Os números são eloqüentes: dos 186 milhões de habitantes, a educação – estudantes e professores, do ensino fundamental ao doutorado – envolve 55 milhões. Cotejar esses números com os da produção artística é deparar-se com outro país. A tiragem média de um romance no Brasil é de 3 mil exemplares; a ocupação média dos teatros, de 18%; em crise, as gravadoras têm números pífios, e a média de espectadores de filme brasileiro, de 250 mil, está em 180 mil em 2006. Os números revelam enorme desinteresse pela arte e, deduz-se, cresce a distância entre os significados percebidos pelo público e o conteúdo latente das formas de expressão. Nem os 55 milhões envolvidos na educação usufruem a produção artística. O país vive esquizofrênica fratura: uma educação sem cultura e uma criação artística sem público. Sua economia pode até crescer, mas cresce sem alma.
Criação da subjetividade, de percepção subjetiva, as artes interagem com as demais metáforas – filosofia, antropologia, sociologia etc. – criadas pela sensibilidade e razão humanas para se entender, entender o mundo e se entender no mundo. Braço sistematizado da cultura, a educação tem métodos, normas e hierarquias para realizar a transmissão do saber. A expectativa é de que vivenciado o processo – graduar –se, digamos –, se esteja preparado e motivado para fruir a arte de várias épocas nas suas várias formas. O que se vê, porém, são médicos que jamais leram um romance, engenheiros que nunca foram ao teatro, advogados que não vão ao cinema, dentistas que não se emocionam com a música etc. Na origem do fenômeno, uma sociedade que não tem a educação e o saber como valores – e sim como meios de se ter uma profissão e se inserir na produção. Se ao assegurar o emprego, prescinde-se de qualidade no ensino ou, num utilitarismo ingênuo, se dá, o diploma cumpriu o papel. Sem minimizar a importância do emprego num país carente dele, com tal visão a educação renuncia à função de desvelar universos e se limita a formar mão-de-obra, mais ou menos qualificada. Compelida pelos vestibulares, a idéia reflui aos níveis médios, reduzidos a cursinhos preparatórios. O pragmatismo expulsa as disciplinas chamadas de Humanidades, que dão lugar àquelas de especialização prematura. Nesta moldura, a missão da universidade – universalização do saber pelo tripé da formação do profissional, do cidadão e do homem – torna-se uma trajetória de adestramento para a produção.
A história reconhece na aliança entre educação e cultura a primazia de criar sonhos e inventar meios de realizá-los. O valor simbólico da cultura fecunda o processo civilizatório, dos valores às leis, da política à vida. A herança de colonizado, a exclusão social e a elitização da cultura atrelam o futuro da produção artística ao que a educação lhe reservar – a cultura é dependente da educação. Se ela não cumpre sua missão, sufoca as artes. Não se pode pensar a Educação sem a Cultura, nem a Cultura sem a Educação.
No espectro cultural há um vácuo entre arte popular – autônoma à educação – e arte tradicional, dita do espírito. Tentou-se fazê-las dialogar num amplo projeto nacional popular abortado pela ditadura. No gap entre as duas irrompeu a indústria audiovisual de entretenimento, hoje hegemônica. O público, além de introjetar valores desta indústria, assiste à contaminação da cultura do espírito e da cultura popular pela anódina cultura de massa.
Ao artista resta o desalento por sua obra não chegar ao público, não emocioná-lo nem aguçar sua imaginação, não humanizá-lo ou levá-lo a pensar. Artista e arte perdem a função, o público empobrece e estreita o horizonte da sociedade. Não se formam platéias e as obras não circulam; não se viabiliza economicamente a produção, cujo custo crescente, torna-a mais dependente do Estado, suscetível à discriminação política e acomodação estética – o artista inibe a própria ousadia. À falta do público induzido pela educação, a produção artística se autodesqualifica na busca de audiências que não a reconhecem – e perde o público cativo remanescente.
Educar não é apenas qualificar para o emprego, nem arte é apenas adorno que aguça a sensibilidade. Há uma dimensão humana que, sem educação e cultura, nada agrega como experiência coletiva, nem alcança a plenitude como experiência individual capaz de discernir e ser livre para escolher. E, sem isso, não podemos dizer que somos realmente humanos.
*Alcione Araújo: Escritor, dramaturgo, cronista, roteirista de cinema. Escreveu os romances Nem mesmo todo o oceano (Ed. Record), finalista do Prêmio Jabuti-1998, e acaba de lançar Pássaros de vôo curto (Ed. Record). Autor de peças teatrais: Vagas para moças de fino trato, Muitos anos de Vida (Prêmio Moliére-1984), A Caravana da Ilusão entre outras (Teatro de Alcione Araújo, 3 vols,Ed. Civilização Brasileira). Publicou coletâneas de crônicas :Urgente é a vida (Ed. Record), prêmio Jabuti-2005 e Escritos na água. Escreveu o roteiro dos filmes Nunca Fomos tão felizes, Pátria amada, Policarpo Quaresma, herói do Brasil, entre outros.