o que somos, mas recusar o que somos.
(Foucault, 1995: 239)
Em São Paulo (ou em qualquer metrópole)
A cena transcorre em uma avenida de São Paulo. Várias pessoas portam cartazes expondo suas identidades. Na calçada, encostado em um prédio, um menino anuncia: “Negro e menor abandonado”. Ao seu lado, no cartaz de outro indivíduo, está escrito: “Negro, velho e morador de rua”. Uma mulher assim se identifica: “Mulher com filhos e subassalariada”. Um rapaz diz: “branco, pobre, estudante e desempregado”. No interior de automóveis e ônibus, mais pessoas expõem seus cartazes identitários: “Negro, advogado e vivendo de bico”, “Amarelo, comerciante e falido” e “Criança, sem futuro e sem perspectiva”. Do outro lado da rua, nas janelas de um edifício, a mesma exibição das pessoas com os seus cartazes.
Publicada em 20 de março de 2000, no jornal Folha de S. Paulo, a charge de Angeli remetia a um tema político picante da época. O então prefeito de São Paulo, Celso Pitta, tentava livrar-se de várias acusações de corrupção. Buscando mobilizar a opinião pública, Pitta defendia-se falando da existência de uma perseguição política. Um dos motivos de tal perseguição seria o fato de ser negro. Precisamente, a circunstância de um negro ocupar a prefeitura de São Paulo.
Na verdade, a defesa de Pitta recorria a um apelo já gasto. Na cena imaginada por Angeli, encontram-se na mesma situação de marginalizados, o menino negro e abandonado e o comerciante, “amarelo” e falido. Diferentes identidades prestam-se à mesma solicitação de cuidado e alívio. A charge sugere a existência de uma exploração emocional da própria exclusão social. Mas deixando de lado o desespero e o oportunismo do ex-prefeito, como Angeli nos ajuda a pensar a contemporaneidade da discussão sobre as diferenças?
Na cena, é possível destacar o caráter público das identidades. Na calçada, nos veículos que seguem pelas ruas ou nas janelas dos apartamentos, as pessoas compartilham de uma significativa visibilidade. Há, portanto, uma exibição pública das diferenças. E mais, são as próprias pessoas que portam e anunciam suas identidades. Desta forma, parece existir uma relação de necessidade entre a assunção de uma identidade e o seu reconhecimento público.
Discutindo um pouco mais a imagem, é possível concluir que o reconhecimento de uma identidade é também uma localização. A cena está saturada de pessoas, mas todos podem ser identificados. Há o negro, o velho e o morador de rua, mas também o branco, o pobre, o estudante e o desempregado. A identidade situa cada um dos indivíduos em relação aos demais. Assim, identidade e localização parecem ser um pressuposto mútuo.
Explorando as referências da condição pública das identidades e do seu sentido de localização, poderíamos ainda reparar que a cena imaginada por Angeli é característica. No primeiro plano e em destaque, encontramos na calçada, entre outras pessoas, moradores de rua. Na parte superior da cena, encontramos, com as placas quase ilegíveis, pessoas em suas moradias. No centro da cena, pessoas que transitam de automóvel ou ônibus. Trata-se de uma cena tipicamente urbana. Cena que remete a questão da diferença às vicissitudes sociais da vida na cidade.
Com a ajuda de Angeli, foi possível configurar um ponto de partida para a discussão atual sobre a diferença. Creio que o debate sobre as identidades não deveria ignorar o seguinte aspecto da questão: a identidade encontra-se especialmente relacionada a uma referência pública. Assim, poderíamos começar indagando se as identidades devem sempre se referir a uma localização. E mais, o problema da diferença parece ser também um problema relativo ao governo da vida das pessoas na cidade. Deve ser assim sempre? Não existe outro destino para as identidades?
Assumindo uma perspectiva crítica sobre as políticas do direito à diferença, gostaria de enfatizar a perspectiva que vê a construção das identidades na interseção de diferentes agenciamentos. No país, hoje, é notável o interesse crescente do Estado em estabelecer políticas identitárias. Assim, o poder investe na diferença. Hoje, a vivência de uma identidade pode provocar a sensação de consciência e libertação, bem como de força e distinção. No entanto, trata-se de uma sensação repleta de riscos e ambigüidades, uma vez que as identidades são assediadas, quando não criadas, por políticas que instalam tecnologias de sujeição na sua constituição. Mas luta e resistência são categorias relevantes também para compreender como as identidades são admitidas e enfatizadas. Desta forma, as identidades são apropriadamente percebidas a partir da sua área constitutiva, entendida como um campo de combate minado por ardis e ciladas, mas, sobretudo, uma área em permanente tensão.
O que é isso de estarem entre homens em “desnudo”?
A obra de Foucault tem se destacado como uma referência recorrente para o exame crítico das políticas de reconhecimento da diferença. Seus estudos, voltados para a problemática do poder e a constituição do sujeito, têm fornecido elementos para o desenvolvimento da questão. Basicamente levando-nos a uma desnaturalização das identidades e a sua conversão em um modo de vida, uma virtual maneira de existir, cuja intensidade nasce no que cria e não na descoberta de uma razão de ser.
Em várias oportunidades, as identidades foram objeto de uma reflexão direta de Foucault, inclusive debatendo questões contemporâneas e até pertinentes à sua vida. Em uma entrevista à revista Ornicar?, em 1977, observando os movimentos de liberação das mulheres e dos homossexuais nos EUA, faz uma arguta comparação. Enquanto o movimento das mulheres buscava deslocar a centralização sexual que lhe conferia uma identidade, o movimento dos homossexuais mantinha sua fixação à especificidade sexual. O problema, na sua compreensão, residia no fato de que o sexo já havia se constituído em um dispositivo de sujeição. O movimento das mulheres ultrapassava a reivindicação dos direitos à sexualidade, transformando sua luta para alcançar também objetivos econômicos e políticos (Foucault, 2000b: 268/269).
A homossexualidade foi também, em outros momentos, motivo de sugestivas reflexões de Foucault, oferecendo um escopo político às relações identitárias. Em outra entrevista, concedida agora ao jornal francês Gai Pied, em 1981, Foucault indaga sobre a criação de um modo de vida homossexual. Imaginava um modo de vida que poderia desalinhar, pelas possibilidades afetivas que comporta, o regime institucional dos sentimentos, costumes, gestos e práticas comuns nas relações de identidade sexual. Foucault pergunta
Como é possível para os homens estarem juntos? Viver juntos, compartilhar seus tempos, sua comida, seus lares, suas aflições, seu saber, suas confidências? O que é isso de estar entre homens em “desnudo”, fora das relações institucionais, de família, de coleguismo obrigatório? É um desejo, uma inquietação, um desejo-inquietação que existe em muitas pessoas (Foucault, 2007).
Foucault chamou de amizade a relação desenvolvida com esta expectativa. Com a amizade, sugeria que o amor entre homens não deveria ser um ponto de encontro para desejos escondidos, recalcados ou revelados, mas a plataforma para um prazer que precisava ainda ser desenhado na singularidade que provocava. A identidade aqui não é o reconhecimento de uma alteridade, mas uma maneira de riscar a própria existência. Nas palavras de Foucault, “é um trabalho que alguém faz sobre si mesmo” (ibidem).
Mas é no conceito governamentalidade que encontramos a principal influência de Foucault na discussão atual sobre as identidades e a diferença. Através deste conceito, a identidade é problematizada no âmbito pertinente às questões do governo e da gestão da população.
Foucault vê consolidar-se no século XVIII uma prática de poder que perdura até hoje. É a governamentalidade como “arte de governar”. Distinguindo-se da doutrina da soberania do príncipe, pensada por Maquiavel, a governamentalidade é pertinente ao caráter disperso do Estado. O governo existe não porque o poder encontra-se reunido nas mãos de um indivíduo ou mesmo grupo social delimitado. O governo é exercido na multiplicidade e difusão do poder, uma prática que contém uma ordenação que é mais coletiva do que induz uma prerrogativa máxima recebida por algumas poucas pessoas.
O Estado é tanto um organismo com elementos característicos e identificáveis, quanto um artifício, estratagemas que asseguram o seu domínio e imanência na vida das pessoas. Apesar da centralização que opera, seus agenciamentos não são articulados exclusivamente de cima para baixo. Na verdade, trata-se de uma centralidade distribuída. Portanto, não é apenas na polícia e no exército que vamos encontrar a execução do Estado, mas também no trabalho do professor ou do médico. Na verdade, trata-se de um poder que se estabelece de modos variados, aproveitando sempre as nossas diligências. Sua corporeidade é a ação, condutas que são fixadas e aceitas, toleradas ou desejadas pelas pessoas.
Já no século XVI, diz Foucault, na Europa e através de uma série de tratados, a governamentalidade foi discutida por diferentes autores. No entanto, tão somente no século XVIII encontrou uma perspectiva prontamente adequada ao seu desenvolvimento prático. Se a governamentalidade encontra seus fundamentos na convergência dos processos de criação do Estado Moderno com o movimento de Reforma Religiosa, seus elementos necessários são alcançados apenas no desmembramento do Antigo Regime e na constituição de uma sociedade burguesa.
Para atingir a governamentalidade, o Estado Moderno fixou as bases da centralização estatal e nos acostumou com a agência pública das nossas vidas. Por outro lado, a Reforma Religiosa propôs o governo da salvação, estipulando um outro enredo para a conduta religiosa. Agora a salvação é uma obra, um corpus que atingimos com a elaboração da nossa fé. Processo reativo ao conceito de liberdade e autonomia do indivíduo. Como sistemática do poder, do governo, a governamentalidade alcança uma condição privilegiada através da economia política. Com ela, as pessoas são convertidas em população, objeto de intensas políticas de localização do comportamento e produção de riquezas.
Diante de uma política de exaltação das identidades, prática muitas vezes comprimida em uma ação publicitária, somos levados a reconhecer a sua virtual necessidade. Uma matéria de jornal (Dantas, 2002: 4) que informava a criação, em São Paulo, do primeiro curso superior com cotas para negros, reproduziu a seguinte fala do presidente do instituto que elaborou o projeto: “os negros precisam aprender a lidar com o dinheiro nas empresas”. A aceitação contemporânea da alteridade cria uma sensibilidade própria para o conhecimento de si. Um saber se reconhecer na ordem prática do capitalismo mundializado e excludente. Uma cartografia temperada da exclusão social e uma inclusão calculada. O curso foi anunciado para ter o seu início no ano de 2003 e o projeto anunciava a parceria de diferentes agentes.
A identidade, como uma experiência de diferenciação e distinção, é hoje percebida como de interesse de minuciosas políticas. Para gerir a população, as identidades no capitalismo avançado representam um problema particular e estratégico. Para lidar com riscos e as tensões que provocam, há uma governamentalização das identidades. Trata-se de codificar seu significado público e coletivo, desvitalizando as histórias e lutas que virtualmente carregam.
O marxismo vai dançar na pista da pós-modernidade?
O legado de Marx nos oferece uma viva perspectiva de intercâmbio com as já conhecidas contribuições de Foucault à questão das identidades. No entanto, trata-se de uma aproximação espinhosa em razão das paixões que provoca.
Inicialmente, é preciso lembrar que praticamente Marx não é citado neste debate, senão negativamente ou de forma reativa, quando se quer reafirmar sua importância. Em larga medida, o discurso sobre o direito à diferença tem se apoiado em duras e até definitivas críticas dirigidas à herança do seu pensamento. Diversos autores acreditam que conceitos, tais como, luta de classes ou a centralidade ontológica do trabalho, chocam-se frontalmente com a relevância política da assunção das identidades. Nesta perspectiva, um dos autores que pode ser lembrado é Ernesto Laclau, que ao discutir a pertinência do conceito classes sociais, diz:
Uma vez que a situação atual recoloca este problema em termos muito mais complexos do que aqueles que Marx dispunha, é necessário entender sua resposta parcial e limitada, apreciando mais claramente o sentido original de suas questões (Laclau, 1992: 131).
Mais adiante, prossegue:
A pluralidade das lutas sociais atuais, o fato de que elas tenham emergido num mundo radicalmente diferente e mais complexo do que podia ser concebido no século XIX, acarreta a necessidade de romper com o mito provinciano da “classe universal” (…). As lutas da classe trabalhadora, das mulheres, homossexuais, populações marginais, massas do Terceiro Mundo devem construir suas próprias reaproximações da tradição por meio de seus esforços de traçar genealogias particulares (ibidem: 144/145).
O pensamento acima é expressivo de um heterogêneo campo teórico que encontra a sua unidade na expressão pós-modernidade. Uma das suas mais reluzentes marcas é a rejeição do marxismo, ainda que um ou outro autor mantenha alguma filiação com o pensamento de Marx. Um exemplo deste último caso é o educador canadense radicado nos Estados Unidos, Peter McLaren. Em uma palestra proferida no Brasil, em 1999, McLaren abordou, entre outras coisas, a delicadeza da relação do marxismo com o pensamento pós-moderno:
Minhas críticas estão mais marxistas do que nunca. Com meu último livro sobre Che Guevara e Paulo Freire eu lancei um ataque contundente ao pós-modernismo e muitos amigos pós-modernos ficaram muito tristes comigo, mas eu espero que eles venham discutir comigo quando os livros forem lançados (McLaren, 2001: 59).
Na verdade, um interesse de Peter McLaren pelo marxismo que não deixa ainda de registrar o seu débito com o pensamento pós-moderno. No referido livro, Utopias provisórias, diz McLaren acerca da obra de Paulo Freire:
O legado de racismo deixado pelo opressor europeu do Novo Mundo (…), foi duramente condenado mas nunca sistematicamente analisado por Freire. E ao mesmo tempo que foi um crítico feroz do racismo e do sexismo, não problematizou suficientemente suas concepções de libertação e de oprimido em termos de sua própria experiência masculina (…) (idem, 1999: 35).
E ainda:
Freire não conseguiu articular inteiramente sua posição quanto ao cristianismo e ao viés masculino em seu método de alfabetização. Freire raramente referiu-se as formas que a opressão assume quando se entrelaçam questões de etnia, classe social e orientação sexual. Como apontaram vários críticos nos EUA, Freire não abordou inteiramente a questão do privilégio masculino branco, bem como os interesses e as ações de afro-americanos nos Estados Unidos, vistos independentemente de um movimento mais amplo de práticas emancipadoras. E, nas vezes em que efetivamente tratou dessas questões, seguidamente caiu em abstrações místicas, diminuindo, conseqüentemente, a profunda significação do patriarcado como forma de opressão (ibidem: 36).
Mesmo com a decepção causada, indiscutível o eixo pós-moderno presente na crítica de McLaren. Principalmente, é nítida a preocupação em demarcar um núcleo duro de questões impostas pela pregnância das identidades. Outro autor que sofre os constrangimentos causados pela tentativa de aproximar o marxismo dos objetos da reflexão pós-moderna é o crítico literário norte-americano Fredric Jameson:
Marxismo e pós-modernismo: há uma tendência a se considerar esta combinação estranha ou paradoxal, e de algum modo intensamente instável, o que leva algumas pessoas a concluírem, no que se refere a mim que, tendo me “transformado” em pós-moderno, devo ter deixado de ser um marxista em um sentido válido (o que equivale a estereotipado). O fato é que os dois termos (em pleno pós-modernismo) carregam uma carga completa de imagens nostálgicas pop: marxismo talvez se destilando em antigas e desbotadas fotografias de Lênin e da Revolução Soviética e “pós-modernismo” projetando de imediato a visão de ostentosos hotéis recém-construídos (Jameson: 1994: 41).
Isto porque Jameson vê o pós-modernismo como uma lógica específica da produção cultural no capitalismo tardio. O fato é que a lembrança de Marx para o debate sobre as identidades depara-se com a fastidiosa imagem de que se trata de uma aproximação imprevista, improvável para muitos marxistas e indesejável para não-marxistas. Mesmo assim, trata-se menos de uma provocação do que de uma necessidade para o pensamento marxista contemporâneo. Sem desejar expandir um debate que resultaria em um outro conjunto de questões, gostaria de afirmar a minha concordância com a maneira de ver de Michel Löwy. Apresentando os novos desafios desenvolvidos pelos movimentos sociais, diz:
(…) Na América Latina, mas valendo também para a América do Norte, temos a questão da luta contra o racismo. É uma mobilização anti-racista, mas também pela afirmação da dignidade, da identidade ética e cultural das populações negras, que também coloca um importante desafio para o marxismo um pouco economicista que só vê o negro enquanto operário ou pobre, e não enquanto uma comunidade que é oprimida enquanto negros, que sofre uma discriminação específica, étnica, cultural e social (Löwy, 2000: 248).
Portanto, trata-se, neste momento, para os marxistas, de discutir também a problemática das identidades de forma convincente e influente. Neste sentido, acredito que as questões extraídas do pensamento de Foucault são de grande importância. Constituem, acredito, um caminho sem antagonismos com a sentida necessidade do marxismo encontrar novas e válidas interlocuções.
As identidades na porta de saída da modernidade
Para Marx e Foucault, a modernidade é uma conflitante, mas excitante concentração de forças. Se o sujeito é uma obra dos agenciamentos do capitalismo, em particular, da economia política, também é verdade que a modernidade desembaraçou o indivíduo. Uma leitura lânguida de Marx e Foucault tem enfatizado a sujeição como a condição característica do indivíduo na modernidade. Mas fundamentalmente, hoje é importante lembrar que Marx e Foucault vislumbraram a existência como uma impermanência no âmbito contingente, mas criativo da história. Deste modo, cada biografia segue sua natureza, ou seja, a de não encontrar uma causalidade necessária e definitiva na vida. Concepção que nem sempre é admitida no curso dos debates sobre as identidades.
Freqüentemente a identidade é concebida como uma composição finalizada do sujeito. Neste caso, assumir uma identidade corresponde à descoberta ou aceitação de um atributo que essencializa a existência. Nos movimentos sociais de caráter identitário, é comum a presença de narrativas que destacam a revelação de novos sentidos para a vida, quando as pessoas se reconhecem como integrantes de uma comunidade particular:
A dimensão cultural negra abre-nos a possibilidade de descobrirmos as raízes de nossos antepassados. O eco de ontem dá sentido ao nosso hoje. Aprofundar esse tema é conquistar o sentido de nosso amanhã.Continuar a refletir sobre a cultura negra, nos aspectos do ser negro dentro da sociedade – que não é só uma questão de cor de pele – vai nos dar uma nova alternativa de compreensão e crescimento sócio-político. Assumir a negritude não é racismo: é postura consciente diante dos outros, da sociedade, da vida… (Santos, 2000: 72).
Trata-se, no exemplo destacado, de uma narrativa que admite o registro histórico e social da alteridade. O autor fala-nos das “raízes de nossos antepassados” e também do “eco de ontem (que) dá sentido ao nosso hoje”. Mas o registro da história permite afirmar o suposto caráter predeterminado e conclusivo de uma identidade? Ou, contrariamente, deveria nos levar a acentuar exatamente o trânsito dos artefatos, materiais e simbólicos, que compõem a nossa vida? Assumir uma identidade não poderia expressar que o sujeito sobrepuja-se também as marcas mais salientes da sua própria historicidade? A história não é eternizar o passado no presente.
Ainda que o chamado elogio à diferença seja uma perspectiva evitada por muitos autores, existe uma reiterada formulação das identidades como particularização da existência. Trata-se de uma acepção para as identidades que destaca a elaboração das nossas vidas no âmbito da alteridade. Existe uma implicação decisiva em cada biografia, que é a nossa localização em termos de gênero, raça, classe social, grupo profissional, ou seja, a respeito da condição característica da nossa formação como indivíduo. A seguinte observação do educador norte-americano Henry Giroux é expressiva deste ponto de vista:
Ao optar por enfocar os escritos de feministas afro-americanas, não pretendo falar como, para ou dentro de uma política de situação similar. Minha própria política de situação como homem branco, acadêmico, me posiciona para falar sobre questões de racismo e gênero reconhecendo autoconscientemente meus próprios interesses em assumir estas práticas como parte de um projeto político mais amplo para expandir o escopo e o significado da luta democrática e de uma política de solidariedade (Giroux, 2000: 148).
Mesmo produzindo análises que evitam a noção de identidades terminais, Giroux vê a necessidade de circunscrever o sujeito à inexorável parcialidade que transporta. Crítico duro da modernidade, refaz, contraditoriamente, a imagem de um sujeito centrado, atomizado, característico dos agenciamentos políticos e econômicos que critica. A exigência pós-moderna de reconhecer no indivíduo seu ajuntamento, isto é, suas aderências, no lugar de recusar as políticas que nos imputam uma organização afetiva localizada, termina por aceitá-las, segmentando o self no pertencimento.
Também crítico das identidades sem história e um dos intelectuais com maior (e merecido) prestígio neste debate no campo da educação, Tomaz Tadeu da Silva, ao apresentar-se sensível ao argumento pós-moderno da correção política no trato da alteridade, correu o risco (previsível) de fazer repousar em uma prescrição moral o que imaginava ser apenas uma sugestão pedagógica. Discutindo o falocentrismo como um dos aspectos freqüentes no currículo, quando sugere um caminho prático para a assunção das diferenças, diz o seguinte:
A dominação masculina na sociedade, na escola e no currículo é um fato muito concreto e cotidiano. Agir para contestá-la não é nenhuma tarefa abstrata e distante. Pertence à própria esfera do cotidiano e pode ser enfrentada logo na segunda-feira de manhã em nossas salas de aula. Mas pode ser iniciada mesmo antes – no domingo à noite e na nossa própria casa (Silva, 1995: 192. Grifo meu).
Acreditamos que o debate sobre as identidades tem favorecido a criação de renovadas perspectivas para as lutas, perceptível especialmente na emergência de novos movimentos sociais. Por outro lado, a agenda política chamada pós-moderna mostra-se cada vez mais enrolada em seus enunciados fundacionais. A fixação da identidade como um elemento programático decisivo das lutas empreendidas na contemporaneidade não encontrou ainda um lastro teórico consistente com o reiterado anúncio da falência ou insuficiência do marxismo hoje. Largamente confrontado com o marxismo, o pensamento de que a admissão da diferença pode catalisar os mais amplos movimentos sociais para a construção de uma progressiva democracia não tem demonstrado em que plataforma é possível dispor de suas premissas para uma coerente e radical rejeição dos elementos mais reacionários da modernidade, ou seja, a recusa de uma trajetória histórica que tem centrado nossa existência na experiência de uma vida objetivada pelo capital. A pura e simples identificação do marxismo com as “narrativas mestras” não conseguiu ainda tornar evidente seu esgotamento como pensamento e ação orientados para a criação de uma sociedade que ultrapassasse o capitalismo.
O Lutero de Marx e o problema do poder na modernidade
É verdade que em Marx, se começássemos pesquisando questões mais próximas de sua vida, à semelhança do procedimento que adotamos para Foucault, com a perspectiva de encontrarmos algo relevante para a nossa discussão, provavelmente não alcançaríamos nada além de uma ou outra situação constrangedora. Leandro Konder, em seu livro O futuro da filosofia da práxis, conta-nos um episódio acerca do galanteio do seu futuro genro, Paul Lafargue. Marx, em uma carta, assim advertiu o rapaz:
Se você invocar o seu temperamento crioulo, o meu dever será o de interpor a minha razão entre o seu temperamento e minha filha. Se você, quando está na companhia dela, não souber amá-la de uma maneira que se compatibilize com o meridiano de Londres, precisará se resignar a amá-la de longe. A bom entendedor, meia palavra basta (Marx apud Konder, 1992:29).
O etnocentrismo de Marx certamente não constitui nenhuma novidade. Precisamos buscar uma ajuda mais sutil do que lembrar da sua vida particular ou mesmo das citações que fez a diferentes nacionalidades ou culturas. Observo que são também cada vez mais freqüentes e pertinentes críticas dirigidas ao paradigma das forças produtivas e a noção de progresso, presentes em sua obra e na de seus continuadores (Reis e Gomes, 1996: 183). Dito isto, minha atenção se dirige agora para um texto do chamado jovem Marx. Escrito no final de 1843 e janeiro de 1844, o pequeno manuscrito Em torno da crítica da filosofia do direito de Hegel contém uma das mais marcantes expressões do seu pensamento:
Lutero venceu a servidão pela devoção, mas porque pôs no seu lugar a escravidão mediante a convicção. Abalou a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, mudando os leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade exterior, fazendo da religiosidade a essência mais intima do homem. Libertou o corpo de seus grilhões porque com grilhões prendeu o coração (Marx, 2005: 152).
Marx nutria uma grande decepção em relação à história contemporânea da Alemanha. Enquanto na França e na Inglaterra, a economia política fazia o acerto de contas da burguesia com o passado, deixando o antigo regime na aurora da modernidade, na Alemanha, as coisas aconteciam de uma outra maneira. A Alemanha vivia o épico de uma Restauração sem ter passado pela experiência decisiva de uma Revolução. No entanto, contraditoriamente, a filosofia do direito de Hegel consistia em uma prolongação ideal da história da Alemanha, já que como consciência, isto é, como teoria, expressava a modernidade burguesa. É exatamente atento à oportuna dimensão prática da teoria, ao seu alcance revolucionário, que Marx lembra sua recorrente presença na Alemanha através da Reforma.
Apontando a relação de necessidade que é mantida ente a teoria e a prática, Marx sugere a importância política da subjetividade na modernidade. Para ser mais preciso, Marx nos indica que a produção da subjetividade é um aspecto característico e exclusivo da modernidade. Esta compreensão pode ser alcançada quando analisamos o contraste que estabelece entre os dois modos de sujeição, apontados no texto citado.
O primeiro modo de sujeição, que nasce com a feudalidade, é caracterizado pelos laços estreitos que relacionam as pessoas. São seus elementos, a servidão e a autoridade tradicional. O segundo modo, próprio da modernidade, ordena a sujeição de outro modo. Ela pressupõe um fluxo do poder que percorre o próprio sujeito, cavando uma interioridade. O poder não deixa de ser objetivo. Prevalece sua diretividade. Mas seu impacto não pode ser sumariamente previsto através da distância que se concentra entre um e outro indivíduo para que uma obediência seja alcançada. Sua eficácia localiza-se, sobretudo, nas possibilidades que abrem para o arbítrio da vida. Importa, para a atividade do poder, no lugar da redução do sujeito, propagar um processo de viver virtualmente sem clausuras, isto é, expansivo da individualidade.
Assim, Marx pôde perceber na Reforma a criação de novos agenciamentos para o poder. A servidão é transfigurada em devoção quando deixa de ser uma liga entre um e outro indivíduo e transforma-se em algo que faz parte do próprio sentido que atribuímos à nossa vida. Ou melhor, quando reconhecemos que a nossa vida pode ter um sentido ou caráter. A vida como uma condição que precisa ser alcançada. Com pertinência, Marx enxergou ainda mais. Viu também que o nascimento da modernidade divisa o homem. “Para o homem, a raiz é o próprio homem”, diz Marx (ibidem: 151). A modernidade desnaturou o homem, isto é, não há mais uma correspondente natureza a ser admitida, seguida ou aceita. Ser o seu próprio mundo significa possuir as razões da sua própria existência.
Não há mais uma natureza fora do homem. Nem homem sem mundo humano. Homem e natureza formam-se. Homem e natureza definem-se no processo de apropriação da vida. É da natureza do homem criar a sua própria natureza, modificar-se como criatura. Com efeito, na sociedade burguesa somos o que somos não em razão das condições do nosso nascimento, mas em função do que conseguimos atribuir à nossa existência.
Com o caminho sugerido pela leitura do manuscrito Em torno da crítica da filosofia do direito de Hegel, encontramos a oportunidade de um diálogo com as questões extraídas de Foucault para o problema da diferença na modernidade tardia. Inclusive não se pode ignorar uma virtual influência de Marx na elaboração do conceito governamentalidade. Afinal, o texto que destacamos constitui uma das mais lembradas passagens da obra de Marx e a própria Reforma é, com alguma recorrência, uma referência de Foucault para assinalar a identidade política da modernidade. De todo modo, trata-se de um encontro que nos permite discutir com outra amplitude o problema do sujeito – e das diferenças – no capitalismo contemporâneo.
As identidades que não estão no mapa
Iniciei este texto com uma epígrafe, com um fragmento. O texto de Foucault continua assim (1995: 239): “Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste ‘duplo constrangimento’ político que é a simultânea individualização e totalização própria das estruturas do poder moderno”. Vivemos, portanto, o “duplo” desafio de alcançarmos uma vida que goze da faculdade de fixarmos a nossa própria conduta e dissiparmos os laços que conjugam nossa existência às malhas da governamentalidade.
Nestes dias que correm, a vida nas cidades parece não ser possível sem a excepcional marca das identidades. Como na cena imaginada por Angeli, a cidade contém e repulsa. Em uma rua é possível lançar um olhar revelador sobre a profusão de objetos e interesses que a cidade abriga. Um olhar que supõe, em cada biografia, um motivo para estar ali, cruzando as ruas ou estanque nas esquinas. Com seus fragmentos, a cidade é inconveniente para os mal ajeitados à sua ordem. O reconhecimento da diferença acomoda. Acomoda porque a diferença persuade. As identidades são, deste modo, um passaporte às avessas. Prestam-se menos para viajar do que para ficar. A diferença é um lugar franqueado à nossa permanência na cidade.
A diferença, localizada, silencia o que a exclusão exalta. Governamentaliza a alteridade, extrai sua rugosidade e ameniza o sentimento de inconveniência, incompetência ou impropriedade para a vida na cidade. Sem vitalidade, a alteridade desfaz-se em ressentimento. Anunciar o que se é: um prolongamento para a experiência de uma vida dividida pela indiferença dos modos de produção e concentração da riqueza característicos da globalização atual. Neste caso, exibir uma identidade é o reconhecimento de uma subtração, de uma falta ou de uma carência. Identidades personalizando a miséria que a cidade produz.
Assim, as políticas identitárias respondem à exigência de uma cidade tolerante com as incapacidades e/ou necessidades adquiridas pela desigualdade. Mas o reconhecimento da diferença tem as suas ciladas (Pierucci, 2000). A partir de Marx e Foucault, discutimos como a admissão de um pertencimento corre o risco de estar vinculado a uma prática voltada para a condução das nossas vidas, para o exercício de um poder. A sutileza de um poder constituinte no corpo, artífice nos desejos e artesão na alma (ou no coração, na imagem sugerida por Marx).
Mas é também a partir de questões extraídas da obra destes autores que imaginamos outro enredo para as identidades. As identidades podem ser desassossego e alvoroço. Anatomia de um corpo sem natureza ou a natureza de um corpo sem criador, as identidades podem ainda imiscuir-se, confundir e misturar-se, expostas ao confronto dos costumes, das normas, dos princípios e dos valores. Neste caso, reclamam da cidade outra cartografia, apropriada para a imponderável recusa de ser lembrado ou encontrado.
*Aristóteles de Paula Berino é professor da UFRuralRJ, doutor em Educação, e pesquisador do Grupo Estudos Culturais em Educação. Publicou, em 2005, o livro Elementos para uma teoria da subjetividade em Marx, Ed. Papel Virtual. No prelo, pela Ed. Cortez, encontra-se o livro A economia política da diferença.
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