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Presente e futuro | de Sérgio de Sá

história é conhecida. Hector Babenco compra o romance El pasado no aeroporto de Buenos Aires, lê de uma estirada as 551 páginas da edição publicada pela Anagrama, se apaixona pela narrativa, telefona para o escritor Alan Pauls. O impacto da leitura leva o cineasta a querer comprar os direitos do livro para o cinema. Ainda espantado pela ousadia do leitor-diretor, Pauls consente. O resto é transformação.

Logo no início do filme, imagens projetadas em vídeo, durante uma festa, mostram “o passado” de Rímini (o galã Gael García Bernal) e Sofía (Analía Couceyro), casal que está junto há treze anos, mas que acaba de decidir se separar. Alan Pauls aparece de relance, conduzindo Sofía escada abaixo, em direção à pista de dança. Ele cruza a tela. E se movimenta ao som de uma canção dos anos 1980. Não entra mais em cena.

O romance de Pauls é isto para o filme: um flash. Ou um flashback de memória de leitura, que se desfaz do literário para se concentrar no cinematográfico. Todas as longas digressões sobre o pintor fictício Jeremy Riltse, que causam bastante desconforto no leitor entusiasmado apenas pela trama amorosa, não são registradas na película. O apreço do texto pelo detalhe também se esvai naturalmente na transposição.

Com isso, perde-se a extensão do romance, notada por Beatriz Sarlo como uma necessidade do “folhetim sentimental” em que se constitui O passado, aliás, exemplarmente traduzido para o português por Josely Vianna Baptista. “Pauls, al saturar, marca una diferencia respecto de aquello con que una lectura distraída o malévola puede confundirlo.”1 A extensão do livro é elemento primordial para pensar nos descartes necessários à adaptação cinematográfica, porque uma coisa é certa: a leitura de Babenco não é distraída ou maldosa.

Não seria exagero afirmar, no caso do filme O passado, que os restos são literatura. A fita toma o indispensável. O macro em oposição ao microscópico, como se escolhesse sempre uma câmera panorâmica sobre o romance, nunca um close-up. Há, contudo, uma chave de interseção nessa opção de adaptar à distância. Trata-se da imagem fechada: as fotografias da vida a dois, lembranças que deveriam ficar para trás, que Sofía insiste em dividir, mas Rímini se recusa a selecionar. Sofía e o espectador sabem que a foto pode levar Rímini a sentir a falta. O passado que se presentifica e aponta para um futuro inevitável.

Somente no final as imagens são vistas e classificadas por Rímini. Assim, colocar a palavra (grafar) sobre o papel fotográfico significa possibilidade de conclusão, desfecho, nó desatado. Nomear, eis a questão. O momento inscrito para sempre, cristalizado no passado, se move até que o verbo venha lhe impedir a passagem. Não à toa, no meio do caminho, Rímini sofre de um estranho mal. Esquece as línguas que lhe davam a sobrevivência como tradutor. Não sabe quem ele é sem Sofía, uma “mulher que ama demais”. Rímini ama de maneira passiva, ao sabor dos acontecimentos.

Com esse viés, a câmera de Babenco resume o caudaloso romance. Capta de maneira impressionante a atmosfera do livro sem ter a pretensão de reproduzi-lo por inteiro. Seria impossível. Sempre é. Quando o cinema quis transportar a literatura ipsis litteris para a tela, se deu muito mal. Em O passado, o excesso de escritura fica de fora. A narrativa hiperliterária de Pauls – e, nesse trabalho intenso com a forma, o que Sarlo chama de “minuciosidad de la obsesión” – dá lugar a um tratamento cinematográfico sem formas segundas, sem frases longas, sem forçar passagens.

Essa aparente simplicidade de enquadramento decepcionou alguns espectadores. É, entretanto, chave para ver. Imagino que o leitor de O passado consiga efetivamente “entrar” com mais facilidade no filme para perceber, por exemplo, a maestria do roteiro nos cortes e saltos temporais. Poucas vezes o cinema percorreu a biografia de uma personagem com tanta rapidez sem assustar o espectador. No livro, é justamente a demora que conquista o leitor. No choque entre os formatos, dá-se o contraste: prazer pode ser pressa ou derramamento.

A atmosfera de uma Buenos Aires outonal, vista através dos diversos climas subjetivos do protagonista e pontuada pela eterna presença da suposta e pretensa ex-mulher, convida o não-leitor do filme a uma deslizante e intensa inércia. A frase literária (palavra) vira frame cinematográfico (imagem) povoado de gente apaixonada, com garras dos mais variados tipos.

Na vida pós-Sofía (ou o que era para ser isso), Rímini engata três casos amorosos. Vê a primeira namorada morrer, tem um filho com outra. E, por conta de Sofía, no papel da louca apaixonada, vai ao fundo do poço. Se há em toda fotografia, como diz Roland Barthes, “o retorno do morto”,2 a personagem de García Bernal ressuscita pelo estímulo ao corpo e nele encontra um tipo de agressão. Outra vez nessa história sobre a permanência do amor, será acolhido pelo abraço de Sofía, a “mulher zumbi”3 – fantasma do passado, do presente e, quem sabe, do futuro.4 A foto guardada está sempre à espera da assinatura que fará o trabalho de luto.

Centrado na espinha dorsal da trama, retiradas o que Pauls chama de camadas literárias, o filme tem vida independente, fica de pé sozinho. Torna sem sentido, mais uma vez, a pergunta que nunca quer calar: o filme é melhor ou pior do que o livro? Porque a resposta é óbvia: o filme é cinema, o livro é literatura.

O passado redime Babenco do fiasco chamado Carandiru e prova que o cineasta é, antes de tudo, um excelente leitor de literatura argentina. Primeiro, apaixona-se. Em seguida, imagina. No terceiro momento, esquece. Com O beijo da mulher-aranha, romance de Manuel Puig, tivemos a primeira evidência dessa qualidade. Agora, ao abandonar Alan Pauls e sua ficção reflexiva nas primeiras cenas, mostra que sabe o instante correto de assinar seu nome sobre a imagem. É o oposto do passivo Rímini, sempre a reboque. Babenco faz a tradução possível entre linguagens.

*Sérgio de Sá, jornalista e doutor em Estudos Literários pela UFMG, é colunista literário do jornal Correio Braziliense e professor na Universidade Católica de Brasília.

NOTAS


1 “La extensión”. In: SARLO, Beatriz. Escritos sobre literatura argentina. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007, p. 444-448.

2 BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 20.

3 Em entrevista a este autor, Alan Pauls afirmou que A mulher zumbi foi o primeiro título pensado para o livro.

4 O futuro é mulher, anunciou, antes, o cineasta Marco Ferreri.