INTRODUÇÃO
Muito já foi escrito sobre nosso grande cineasta Humberto Mauro, que nasceu na cidade de Volta Grande, em Minas Gerais no dia 30 de abril de 1897 e morreu em 5 de novembro de 1983. Mas pouco se sabe sobre sua vida como documentarista científico. Ele sempre teve interesse por diversas áreas: música, literatura, artes plásticas, esportes. A fotografia, estimulada por Pedro Comello, um ítalo/egípcio que foi parar em Cataguases, foi o primeiro passo para sua introdução no cinema. Com ele e alguns comerciantes locais que serviram como produtores, Humberto dirigiu seus primeiros filmes. Sua primeira câmera foi uma pathé-baby de 9,5 mm e com ela filmou Valadião – o Cratera. Formação artística ele teve: foi autor e ator de peças teatrais. A formação acadêmica foi deixada de lado no primeiro ano da faculdade de engenharia, em Belo Horizonte, por falta de emprego que lhe permitisse continuar pagando suas despesas na capital do estado. O jeito foi voltar para Cataguases onde cursou a “academia do quarto da sala”, em outras palavras, o curso de eletricidade por correspondência que fez, lendo suas apostilas em espanhol, no quarto junto à sala, que ele dividia com o avô paterno. Esse curso lhe garantiu sobrevivência em alguns empregos no Rio de Janeiro e proporcionou a abertura de uma oficina em Cataguases com um de seus irmãos. Com o surgimento do rádio, na cidade, Humberto trabalhou algum tempo instalando aparelhos nas fazendas. Nessa ocasião tornou-se radioamador, atividade que exerceu até morrer.
Conheceu Adhemar Gonzaga, da revista Cinearte e sob sua influência dirigiu filmes e documentários, transferindo-se com sua esposa Bebê e seus seis filhos para o Rio de Janeiro. Seu casamento com dona Bebê durou uma vida inteira.
Com as dificuldades para continuar sua carreira de cineasta, após o afastamento de Adhemar Gonzaga, Humberto Mauro passou por momentos difíceis.
Certo dia, um vendedor de eletrodomésticos foi ao Museu Nacional tentar vender alguns aparelhos a Roquette-Pinto para o Museu. Na realidade o vendedor era o cineasta Humberto Mauro, que naquele momento tinha 39 anos e já era conhecido pelos filmes que realizara em Cataguases (MG) […] Roquette não comprou eletrodoméstico algum; fez melhor: convidou Mauro para ser o diretor técnico dos filmes do INCE e fazer cinema educativo no Brasil. (GALVÃO, 2004, p. 84-85)
De acordo com documento encontrado no arquivo de Gustavo Capanema, na Fundação Getúlio Vargas, Humberto Mauro foi contratado no dia 28 de março de 1936 “para servir como técnico cinematográfico nos trabalhos de instalação do Instituto Nacional Educativo, com remuneração mensal de um conto de reis (1,000$000)”.
Na realidade, Humberto Mauro já era conhecido de Roquette Pinto, pois filmara Ameba, em 1935, para a filmoteca do Museu Nacional, onde aquele era diretor.
Humberto Mauro permaneceu de 1936 a 1964 no Instituto Nacional de Cinema Educativo e lá dirigiu 358 documentários. Dentre eles, e com características rurais e folclóricas que lhe trouxeram fama, é possível contar 31 documentários. Ainda como diretor, Humberto Mauro tem em sua filmografia 97 documentários na área da saúde, sendo, portanto, sua maior produção. Documentários sobre outras ciências formam um total de 41.
O INCE
A história do INCE começa em 1932 quando, pelo decreto nº. 21.240 de 04/04/1932 foi instituído o Instituto Brasileiro de Cinematographia Educativa. O presidente Getúlio Vargas assinou um despacho no processo nº. 5.882 de 1º de março de 1936, criando a Comissão Instaladora do Instituto Nacional de Cinema Educativo. Pelo decreto nº. 378 de 23 de janeiro de 1937, que deu nova organização ao então Ministério da Educação e Saúde, o INCE foi definitivamente incluído no quadro dos serviços públicos. Sua legitimação foi assim estabelecida: “Art. 40. Fica criado o I. N. C. E., destinado a promover e orientar a utilização da cinematografia, especialmente como processo auxiliar do ensino e ainda como meio de educação em geral.” (RIBEIRO, 1945, p. 176)
Ao INCE competia: a) editar filmes educativos populares e escolares, bem como diafilmes divulgados dentro e fora do país; b) prestar assistência científica e técnica à iniciativa particular de produção industrial e comercial com fins educativos. Ao Instituto também cabia manter uma filmoteca, divulgar seus filmes por meio de empréstimos ou troca com instituições culturais e de ensino, particulares ou públicas, nacionais ou estrangeiras, além de publicar uma revista sobre educação e o uso de “modernos processos técnicos” (cinema, fonógrafo, rádio etc).
A revista do INCE não chegou a ser publicada, apesar de ter contado com o auxílio do poeta Vinicius de Moraes na sua concepção e na avaliação do orçamento gráfico para sua feitura.
A tarefa de editar filmes estava em transformar filmes de 16 mm, ou sub-standard – utilizados em filmes escolares, pesquisas, intercâmbios e propagandas – em filmes standard ou de 35 mm, que era a bitola dos filmes industriais e extra-escolares. A edição também se dava ao contrário, ou seja, transformar um filme de 35 mm em 16 mm.
Segundo Humberto Mauro, em entrevista dada a Adalberto Mário Ribeiro e publicada na separata daRevista do Serviço Público, ano VI, v. 1, n. 3 de março de 1944, do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), e republicada pela mesma revista, no capítulo sobre o Ministério da Educação e Saúde, do número especial, intitulado Instituições Brasileiras de Cultura, de 1945:
No Brasil, infelizmente, os cinemas até agora só possuem projetores para filmes de bitolas de 35 mm, o que não acontece na maioria dos países europeus e nos Estados Unidos, onde os cinemas possuem sempre o projetor de 16 mm ao lado do de 35 mm. Entretanto, o I. N. C. E. não poderia desprezar esse maquinismo organizado, que o Brasil já possui, e também sua cadeia de cinemas, relativamente ampla, aliás, o único veículo de apresentação de seus filmes ao povo. E por isso o Instituto se encontra aparelhado para quaisquer serviços relativos a filmes de 35 e 16 mm, desde as filmagens, revelações, sonorizações, montagens, cópias, até os serviços especializados de reduções de 35 mm para 16, ampliações de 16 para 35 mm, fotografias intermitentes, microcinematografias, desenhos animados, etc. (RIBEIRO, 1944, p.13)
O INCE estava, portanto, aparelhado para produzir filmes didáticos, documentários sobre a atividade nacional em diversos setores como fatos históricos, obras literárias, trabalhos de engenharia e medicina, ensino técnico profissional, biografia de artistas e suas produções.
Edgard Roquette Pinto, antropólogo, médico e radialista, foi o primeiro diretor do INCE. A identificação entre Humberto Mauro e ele tem raízes na infância, vivida por ambos, em fazendas mineiras; no interesse pelas novas tecnologias (rádio e cinema) e na cultura indígena. Roquette Pinto participou das expedições de Cândido Rondon e a partir delas coletou e escreveu importante material antropológico. Humberto Mauro produziu um dicionário da língua tupi e assessorou diversos filmes brasileiros que utilizaram esse idioma.
As relações culturais do INCE com outros países permitiram o empréstimo de documentários que ilustraram conferências em países europeus como a Dinamarca, França, Portugal e Suíça, países sul-americanos como o Uruguai, Colômbia, México, Paraguai, Chile e Argentina, no Japão, sem contar com os Estados Unidos onde foram exibidos documentários do INCE na Feira Mundial de Nova Iorque, em 1939. A produção de documentários em saúde sobre pesquisas científicas era comum e destinava-se à exibição em congressos internacionais.
O intercâmbio de filmes entre os estados brasileiros também foi promovido pelo INCE, que tinha sua sede na cidade do Rio de Janeiro, Distrito Federal naquela ocasião.
Entre os usuários da filmoteca do INCE estavam nomes como o médico Clementino Fraga, o embaixador Vasco Leitão da Cunha, o etnologista francês Bertrand Fleurnoy, o professor Fróis da Fonseca, diretor da Faculdade Nacional de Medicina, o professor Abelardo Brito, diretor da Escola Nacional de Odontologia, professor Inácio Azevedo do Amaral, diretor da Escola Nacional de Engenharia, professor Baeta Viana da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, o magistrado e membro da Academia Brasileira de Letras Ataulfo de Paiva, o educador e poeta Abgar Renault e Walt Disney.
O educador Paschoal Lemme conta, em suas memórias que, em 1942, Roquette Pinto pensou em se aposentar e o convidou para assumir a direção do INCE. Paschoal Lemme recusou porque estava com importante cargo no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Ele sugeriu, então, o nome do Dr. Pedro Gouvêa Filho, médico e inspetor de ensino do estado do Rio de Janeiro para o cargo oferecido, no qual tomou posse em 1947. De qualquer forma, Paschoal Lemme, nesse mesmo ano, foi para o INCE como chefe da Seção de Orientação Educacional e passou, então, a conviver com Humberto Mauro.
Nesses treze anos do convívio diuturno com Humberto Mauro, fui descobrindo as múltiplas facetas de sua riquíssima personalidade: artista de profunda sensibilidade; técnico dos mais completos na arte cinematográfica; agudíssima inteligência com que supria, de certa forma, suas falhas culturais, que ele próprio reconhecia; um homem de rara integridade moral, católico praticante, profundamente ligado à família, devotando um verdadeiro culto à companheira de toda a vida, de todas as glórias e vicissitudes – dona Baby – e aos filhos, dois dos quais – o Luís e o Zequinha – orientados por ele tornaram-se bons profissionais na técnica da cinematografia. (LEMME, 1988, p. 210)
Esse depoimento mostra o quanto a vida de Humberto Mauro ficou ligada ao INCE.
CONTEXTO HISTÓRICO
Para falar dos documentários em saúde produzidos pelo INCE é necessário lembrar que o Instituto fazia parte do organograma do então Ministério da Educação e Saúde Pública.
Com a tomada do poder pelos integrantes da Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, foi criado o Ministério da Educação e da Saúde Pública. O Decreto nº. 19.402 de 14/11/1930 criou primeiramente o Ministério de Negócios da Educação e Saúde Pública. O Decreto nº. 19.444 de 01/12/1930 dispunha sobre os serviços que ficariam a cargo do então Ministério da Educação e Saúde Pública.
Uma primeira reforma nesse Ministério foi realizada pelo ministro Gustavo Capanema no período de 1934 a 1937, resultando, entre outras coisas, na mudança do nome para Ministério da Educação e Saúde. Uma segunda reforma aconteceu em 1941. Somente em 1953, uma outra reforma transformou o ministério em Ministério da Saúde, não mais relacionado à Educação que, por sua vez, passou a se relacionar à Cultura.
O golpe de 1937, também liderado por Vargas, deu início ao que ficou conhecido como Estado Novo. Houve um acirramento das idéias de nacionalismo, modernização conservadora, integridade econômica regidas por um processo de centralização.
Ao mesmo tempo em que recrudescia o projeto de state and nation building do Estado Novo, as políticas de Welfare State caminhavam paralelas à agenda internacional de saúde. Circulava entre os países da América Latina a proposta de interação entre eles para priorização das questões sanitárias para combate das chamadas doenças tropicais. Diversos médicos sanitaristas latino-americanos especializaram-se noJohns Hopkins School of Hygiene and Public Health, desde a década de 1910.
O desenvolvimento das políticas sanitárias era visto como instrumento de fortalecimento do poder público e, particularmente no Brasil, as políticas de saúde foram utilizadas como meio de expansão de autoridade pública e de construção do Estado nacional, sendo incorporadas “[ao] projeto político-ideológico do governo, de expansão da autoridade federal no interior do país, justificado pela crítica ao federalismo realizada pelo pensamento autoritário.”(CAMPOS, 2006, p. 25)
De 1942 a 1960, funcionou de maneira autônoma, dentro do Ministério da Educação e Saúde, uma agência internacional – o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) – que era financiada com recursos brasileiros e norte-americanos, criada pela Fundação Rockefeller antes de se retirar do Brasil. Esse serviço foi concebido no contexto da Segunda Guerra Mundial como uma agência temporária, atendendo à demanda do governo norte-americano.
Com a guerra aumentaram as possibilidades de transmissão de doenças, particularmente pelas tropas que atuavam em regiões tropicais, trazendo preocupação aos Estados Unidos.
Logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1942, o Terceiro Encontro de Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas. Os exércitos aliados necessitavam de matérias primas brasileiras tais como a borracha e o ferro, utilizados na indústria bélica. Também foi identificada a necessidade do estabelecimento de bases norte-americanas no Brasil, que traziam consigo as preocupações sobre as doenças tropicais que, eventualmente, pudessem atingir os soldados americanos. A malária, em particular, preocupava duplamente, pois ela vitimava os seringueiros, produtores da borracha, e os estrangeiros que por aqui viessem.
O presidente Vargas aproveitou essa demanda por matérias primas para dar força ao seu programa de desenvolvimento econômico proporcionado pela “cooperação entre bons vizinhos”.
O governo dos Estados Unidos, por sua vez, estava preocupado com a expansão econômica da Alemanha na América Latina, em especial no Brasil, que, em 1939 tinha como seu grande importador o mercado alemão. É verdade, no entanto, que em 1940 o trato comercial entre Brasil e Alemanha foi interrompido. Havia uma preocupação com a propaganda nazista e fascista e, desde 1937, falava-se na “quinta-coluna”, que seria formada por imigrantes alemães, italianos, japoneses que viviam em países latino-americanos. Para neutralizar essa possível propaganda, Nelson Rockefeller sugeriu ao seu governo a criação do Escritório para a Coordenação das Relações Comerciais e Culturais entre as Repúblicas Americanas, que atuava utilizando os meios de comunicação como o rádio, a imprensa escrita e o cinema. O governo americano se fez presente por meio dos programas de saúde e saneamento proporcionados pelo Institute of Inter-American Affairs (IIAA) a partir da década de 30, neutralizando, desse modo, a ameaça alemã.
A criação do SESP proporcionou a aplicabilidade de políticas sanitárias voltadas para as populações do interior do país, visando combater as grandes endemias e endossando a célebre frase “O Brasil é um imenso hospital”, proferida por Miguel Couto, em 1916, ao se referir às condições da saúde no país. Foi criada uma rede de unidades sanitárias, incluindo escolas de enfermagem, hospitais, centros de saúde, ao mesmo tempo em que eram implementados sistemas de abastecimento de água e de esgotos. Foram estabelecidas normas técnicas e procedimentos médicos, que resultaram numa burocracia própria para o setor. Convênios foram estabelecidos entre governos municipais e estaduais, visando a melhora da saúde pública, por intermédio da formação de mão-de-obra qualificada e da educação sanitária.
Logo o SESP percebeu as dificuldades que encontraria para expandir a educação sanitária diante da barreira criada pelo analfabetismo. Foram utilizados, então, cartazes, cartilhas, programas de rádio e filmes, sendo que os dois últimos meios de comunicação por vezes encontravam uma outra barreira: a falta de energia elétrica.
O cinema educativo, com os filmes produzidos pelo estúdio Walt Disney que o IIAA imagina eficientes em todas as partes do mundo, mostrou-se mais adequado ao público urbano que ao rural, não apenas pelas limitações técnicas já apontadas, mas também porque as populações adultas do interior tinham dificuldades em seguir a intensa movimentação dos filmes. [Foram, então, empregados] dispositivos sonoros produzidos por técnicos brasileiros, utilizando-se de música e imagens regionais. Esta técnica, uma resposta local à inépcia, no mundo rural brasileiro, dos métodos e tecnologias importadas, permitia que histórias com conteúdo educativo fossem exibidas nas praças públicas de vilas e cidades, integrando-se às festividades comunitárias tradicionais. (PINHEIRO apud CAMPOS, 2006, p. 233-234)
Os estúdios Walt Disney foram os responsáveis pela produção da série “Saúde para as Américas” que era composta por dez filmes educativos.
A Fundação Rockefeller teve importante papel no movimento sanitarista entre 1910 e 1920 e contribuiu para a difusão dos objetivos da Liga Pró-Saneamento no Brasil, criada em 11 de fevereiro de 1918. A Liga Pró-Saneamento considerava a doença como um problema político e como tal propôs a criação de um Ministério da Higiene e Saúde Pública e um Departamento Nacional de Saúde Pública.
Entre 1942 e 1943, a Fundação Rockefeller abandonou as atividades de intervenção na área da saúde pública e passou a financiar a pesquisa científica e a formação médica. Reforçando essa política, o IIAA, a partir de 1944, enfatizou seu programa de qualificação profissional de médicos e engenheiros sanitários no Rio de Janeiro e São Paulo.
As políticas sociais estimuladas pelo ideário do Welfare State, desenvolvido em diversos países, estimularam a criação do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, redigido por Fernando de Azevedo, em 1932.
A necessidade da criação de uma universidade na capital do país levou um grupo de educadores, liderado por Anísio Teixeira, diretor da Educação do Rio de Janeiro desde 15/10/1931, a estabelecer, em 1935, a Universidade do Distrito Federal (UDF), tendo Afrânio Peixoto como reitor, que durou apenas um ano, fechada que foi por questões políticas do governo Vargas. A preocupação com uma universidade moderna, livre de uma cultura produtora de hierarquia, impulsionada pelas oligarquias, está aliada à idéia do uso de novas tecnologias de informação e comunicação para, como hoje, acelerar o processo educacional em todos os níveis. Essas tecnologias, na época, eram: o rádio e o cinema. Havia também a idéia de criação de uma Escola de Ciências, onde ensino e pesquisa seriam desenvolvidos simultaneamente, para as diversas modalidades científicas.
A proposta de uso do cinema na educação vinha desde os tempos em que Pedro Ernesto era prefeito do Rio de Janeiro. Ele, que foi nomeado em 1931 e eleito para o cargo, em 1934, transformou a antiga Diretoria Geral de Instrução em Departamento de Educação e, mais tarde, em Secretaria de Educação. Nessa época já existia a Divisão de Bibliotecas e Cinema Educativo, cujo responsável era Armando de Campos.
Nesse mesmo período, Roquette Pinto, chefe da Seção de Museus e Radio Difusão, fundava a P.R.D.-5, a Rádio Escola prevista na reforma de ensino de Fernando de Azevedo. Essa rádio foi incorporada, segundo Lima (1978, p. 117), ao Instituto de Pesquisas Educacionais.
TEMÁTICA
Inspirado fortemente na teoria da Escola Nova, de John Dewey e na intensificação de uma política higienista, nascida nos anos 20, no Brasil, as ações do Ministério da Educação e Saúde Pública influenciaram a agenda de produção de documentários do INCE. É verdade que Roquette Pinto foi o responsável por grande parte da escolha dos temas do documentário, enquanto diretor do INCE. Mas não é possível esquecer a ligação desse Instituto ao Ministério, sob a mão forte de Gustavo Capanema, político de destaque, que soube cooptar muitos intelectuais de seu tempo para serviços ao seu Ministério.
Observando com acuidade a produção de documentários em saúde do INCE, em sua maioria dirigida por Humberto Mauro, é possível observar uma concorrência velada entre ele e seus colegas norte-americanos. Ao mesmo tempo, dentro de uma política nacionalista vigente no Brasil, o INCE, sem os exageros da propaganda do também recém criado Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), exalta as ações do Ministério ao qual estava vinculado, produzindo filmes que tinham como títulos os recém criados organismos, ou seja os documentários Serviço de Febre Amarela (1945) e Serviço Nacional de Tuberculose (1945).
No caso do documentário Prevenção da tuberculose pela vacina BCG, é importante observar que a data de sua produção, 1939, coincide com o ano em que a Fundação Ataulfo de Paiva, produtora até hoje dessa vacina, é declarada de utilidade pública pelo decreto de 29 de agosto. Essa fundação, assim nomeada em 1936, foi anteriormente criada em 1900, pelo mesmo Ataulfo de Paiva que lhe deu o nome, como Liga Brasileira contra a Tuberculose. Em 1924, passou a ser Fundação Liga Brasileira contra a Tuberculose.
As ações de saneamento, sob a responsabilidade desse mesmo Ministério, foram também tema de documentários como, por exemplo, Abastecimento d´água no Rio de Janeiro (captação, fabricação de tubos, história da água e represas) (1939), os documentários do mesmo ano sobre Serviço de Esgotos do Rio de Janeiro (fundição, tratamento de esgotos), de 1939 e o documentário Esgotos do Rio de Janeiro, de 1941.
Outras ações sanitaristas do Ministério foram temas dos documentários do INCE como é o caso de A luta contra o ofidismo (1937), Combate à lepra no Brasil (1945), Assistência aos filhos dos lázaros (1950), entre outros.
Com o apoio da Campanha Nacional de Educação Rural, mais precisamente por intermédio do professor Chicralla Haidar e da professora Maria Cathalé Chaves foram produzidos os documentários que ficaram conhecidos como os de Educação rural. Eles formaram um total de cinco documentários produzidos entre 1954 e 1955. Seus cenários bucólicos se repetem em alguns documentários da série Brasilianas, e foram, em sua maioria, produzidos nos mesmos anos.
Documentários institucionais eram produzidos e entre eles podem ser citados: o da Colônia de psicopatas de Jacarepaguá (1936), o Serviço de Saúde Pública do Distrito Federal (1938), o Hospital Colônia de Curupaity – novas instalações (1939), Instituto Oswaldo Cruz (1939), Instituto Pestalozzi(1940). São imagens de prédios institucionais que fazem uma clara alusão ao trabalho modernizador do Ministério.
É possível criar uma tipologia para os documentários em saúde dirigidos por Humberto Mauro com subdivisões: 1) documentários oficiais que, por sua vez, seriam subdivididos em documentários sobre saneamento urbano e rural, sobre ações sanitaristas e sobre institutos ligados ao Ministério. 2) Documentários relacionados à indústria, com o registro da fabricação de produtos ligados à saúde. 3) Documentários científicos subdivididos em resultados de pesquisas e registros cirúrgicos, que seriam utilizados nas salas de aula universitárias. Os dois primeiros itens poderiam ter um público geral, daí serem identificados como populares. Os demais documentários só podem ser compreendidos por especialistas, restando aos leigos pouca informação e a curiosidade de algumas imagens.
Os documentários em saúde tiveram como consultores grandes nomes da área. Entre eles podem ser citados: o Dr. Maurício Gudin (seis documentários, produzidos entre 1937 a 1941), livre docente de clínica cirúrgica da Faculdade Nacional de Medicina, catedrático da Clínica Cirúrgica da Faculdade Fluminense de Medicina. Os documentários sobre cirurgias sob sua orientação foram todos realizados no hospital da Beneficência Portuguesa. Vital Brasil Mineiro de Campanha foi o consultor do documentário sobre ofidismo, de 1937. Aloysio de Castro, um dos criadores, juntamente com o Dr. Antônio Austregésilo Rodrigues Lima, da Escola Neurológica Brasileira nos moldes da Escola Pierre-Marie de Paris, foi o consultor do documentário Neurologia, de 1941. Na ocasião, Dr. Castro dirigia os cursos e os anais da Policlínica do Rio de Janeiro. O Dr. Orlando Baiocchi, citopatologista, membro da Associação Brasileira de Genitoscopia, foi o responsável pela orientação médica de oito documentários produzidos no período de 1947 a 1953. O Dr. José Silveira Sampaio, pediatra e também conhecido autor, diretor, ator teatral e radialista respondeu pela consultoria médica do documentário Puericultura, de 1952. Manoel Dias de Abreu, conhecido pela criação da tecnologia conhecida como abreugrafia, foi o consultor do documentário intitulado Fluografia coletiva, de 1939, ano em que sua invenção ganhou seu nome no I Congresso Brasileiro de Tuberculose. O farmacêutico Gerardo Majella Bijos, ora identificado como brigadeiro, ora capitão, mas considerado civil no site da Academia Brasileira de Medicina Militar, foi o orientador dos documentários: Indústria farmacêutica no Brasil (1948) e Endemias rurais – seus produtos profiláticos(1960).
Com grande destaque na consultoria das pesquisas de ponta da área médica, estiveram pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Entre eles citamos Carlos Chagas Filho, que também era professor da Faculdade Nacional de Medicina. Ele respondeu, juntamente com mais quatro pesquisadores, sobre documentários que trataram da microscopia eletrônica, histofisiologia, eletrofisiologia e fisiologia propriamente dita. Esses documentários foram produzidos entre 1937 e 1960. Miguel Osório de Almeida, outro pesquisador do IOC, fisiologista e professor da Escola de Agricultura e Medicina Veterinária, respondeu pela consultoria do documentário Fisiologia geral, de 1938. Miguel Osório foi um dos grandes nomes da divulgação científica no Brasil.
[…] a divulgação científica tinha um papel importante a desempenhar. Miguel Ozorio, assim como muitos de seu entorno científico e intelectual, adquiriu consciência disso em meio a processo que tinha, na verdade, características internacionais. No pós-Primeira Guerra Mundial, a esperança depositada na ciência, o interesse por ela e, conseqüentemente, o aumento das atividades voltadas para sua difusão ganharam uma grande amplitude especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Exemplo claro foi o enorme impacto gerado pelos trabalhos de Einstein e a construção subseqüente, em torno dele, do mito de um cientista genial e quase sobre-humano. (MASSARANI, MOREIRA, 2004)
Evandro Chagas, também do IOC, orientou a produção de três documentários em 1939. Oscar d´Utra e Silva, em 1943, foi o consultor do documentário Convulsoterapia elétrica. Otávio de Magalhães, médico e professor da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, trabalhava em uma antiga sucursal do IOC nessa cidade e que hoje leva o nome de Fundação Ezequiel Dias. O documentário sobre escorpionismo por ele orientado foi produzido em 1954. Integrantes do laboratório de hematologia do IOC responderam pelo documentário Hemóstase cutânea, de 1960.
TÉCNICA CINEMATOGRÁFICA
Havia entre os documentários em saúde dirigidos por Humberto Mauro alguns mudos e outros sonoros. Entre os mudos estavam o Hospital de Curupaity , o Instituto Oswaldo Cruz e o Miocárdio em cultura. A idéia de um filme mudo, sem letreiro explicativo vinha de Roquette Pinto. Os filmes sonoros tinham narração em off, feitas, em sua maioria, por Roquette Pinto.
Nos filmes institucionais, ou seja, nos documentários sobre institutos ligados ao Ministério, o uso do plano geral era comum, Alguns closes eram dados para identificação de detalhes dos prédios, que retratavam, algumas vezes, ações de cautela ou cuidado por parte da administração governamental. Alguns monumentos de cientistas, como é o caso do monumento homenageando Pasteur no documentário Preparo da vacina contra a raiva e dos monumentos a Oswaldo Cruz e Carlos Chagas no documentário Instituto Oswaldo Cruz foram registrados pela câmera por meio de contra-plongée, ou seja, de baixo para cima, o que pode ser interpretado como uma valorização dos cientistas, vistos pelos leigos, espectadores do filme.
No caso dos documentários sobre detalhes de pesquisas e procedimentos cirúrgicos foram usados planos fechados e a microcinematografia, como é o caso do Miocárdio em Cultura e lentes especiais acopladas à câmera, mostrada durante a gravação, documentando assim o processo de filmagem dos movimentos cardíacos de uma galinha. O resultado dos closes é um aumento de atenção para o que está sendo mostrado que, talvez, não pudesse ser observado presencialmente durante uma cirurgia ou por meio do exame microscópico, feito individualmente pelo cientista.
Na filmagem no interior do Instituto Oswaldo Cruz é possível notar o uso, por Humberto Mauro, da câmera na mão, muito utilizada pelos diretores do Cinema Novo, contrariando sua teoria sobre a fotografia dos documentários, enunciada numa palestra lida em 1º de novembro de 1943.
Insisto em chamar a atenção para o documentário porque exige da fotografia – mais que qualquer outra modalidade de cinema – foco, clareza e, sobretudo, firmeza em todos os seus apanhados. […] Sem um bom fotômetro e sem um bom tripé, não se pode conseguir bons resultados de filmagem. (HUMBERTO … , 1978, p. 133)
Os documentários da série Educação rural e da série Brasilianas possuem o mesmo formato, a mesma estética. O documentário Higiene rural – fossa seca, apesar do tema, tem extraordinária beleza, com suas imagens do dia-a-dia da vida no campo, das galinhas correndo no terreiro, dos produtos da horta mostrados, da lavagem de roupa no rio, da comida servida na refeição. O bom gosto e a sutileza empregada nesse documentário fazem dele uma poesia assim como são considerados os documentários da série Brasilianas.
Em alguns documentários foi utilizada trilha sonora por ocasião da abertura do documentário e/ou no seu final.
Alguns pesquisadores assinalam com veemência a omissão dos doentes nos documentários, em particular no documentário Colônia de Curupaity e no Combate à lepra no Brasil. É importante ressaltar que, ainda hoje, o registro de imagem de doentes requer uma autorização prévia dos mesmos ou de seus familiares. Em particular, no caso dos documentários sobre a lepra, havia, por parte do Estado, uma ação truculenta que utilizava carros pretos do Departamento de Profilaxia da Lepra para recolher, à força, pessoas doentes ou denunciadas como tal e levá-las para os mais de 40 asilos-colônias existentes em todo o Brasil. Ter um parente recolhido pelo carro da Profilaxia significava um estigma para a família que, para justificar a ausência dele, geralmente recorria a uma viagem, como justificativa. Portanto, naquela época, evitar a exposição de um paciente leproso significava poupar ele próprio e sua família. Humberto Mauro, homem sensível, deve ter levado isso em consideração.
Essa mesma sensibilidade para questões do trato humano, Humberto Mauro tinha para registrar o que quer que fosse: uma cachoeira, uma larva de mosquito, um prédio, um engenho. A beleza de sua fotografia, sempre presente, deu aos documentários por ele dirigidos um toque de arte e como tal devem ser vistos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A grande novidade aqui exposta diz respeito a um lado da vida de cineasta de Humberto Mauro pouco conhecido. Ele foi um grande documentarista científico, especializado particularmente na área da saúde. Seus documentários serviram para ilustrar palestras em feiras e congressos internacionais, aulas nas faculdades de medicina, veterinária e odontologia. Apesar da identificação de uma agenda oficial, ditada pelas ações do Ministério, é possível reconhecer a marca do grande cineasta, que não se deixou transformar em um cineasta de “cavação”, como eram chamados os cineastas estrangeiros que produziam documentários por encomenda. Seu talento e sua técnica fizeram dos documentários por ele dirigidos verdadeiras obras de arte. Em muito deles, mesmo sem entender o tema ali exposto, é possível apreciar sua fotografia, sua maneira de expor a realidade.
*Alice Ferry de Moraes é jornalista, bibliotecária, mestre e doutora em Ciência da Informação, pela Escola de Comunicação da UFRJ, em convênio com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia/MCT. É servidora da Fundação Oswaldo Cruz/ Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde e integra o Programa Avançado de Cultura Contemporânea, do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, no Pós-Doutrado em Estudos Culturais.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, André Luiz Vieira de. Políticas internacionais de saúde na Era Vargas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.
FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no Governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
GALVÃO, Elisandra. A ciência vai ao cinema: uma análise de filmes educativos e de divulgação científica do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE). 2004. 279 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Biomédicas) – Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
GOMES, Paulo Emílio Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, USP, 1974.
HUMBERTO Mauro: sua vida/ sua arte/ sua trajetória no cinema. (Depoimentos sobre a riqueza da filmografia maureana e sua importância na cultura brasileira.) Rio de Janeiro: Artenova, Embrafilme, 1978.
LEMME, Paschoal. Memórias. São Paulo: Cortez: [Brasília, DF]: INEP, 1988. v. 3.
RIBEIRO, Adalberto Mário. “O Instituto Nacional de Cinema Educativo”. Revista do Serviço Público, ano 7, v. 1, n.3, mar. 1944. Separata.
SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: UNESP, 2004.