God in the Bible says, “Let there be light”. Only we humans, according to the bible, are in God’s image. So only God and We can say “Let there be light”
But I ask you, what is a rooster at four in the morning saying?
Ursula K. Le Guin, Cheek by Jowl: Animals in Children’s Literature
Hoje não vou tentar te comer. Quero falar com vocês. Houve um tempo em que as mulheres só mugiam.[1] Há uma cidade das vacas e dos bois sob a cidade dos humanos. Há uma carne em sua carne que é mais densa do que a nossa. É possível repetir algumas vezes a diferença entre um boi e uma vaca quando se escreve um livro. Quase como uma piada cuja graça é um trocadilho bobo sobre a presença ou não do chifre. É possível repetir quantas diferenças existem num boi e numa mulher? Quando se escreve e se tem dúvida destas questões basta que te respondam: é um jogo entre o real e o ficcional. Quanta carne de boi se pode comer até que se passe mal? É essa a diferença. O quanto você pode contar da diferença entre uma vaca e uma mulher? O mugido e só. A diferença é o corpo.
Berger escreve no livro About Looking (1980) que os animais são a primeira metáfora do mundo. Ele explica que a primeira relação entre o humano e o animal foi e é metafórica; uma relação construída através do que os humanos e os animais têm em comum: que é, paradoxalmente, sua diferença. Os animais são, assim, o fundo contra o qual a humanidade pensa a si mesma. E é justamente pela metáfora que Rousseau, por seu turno, em seu Ensaio sobre a origem das línguas, afirmava que a linguagem tem a sua primeira aparição. Berger, então, aponta para o fato de que aprendemos a falar com os animais. Todo este ensaio vai ser moldado de atravessamentos, mas a questão que permanecerá é a que inicia o livro Mugido, quando, junto ao poema “mmmm”, Marília Floôr Kosby (2019, s/p) nos diz:
parem pra ver uma vaca mugir já nem digo
ouvir
ouvir é difícil, o mugido de uma vaca parem pra
ver e procurem a próxima nota em que palavra daria
aquela melodia aquele esforço
todo
de guela, olho, bicho, língua, rúmen
que fecunda epifania valeria aquele
esforço todo?
traduzam o mugido
Aqui não busco traduzir o mugido, esse papel talvez deveria ficar a cargo de pesquisadores melhores do que eu, mas sim uma tentativa de mugir em conjunto. Philippe Roucan, um criador de animais, define as vacas como um herbívoro que tem tempo para fazer as coisas. Já Michel Ots as define como seres de conhecimento, que conhecem os segredos das plantas e meditam ruminando: “o que elas contemplam são as metamorfoses da luz desde as lonjuras cósmicas até a textura da matéria […] os chifres das vacas ligam-nas ao poder do cosmos” (Despret, 2021, p. 91). O que estes animais têm em comum com as narrativas? Perceber-se como coexistência.
É interessante a forma como Ieda Magri e Marília Floôr Kosby se ocupam desses animais, vaca e boi, como o objeto central de suas narrativas, o próprio coração de suas narrativas. Quando a protagonista de Uma exposição, uma mulher de 40 anos, revisita sua família e retoma o conceito costelliano de imaginação simpática – escrito por Coetzee, dito por Costello – sobre o movimento de coabitar espaços com este coração pulsante, ao dizer “Se uma escritora é apenas um ser humano com um coração, o que existe de especial no seu caso?” (Magri, 2021, p. 107), respondo: o olhar. Compreender o olhar de um boi que é morto, compreender o olhar de um boi que é vivo, escrever com o olhar é sobretudo reconhecer o companheirismo silencioso, a tal ponto que o que se torna a questão é o reconhecimento de se perceber vivo no silêncio. Quando esta mulher olha o Boi de volta, o boi a escrutina a um abismo de não compreensão. Quando Descartes joga os animais ao limbo da máquina, ao separar corpo e alma e torná-los destituídos de alma, o que resta do olhar entre o humano e o animal é reduzido a apenas uma experiência nostálgica, pois, quando destituído de experiência e de segredos, o que lhes restaria é uma ideia de que eles apenas são sempre observados. O fato de que eles podem olhar de volta perde a importância, a medida do olhar é, sobretudo, uma medida de poder e, por isso, uma medida do que nos separa deles (Berger, 2009, p. 25).
A imaginação simpática proposta por Costello modifica esse modo de olhar, a simpatia atravessa tanto Mugido como Uma exposição. Juliana Fausto (2020, p. 220), ao falar sobre o pensamento costelliano, pontua que há, através das formas literárias que implicam um modo de coexistir com os animais, uma “imaginação simpática” e que isso seria “penetrar com o pensamento na existência”, ou seja, o papel que desempenham os escritores destas literaturas animais seria o de justamente “adentrar com o pensamento a existência de outros seres que jamais existiriam”.
A “imaginação simpática”, que fundamenta uma relação de alteridade, retoma a ideia de Massumi de que o próprio instinto é simpatia. E se o instinto é uma simpatia, a imaginação simpática presente na literatura seria o lugar de jogar com as possíveis formas de alteridade, como aponta Fausto:
O conceito costelliano de imaginação simpática, assim descrito, faz ressoar a discussão encetada anteriormente acerca do instinto criador, sobretudo quando comentávamos que Massumi traz Bergson à baila para dizer, junto com ele, que haveria um “esforço de intuição” e “uma espécie de simpatia” na intenção artística que tornaria possível penetrar o “interior do objeto” – um exemplo do “modo de existência do terceiro incluído”. Além disso, Massumi lembra Bergson mais uma vez ao citá-lo dizendo que instinto é simpatia. Costello, então, se seguirmos essa pista, ao reclamar a simpatia como uma “faculdade […] que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro”, estaria, assim, situando a literatura no âmbito do instinto – aquele tipo de resposta criadora, que sempre supera o dado e se constitui como uma faculdade plástica da vida (Idem, p. 220-221).
As literaturas aqui abordadas são, portanto, dotadas, assim como a vida, de plasticidade. Não seria possível separar o fazer poético de um constructo que pode ser associado a uma determinada capacidade que estas literaturas têm de fazer com que conheçamos a partir dela outros modos de vida.
Por isso, quando falamos da literatura de Magri e de Kosby, estas nos levam a compreender modos de vida animais através do próprio fazer literário; o que ambas propõem em seus romances é uma possibilidade de resistência desses seres a partir de um movimento que estreita a vida destes para além da própria literatura. Magri, ao retornar o olhar para o boi que será comido, a partir de uma construção da narrativa que é uma exposição não apenas de seu corpo, mas também do corpo do boi, e Kosby, ao tentar mover o olhar para a vaca e suas relações entre a própria concepção do que é ser mulher, ou ainda, uma tentativa de “compreender, de verdade, uma fêmea de outra espécie” (Angélica Freitas, apud Floôr Kosby, 2019). Atribuindo a essas narrativas uma desarticulação dentro da articulação da própria linguagem e do mundo, ou então: a capacidade destas literaturas animalistas de conferir acesso à voz,[2] aos pensamentos e aos sentimentos desses outros modos de vida.
É pelo boi e pela vaca, pela mulher e pelo homem, pela mãe e pelo pai que essas narrativas atingem o coração, atingem a simpatia. É possível fazê-las conversar a partir das relações entre a vida e a morte desses animais:
Eu sentia que os bois tinham coração pelo modo como nos olhavam longamente do potreiro enquanto estávamos deitados na sombra sob a árvore onde eles bebiam água. O lugar mais fresco das tardes de verão. Eles chegavam muito perto de nós e era como se entendessem o que estávamos falando. O que nunca nos impediu de comer o coração deles. Assim como nossa mãe, as galinhas também não tinham coração. Eram apenas assustadas e barulhentas. E elas eram muito diferentes de nós. Por exemplo, tinham penas. Por exemplo, os filhos não nasciam de dentro delas. Das vacas, sim. […] Mesmo ao matá-las, duas vezes por ano, nosso pai demonstrava ter coração. Porque seus olhos se enchiam de lágrimas ao matá-las. E porque fazia comentários. É triste, ele dizia. Ou então, Será que sofrem? Ou, Mas é feio de ver, né?! É feio ver um boi morrer. Nossa mãe não se preocupava com essas coisas. Ela não comentava. Devia pensar: passei por coisas piores. Tive dois partos. E depois teria mais dois. E as mortes que a nossa mãe dava cabo eram mais corriqueiras, de menor porte, podia fazer tudo sozinha, eram gestos automáticos. No caso dos porcos e dos bois, além da semelhança conosco – os olhos, os filhos, o lamento ao morrer –, mobilizavam a todos, não se podia fazer sozinho (Magri, p. 75, 2021).
Ou quando escreve Kosby:
angélica,
o parto de uma vaca
não é uma coisa
simples
envolve um útero
imenso
que rebenta
e frequenta não raro
o lado de foraum rebento imenso!
o parto de uma vaca
requer punhos
firmes
finos porémmatar uma vaca
não é
uma coisa simples
requer um tiro
certeiro
alto calibre
o ponto preciso longe
do meio da testa
dois cavalos três
ou quatro homens
um guri
quem sabe uma mulhercarnear uma vaca
exige sangrá-la
até a última gota
para que a carne
não termine
pretasangrar uma vaca
é para exímioscomer uma vaca porém (Floôr Kosby, 2019, s/p)
É nesse diálogo entre e com outras formas de vida que essas narrativas se encontram, é sobre estas vozes que faltavam; e como não trair a vaca ou o boi mais uma vez? Como traduzir esses mugidos? Pelas mulheres que convivem com outras espécies e as percebem como estreitamento da vida e como coexistência.
A coexistência da protagonista de Uma exposição se desenrola a partir do corpo e do olhar do boi. O corpo é um pedaço da colcha de retalhos do mundo. Ninguém quer dormir descoberto. Entende tua mãe como entende o boi como entende o pai, a morte do boi grita como a galinha de Camus.[3] É nesse sentido que entendo que é pelo coração/simpatia que ambas as narrativas existem, a diferença entre cada um desses sujeitos é o que marca a própria vida, e é quando os escritores conseguem ensinar mais do que sabem. É nessa distância e diferença que o corpo da mãe compartilha a diferença pela semelhança. O quanto desse corpo é possível comer? Que tipo de digestão é feita quando se come o corpo da mãe? Que tipo de digestão é feita quando se come o corpo do boi? O quanto dessa digestão é possível contar sem que se exponha o próprio corpo?
O segredo da exposição está na retirada da condição humana até tal ponto que não se saiba o que é real ou o que é ficcional, assim como se diz das vacas entrando em contato com o cosmos, ou como, por vários motivos, as vacas serão as primeiras a entrarem em contato com os extraterrestres.[4] É preciso que se veja por fora, é preciso que se veja outro até que em dado momento consiga se perceber como outro desse outro. Despida da humanidade, vestida com o coração. É na zona de indiscernibilidade entre sujeitos que se movimenta a ideia de coexistência.
O segredo do mugido é: mmmmmmmmm.
* Louise Furtado de Souza está vinculada ao doutorado em Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGCL/UFRJ). Mestre em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (POSLIT/UFF), tem graduação em Letras – Português pela Universidade Federal Fluminense (2019).
Referências
BATESON, G. Steps to an Ecology of Mind. Chicago: The University of Chicago Press, 2000.
BERGER. J. “Why look at animals”, in About Looking. London: Penguin Books, 2009, p. 12-37.
COETZEE, J. M. Elizabeth Costello. Cia. das Letras. São Paulo, 2010.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1994.
DESPRET, Vinciane. O que diriam os animais? São Paulo: Ubu Editora, 2021.
FAUSTO, Juliana. A Cosmopolítica dos Animais. São Paulo: n-1, 2020.
FLOÔR KOSBY, Marília. Mugido [ou diários de uma doula]. Lisboa: Douda Correria, 2019.
LE GUIN, Ursula K. Cheek by Jowl. Washington: Aqueduct Press, 2009.
MAGRI, Ieda. Uma exposição. Belo Horizonte: Relicário, 2021.
ROUSSEAU, J. J. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. Campinas: Ed. da Unicamp, 2008.
Bibliografia complementar
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, n-1, 2018.
HARAWAY, D. J. O manifesto das espécies companheiras: Cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
LATOUR, B. Politics of Nature: How to Bring the Sciences into Democracy. Translated by Catherine Porter. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2004.
MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política. São Paulo: n-1 edições, 2017.
RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008.
Notas
[1] Adaptação de um trecho do conto “Sinais de um pai sumido, canção” (Ramos, 2008).
[2] “Artaud dizia: escrever para os analfabetos – falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa ‘para’? Não é ‘com vistas a…’. Nem mesmo ‘em lugar de…’. É ‘diante’. É uma questão de devir. O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas se torna. Torna-se índio, não para de se tornar, talvez ‘para que’ o índio, que é índio, se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar a sua agonia. Pensamos e escrevemos para os animais. Tornamo-nos animal, para que o animal também se torne outra coisa. A agonia de um rato ou a execução de um bezerro permanecem presentes no pensamento, não por piedade, mas como a zona de troca entre o homem e o animal, em que algo de uma passa ao outro. O devir é sempre duplo, e é este duplo devir que constitui o povo por vir e a nova terra. […] O povo é interior ao pensador, porque é um ‘devir-povo’, na medida em que o pensador é interior ao povo, como devir não menos ilimitado. O artista ou o filósofo são bem incapazes de criar um povo, só podem invocá-lo, com todas as suas forças. Um povo só pode ser criado em sofrimentos abomináveis, e tampouco pode cuidar de arte ou de filosofia. Mas os livros de filosofia e as obras de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento que faz pressentir o advento de um povo. Eles têm em comum resistir, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente” (Deleuze e Guattari, 1994, p. 131-132).
[3] “Quando Albert Camus era menino na Argélia, sua avó lhe pediu para trazer uma galinha do galinheiro no quintal. Ele obedeceu e depois ficou olhando enquanto ela cortava o pescoço do bicho com uma faca de cozinha, colhendo o sangue numa tigela para não sujar o chão. O grito de morte da galinha ficou gravado com tamanha força na memória do menino que em 1958 ele escreveu um apaixonado ataque ao uso da guilhotina. Pelo menos em parte, o resultado dessa polêmica foi a abolição da pena capital na França. Quem pode afirmar, portanto, que a galinha não falou?” (Coetzee, 2002, p. 75-76).
[4]“Quando leio o que os criadores relatam sobre suas vacas, gosto de pensar que seria com elas que os extraterrestres estabeleceriam as primeiras comunicações. Por sua relação com o tempo e com a meditação, por seus chifres – essas antenas que as ligam ao cosmos – pelo que elas sabem e pelo que transmitem, pelo seu senso de ordem e de precedências, pela confiança que são capazes de manifestar, por sua curiosidade, por seu senso de valores e de responsabilidades ou, ainda, pelo que um criador nos disse e nos surpreendeu: ‘Elas vão mais longe que nós nas reflexões’” (Despret, 2021, p. 91-92).