Bia Lessa é uma artista multimídia que não hesita em encarar grandes temas e grandes autores. Uma ousadia que é sua marca desde a estreia como diretora em 1983, com a peça A terra dos meninos pelados, baseada no livro homônimo de Graciliano Ramos. De lá para cá, encenou no teatro obras como Orlando, de Virginia Woolf (com texto de Sérgio Sant’Anna) em 1989, e Os possessos, de Fiódor Dostoiévski, em 1987; montou óperas como Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart, em 1992, e Suor Angélica, de Giacomo Puccini, em 1990; e foi responsável pela criação e curadoria do Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de 2000 (EXPO) em Hannover, Alemanha, do Módulo Barroco da Mostra do Redescobrimento, no Museu Nacional de Belas Artes, em 2000, no Rio de Janeiro, e das exposições Grande Sertão: Veredas, na Inauguração do Museu da Língua Portuguesa, em 2006, e Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem?, na Fundação Armando Alvares Penteado, em 1999, ambas em São Paulo.
Nesta entrevista concedida à Revista Z Cultural em 19 de janeiro de 2024, em sua casa no Cosme Velho, Bia Lessa comenta a sua trajetória, iniciada em 1975 como atriz no Teatro Tablado, no Rio de Janeiro, e a sua relação com a recepção da crítica e do público: “O teatro é uma humilhação diária”.
Por ocasião do lançamento de seu filme O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, fala do desafio de levar Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ao Museu da Língua Portuguesa, ao teatro e, depois, às telas de cinema e trata, ainda, da inquietação que a faz explorar diferentes suportes e meios.
Beatriz Resende: O tema deste número é crítica e curadoria, entendendo, inclusive, a curadoria como um tipo de crítica, e a crítica contemporânea menos como crítica e mais como uma espécie de curadoria. Por isso, veio essa ideia de conversar sobre seu trajeto, sua independência, e de que maneira você convive com avaliações, com críticas.
Bia Lessa: Acho o tema extraordinário. É o que mais anima: essa ideia de curadoria e crítica como sendo a mesma coisa, porque, de fato, não há como ter uma curadoria sem uma análise crítica muito firme ou muito determinada. Também acho extraordinário pensar crítica como ação. Vivo falando para a Flora [Süssekind] que, muitas vezes, quando ela fala sobre o meu trabalho, ela inventa um trabalho que eu nem sabia que existia. Então, quando ela cria, tem uma ação em cima do próprio trabalho. O outro vem e coloca outra camada. É isso que eu acho excepcional.
Do meu caminho, não sei muito por onde começar. Fiquei um ano no Antunes [Filho], que é uma pessoa extraordinária. Eu tenho um respeito imenso por ele, mas uma hora entendi que não ia poder ficar mais. Achei que, se ficasse em São Paulo, não ia dar conta de criar o meu caminho do lado de uma pessoa tão poderosa para mim. Daí eu vim para o Rio. E, quando vim, o Antunes estava começando a história dele no SESC. Foi quando conheci o SESC na Tijuca, que era um espaço fora da zona sul, à margem. Fiquei animada, porque ficar em um canto que ninguém queria, fora de tudo, me parecia ideal. E encontrei o Ubiratan Correa, que era o presidente do SESC naquela época, que se tornou uma pessoa fundamental na minha trajetória e um amigo como poucos. Lá, fui convidada a dirigir um espetáculo infantil. Fazer o quê? Como fazer? Eu tinha acabado de ver Memórias do cárcere, [filme] do Nelson Pereira [dos Santos], que amei. Não esqueço a cena final do chapéu que voa da prisão e cai no mar. E eu me deparei com o texto de A terra dos meninos pelados [de Graciliano Ramos], uma versão infantil de Memórias do cárcere. Havia ali várias questões que me interessavam e que não eram propriamente do universo infantil. O universo só da criança não me interessava, me interessava o universo do homem. Era um espetáculo infantil que era também adulto. Na minha cabeça, se é bom para criança, é bom para adulto. Começou a minha briga, que era convencer o SESC e convencer os jornalistas que valia a pena divulgá-lo. Naquela época a gente não tinha divulgação, nós mesmos fazíamos esse trabalho. A gente ia no Jornal do Brasil e falava: “O Macksen [Luiz] tem que ir”. Na época o crítico era o Yan [Michalski] ainda, brigávamos na redação com o cara do tijolinho: “Tem que ter tijolinho de manhã e de tarde no infantil.” Era muito extraordinário ter essa relação direta com os jornalistas e críticos – hoje temos intermediários.
Flora Süssekind: Eu me lembro que o Yan fez a matéria de lançamento de A terra dos meninos pelados. Eu escrevi também sobre a peça, graças à matéria dele, anterior, e muito cuidadosa, acho que a crítica foi capa, ao menos lembro que teve uma página enorme.
Inês Cardoso: Era uma época em que havia matéria de estreia de teatro, e depois a crítica. O que já não tem mais.
BR: Quer dizer, a crítica de jornal tinha um papel fundamental.
BL: O Antunes tinha uma coisa que eu achava espetacular: nos colocar para fazer cenas. A gente ficava uma semana estudando a cena, oito horas por dia, ele parava e perguntava para cada um. “Você, o que achou da cena? E a interpretação? E o espaço? E o cenário?” Era amedrontador, uma sabatina oral… Ele geralmente nos massacrava, mas aprendíamos a decodificar. Você aprendia o espaço, você aprendia a interpretação, o figurino, a luz, cada objeto. Era uma coisa extraordinária.
Então, fiquei muito vinculada ao exercício da crítica permanente, a ter alguém com quem estabelecer um diálogo de fato. Porque, no fundo, é o que a gente mais gosta. Foi quando chamei a Ângela Leite Lopes para fazer essa dramaturgia comigo. Foi ela que me apresentou o [Tadeusz] Kantor. Não, o Antunes me apresentou o Kantor, mas ela me apresentou mais coisas dele. Antunes também me apresentou o Bob Wilson. A Ângela ficou durante um tempo comigo, acompanhando alguns trabalhos. O trabalho teórico sempre foi fundamental para mim, unir teoria e prática, ou melhor, a estética ser o resultado do conteúdo. E meu trabalho foi tachado no começo como teatro da imagem.
BR: Mas essa clarificação era algo bom ou não?
BL: Nem um nem outro. É o que falavam. Acho uma besteira, porque não tem teatro da imagem, a imagem faz parte do teatro. Como é que você faz teatro sem imagem? Acho bobo, mas já me interessava essa coisa de um homem inserido em um espaço, o homem não era mais o centro de tudo, então, se ele não é o centro de tudo, o espaço é um personagem extraordinário. Lembro que estava estudando Dostoiévski para montar Os possessos e fiz o Exercício número um, que era uma abstração um pouco em cima de Os possessos, os cientistas correndo atrás do conhecimento como o burro querendo a cenoura… Era um espetáculo de 45 minutos em que chovia papel picado. Nunca esqueço da gente picando papel a noite inteira, porque a minha vida é feita das pessoas dizendo para mim: “Não dá”, e eu fazendo. Então falei: “Precisamos que tenha papel picado caindo o tempo todo”, porque queria que as pessoas vissem o espaço. Só a luz não ia bastar, queria que vissem a pessoa dentro do espaço. “Então vamos picar o papel e ver quanto tempo dura de papel picado”. Gente, moleza, gastamos dez sacos de 100 litros, tínhamos picado cinquenta: deu e sobrou.
No primeiro dia de espetáculo, abre a cortina, mostra o espetáculo, fecha a cortina e a plateia não vai embora. Ninguém percebe que acabou. Fica aquele negócio constrangido, abro a cortina e falo: “Gente, acabou”. Ficava aquele constrangimento, e um jornal publicou, não lembro quem era o jornalista, uma crítica muito ruim, em um pequeno espaço, não chegava a ser uma crítica, era um comentário. O Yan foi para a briga e escreveu uma crítica bastante interessante e foi quando me chamaram para fazer a capa da revista Programa [do antigo Jornal do Brasil], era a capa da revista. Essa crítica, foi um divisor de águas. O SESC, através do Ubiratan, nos dando suporte, nos cedendo o espaço onde podíamos montar os espetáculos, fazer as oficinas, proporcionar espetáculos de novos diretores etc. Tínhamos o espaço, mas não tínhamos nenhum patrocínio nem apoio financeiro.
Não tinha nem papel higiênico. Não tínhamos patrocínio, mas éramos muito mais estruturados do que hoje. Éramos uma equipe, Suzana Macedo, Fernando Mello da Costa, o Alberto Renault, André Monteiro e Zé Luiz [Rinaldi]. Registrávamos em texto todos os espetáculos, todos os ensaios, as experiências, as tentativas… Tínhamos o pensamento teórico do que era cada cena e fazíamos o que chamávamos de escritura cênica. A escritura cênica, é o registro do espetáculo, com todos os elementos que o constituem. Quando o espetáculo vai para a cena, o texto não é mais o texto, ele é o texto com a luz, com a música. Então começa com o sinal, e o silêncio, aí entra a luz, e, quando a luz toca no rosto do ator, o ator sente a luz e por isso ele responde àquele estímulo e, porque ele reage à luz, a música entra. Os elementos estão sempre ligados um ao outro, pedindo uma ação ou reação.
Quando estou muito obcecada, ainda faço como uma partitura de música – de forma que se saiba que a luz entra com determinada intensidade, a música entra baixinho etc. –, tudo como se fosse um gráfico mesmo. Não para ter um registro, e sim para os atores entenderem que estão em diálogo com a luz, com o figurino, que não estão sós e que o diálogo não é apenas com a outra pessoa. O diálogo é com tudo que está em volta, com a roupa, com a cadeira que entrou. É assim até hoje. Esse é o princípio do meu trabalho. Lembro que, em Os possessos, eu precisava que o “ar” fosse “concreto” como uma massa sólida. Eu pretendia que o ar criasse uma atmosfera densa, uma tradução do universo do Dostoiévski. Um universo denso, onde os personagens estão presos. Era assim: a atriz, Lilia Cabral, dava um passo, e o outro ator tinha que recuar um passo – estabelecendo uma ligação entre os três: espaço e atores –, se um ator anda ele de certa forma “empurra” o outro.
A partir disso dá para falar um pouco de como fui fazer curadoria e expografia. Me interessava pensar a exposição também como arquitetura, não só como curadoria, mas como espaço – um caminho natural. O raciocínio entre o fazer teatral e a exposição são muito parecidos, o diferente é o processo. Me chamam de artista multimídia, mas no fundo é a mesma coisa, o mesmo pensamento – o que muda é a matéria-prima. No cinema o mesmo, uma maravilha! No cinema o espaço é também a lente que você escolhe, o movimento da câmera.
BR: E você ficou muito tempo no espaço do SESC?
BL: Uns sete ou oito anos. Foi bastante tempo. Só que no final era tão exaustivo, é a maluquice de a gente trabalhar no Brasil. É muito duro. É um esforço. Eu não ganhava dinheiro nenhum. O SESC nos cedia o espaço, mas gerenciar o espaço, dar conta dele, sem um apoio financeiro, era nossa função. A gente tinha inclusive que pagar um percentual da bilheteria, então não havia verba. Eu com uma filha pequena, sozinha. O jeito que consegui para viver foi dando cursos. Eu ia para Campo Grande com a minha filha, ficava lá duas, três semanas; ia para Salvador, voltava; ia toda semana para Volta Redonda, pegava um ônibus. Fora fazer os espetáculos. Lembro que a minha mãe ficava enlouquecida, porque eu vendia tudo. Fui casada com o pai da minha primeira filha, que era rico em relação a mim, e ele tinha muitos móveis antigos, cômodas, penteadeiras. Quando vim para o Rio, a metade ficou comigo e eu vendi tudo. Mas os espetáculos tinham o cenário que queríamos, o figurino, o registro escrito do processo de criação, como a gente não tem mais. Mas tinha e tem o custo da exaustão. Fico até emocionada de falar, por exemplo, da morte do Zé Celso. Ele foi um herói. Você vê, o Zé tinha 80 e poucos anos. Estava vivo pra caramba, mas fisicamente… Ele segurou a coisa no braço, na unha, percebe? Queimado em praça pública. Então é muito simbólico, é muito verdadeiro. A morte do Zé é o Brasil puro.
BR: Mas você sentia que o público retribuía isso?
BL: O público ora adorava, ora detestava.
BR: E quando detestava?
BL: Quando detestava era difícil, porque o teatro é uma humilhação diária. Você tem que ter uma espinha dorsal, porque todos os dias você espera uma pessoa que não vai, você vê uma plateia que não gosta, e isso durante 3, 4 meses. Lembro de Os Possessos quando a Fernandona [Fernanda Montenegro] foi… Alguém tinha dito que achava que ela ia. O SESC tem várias sacadinhas, pelas quais você fica vendo as pessoas chegarem. Estávamos eu e o Alberto [Renault] esperando, deitados em uma sacadinha, e a Fernandona apareceu lá. Avisamos ao elenco, porque era um acontecimento. Vinham quatro, vinham cinco, vinham seis [espectadores] às vezes. Isso não só em um espetáculo, mas em muitos. A gente vai aprendendo. O teatro é parecidíssimo com os desafios da vida.
Lembro que, primeiro, eu ficava muito mal com as críticas. Recebi críticas muito graves na vida. Lembro de uma do Flavio Marinho, em A tragédia brasileira, que era uma coisa assim: “É uma pena que essa menina exista”. Nesse grau. Até agora. O [Artur] Xexéu escreveu sobre Formas breves: “Soube que a Bia vai voltar ao teatro, que infelicidade, lá vem bomba”. Com o tempo, você vai entendendo que o que fica é o trabalho. É claro que [a crítica negativa do] jornal leva menos gente. Mas o que conta é o trabalho. Se o trabalho é bacana, se ele tem o que dizer, ele segue seu próprio caminho. Mas tive críticas maravilhosas, não apenas no sentido de enaltecer o espetáculo, mas de gerar reflexão, da Flora Süssekind, Yan Michalski, Gerd Bornheim, Haroldo de Campos etc.
Lucas Bandeira: Você falou que, quando a Flora escreve sobre sua peça, ela acrescenta algo. É como se tivesse um que diminui e um que aumenta.
BL: Sim, sem dúvida. Só que na realidade essas que diminuem são umas pessoas que estão distantes do universo em que trafego, então não contam tanto. Quer dizer, contam para o negócio do teatro, mas não para o teatro em si.
FS: Agora eu acho que nem há mais isso de levar público. Nem sei o que de fato leva público ou não, possivelmente o Instagram. Ainda assim a primeira recepção é sempre curiosa. Eu me lembro da Barbara Heliodora escrevendo sobre você, sobre o Gerald Thomas. Não se tratava simplesmente de incompreensão, mas de construir, fixar, uma espécie de invisibilidade. Porque, assim, se mantém uma mediania que não incomoda. Em grande parte, a primeira recepção resguarda padrões e convenções. Por isso é infelizmente difícil imaginar a persistência, em grandes veículos, de uma crítica que desafie esses padrões.
BR: A gente reconhece o talento da Barbara, mas sabia que era uma pessoa reacionária.
BL: Lembro que, no Formas breves, encontrei com ela antes de ela entrar e falei: “Preparada para a luta?”. Eu acho até engraçado. Olha o grau de distância dela sobre o espetáculo. Ela escreveu: “Bia continua não fazendo teatro, agora ela faz artes plásticas”. Quer dizer, a concepção dela de teatro não possibilitava ver que o teatro hoje pode ser também artes plásticas. Ela tinha um valor, mas um valor fixado num modelo, modelo que hoje em dia já não é mais possível. Se há modelos hoje, são infinitos.
Quando eu fiz a minha primeira ópera, que foi a Suor Angélica, com Paulo Mendes da Rocha, um trabalho que adorei fazer, foi um sucesso do ponto de vista de levarmos à cena o que pretendíamos e também da compreensão do público de nossas intenções. Quando acabou, lembro que a gente foi para um restaurante e comemoramos muito a noite inesquecível. A gente sabe quando alguma coisa acontece, foi uma comoção! Naquele tempo a gente ficava acordado para esperar o jornal sair. E estava escrito assim na Folha de S. Paulo: “Bia Lessa copia Bob Wilson” [a crítica saiu com o título: “Bia Lessa faz cópia dos cenários de Bob Wilson”]. Quase morri. Nunca tinha visto o Bob Wilson na vida, a não ser algumas fotos que o Antunes tinha me dado. Daí, um cara lá da Bienal, amigo do [Emilio] Kalil, falou assim: “Vamos ver o que tem do Bob Wilson”. Bom, descobrimos que o Gerald encontrou com esse cara, [o jornalista Luís Antônio] Giron, e falou sobre a proximidade com um trabalho do Bob Wilson. E daí fomos pesquisar: não tinha nada, nem que lembrasse esse trabalho. O que tinha era o seguinte, no Bob Wilson tinha um cenário com umas escadas, em que umas pessoas subiam como se fosse uma biblioteca. No meu era um paredão que as freiras escalavam, sem escada, elas subiam pelas paredes, não tinha nada a ver. Acho que é errado, é mesquinho – ninguém poderia dizer que alguém copia sem ter uma prova de que copia. Só de ouvir algum comentário na saída de um espetáculo.
FS: A própria ideia de cópia é complexa… Não há como trabalhar sem referências. Trata-se de ver como elas atuam. Trata-se de ver os deslocamentos que foram operados. Se houver alguma referência bruta, aparentemente sem grandes desdobramentos, trata-se de pensar por que se dá essa apropriação tal qual, por que esse ready made está lá.
BL: Exatamente. Mas uma hora você entende que uma certa imprensa funciona assim. Ela levanta sua bola para cortar depois. A gente não pode esquecer que o jornal é feito para ganhar dinheiro. Então, a relação deles é com o Ibope ou instituto semelhante.
LB: E alguns críticos estavam ali para isso.
BL: Era para isso. Tanto que, depois, eu respondi a ele. E o [Fernando] Zarif me deu o título mais lindo do mundo: “Original é o pecado”. Tive muitas brigas com jornalistas, porque tinha a ingenuidade de achar que o mercado não estava em primeiro lugar. Ao mesmo tempo criei relações profundas com outros, que até hoje são contribuições fundamentais.
BR: E como você passou para a ópera?
BL: Não passei, foi algo que se deu naturalmente. Foi o Emilio Kalil, diretor do Theatro Municipal de São Paulo na época, que viu meu espetáculo Orlando e achou que ele era de certa forma uma ópera, que a linguagem cênica conversava com a ópera. Daí ele me chamou para montar Suor Angelica, de Puccini – minha primeira parceria com Paulo Mendes da Rocha. A mesma coisa aconteceu com a primeira exposição, a Faap me convidou para fazer uma exposição da alta-costura do Christian Lacroix. E me chamaram, em seguida, para fazer uma exposição sobre o Brasil. Foi quando conheci a Maria Lúcia Montes, uma antropóloga e historiadora da USP, uma pessoa extraordinária que trabalhava com Emanoel Araújo e o ajudou a criar e inventar a Pinacoteca [do Estado de São Paulo; Araújo criou a Associação dos Amigos da Pinacoteca]. A Maria Lúcia foi uma pessoa que me ensinou muita coisa. Ela falava: “Isso não conversa com isso. Essa imagem não conversa. O que que conversa com o quê? O que colocar do lado de quê?” E eu resolvi fazer uma exposição, a Brasileiro que nem eu. Que nem quem?. Era um pouco sobre o que é o brasileiro, mas, ao mesmo tempo, já era uma coisa multi. Primeiro a gente pensou: historicamente, quem é o brasileiro? Então vieram o documento, o registro, mas olhávamos e falávamos: “o brasileiro não está aqui”. Pegávamos foto documental, mas o brasileiro também não estava lá. Então havia as artes plásticas, a poesia, a música. Tínhamos muitas linguagens para explicar o que era o brasileiro. Uma música do Cartola, por exemplo, pode falar mais do brasileiro do que mil documentos, mas os documentos dizem algo que o Cartola não diz – então a exposição precisava contar com essas múltiplas camadas, para tentar chegar ao “brasileiro”. Foi minha primeira exposição, a primeira em que fiz curadoria e expografia.
Nessa época, conheci o [José] Mindlin, porque eu precisava de um quadro do Franz Post. Foi a coisa mais linda do mundo. Eu nunca tinha feito curadoria e nem exposição, então ninguém me cedia nada. Eu ligava para a dona do quadro, pedia para ela me emprestar a obra, até que um dia ela não aguentou mais e disse: “Minha filha, eu só te entrego o meu quadro se o José Mindlin vier aqui”. Tudo bem, não tinha, e acho que continuo não tendo, nenhuma timidez para alcançar o que era imprescindível para que o discurso da exposição ficasse inteligível. Peguei o telefone do Mindlin, liguei: “José Mindlin, aqui é Bia Lessa, você não me conhece, etc.”. Ele disse: “Me dá cinco minutos”. Deu cinco minutos e ele me ligou: “Estou aqui na porta dela”. Ele foi até a casa da colecionadora e me trouxe um Franz Post naquele mesmo dia. Lembro que uma vez liguei para ele e falei: “Puxa, não estou conseguindo ir aí tantas vezes te ver”, e ele me disse: “Você tem que me garantir só uma coisa: você está lendo? Me visitar não precisa”. Eu tinha o maior preconceito do mundo com colecionador, porque acho essa coisa de coleção besta. Mas fui na coleção do Mindlin e, na hora em que ele me abriu o Grande Sertão: Veredas, fiquei tonta, quase caí. Me deu um grau de emoção, fiquei branca, e entendi o Mindlin e a importância daquilo. É incrível, o jeito como ele doou, o jeito como ele cuidava, como ele divulgava [a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin foi doada para a Universidade de São Paulo (USP) e é aberta ao público]. Era o oposto da coleção, no sentido do acúmulo.
BR: E você chegou ao Grande Sertão: Veredas.
BL: Me chamaram para o Museu da Língua Portuguesa e o projeto do museu era maravilhoso, mas tinha só a ver com a estrutura da palavra. De onde ela vinha, o que vinha do tupi, do latim… E pensei: um museu sobre a língua portuguesa que não fala da linguagem? O poder do idioma é a linguagem. Claro que é importante você saber a origem das palavras, mas me brotou de imediato o valor da linguagem, que é o que me fascina na vida – as mil formas de você falar com o outro. Pensei no Grande Sertão: Veredas, em Guimarães Rosa, mas eu nunca tinha lido o livro. Eu conhecia da escola, mas nunca tinha lido. E, na hora em que eu peguei o livro, pensei: “Me fodi”. Porque não podia expor nada, se expusesse uma fotografia, estaria falando que o sertão era aquilo. Se eu fizesse o sertão da Bahia, se pusesse os óculos do Guimarães… Qualquer exposição enfraqueceria a obra.
Lembro que entrei no museu e ele estava em obra. Vi os entulhos e me veio aquela metáfora óbvia, que é a construção do museu, a construção da linguagem. Então decidi trabalhar com os tijolos, com os restos, os entulhos – os materiais da construção dariam suporte às palavras. Uma constrói prédio, a outra ideias.
BR: E isso foi decisivo para a própria instituição, para o museu ser o que ele quis ser.
BL: Acho que foi. Até foi bonito isso, porque a gente teve uma discussão muito grande e eu defendia que fosse museu e ninguém queria que fosse museu. Era o “Palácio da Palavra”. Eu falei: “Não, tem que ser museu, porque, sendo museu, vai nos obrigar a ter um outro tipo de relação”. Foi uma briga bonita.
BR: O que você está dizendo é que o museu não tem que ser o que o museu é?
BL: Acho que a função da gente é contribuir. É ampliar as regras ou mudar as regras. Quer dizer, na profissão de crítica não tem outra saída, você está no fogo cruzado. Se vai fazer o que já existe, não é essa a profissão. Então não adianta. Acho que a função é botar a cara a tapa, uma função de exposição absoluta. Mas foi muito difícil, eu sofri muito. Não sofri só para fazer, mas sofri para convencer as pessoas de fazer uma exposição só com palavras. Eles não queriam, receavam o uso exclusivo da palavra, diziam que palavra é a coisa mais chata de uma exposição – e de certa forma eles tinham razão, mas a palavra na exposição não era apenas texto, era também imagem. Acho que por isso tocava tanto as pessoas.
LB: Isso me lembra dos vídeos da preparação para a peça [Grande Sertão: Veredas]. Tem ali um trabalho duplo. Você primeiro faz a curadoria do próprio Guimarães, tanto na exposição quanto na peça, e a partir daquilo cria um espaço, primeiro no ensaio, depois na peça.
BL: E depois no filme.
LB: E depois no filme. De interação do ator com o texto em relação ao qual você fez a curadoria e depois do espectador em relação ao espaço. Eu queria que você falasse um pouquinho disso. Ser curadora de Guimarães Rosa e Mário de Andrade [na peça Macunaíma] e de vários outros.
BL: Nunca adaptei, porque sempre trabalhei com alguém com o domínio da palavra. No caso do Grande Sertão, também não adaptei. Eu curei, fui tirando trechos. Quando falam adaptação, não tem adaptação, tem o livro tal como é, esse pedaço, aquele pedaço, aquele outro pedaço. Então, não teve, como teve no Orlando, uma adaptação [de Sérgio Sant’Anna sobre o romance de Virginia Woolf].
LB: E é a curadoria como criação, não é? Você está criando sem intervir no texto diretamente.
BL: É, você intervém na relação dele com o outro. O que é que está do lado do quê? Você colocar um Kafka do lado de um Dostoiévski é diferente de você colocar um Kafka do lado de um Freud. Você faz algo a partir da relação que estabelece entre uma coisa e outra. É isso que acho lindo na curadoria: o que está do lado do quê? O que está conversando? Então você vai criando uma outra camada. Isso é muito lindo.
BR: Acho que na verdade é isso que dá um salto na curadoria. Por exemplo, o museu está em crise, então você arranja um tema, cata isso, cata aquilo, cata aquilo outro.
BL: A primeira vez que vi uma curadoria que me encantou profundamente, porque os museus eram assim, posso estar sendo ignorante, mas era assim. Duchamp. Van Gogh. Daí eu lembro que entrei um dia na Tate [em Londres] e era assim: amor, desejo. E daí tinha o Duchamp, conversando com o Monet, com o Picasso, com o Vermeer. Não era uma exposição cronológica ou uma retrospectiva de um dos artistas, era a obra de um em diálogo com a do outro – atravessando os tempos, sem cerimônia.
FS: Talvez você pudesse falar da disposição das peças naquela exposição da coleção do Itaú. De alguns quadros colocados no chão, tendo um suporte de vidro em cima. Como a “Painting to Be Stepped On”, da Yoko Ono. Lembro como a reação a essa exposição foi violenta. A reação a outro lugar para olhar, a outro modo de pensar a disposição, e o percurso pelas obras. E houve também a reação à mostra sobre o Barroco. A recepção a essas exposições foi marcada por um desconforto muito grande de curadores mais tradicionais e também de alguns artistas.
BL: O Emanoel Araújo tinha acabado de fazer uma exposição no Grand Palais, em Paris, sobre o barroco brasileiro, com muito sucesso. Uma exposição toda barroca, uma obra do lado da outra, linda, como ele sempre fez. E o meu barroco era uma exposição dos 450 anos do Brasil. Então na minha cabeça eu tinha que fazer uma exposição do Brasil, do povo brasileiro e do barroco. Por isso, criei aquelas flores todas e separei as obras. Então, eu punha um Aleijadinho e você andava dez, quinze metros para ver o outro. Havia ali dois protagonistas em diálogo: as obras e a história do Brasil a partir da colonização, que imprimiu uma religiosidade católica, cheia de pecados e culpa, onde o homem tem que ter temor a Deus, e o brasileiro transformou essa religiosidade num Deus que obedece aos desejos do homem: “Se Santo Antônio não me arruma um marido, ele fica de cabeça para baixo”. O barroco brasileiro traz essas questões, as obras barrocas que vieram da Europa e foram se transformando a partir da realidade encontrada aqui. Foi uma exposição que gerou uma série de questões, propunha uma outra forma de expor que não fosse mais o cubo branco, criando elementos que dialogavam com as obras.
Em Brasileiro que nem eu. Que nem quem?, foi a maior discussão com a Maria Lúcia Montes porque eu disse que ia colocar [as obras religiosas] no chão. Era uma briga imensa, porque como colocar o “sagrado” no chão? A Maria Lúcia falava que não podia botar no chão arte sacra, o ouro no chão. Eu retruquei: “As pessoas vão pisar em cima da igreja” e o que aconteceu foi o imprevisível: o chão ficou mais sagrado do que nunca, as pessoas pisavam com imenso cuidado, como se pisassem em ovos. E nessa sala, no teto, tinha uma foto da Nossa Senhora da Boa Morte, o que era bonito porque a morta refletia nesse vidro em cima do qual as pessoas passavam. Sagrado e profano juntos. Era uma exposição em que chão, teto e parede existiam.
Para fazer a cidade de São Paulo, para explicitar a selvageria da especulação imobiliária, optamos por colocar palitos de fósforos queimados pela parede inteira – era uma parede circular –, eram milhões de palitos de fósforo, colocados um a um. No centro da sala havia uma espécie de poço com óleo negro – petróleo –, no centro desse poço, exposto o osso do Anchieta, porque conseguimos o osso do Anchieta. Até hoje não sabemos como a Diocese nos emprestou esse osso. Então na sala tínhamos a floresta destruída através dos milhares de palitos de fósforo queimados, o poder e a sedução do dinheiro através da beleza do poço de petróleo, que produzia uma espécie de espelho onde tudo se refletia, e um pedaço do corpo do colonizador.
E tinha uma coisa que eu gostava. A exposição chamava Brasileiro que nem eu. Que nem quem?. Quando as pessoas entravam, eram fotografadas, e íamos colocando a foto de cada visitante [na parede] e fomos tendo que criar mais paredes, a exposição ia se ampliando diariamente. E tinha expostas as obras de artes plásticas, os documentos, a música, a poesia, a fotografia etc. Camadas!
BR: Voltando ao Grande Sertão, você primeiro chegou à exposição, e da exposição foi para a peça.
BL: Teve a exposição e eu não imaginava a possibilidade do teatro.
BR: E como é essa mudança de suporte?
BL: Ah, é de novo aquilo, conteúdo e forma. Se o espaço diz uma coisa, o que está dentro dele, o objeto ou a pessoa, também tem um significado, o diálogo que estabelece entre eles é o que me interessa. Então não me interessava fazer um filme da peça, um registro. Mas havia o desejo de levar para o cinema as questões que o teatro me colocava, porque na peça o cinema me ajudou demais. Por exemplo, o corte seco que tem no cinema foi uma linguagem que levei para o espetáculo. No cinema há uma cena no deserto, corta para dentro do apartamento. No Grande Sertão não tinha entrada e saída de ator. O tempo inteiro estavam todos lá, num espaço que não permitia saída. Os atores ora eram homens, em seguida bichos, plantas – corte seco. Aquilo veio de um pensamento de cinema. Também o som, do fone de ouvido, de ter os ruídos como linguagem, como quase uma cenografia sensorial, veio da ideia do foley [sonoplastia] do cinema. O cinema foi uma referência para o espetáculo.
Muito do que penso, desde o trabalho do ator e tudo na minha vida, é quase o oposto do Antunes, me apoio nele para fazer outra coisa. Mas no Antunes era assim, a gente ia montar o Nelson Rodrigues, a gente estudava todo o Nelson Rodrigues, a fala do Nelson Rodrigues, o que ele quis dizer naquele momento, e eu, com o tempo, fiquei achando isso quase ingênuo, porque a sensação que tenho é que você vai emburrecendo, primeiro você tem a pretensão de achar que sabe exatamente o que aquele autor quer dizer, e é impossível descobrir isso, porque o bom, quando você lê, é pensar sobre aquilo, não exatamente o que o autor quis exprimir, mas o que te interessa no que você leu.
BR: E esse foi o caminho por muito tempo da crítica. Querer entrar na cabeça do autor e explicar o que era a cabeça dele. Isso em literatura foi um desastre.
BL: Mas isso, na realidade, não é crítica. Isso é uma aula, uma tentativa de domínio total dos códigos e conteúdos – isso me parece pretensioso e ao mesmo tempo ingênuo. O ator virava o empregado do texto. Você era um empregado e acho que, em qualquer ato de criação, você não pode ser empregado, você tem que ter brio, tem que ter caráter, entendeu? Não posso ter medo do Guimarães. Eu o acho um gênio, mas, se vou fazer a obra dele, tenho que olhar para ele e me colocar.
As pessoas falavam muito: volta pro teatro. Mas, para voltar pro teatro, eu queria criar uma grande dificuldade. Essa era a máxima do Antunes, que também levo para o resto da minha vida. O bom da vida é você criar dificuldade, não criar facilidade. Ele falava que, quando você cria uma dificuldade, é só uma questão de trabalhar. Você pode trabalhar dez anos, mas, quando você resolver, deu um passo para a frente. O espetáculo Grande Sertão trazia muitas questões, entre elas a impossibilidade de criar uma cenografia que localizasse o romance em uma região – tínhamos que criar um espaço concreto e abstrato ao mesmo tempo, porque o sertão do Guimarães não é um espaço geográfico, mas um espaço metafísico: “O sertão está dentro da gente”. Um dia, uma antropóloga, Marina Vanzoline, me deu uma definição linda. Ela viu o espetáculo e falou: “O sertão não está aí, mas você evoca o sertão.” Que palavra boa.
BR: E mais ainda no filme.
BL: É. Mais ainda no filme. Evoca, é bonito. Não afirma. Evoca, chama.
BR: Qual é o formato que te dá mais prazer, ou tanto faz?
BL: Tanto faz. Paulo Mendes dizia uma coisa. Ele falava que férias para ele é trabalhar em outra coisa. Então é assim, descanso do teatro fazendo cinema, do cinema fazendo exposição – o trabalho me cansa, mas me dá um prazer parecido com férias. Teatro é muito difícil, pela questão do grupo. Eu, por exemplo, não gosto de companhia. Implico com companhia, porque acho que você acaba criando um ambiente homogêneo. Eu gosto do diverso, de atores diferentes um do outro: um cheio de experiência, ao lado do outro que nunca pisou no palco, de pessoas oriundas de diferentes culturas, com origens e conhecimentos variados. Eu gosto de estar apaixonada pelas pessoas que estou dirigindo. Mas hoje em dia a questão do mercado me apavora, a relação forte com o dinheiro, a fama, a carreira, que está cada vez menos vinculada ao significado do ofício. O ofício pelo qual optamos é um ofício de risco, de precipícios e não de certezas.
BR: Mas você falou uma coisa fundamental, que você vai tendo ideias, mas ninguém vai. É isso que me impressionou muito no filme. Na situação em que a gente está, economia de mercado e tudo o mais, você peita isso e diz “ninguém vai”. Mas vai.
BL: Às vezes temos público, não é sempre. No Cartas ao mundo não foram. Mas não ter público também faz parte. O Grande Sertão foi um sucesso. Foi mais do que um sucesso. Ele foi, de fato, uma coisa que eu nunca tinha vivido. Já vivi sucessos. A terra dos meninos pelados, meu primeiro espetáculo, foi um sucesso imenso. Orlando foi um sucesso imenso. As óperas foram sucessos imensos. Não foi só fracasso, mas o Grande Sertão é diferente. É uma coisa diferente, mesmo para a gente. O sucesso tem – como vou dizer? – uma alegria.
IC: É como a Bia falou. Quando ninguém vai, a sensação é mesmo de uma humilhação diária. O ator está ali toda noite para fazer o espetáculo. As pessoas estão sentadas sem gostar. Ou as pessoas não estão nem lá sentadas. Ou as pessoas estão sentadas e vão embora. É uma humilhação física. Você está lá. Então o sucesso, no sentido da presença do público, de uma relação que se estabelece, é uma alegria sim. É muito forte, é uma explosão.
BL: Isso. Aplausos, pessoas vão ao camarim, todo mundo fala alto. E no Grande Sertão ninguém ia embora do teatro. As pessoas ficavam, choravam, ficavam paradas. Na fila no CCBB tinha gente desde as quatro horas da manhã. E aí tem umas coisas bonitas. A quantidade de gente que escrevia para mim. No dia seguinte tinha, sei lá, oitenta depoimentos que vão do Caetano a um professor do CEAT [Centro Educacional Anísio Teixeira, fundado por Therezinha Gonzaga Ferreira, mãe de Bia Lessa]. Outro dia a [atriz] Luisa Arraes me falou de um projeto novo, ótimo, mas ela me disse: “Bia, sem ilusão, não é?! O que a gente viveu no Grande Sertão a gente sabe que nunca mais”.
LB: Bia, tem o dispositivo no palco [a jaula da peça Grande Sertão: Veredas], não? É do Paulo Mendes [da Rocha]. Os atores não saem, tem aqueles bonecos. Como é que isso foi pensado?
BL: Sabe que esses dias eu estava pensando nisso e não sei como é que esses bonecos chegaram. Lembro de pedir para o Fernando Mello [da Costa] os bonecos. Fernando ainda estava vivo. Daí o Fernando fez a coisa mais linda: ele foi esculpindo. Mas não lembro exatamente, só lembro que queria que eles [os bonecos] virassem mochilas, para que as pessoas as carregassem. O homem carregando o homem nas costas, como peso e como bagagem. E também como rio, como muro, como vento até. O cenário é da Camila Toledo e meu, o Paulo foi um colaborador.
FS: Nos bonecos, você optou por um material semelhante ao que cobre as pessoas em situação de rua.
BL: Exatamente. Hoje, olhando para eles, penso em algumas obras do [Joseph] Beuys [artista alemão, autor de Terno de feltro, de 1970]. O piano coberto…
FS: Sim. O feltro. A gordura e o feltro, cruciais para o Beuys. Lembro que havia uma oficina de fabricação dos bonecos no local do ensaio do Grande Sertão. Eles habitaram o espaço de construção da peça o tempo todo.
BL: Eu não tinha onde ensaiar e resolvi ligar para o Roberto Irineu Marinho, um homem especial, que gosta do meu trabalho. Pensei: “Será que ele não tem um lugar para eu ensaiar?”. Eu queria um lugar bonitinho, que tivesse um jardim agradável. Porque, para mim, o espaço onde se cria um espetáculo ficará impresso na criação – não é apenas uma questão de conforto. No espetáculo As três irmãs, o cenário é quase a casa onde ensaiávamos – as entradas e saídas, as portas… Liguei e perguntei: “Será que você não consegue?” Ele me disse: “Olha, tem o antigo prédio da Infoglobo”. Habitamos aquele lugar, um edifício desocupado, com inúmeras salas. Tivemos a oportunidade de ensaiar, montar uma oficina de cenário, de figurinos, de adereços, num espaço ótimo e ao mesmo tempo em ruínas – o espetáculo tem nele essas ruínas e a generosidade encontradas ali. O espaço, de novo, fez o espetáculo.
Primeiro, o [arquiteto e urbanista] Paulo Mendes [da Rocha, colaborador da peça e morto em 2021, com quem ela trabalhou em seis espetáculos] e eu tivemos uma briga, porque ele falava assim: “Você sempre querendo muita coisa, faz uma única cena, que todo o Grande Sertão está contido em uma única cena”. É fato, no caso do Guimarães, em uma única cena, de certa forma, está toda a obra. Mas o desejo da dificuldade de fazer aquilo tudo era o meu negócio. Eu me encanto não apenas com a linguagem, mas com a história, gosto de como ela é, gosto de não ser cronológica, gosto de misturar as histórias, de valorizar o que está atrás da ação, gosto dos fragmentos um ao lado do outro. A primeira ideia cenográfica que apresentamos a ele era a gaiola, e ele, deslumbrante e radical, falou: “Vamos fazer só uma coisinha, que as pessoas fiquem apoiadas assim, fica todo mundo de pé, nada de fazer o povo sentar, o povo entra e volta, briga pra ver – criamos um corredor apertado em volta da cena”. E, como era dentro do CCBB, que era muito pequenininho, ainda não tinha ideia de fazer ali no meio [o espetáculo foi, por fim, montado na rotunda do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro], fazemos o espaço cênico o maior possível e o espaço para a plateia mínimo, deixa os caras se espremendo e brigando para ver. Olha que beleza. Porque daí você ficava com alguns jagunços dentro e fora.
BR: Que é bem do teatro contemporâneo moderno, tirar a plateia daquela posição passiva e incomodar.
BL: O Paulo tem cada história. A primeira briga feia com o Paulo foi na primeira ópera que eu fiz, olha que briga linda. Era um espaço cênico com uma escadaria que ia do proscênio ao fundo do palco. A distância do chão para a vara de luz era imensa. Tinha que afinar a luz. Não havia escada possível que chegasse até os refletores. Como é que íamos afinar a luz? O Paulo fala: “Simples, desce a vara, a gente calcula o ângulo da luz, e pronto”. Eu falei: “Paulo, não dá. Isso decidimos vendo, experimentando, temos que ver”. A gente afinava a luz assim: sobe a escada, bota essa gelatina, tira, coloca outra, abre o foco etc. Eu lembro que ele olhava e dizia: “Você não acredita na matemática, você não acredita no cálculo”. Mas foi uma briga tão feia que eu falei: “Paulo, saia daqui”. Porque eram cinco dias de montagem, sempre aquela coisa de montagem desesperada. Foi a primeira briga que eu tive com ele, feroz, ele foi embora, furioso. Chamamos uns caras de rapel, pendurados de capacete, e afinamos a luz. Por essa razão acho que fomos tão cúmplices durante a vida, não tínhamos medo dos embates.
BR: Na montagem do Grande Sertão no Rio, o que mais me fascinou, por incrível que pareça, foi o debate. Não saíam duas pessoas com uma opinião igual. Vi duas vezes o espetáculo e foram duas recepções muito diferentes. Uma foi logo no início, tinha muito estranhamento, e a segunda tinha outra coisa interessante, porque as pessoas iam ver uma coisa que já estava elogiada, já era considerada de qualidade. Mas será que não é isso que cabe à crítica, que a crítica devia ser?
FS: Não sei se é assim. A crítica é muitas coisas, as possibilidades de intervenção são muitas. Também na relação com obras contemporâneas. Não vejo a crítica como intervenção posterior. A crítica problematiza campos expressivos. Inclusive o próprio campo de atuação da crítica. No caso da Bia, do Grande Sertão, e também do Macunaíma [baseado na obra de Mário de Andrade], que ela montou depois, havia uma interlocução crítica intensa com muitas pessoas, de áreas bastante diferentes, ao longo de todo o processo – e depois da estreia, ao longo da temporada. Como está havendo com vocês agora. Foi uma construção em debate. Como em tantos outros trabalhos da Bia, há essa atenção para perspectivas diversas. Claro que vai se operar uma síntese ligada ao projeto artístico, que é dela.
BL: O Antunes tinha uma máxima. “Ouça tudo, depois joga fora!” Isso é uma maravilha, é muito bonito. Mas a gente tem cada vez menos um interlocutor real no próprio trabalho, no elenco. Então isso também é um empobrecimento.
FS: Não só no âmbito do elenco, o espaço de discussão pública está muito restrito.
BL: É algo que vocês perguntaram sobre a crítica. Acho que é quase como se a crítica tivesse uma independência do objeto que está sendo criticado, como se fosse, de fato, um pensamento autônomo daquilo que está sendo analisado. Então é ali que acho que a coisa acontece. E é algo necessário, a conversa. Tem que ter, porque, se não tem, morrem os dois. Morre aqui e morre lá. A crítica é uma obra em si, que dialoga com uma outra obra, que também dialoga com infinitas outras coisas e obras.
FS: É a questão da autonomia intelectual. De como ela não tem encontrado lugares mais amplos, do ponto de vista do espaço público, para o seu exercício. Houve de fato esse estreitamento da discussão comum, pública. Pois, quando se discute, se conversa, se você de fato tem autonomia, você vai produzir diferença, vai ser uma diferença em relação a quem produziu aquele objeto, aquela obra, aquele campo artístico, e se produzirá dissenso com relação ao público potencial também. Você não bajula esse público. Não se tem mais esse lugar de dissenso, assim como de análise detida. O que se tem é o elogio fácil, que caiba no Instagram, na divulgação de tal ou qual trabalho. Ou que faculte a simples adequação dessa ou daquela obra a algum trending topic do momento.
BL: E não tem nada a ver com dizer que é bom ou ruim. Tanto que eu lembro que, quando apareceu a coisa da crítica dos bonequinhos do Globo, aplaudindo sentado, em pé, eu quase morri. Eu lembro que eu fui lá, fui brigar. Eu sou tão ingênua que fui ao jornal tentar reverter, porque aquilo induzia o espectador a ir ou não assistir o filme, ver a peça.
BR: No lançamento do filme [O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, baseado em Grande Sertão: Veredas], você comentou a questão de ser hors concours [no Festival do Rio de 2023]. Ou seja, não concorrer. Por que isso?
BL: Eu fiquei muito mal. Flora que me convenceu, com toda a razão, de a gente passar o filme, porque realmente é uma oportunidade, a gente não pode do jeito que estão as coisas se dar ao luxo de falar não. Mas eu acho uma loucura, porque já deixa o filme como uma exceção, ele está fora. Eu acho que é um filme para estar dentro.
–
FS: Mas que não cabe em gavetas pré-prontas. Como o filme do Bressane, lançado na mesma época.
BR: Mas como é que está agora a distribuição?
BL: A Adriana Rattes [cofundadora do Grupo Estação] fará a distribuição. Então a gente está nessa batalha de conseguir dinheiro para fazer o lançamento.
Sofro muito com isso, não por não ter dinheiro, mas por não poder fazer as coisas que eu gostaria de fazer. Por causa de dinheiro. E, ao mesmo tempo, acho que essa precariedade me dá uma liberdade muito extraordinária. Acho que eu sou resultado dessa precariedade que nos leva a inventar desde as formas de produção até os caminhos estéticos e ao mesmo tempo gera um cansaço infinito, que de alguma forma vai nos matando.
Você faz opções, as opções têm consequências.