“Vários meses se passaram desde o momento em que comecei essa narrativa, em novembro. Levei bastante tempo para conseguir escrever porque não era nada fácil lançar luz sobre fatos esquecidos, talvez fosse mais simples inventar.” (Ernaux, Annie, 2021)
Todas as profissões têm cacoetes. Os jornalistas, como eu, têm a obsessão de achar um lead e um título nos textos que leem. Acho que hoje, mesmo que cada dia mais longe das matérias jornalísticas e mais próxima dos literários, ainda procuro um lead e um título para o que leio. Uma busca sem pretensão de encontrar um sentido absoluto para o texto, que me serve apenas como método para facilitar minha orientação nas obras da literatura contemporânea. É apenas uma estratégia para percorrer narrativas que abdicam do que o filósofo Jacques Rancière chama de racionalidade ficcional, dada pelo encadeamento de causas e efeitos que organizam um arranjo de eventos estruturante de uma certa realidade, e, que testado pela inversão das expectativas geradas por ele, produz as peripécias vividas pelas personagens (Rancière, 2010). Uma literatura marcada pela diluição da importância dessas peripécias em favor de escritas não lineares, híbridas, compostas por vários gêneros que transformam o romance em uma obra comprometida não apenas com a narração de uma história, mas também com um exercício autobiográfico do autor, que pretende unir arte e vida em sua escrita e dar a sua voz um caráter coletivo e crítico, abordando questões políticas e teóricas caras ao contemporâneo. Uma literatura que não se preocupa em traçar caminhos para o leitor e que se dedica a fazer seu próprio percurso na narrativa, como é o caso do romance Pagu no metrô, da escritora Adriana Armony, em busca de sua biografada, a escritora Patrícia Galvão, a Pagu.
Antes de deixar Rouen, vou visitar a célebre catedral, pintada por Monet entre 1892 e 1894. Por um longo período e várias estações do ano, o pintor traduziu em pontos de luz a mesma igreja, de vários ângulos, a cada vez diferente segundo o clima, a hora, e as sombras dos dias. Gostaria de pintar Pagu assim, não apenas com minhas palavras de escritora, mas também com as histórias, as decepções e esperanças que a atravessam, como leitora (Armony, 2022, p. 106).
Esse trecho do romance é a chave que proponho para a leitura de Pagu no metrô, o meu lead. Assim como o pintor Claude Monet, que instalou seu ateliê em frente à Catedral de Rouen, para observá-la em todas as suas possibilidades, Adriana mudou-se para Paris, onde morou no ano de 2019, em busca de dados sobre a permanência de Pagu na cidade nos anos de 1934 e 1935. Mas, ao contrário de Monet, que se postou diante da matéria da catedral, ela sabe que seu objeto não passa de um espectro em constante movimento, provocado pelas leituras e releituras de sua personagem ao longo de quase um século que as separa. A pesquisadora que precede a autora parece estar convencida de que a experiência em Paris de Pagu está perdida (“É então que me dou conta de que tenho pouquíssimos indícios do que se passou com Pagu em Paris em 1935” [Idem, p. 65]), e que a única tarefa possível à biógrafa é buscar os rastros da passagem da brasileira pela cidade, dispersos em arquivos franceses. Ela fará a biografia de sua personagem dessa letra morta, guardada nos arquivos e observada com a mesma paciência de Monet diante da Catedral de Rouen, que ela sabe não ser totalmente confiável (“Uma distração do funcionário, um carimbo equivocado, e as peças não se encaixam, e todo um castelo pode ruir” [Idem, p. 106]). Dar vida a Pagu como sua leitora, explorando todas as possibilidades de sua biografada sem a certeza dos biógrafos, exige que ela trabalhe a personagem por meio da ficcionalização do real, assim como as impressões de Monet produziram 30 telas diferentes de uma única catedral. O que ela entrega ao leitor é ficção composta pelos restos do real, que colhe em sua permanência em Paris. Real vivido em dois tempos, o dela e o de Pagu.
Restos que se interligam a histórias da própria autora e de suas conhecidas ou amigas e de mulheres que se relacionaram com a biografada na vida real ou na ficção produzida por ela. Mulheres que compõem uma única sujeita. Valho-me aqui da dubiedade desse neologismo sujeita, que, se por um lado dá a elas a condição de sujeito negada pelo patriarcado, por outro nos lembra a desqualificação imposta àquelas chamadas de sujeitas, sujeitinhas. As mulheres que não se assujeitam não são perdoadas. (“(Será que um dia conseguiremos superar a dicotomia santa-puta?)” [Ibidem, p. 79].) Pois é essa sujeita renegada pelo patriarcado – não importando se santa ou puta -, resultado da fusão de várias vozes femininas convocadas por Adriana para o romance, que constitui o corpo de mulher materializado no texto. Vozes, incluindo a da biógrafa, que gravitam em torno de Pagu. Vozes que reverberam na escrita e no corpo da autora, assim como na escrita e no corpo de Pagu. (“Posso imaginar como Patrícia se sentiu. Como muitas mulheres, também perdi um bebê. E tive outros, como Patrícia teria depois o seu. Rudá, seu menininho de cabelos dourados, com seu pijaminha, o polegar deformando a boca e a outra mão atrapalhada nos cabelos. Aquele que ela queria esmagar no seu seio, aquele que não devia conhecer aquela ternura criminosa. Eu me reconheço na Pagu de 14” [Ibidem, p. 11]) Uma sujeita que indica quando autora e personagem, ou, no caso estudado aqui, biógrafa e biografada, formam o mesmo corpo de mulher.
Na plataforma do metrô République, duas mulheres se encaram. Uma tem mais de 100 anos, a outra praticamente a metade disso. A centenária tem também 52, e ao mesmo tempo 24. A pesquisadora tem também 24 anos, caminha para os 52 e em um piscar de olhos ultrapassará os 100 (Ibidem, p. 126).
Um corpo coletivo, múltiplo, constituído em uma colagem que une fragmentos da vida de mais de 20 mulheres reais ou fictícias trazidas para o romance. Fragmentos que não são um sintoma da impossibilidade da linguagem, mas, sim, da impossibilidade de se recompor uma vida em uma narrativa teleológica. Assim, eles servem, como uma estratégia da escrita contemporânea, para compor uma rede de interconexões que problematiza o real, e que, no caso de Pagu no metrô, forma um sentido para a vida narrada, sem qualquer pretensão de reconstruir essa trajetória em seus detalhes. Um sentido dado por um vozerio de mulheres que compõe uma experiência marcada pela repressão, pela violência sexual, pela hipocrisia e pela invisibilidade vividas por Pagu. Adriana tece, assim, uma teia em torno de sua biografada, com o objetivo de dar visibilidade não apenas a mulheres que nunca foram vistas em suas múltiplas possibilidades, mas, sobretudo, à experiência daquelas que fizeram de suas vidas uma história de resistência à ordem de um mundo patriarcal. Mulheres que “produziram importantes rupturas e sucessivos deslocamentos no imaginário social, especialmente no que tange às questões da moral, da sexualidade e dos modelos de feminilidade e corporeidade que lhes deveriam ter servido de referência” (Rago, 2013, p. 35). Essas vozes femininas se agregam ao romance pela técnica da montagem, como uma forma de dublar ou redizer essas experiências, uma estratégia narrativa que Clara Schulmann (2022) vai identificar como comum na literatura contemporânea feminista.
Trata-se de ouvir vozes, isolando-as dos terrenos ou dos contextos em que elas puderam aparecer, para capturá-las de outro modo. O trabalho se parece portanto com uma forma de transcrição, eventualmente de montagem, de assemblage. A escrita faz nascer essa comunidade ao desenhar ligações de parentesco: como se eu tentasse dar existência a uma família improvável, que o tempo, as épocas e as disciplinas não pudessem separar (Schulmann, 2000, p. 14).
Pagu é a principal destas vozes. Musa dos modernistas paulistanos, é vista como uma femme fatale, que com sua beleza e poder de sedução nunca despertaria um sentimento puro (Galvão, 2020, p. 20), ou, ainda, que colocaria homens e famílias em perigo. (“Pagu chegou a ser inocentada numa sentença inusitada em que o juiz federal Bruno Barbosa propunha sua inocência, mas destacava o “poder de atração das mulheres revolucionárias” [Ibidem, p. 100]) Um estereótipo que Pagu não conseguiu se libertar nem mesmo quando saiu da prisão, durante o Estado Novo no Brasil, com 26 anos e apenas 44 quilos, e que acabou por obscurecer não apenas sua militância política e a literatura, mas, sobretudo, seu modo de existência marcado pela condição feminina e sua subjetividade. É a experiência dessa mulher que atrai o interesse da pesquisadora e biógrafa, que parece querer, acima de tudo, enxergar na militância política e na literatura dela a mulher que Pagu foi, como deixa claro ao comentar a participação de uma ala de feministas brasileiras em uma manifestação em Paris.
(Por que me esqueci do horário do cortejo? Me pergunto se não tenho ciúmes das moças que carregam os cartazes com a foto de Pagu, o meu cartaz; que empunham o mito talvez sem conhecer a sua história; sem ver as mil e uma mulheres dentro dela, suas contradições, sua complexa e humana beleza.) (Armony, 2022. p. 89).
Chego aqui com o lead e o título de que precisava para percorrer o texto e os caminhos que Adriana traça no romance, mas isso é apenas o começo. A primeira dificuldade que se apresenta a mim é como classificar a obra. Buscar essa classificação, mesmo sabendo que na literatura contemporânea isso é praticamente impossível, é uma forma de esmiuçar a escrita de Adriana, que, em sua busca pela história de Pagu na Paris dos anos 1930, se multiplica. Ela é ao mesmo tempo pesquisadora, biógrafa e ficcionista de um texto que mistura o relato do esforço da pesquisadora em recuperar os fatos do passado e o desejo da ficcionista em interligar a si própria e a biografada em uma rede de experiências feministas. O que seria então esse texto? Uma biografia? Um relatório de pesquisa? Um diário? Um ensaio? Um romance? É possível dizer, logo de saída, que a biografia que Adriana faz de Pagu não é como a que ela faria se fosse uma jornalista. Não vemos no texto o esforço de recompor a vida da biografada, oferecendo ao leitor o maior número possível de informações verificáveis. Aqui, Adriana é ao mesmo tempo autora e a personagem narradora, responsável por estabelecer interconexões entre os fragmentos que compõem a obra. Uma escrita que se filia, assim, a uma tendência contemporânea de deixar visível no texto um “rastro de pontos de tensão em um espaço/movimento de transformação incessante” (HOISEL. 2019, p. 33). Uma tensão que produz não apenas um efeito estético, formal, mas, sobretudo, um sentido para uma vida que não pode ser recuperada, assim como o crítico Silviano Santiago enxerga nos índices remissivos que criam várias entradas para a mesma biografia.
Amplia-se o relato propriamente biográfico de Vargas pelo recurso dos editores a remissões. Elas, uma a uma, introduzem cunhas sucessivas no verbete, fragmentando a grafia de vida predeterminada pela obediência à cronologia e pela sucessão linear dos fatos. As várias remissões ampliam o texto obediente à ordem do alfabeto, retrabalhando-o pelo processo de fragmentação e de dispersão da grafia de vida, com o fim de levar o leitor a conhecer a figura em pauta de maneira mais acidentada e incoerente. Ao mesmo tempo, leva-o a situá-la entre seus distantes e universais companheiros de ideias e de atuação no passado, no presente e no futuro (Santiago, 2015, p. 13).
Essas remissões são constantes no texto de Adriana, que recorre ao passado e ao presente, a Pagu, a si própria e a outras mulheres para construir a personagem que biografa, como se confessasse ser impossível constituí-la apenas com as fontes da memória coletiva ou individual. Admitir essa falha é, na prática, pôr em xeque a clássica divisão entre “as duas fontes de grafias de vida – a enciclopédia, de um lado, e a biografia e a ficção, do outro” (Santiago, 2015, p. 13). Em Pagu no metrô, está tudo junto e misturado. Pagu é real e ao mesmo tempo fruto da ficção de Adriana, assim como Violette Nozière, assassina do pai, o é para Pagu no conto “O dinheiro dos mutilados”, assinado por ela com o pseudônimo King Shelter. Nele, aparecem os personagens Violeta Cottot e Paul Crevel, uma fusão dos nomes dos surrealistas Paul Éluard e René Crevel (esse último quem apresentou a Pagu a história da assassina do pai abusador ocorrida um ano antes de sua chegada a Paris), e muitos elementos do crime que assombrou a cidade. As duas se alimentam do real para produzir ficção, mas há entre elas uma diferença de estilo e de época. Pagu, em sua escrita, faz o esforço dos ficcionistas modernos de apagar a persona real do texto, escondê-la “por trás da observação refinada e das frases compostas a duras penas, com vistas a uma ambição superior − a da criação de um ser de papel e em letras, autônomo, futuro e complexo personagem de ficção” (idem, p. 21). Já Adriana, como os contemporâneos, deixa expostos seus procedimentos de escrita para o leitor, ligando sua obra ao real, mesmo que lhe dê tratamento ficcional, como faz com o texto que encerra o romance em que narra o encontro da biografa e da biografada na Estação République, em Paris. A narração é marcada por uma temporalidade e uma espacialidade surreais, que tornam possíveis um encontro entre Pagu e Adriana em tempos e em lugares diferentes. Elas embarcam em Paris, passam por várias fases da vida, e desembarcam na Estação Carioca, no Rio de Janeiro, em 2022.
Os fragmentos que compõem a obra têm ainda uma função ética de buscar uma forma para o texto literário que o transforme em um documento político, sem, no entanto, empobrecê-lo esteticamente. O arquivo, onde textos e documentos de diversas origens e gêneros podem conviver, para, depois, serem amalgamados na obra pela experimentação formal da escrita contemporânea, é uma estratégia de uma literatura interessada em produzir espetáculos do real ou “realidade-ficção”, como definiu Josephina Ludmer (2013), e não mais em apenas criar um efeito de real na narrativa, como era a intenção das obras oitocentistas percebida por Roland Barthes (2012). “A mistura de gêneros ficcionais e documentais, a inclusão de documentos e imagens de arquivo, o jogo permanente com a identidade real do autor, são algumas das estratégias usadas pelos textos para produzir esses efeitos de realidade” (Gutiérrez. 2017, p. 15). É nesse terreno movente, em que se transformou a escrita literária contemporânea, que os textos híbridos se situam “na fronteira entre o ficcional e o documental experimentando permanentemente esses limites” (Idem, p. 14), e deixando à vista do leitor os procedimentos que desestabilizam o estatuto do ficcional, baseado na imaginação comprometida com o princípio da verossimilhança.
Um dos aspectos destacados na análise destas formas híbridas é que se constroem misturando o discurso ficcional (que não teria presunção de verdade, tal como definido por Costa-Lima) com outro tipo de discursos em que existiria essa presunção de verdade (como o ensaio, o discurso da crítica e da história literária e a autobiografia) (Ibidem, p. 49).
Adriana escreve nessa fronteira explorada por múltiplos escritores em textos híbridos, que dão aos autores um novo protagonismo, com as escritas autobiográficas ou de autoficção. Ela é leitora, pesquisadora, admiradora e cúmplice de Pagu, ao mesmo tempo que se propõe a ser sua biógrafa em um romance que narra um biografema da vida da modernista (Barthes, 2005): a experiência de Pagu em Paris nos anos de 1934 e 1935. O hibridismo de seu texto se materializa nas páginas finais do romance. O livro se encerra não com o fim da história, mas com anexos onde está listada “alguma bibliografia” a que autora recorreu na pesquisa; com os agradecimentos a quem participou de seu estágio pós-doutoral iniciado na UFRJ e terminado na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3; e com a reprodução de documentos consultados por ela. Anexos inusuais na literatura, que, no entanto, não surpreendem os leitores dos romances contemporâneos. A pesquisa de Adriana rende frutos que são registrados no romance, com os detalhes da permanência da modernista na cidade, marcada por uma intensa militância comunista que a levou à cadeia e ao risco de extradição. Entre as descobertas que a autora-pesquisadora fez nos arquivos franceses está uma foto inédita, tirada na ocasião da prisão pela própria polícia, e um prontuário de internação de Pagu em um hospital, decorrente de uma metrorragia, que a faz desconfiar ser provocada por um aborto ou de um mioma, mas que, ao fim, descobre ser sequela de um ferimento causado por uma tentativa de suicídio. Os dados, até então desconhecidos, são comemorados pela pesquisadora, mas quem se alimenta deles é a romancista.
Metrorragia (do grego antigo, metra, útero, + -rrahagia, fluxo excessivo): sangramento uterino excessivo fora do período menstrual.
(…)
(Um choque súbito: o nome do sintoma de Pagu contém o radical “metro”. Uma nova camada, inesperada, cobre o título deste livro.) (Armony, 2022, p. 114).
Sexo, útero, gravidez, aborto. Esses são temas que perpassam toda a narrativa do romance. O nome que Pagu usou em Paris parece aos olhos da biógrafa a fusão de muitas dessas situações. Leónie Boucher, ou, em português, Leonina Açougueira. Leonina era a parteira que recebeu todos os brinquedos que comprara para a filha que teria com Oswald de Andrade, o marido de sua “ídola Tarsila do Amaral”. Um feto que morreu depois que a genitora se jogou no Rio Pinheiros, onde “ficou uma hora lutando contra a correnteza” (Idem, p. 10). Açougueira, por sua vez, é uma alusão à forma como as aborteiras eram conhecidas em Paris. Adriana descobre a ficha de uma mulher chamada Léonie Boucher, condenada à prisão por um aborto ilegal, em suas pesquisas nos arquivos das prisões, outros dados, no entanto, mostram que essa Léonie não era Pagu. Mas a violência a que as mulheres que fazem um aborto estão expostas e a interdição ao prazer do sexo perpassam a narrativa. O sexo quase nunca aparece como um encontro de corpos movidos apenas pelo desejo. Ele cede lugar à luxúria do homem, exercida como um instrumento violento ou não de dominação das mulheres, e, nem mesmo a musa das vanguardas brasileiras conseguiu fugir a essa regra. Adriana reproduz no romance um trecho da carta que Pagu escreveu na prisão para Geraldo Ferraz, que viria a ser seu marido, falando do amadurecimento sexual como sendo uma das “páginas mais doídas” do relato da vida de sua biografada. (“Foi quando começou a compreender que o ato sexual poderia ser mais do que “uma carinhosa dádiva do meu corpo ausente” [Idem, p. 27]). Mas não é apenas Pagu que sofre na mão de homens narcisistas que não enxergam as mulheres com quem se relacionam. Quase todas as mulheres que Adriana reúne, inclusive ela, são ou já foram vítimas desses homens, inclusive a adolescente protagonista de Zazie no metrô, de Raymond Queneau, de onde vem a inspiração para o título do romance, que sofre um abuso sexual.
No entanto, o que une todas essas mulheres que gravitam em torno de Pagu no romance não é o sofrimento, mas um modo de vida que não diz respeito aos homens. Uma forma particular de existência, que Adriana está interessada em iluminar ao buscar os detalhes da permanência de Pagu em Paris. A autora mostra-se consciente da disputa política entre homens e mulheres, que está em torno do “controle do que significa ser mulher” (Rago, 2001, p. 59). (“Quando eu tinha 14 anos, a palavra feminismo evocava mulheres brutas queimando sutiãs, como bruxas. Algumas usavam botas pesadas e eram chamadas de sapatão. Mas havia as moças que tinham aproveitado para libertar os seios sob vestidos esvoaçantes.” [Armony, 2022, p. 84]) Recusar esse estereótipo e outros, como o da femme fatale, é afirmar o modo de existência das mulheres, o que, segundo Rago, é uma das questões centrais dos feminismos que têm se preocupado em “propor a construção de identidades femininas sob outras bases e parâmetros conceituais” (2001, p. 59). A literatura contemporânea, ao colar-se à vida e à experiência das mulheres, tem sido uma grande aliada do feminismo na recusa às formas de sujeição impostas a elas pelo patriarcado. Mais ainda em romper com o silêncio que lhes foi imposto pelo determinado patriarcado. As mulheres, enfim, à custa de muita luta travada ao longo do século XX conquistaram o status de testemunhas da história, papel que lhes era negado pelas sociedades tradicionais, que tinham o testemunho como “um dispositivo de controle dos corpos e da mente” (Seligmann-Silva in Rago, 2013, p. 19). Adriana, com sua Pagu no metrô, com certeza dá sua contribuição a essa luta. Como ela mesma diz, no fim do romance, “estamos vivos” (Armony, 2022, p. 130). Ouso apenas corrigir o gênero do sujeito do enunciado e falar com a voz aguda das mulheres: “Apesar de tudo, estamos vivas.”
* Luciana Conti é jornalista e doutoranda no Programa de Ciência da Literatura/ Letras/ UFRJ, com bolsa da Capes.
Referências
ARMONY, Adriana. Pagu no Metrô. São Paulo, Editora Nós, 2022.
BARTHES, Rolland. “O efeito de real” in O rumor da língua. São Paulo, Martins Fontes Editora, 2012.
_______________. “Prefácio” in Sade, Fourier e Loyola. São Paulo, Martins Fontes Editora, 2005.
GUTIÉRREZ, Rafael. Formas híbridas. Rio de Janeiro, Editora Circuito, 2017.
HOIZEL, Evelina. Teoria, crítica e criação literária: o escritor e seus múltiplos. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2019.
RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2013.
______________. “Feminizar é preciso. Por uma cultura filógina”, São Paulo em Perspectiva, Revista da Fundação Seade, vol. 15, nº 3, Jul-Set de 2001, pp. 58-66.
SANTIAGO, Silviano. Grafias de vida – a morte. Rio de Janeiro, Revista Serrote, nº 19, IMS, 2015.
SCHULMANN, Clara. Cizânias: vozes de mulheres. Belo Horizonte, Editora Âyiné, 2020.