A confrontação política ainda é possível no campo das artes visuais. Mas não da maneira óbvia que se pode imaginar. Não é necessário ter uma temática palpitante explícita. O modo de produção da obra, o modo de sua articulação social para ser posta em circulação e a já mesmo muito velha produção social dos preconceitos e lugares comuns, inerentes à acomodação propiciada pela preguiça humana, são elementos que podem favorecer que se apareça o tal “confronto” novidadeiro que anuncia a obra de arte. A pergunta não é tanto se a arte proporciona questões ou responde às que já existem na realidade circundante. A arte sempre faz as duas coisas: responde com outras perguntas, pergunta quando dá respostas. O movimento é dinâmico entre perguntas e respostas. Essas duas “categorias” mudam constantemente de lugar.
O problema da ineficácia da arte política foi substituído pela eficácia da arte que transita entre cultura e política, sem se deixar aprisionar pelo slogan e pelo panfleto. Ou fazendo uso do slogan e do panfleto de maneira indireta. E aqui não falo de alegoria, que é algo sempre do terreno do difícil, algo que está mais além (ale vem de além) e que precisa ser interpretado por uma comissão de filósofos e outros espécimes da vida intelectual para decifrar a mensagem. A política circula hoje pela produção cultural muito mais de maneira indicial, deixando suas pegadas. As pegadas são certamente pés, mas também não são, embora apontem para isso. O que chamo de índices nas artes visuais são imagens ou procedimentos ou maneiras de apresentação que deslocam, suspendem o difícil para apresentar relações novas entre objetos ou significados. Pode parecer que não há nada de novo nesse cenário apresentado como novo, pois já o clássico Mário Pedrosa contribuiu grandemente para a arte brasileira questionando a articulação entre arte e política por mais de 30 anos. Entretanto, imagens, procedimentos e materiais oferecidos numa nova moldura de contornos contemporâneos sempre acabam por revelar novos significados. Nada de novo sob o céu. Tudo de novo sob o céu.
Em abril do ano passado me foi dado a conhecer um projeto de vizinhos argentinos e fui convidada a escrever algo para o catálogo da mostra. No momento em que fui convidada, eram 70 artistas envolvidos no evento. duas semanas depois, quando a mostra se inaugurou, já eram 120 artistas e o texto ficou, inclusive, datado no que diz respeito à quantificação. Em seguida, as críticas de arte Viviana Usubiaga e Maria Zacco escreviam sobre a amostra utilizando como fio condutor o mesmo elemento destacado, sublinhado neste texto de apresentação: a estética da afetividade. Isso ajuda a configurar um discurso. E como nenhuma estética prescinde de uma ética, isso confirmou a minha primeira aproximação com o universo do MUPI e confirmou, também, a extensão política dessa estética. Artistas e críticos de arte eram tocados pelo mesmo elemento.
Reproduzo, abaixo, o texto de abertura dessa mostra que teve lugar em maio de 2007 no Centro Cultural Recoleta em Buenos Aires, tentando, com isso, ultrapassar fronteiras e ganhar mais adeptos para o Mercosul através do Museu Piolin, que re-atualiza um slogan de 40 anos atrás mais ou menos: “o pessoal é político”. É, também, uma tentativa de colocar para circular neste espaço que está sendo criado, o Mercosul, saberes, práticas e discursos menos machistas dos que os que pré-existem à criação desse mercado comum. É, enfim, convocar mais atores para imaginarmos, juntos, esse novo espaço de convivência. Há muitas obras que fazem parte do MUPI que merecem ser comentadas muito especialmente à luz dessa afetividade contagiante. Por ora, comento o projeto coletivo.
“Apresentar este projeto é como apresentar um novo espaço para a humanidade habitar com alegria. Um espaço onde é possível reapresentar a humanidade a si mesma no que ela pode ter de melhor: sua capacidade de reinventar-se a partir de suas aparentes impossibilidades, sua tendência ainda não extinta de criar vínculos a partir da afetividade, sua infinita competência para criar múltiplas linguagens e, neste caso, sua re-capacidade de dar à palavra ‘progresso’ um significado todo afetivo. Mais que representação de um humano ‘desborde de alegria’ carnavalesco, trata-se de uma reapresentação do humano ao humano. Passando por Piolin.
Quando nos referimos ao movimento que cria o MUPI, referimo-nos, sobretudo, a um movimento fundamentalmente político que tem como objetivo criar espaços de humanidade, espaços habitáveis para a diversa humanidade. E espaços de humanidade são, como não poderiam deixar de ser, espaços de resistência à avassaladora cotidianidade consumidora e prática. Nomeamos, doravante, a política envolvida com a criação do MUPI de política da afetividade. E essa também é sua estética possível: propiciada a partir da execução dessa política, a política da afetividade posta em movimento cria uma estética.
Um pouco de história: Leo e Daniel vivem entre Buenos Aires e o Tigre. Bordam juntos e adotam, como filho, um pequeno cachorro cheio de talentos e inteligências chamado Piolin. Criam, para Piolin, referentes domésticos carregados de símbolos e significados estéticos/políticos à medida que produzem suas obras em casa, com os materiais que produzem e a partir da forma como produzem. Leo e Daniel são artistas plásticos em fase de hiper-produção, que se interessam, sobremaneira, pelo patrimônio imaterial dos mais diferentes povos da humanidade (seja este patrimônio advindo do Japão, da Índia ou das margens que habitam o Tigre). Transformam este patrimônio imaterial – lendas, representações de representações – em matéria palpável: a obra, constituída de bordados, desenhos, colagens; tudo multicolorido, com os mais variados suportes e desafiando a lei do abstrato, do difícil, do conceitual Eles têm uma obra, não simplesmente um conceito. Seus trabalhos têm algo de onírico, de penetração no sonho já sonhado coletivamente por tantos outros: os palhaços, as bruxas, os santos, as histórias folclóricas. Por isso mesmo, há algo de atemporal que atravessa as imagens com as quais nos deparamos. Piolin é apresentado a este mundo de cores e fios ressignificando os símbolos da humanidade e se adapta bem. Participa da fantasia, passa a habitar este mundo criado ativamente. Interage alegremente com o ambiente. Leo e Daniel se encontram em algum lugar onde há guardado o menino escondido de cada um. Reconhecem-no e projetam-no em Piolin. A corrente se espalha: Piolin dispara a abertura das grades que guardam o menino escondido de cada um. As antigas crianças guardadas e afoitas se encontram e se comunicam com tanta estridência que acabam por fazer com que outras se juntem. As antigas crianças guardadas a tanto custo ultrapassam a fronteira doméstica e ganham voz no espaço público. É a alquimia politicamente tão importante da esfera doméstica, onde se processa a vida cotidiana, tornada em questão pública. O modo de produção artístico – questão pública por excelência -, ou, em outras palavras já muito mais ditas: o alfaiate aparecendo na roupa que faz – esta questão pública por excelência -, a temática selecionada pelos artistas, tudo isso, esses elementos, imbricam-se com excelência com a porção niño de cada um. Piolin deflagra esta ameaça salutar: a de que as crianças de cada um não poderão estar guardadas para sempre.
Tem início, assim, este jogo do qual até agora tenho notícia de mais de 70 participantes: 70 artistas plásticos argentinos interessados em jogá-lo ao mesmo tempo. E o jogo continua em aberto. Mobiliza-se essa força artística de cerca de 70 pessoas em prol de uma necessidade premente de uma correia de transmissão eficaz que ajude a realizar o desejo escondido de cada um. São mais de 70 artistas envolvidos num projeto afetivo. A este fenômeno chamo aqui de política: a força desses habitantes artistas da polis se movendo numa única direção: a da conexão afetiva. Isso muda um mundo. Mais que uma polis. Piolin se torna, dessa forma, elemento de ligação e ícone, correia de transmissão, propiciador de comunicabilidade. Esses são os elementos constituintes da criação de um espaço de humanidade, espaço este tão escassamente encontrado nos tempos que ora correm.
O MUPI diz um pouco disso: diz que no fazer artístico contemporâneo há espaço para o sonho e a brincadeira, para que o amor de cada um seja respeitado e coletivizado como algo vital, e diz que há espaço para obras e conceitos artísticos conviverem sem prescindir do traço muito humano, presente não só na marca da produção e representação, como, também, no muito concreto afeto que se deposita na criação artística, o traço, enfim, muito humano da vontade de comunicação e ligação com o outro.
O Museu Piolin instaura uma estética e uma política da afetividade, linhas de força que parecem apontar – oxalá! – para o resgate dessa tendência do imaginário humano. No MUPI, coração, conceito e obra se fundem nos objetos mais variados, todos eles, objetos de desejo criado para um outro, tentando expressar essa cálida ferida aberta da vontade constante de agradar a esse outro sempre enigmático e sempre presente. Essa tentativa de expressão passa, via de regra, pela insaciável necessidade de brincar, demanda reprimida no corre-corre da multidão anônima e numerada. A necessidade de brincar com o outro, artista com artista, um fazer em rede anti-isolamento.
Pode-se dizer, pela expressiva quantidade de nomes que se agregaram ao projeto MUPI, que Piolin já representa, através da mostra de que é destinatário, um marco na afetividade portenha e um marco na produção artística contemporânea dessa polis. Levar adiante este projeto, latino-américa afora, é – parafraseando o escritor Ítalo Calvino – ampliar o que não é inferno nesse mundo. Eis um projeto de mais céu, menos inferno.”
Imagens em: MUPI – Museu Piolin – http://mupi-museopiolin.blogspot.com
*Camila do Valle é escritora, pós-doutoranda do PACC-UFRJ e diretora da FUNCEB (Buenos Aires).