por realizar a projeção do filme Mar Concreto no muro da casa de Sônia, que aparece no filme por meio das imagens feitas da varanda da casa, prestes a ser demolida. Optamos também por exibir na sequência o curta do Museu Ambulante, um documentário feito a partir de uma atividade de museologia social homônima na qual levamos às ruas de Atafona um museu manipulável e itinerante, cuja expografia participativa ativa o campo das memórias dos cotidianos, dos afetos e da contação de histórias sobre um lugar que não existe mais, mas que existe para aquelas pessoas que viveram e perderam em comum.
Montamos uma estrutura de projeção em seu jardim, iluminação na praia, e registramos o evento. Percebemos que foi uma oportunidade de encontro em torno de um elemento comum, uma experiência em comum, da iminência da perda em meio a todo dissenso entre uma comunidade imaginada. Muitos tinham curiosidade de ver como era aquela casa por dentro, outros foram para se solidarizar, outros para ver os filmes, outros para ouvir histórias, levar lembranças para casa, muitos amigos, alguns melancólicos apaixonados.
Ao longo dos últimos anos, realizamos diversas produções e curadorias que se deram pelo crivo do agenciamento contextual possível ou necessário. Assim como as atividades mencionadas, como o Museu Ambulante, a realização do filme Mar Concreto, a produção constante de arquivo em seus diferentes suportes, o grupo de teatro de rua, entendo o evento (DES)OCUPAÇÃO exemplar por alguns motivos, principalmente: a urgência com a qual teríamos que realizar; o uso heterotópico do espaço, criando uma dobra na própria heterotopia; projetar o antigo Prédio do Julinho na parede da frente de sua ruína iluminada que, em poucos dias, também viria a se tornar ruína. Exibi-lo junto com o Museu Ambulante, um trabalho de memória idealizado como material que pudesse também ser absorvido em atividades com escolas na comunidade; o convite aos artistas para que participassem, tanto da ocupação com obras quanto do evento da (DES)OCUPAÇÃO, conforme cada vontade e possibilidade de cada um; a percepção de que em nossas atividades e propostas curatoriais o foco principal não é a exibição de obras visando a uma eventual absorção pelo mercado de arte, mas a produção de trabalhos, ou situações, co-criados a partir dos agenciamentos imprevisíveis que o contexto de Atafona nos apresenta, em um trabalho delicado de escuta, cuidado e adaptação.
Curadoria não somente como seleção de artistas e obras, mas como produção de agenciamentos e de polifonias, refletindo também sobre o modo de levar a arte para o mundo. Não trabalhamos em condições ideais, trabalhamos em processos adaptativos tanto no sentido conceitual quanto performativo. Não se trata de pôr-se em algum dos polos, “o gênio do artista”, ou “a materialidade da obra” , ou pelo menos não só isso. Mas no caso deste projeto específico, essencialmente territorial e geosituado, trata-se de pensar também em uma perspectiva crítica de seus modos de produção e de circulação. Que, antes, propõe, por uma metodologia relacional e ambiental, um tratamento das imagens que não se restrinja ao campo de um slogan que garantiria aceitação em um determinado nicho cultural e econômico. Como reproduzir imagens de destruição? Como trabalhar sobre traumas alheios?
Ou seja, não estamos no terreno do idealismo ou da representação individual, e sim na tentativa de infiltração na ordem das coisas concretas e dos acontecimentos possíveis. Contexto designa “o conjunto de circunstâncias em situação de interação. O ‘contexto’, etimologicamente, vem da base latina contextus de contextere, tecer com” (Ardenne, 2002, p.17). A atenção se volta para o mundo tal qual ele se apresenta, buscando criar a emergência de práticas artísticas que questionem um habitual, alterando significados e imaginários. Ou seja, criar experiências contextuais, pedagogias inesperadas, que sejam capazes de confrontar os paradigmas habituais nos modos de produzir imagens no mundo.
Esta posição é tomada a partir de situações concretas nas quais pudemos perceber reprodução de usurpação no sentido material e simbólico, nas produções artísticas que reencenam performatividades que se pretendem salvadoras ao mesmo tempo que desvinculadas de qualquer preocupação com a escuta socioambiental, que produzem um esvaziamento tanto de inventividade na linguagem como de intervenção na materialidade em função do ego do artista (assim como do curador/produtor/acadêmico, etc.).
Vemos que existe um componente agregador associado à noção que incorpora conteúdos de memória, identidade e território partilhados, vivências que definem solidariedades e compartilhamento. Ao mesmo tempo, contra qualquer romantismo, sabemos que a inteligibilidade das relações de um povo com seu território depende da posição de onde estamos para abordá-la. As metodologias de pesquisa tradicionais, ou a “avaliação social” dos impactos ambientais, muitas vezes representam uma perspectiva profundamente distanciada e desconectada da realidade local, promovendo efeitos devastadores, especialmente, ao que nos dedicamos neste momento, o desalojamento da memória que está ancorada na paisagem. Acreditamos em abordagens poéticas e corporificadas que conectam a erosão ao princípio transformador do humano e do mais-que-humano. Diante da perda inevitável, interessa como podemos usar a poesia e a imaginação como espaço de luto, mas também de reinvenção e produção de memória coletiva. Com a ideia de (des)ocupação, trazida nestes diferentes modos de relação com o espaço, mantemos algumas perguntas que sempre são recolocadas: como podemos repensar nossa maneira de viver e modos de agenciamento a partir de uma paisagem em constante mudança? E qual o lugar do cidadão e do fazer artístico nesse processo de renegociação?