Descrevo, em tom de depoimento, as estratégias empregadas nos três livros mais recentes que publiquei: Meu Casaco de General; 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 2000); Cabeça de Porco (editora Objetiva, 2005), em co-autoria com MV Bill e Celso Athayde,; e Elite da Tropa (idem, 2006), com Rodrigo Pimentel e André Batista. Trata-se do testemunho de uma construção em certa medida ainda em curso, sob a forma esquemática de um programa de trabalho. Testemunho que reúne considerações políticas e a angústia da influência literária, passando por outras ansiedades e interrogações. A trilogia nasceu do reconhecimento de uma problemática. Exponho, sinteticamente, seus componentes. Antes, porém, eis a descrição sumária de cada obra.
I. Os livros
Meu Casaco de General foi o relato da experiência na gestão da segurança pública. Em primeira pessoa. Ali, na experiência objeto da narrativa, o grande desafio era tornar possível o trânsito entre o Palácio de Governo e a sociedade -particularmente a população que sofre mais intensamente os efeitos da violência, a Favela-, entre o poder do representante e a vida real dos representados, entre a autoridade que exclui -selecionando prioridades e filtrando-distorcendo a eqüidade legal- e a urgência dos grupos sociais que lutam pela inclusão de sua agenda na pauta das decisões superiores.
Duas situações limite desenhavam a moldura dessa questão: o confronto épico da comunidade da Mangueira com o batalhão de choque da PM, que mediei; a travessia dos corredores do Palácio com os pais do menino assassinado pela polícia, que sobraçavam o quadro com a foto do filho e caminhavam para o encontro com o governador. Sagrado e profano davam um nó em minhas pernas e afundavam o punho em minha garganta. Não por acaso, o capítulo sobre a Mangueira situa-se no centro do livro: o episódio é reportado, na obra, como o palco da mediação e também a arena em que se dramatizaram os conflitos extremos, com mais força e nitidez.
Um desafio provocava a imaginação, na experiência relatada: reinventar o relacionamento com a mídia, revertendo expectativas, de lado a lado, ousando falar a “verdade” e renunciando à hipocrisia oficial que tudo justifica. Caricaturas e estereótipos deveriam dar lugar à tensão viva, clara, transparente de relações “verdadeiras” –mesmo que (e sobretudo porque) essa transparência contemplasse a inexorável obscuridade dos poderes, de lado a lado.
Finalidade que defini no momento em que vivia o desafio de participar do governo, gerindo a segurança publica do Rio de Janeiro: tecer uma coalizão amplíssima contra a barbárie, perpetrada pelo Estado, pelo sistema penitenciário, pelas entidades sócio-educativas, pelo judiciário, pelas polícias, pelos criminosos, por nossa anestesiada omissão, por nossa impotência inconsciente-de-si. Se o acesso à justiça fosse menos desigual, a tragédia da desigualdade nacional seria menos ruinosa. Cresceriam, nesse possível novo contexto, as condições para o exercício do protagonismo político da cidadania. O livro teria de levar em conta essa finalidade, retomando-a e fazendo, portanto, de suas páginas, em alguma medida, passos no mesmo rumo. Os leitores visados seriam, então, potencialmente, os futuros componentes dessa ampla frente pela paz.
A estratégia da escrita tinha de ser a narrativa em primeira pessoa para que fossem contornadas as categorias genéricas que resolvem mas obscurecem as formas concretas em que se manifesta a desigualdade no acesso à Justiça. O que importa para a narrativa e a desmontagem das tramas são as conversas nas esquinas e nos bastidores, os gestos à sombra nas ante-salas dos palácios, as emoções que irrompem fora de lugar, os desajustes e as manobras, os passos e recuos, a imaginação inflamada, as resistências institucionalizadas, os sintomas, a dança das cadeiras, as ambições e os sacrifícios, a desproporção, a exuberância da desproporção, a incrível e hiperbólica assimetria da desproporção. Nada menos clássico do que o relato em primeira pessoa tão desequilibrado quanto seu objeto. O Brasil, definitivamente, não é clássico. As colunatas clássicas dos palácios comentam nossa história com a ironia do paradoxo.
Meu casaco de general –menção-homenagem ao saudoso Wally Salomão e a meu dilema libertário, 1968/1999-, foi o trapo do intruso que funcionou como a senha para visitar os salões. E passar despercebido. A estratégia narrativa em primeira pessoa sublinhou a natureza dessa passagem, dessa visita ao palácio, que sempre entendi como intervenção política sob o modo de performance cultural (e vice-versa), desconstruindo agendas, pautas, vocabulários, tropoi da retórica oficial e posturas corporais e dramáticas. Não com o propósito anárquico da destruição, mas com a intenção crítica da reconstrução de laços, pela desobstrução dos canais de comunicação –a partir da recusa à hipocrisia que mascara a desigualdade no acesso à Justiça e da afirmação de que seria, sim, possível um programa que alterasse esse quadro. A hipótese otimista alternativa põe em relevo e em perspectiva -desnaturalizando-a – a política convencional na segurança pública -mas não só aí. A primeira pessoa desarmada e confessional corresponde à mesma orientação desnaturalizadora.
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Cabeça de Porco é um mergulho no universo dos jovens mais vulneráveis, que se deixam recrutar pela dinâmica de reprodução do tráfico de drogas e armas, nas favelas, vilas e periferias de nove cidades, situadas nas cinco regiões brasileiras. Os autores entrelaçamos entrevistas, depoimentos dos envolvidos diretamente na prática da violência, relatos de experiências, interpretações e reflexões sobre temas conexos, como a resistência à mudança e a esperança como dever. É nos relatos da própria vivência que os autores personalizam sua intervenção e assumem nitidamente suas dicções diferenciadas. Sucedem-se discursos em primeira e em terceira pessoa. Os registros atualizam a polifonia que, em Meu Casaco de General, era tematizada. A situação sem saída a que alude o título é labiríntica e desafiadora. O espaço referido na outra acepção do título –cortiço- é pobre, exíguo, e sugere inadequação, incompletude, inacabamento, convívio promíscuo. A mistura e o aperto ensejam uma vizinhança induzida ao convívio. Não se trata do lugar da síntese, da harmonia, da conjugação complementar de diferenças em equilíbrio. Trata-se, insisto, de convívio -na irredutibilidade das diferenças, na irredutibilidade do número.
Os palácios de Meu Casaco eram vazados por viés oblíquo que apanhava a assimetria –assimetria que é a verdade do acesso à justiça, mascarada pela eqüidade formal-, emporcalhando a pureza clássica que corresponde à auto-imagem do poder, projetada na suntuosidade simétrica e harmônica da arquitetura. O cortiço e a confusão, sinalizados no título Cabeça de Porco, remetem ao avesso da ordem cosmética que o governo e seus palcos encenam. Entretanto, sob a babel da favela sem-saída, do nó que não desata, amarrando destinos e os condenando à tragédia, revela-se uma ordem submersa e cruel: a tirania do crime; o despotismo da polícia; a disciplina de condições que degradam vida e auto-estima, gerando invisibilidade, violando direitos. Na contramão, despontam fortuna e virtude transgressoras dessa disciplina malsã, virando pelo avesso o anverso da ordem democrática, reencontrando a democracia e a terra dos direitos, na dialética da criação cultural.
Nesse cortiço-labirinto, juntamo-nos os autores, nossas trajetórias tão distantes entre si, vozes e estilos tão diferentes: o antropólogo e gestor público; o rapper; o líder social e produtor de hip-hop. Um branco, classe média, universitário; dois negros, oriundos da favela –um deles morador de favela; o outro, ex-morador de rua. O antropólogo não analisa os discursos de seus parceiros, soma-se aos registros deles. Os parceiros não são, entre si, objetos. Exercitam a arte da sociabilidade e do convívio; ensaiam, entre si, pontes; escrevem um livro-ponte; desconstróem, juntos, na multiplicidade dos tons, a invisibilidade -tema pervasivo. A pluralidade de tipos discursivos, mesmo entre os capítulos de um mesmo autor, fez do cortiço-sem-saída uma travessia em círculos, cujo poder de gravitação agregou interesses de leitores os mais diversos: desde jovens de favelas e periferias, a juízes e promotores, professores e agentes sociais, artistas e gestores públicos. Nas respostas que os autores receberam, um ano depois de lançado o livro–período em que foram vendidos 40 mil exemplares-, as pontes existem.
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Elite da Tropa foi lançado exatamente um ano depois do Cabeça de Porco. Também foi projeto de três cabeças, ainda que a escrita, especificamente, tenha ficado a meu encargo. Trata-se de mergulho no universo dos policiais, o outro lado de nossa “guerra” fratricida. Os autores são o mesmo antropólogo; um policial negro, bacharel em Direito pela PUC, de origem social pobre; um ex-policial branco, pós-graduado em sociologia urbana, de origem social nas camadas médias –ambos na faixa dos trinta anos e casados, um deles com dois filhos. Aqui, a estratégia não foi o cortiço ocupado pela babel de registros, em distintas chaves discursivas, mas a composição da narrativa a partir de eixo ficcional: uma voz fictícia, expressiva de um ethos particular, relata, em primeira pessoa, episódios seqüenciais, que, aos poucos, revelam conexões entre si. Os episódios traduzem vivências típicas dos policiais. A segunda parte retoma fios da trama e personagens introduzidos na primeira parte, mas trabalha com a pluralidade a seco, na forma do texto dramático, sem narrador. As pontes explodiram. Restaurar a verdade da explosão, provocada pelos crimes do Estado, é tarefa indispensável se desejamos reconstruí-las. Verdade e reconciliação, o mote de Mandela, é a meta da obra.
Raspar o esmalte das palavras foi um percurso difícil. Da sobriedade pouco adjetiva de Meu Casaco para a multiplicidade de registros do Cabeça, houve um salto arquitetônico, cujo ponto de inflexão foi a passagem do fluxo narrativo, típico do memorialismo do primeiro livro, para a edição do mosaico, para a ordenação das peças do quebra-cabeça, tarefa chave na composição do segundo livro. O salto para o terceiro livro não foi apenas arquitetônico; foi, sobretudo, a torção radical da voz. No Elite, tive de falar outra língua. Reaprendi a escrever. A reinvenção do self-narrativo é o momento inaugural da decisão estética, é a matriz da opção literária, porque impõe a linguagem, o lugar do juízo, sua forma, seu critério, o ponto de corte para a percepção e os projetos descritivos, a inscrição dos termos contratuais para os jogos da interlocução com os leitores e os personagens (e os leitores-personagens).
A decisão fundante, no Elite da Tropa, tomou emprestados os leitores ao mundo da vida para detê-los, em flagrante, prostrando-os, rendidos, cativos, na trama do texto. Essa interpelação (fictícia e real) seduz, instiga, ameaça, invade, agride, brutaliza, escarnece, ironiza. Estabelece uma relação. Lança uma ponte. O poder gravitacional da narrativa encontra nesse laço a sua manobra, por excelência.
O recurso à interlocução (“Você, que se está lendo…”), nos marcos de uma voz devassa, rascante, tangendo uma escrita escavada na pedra, está na inversão que provoca: evoca o exterior para aprisioná-lo, fazendo, da mentira ficcional -que são os leitores sempre evocados-, o correlato da experiência a que alude a narrativa –refiro-me à experiência da supressão da alteridade (típica da polícia brutal, que é também a experiência da política tirânica). Encerrar a narrativa em si mesma, encerrá-la em seu ponto de partida, bloquear seus passos, cerceá-la, vigiá-la para que não se mova, girar com o relato em mil direções, disparando a metralhadora giratória da imaginação, multiplicando fatos que ecoam, no fundo, a mesma história: esta é uma forma de apertar o grilhão, torcer o torniquete, aludindo a uma falsa liberdade, a liberdade dos acontecimentos, acontecimentos que apenas na aparência se distinguem.
Assim se construiu a história do Elite da Tropa, história que não se diz, que não se deixa contar, história desse não dizer-se, dessa resistência a pronunciar seu próprio nome –seu nome é desumanização, é o escândalo do crime inominável sob a égide do Estado; é o escândalo do arbítrio e do escárnio oficial; da Justiça que se faz pelo avesso; é o escândalo do Estado que erige a barbárie como hábito noturno. Por isso, a ficção diz a “verdade”, sendo a verdade essa intangibilidade, essa inacessibilidade, esse veto, essa inexpugnabilidade do escândalo enquanto tal.
A “verdade” que Elite ousa sussurrar, entre dentes, mordendo a orelha do leitor, é a assimilação do inaceitável, a naturalização do intolerável. O trabalho dessa naturalização no interior do sujeito é a brutalização, por cujo processo a supressão do outro inscreve suas marcas no self que a pratica –suprime-se, o self, fazendo da reflexividade um espelho desviado do foco: divertimento. É engraçado. Pode ser engraçada, a tragédia. A diversão resulta da reificação do outro, que termina promovendo, na dinâmica da auto-consciência, a transformação da simetria do espelho em assimetria. O círculo vira espiral, em que o self perde-se de si e olha sempre para onde já não está. A caçada do outro morde o rabo. É a si que o sujeito caça. Para aniquilar. Tortura-o, “trabalha-o”, para fazê-lo “cantar”, “dar”, dizer quem é e onde estão as suas armas. É o sujeito em fuga de si a buscar no outro a resposta especular impossível. Qualquer resposta do outro torturado será insuficiente, não saciará a fome de saber. A violência é esta ânsia de si-mesmo, refratária ao espelho que a desnudaria em seu solipsismo irreversível. Não sendo espelho, o outro é deriva, o outro lança a outro, sempre, a resposta, porque a pergunta erra o alvo, por definição.
A voz policial encena e constrói a trama narrativa com esse jogo e essa prisão, em que se condena à dilaceração. O solipsismo desse falso diálogo com os leitores ausentes gira em torno do próprio eixo até precipitar energia suficiente para explodir. A explosão original lança ao espaço literário sessenta e dois personagens e elimina o centro regente, a voz que conduz: inicia-se, assim, a segunda parte. A narrativa cede lugar ao drama: escrita direta e desprovida de meta-linguagem. A literatura do diálogo. Porque o self é impossível, insuscetível de portar a enunciação das sínteses, refratário à tessitura que une as pontas em conflito. O self-narrador é puro conflito. Adrenalina e guerra. Irreconciliável. A escrita do Elite é acre, tosca, aparentemente desprovida de polimento. Esmalte raspado. Verbo rasgado. No entanto, foi a mais elaborada e a que exigiu maior investimento na ourivesaria, entre todas as que produzi.
II. Termos da problemática
Dizia que a trilogia nasceu do reconhecimento de uma problemática e prometi descrever seus componentes. São os seguintes:
Um desafio: a relação, sobretudo a relação entre pólos extremos –(1) “nós”, os leitores, enquanto sociedade e opinião pública, e as autoridades políticas ou os gestores públicos; (2) “nós” e os meninos do tráfico, sua paradoxal pureza e sua alucinada crueldade; (3) “nós” e os policiais, particularmente os guerreiros do Bope, essa persistente e uniforme alucinação da alteridade.
O contexto: as abissais desigualdades brasileiras, cuja face talvez mais dramática se manifeste no acesso à Justiça, a começar pela ponta policial, cujo filtro seletivo é sabidamente racista e classista –e etário, claro.
Não está mais disponível: o diapasão arcaico que distensionava o embaraço moral e conceitual, em que se domesticava o incomensurável, o irreparável, e o que emergia como incomunicável entre agentes antagônicos: luta de classes.
Uma fonte de angústia hamletiana: pode-se persistir na convicção libertária da geração 68 e dirigir as polícias? Sim, aposto que sim. Faço de minha vida o campo de experimentação para demonstrar essa possibilidade estranhíssima. O ponto para o laço é a reinvenção das concepções e práticas sobre República e Democracia. Os textos que descrevem o laboratório deveriam carregar a energia subjetivista de um sujeito dilacerado e afirmativo, no fio da navalha. Energia sendo o avesso do adjetivo, pura carga substantiva. Relatos cada vez menos judicativos e qualificadores. A dureza cabralina, a aspereza de Rubem Fonseca, a crueza de Céline e a ironia rodrigueana, a prosa que a tradição do jornalismo literário norte-americano nos legou, com o jorro vital de um memorialismo à Henry Miller – meu Deus, que pretensão. Mas essa polifonia ambiciosíssima e despropositada replica a angústia de outra influência: a dos rebeldes libertários, meus heróis civilizadores, ante os desafios da violência contemporânea. Rousseau e Hobbes, gladiadores: perpétuo adiamento do triunfo.
Qual a comunicação possível, aquém de estigmas e projeções inibidoras? O que seria dizer a “verdade”? Como contá-la –seria possível contá-la? Seria necessário construí-la, teórico-conceitualmente? De que “verdade” se trata? Ou seria melhor pensar em termos de fluidificação de canais de comunicação para aproximar experiências compartilháveis? Ou o dilema deveria ser posto da perspectiva das linguagens? Ou do ponto de vista do estabelecimento de protagonismos discursivos? A questão é da linguagem ou dos sujeitos, ou estes apenas se põem na e como linguagem, ainda que sob o registro de estratégias autorais? Relatos ou análises? Afirmação de parcialidades, desejos e interesses, percursos e projetos? Ou edificação de um ponto de vista sub specie aeternitatis, a partir do qual seriam possíveis conceitos e juízos?
Escolhi a narrativa. Por que? Por motivos diversos, entre os quais: o discurso sem-sujeito (isto é, desprovido do sujeito inscrito no território da história e da cultura), enunciado da ótica do sujeito-universal, sub specie aeternitatis, subsume o múltiplo do sentido na unidade do conceito, exorcizando a pluralidade das vozes que soam, no mundo da vida. Mas eram essas que me interessavam.
A linguagem de matiz teórico repele o espaço babélico, conflitivo e pluridimensional, dos sujeitos históricos, com marcas sociais, étnicas e de gênero, entre outras, até para tentar cumprir sua pretensão de infundir inteligibilidade a esse domínio vasto e disperso das diferenças, singularidades e contingências. Mas eram esses sujeitos históricos, com nomes e cores, gênero e desejos, que me interessavam.
O mundo do acontecimento e da liberdade, sob disciplinas de poderes difusos e concentracionários, poderes em disputa cerrada, liberdade em resistência cerrada. E toda esta agitação, emoldurada por incerteza e risco, incorpora o discurso supostamente sem marca da teoria, marcando-o a frio e fogo, e lhe infundindo potência –ainda que ao preço da inteligibilidade sublime, superior, sintética, esclarecida, desinteressada. Esse mundo me interessa. Interessa o meio (descentrado) de seu redemoinho, o labirinto de suas ruelas. Babel interessa: a polifonia –e sua música irredutível. Assim como o rigor de sua indisciplina.
Além disso, dizia mestre Richard Rorty: os compêndios de filosofia falharam; não alcançaremos a paz perpétua demonstrando a superioridade racional da paz, da justiça e da democracia. Resta-nos tentar (r)estabelecer a comunicação, em cujo fluxo os relatos individualizados sobre circunstâncias específicas são mais capazes de promover empatia, de estender aquilo que David Hume denominava os “we-groups”. Em outras palavras: dado que o universal não é um pressuposto fundado na essência racional do humano, só pode ser um projeto ético-político-cultural, a ser construído. A sensibilidade humana para o sofrimento alheio continua a ser, desde tradições religiosas remotas até Rousseau, a plataforma para essa aventura cuja finalidade é apenas reduzir danos e evitar sofrimentos evitáveis -bem mais modesta, portanto, que as utopias modernas, as quais nos sopraram a alma revolucionária. Resta-nos pôr em circulação discursos, experiências, valores, em cenas concretas, com emoções vividas. Respeitando as singularidades de sujeitos com gênero e marcas culturais, históricas, empíricas, individuais. Menos o ser humano do que os seres humanos, de carne e osso, isto é, devolvidos à corporeidade e à finitude.
A narrativa é também e sobretudo o campo para o trabalho pluridimensional do símbolo e do inconsciente, espaço de encontros e pontes imateriais, laboratório para experimentações e território sempre aberto a explorações reflexivas, além e aquém do discurso sistemático da razão.
A partir desse cenário problemático, montei a arena para o trabalho. Mas não acreditem que tenha sido assim, tão cartesiano: perguntas e desafios são identificados; métodos definem-se; operação da escritura é posta em marcha. Quem dera fosse tudo tão organizado, planejado, tão claro e distinto. Tudo foi sempre obscuro e surpreendente, carregado de emoção, a sensibilidade à flor da pele, a ansiedade prenunciando o silêncio e a impotência – engasgos, recuos e recomeços. E nada foi solitário. Os co-autores foram parceiros da longa jornada, ainda que, provavelmente, vejam à sua maneira o percurso e imaginem outras cartografias. Devo a eles a oportunidade singular dessa aventura.
*Luis Eduardo Soares: Secretário Municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (RJ), e Professor da UERJ e da UCAM.
NOTA
1 Agradeço a Miriam Guindani a leitura crítica da primeira versão do presente ensaio e as sugestões para torná-lo mais compreensível e analiticamente perceptivo