Contra a Interpretação, Susan Sontag
Nesse famoso ensaio que faz parte do livro Contra a interpretação, de 1961, publicado no Brasil em 1987, a afirmação de Susan Sontag indica a relação importante da ensaísta e romancista com o tema deste número da Revista Z. Mais adiante, no mesmo ensaio, afirma que a função da crítica “deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que significa”. Para terminar com a originalidade e a independência que marcavam suas reflexões: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”.
O “olhar que quer mostrar o que é ou o que parece ser” surge como categoria de leitura válida na contemporaneidade. Falo sempre de um olhar feminista sobre a obra de arte, a literatura, o cinema, uma maneira de mostrar como a obra é vista pelo leitor interessado e forçosamente envolvido que é o crítico.
Foi a proposta de uma mulher lançar um olhar sobre outra mulher, a intelectual pública libertária que foi Susan Sontag (1933-2004) – decisiva para toda uma geração de estudiosos de literatura –, que me atraiu no livro de Sigrid Nunez, Sempre Susan. A expectativa foi amplamente satisfeita e, mais do que isso, ele me parece ser altamente sugestivo como exemplo de escrito próximo do biográfico.
Sigrid Nunez (1951) é uma ficcionista premiada que nasceu e vive em Nova York. Também professora e experiente no trabalho com editoras, publicou sobretudo romances. No Brasil encontramos seu livro de contos O que você está enfrentando, lançado aqui em 2021.
No meio dos anos 1970, a jovem Sigrid foi indicada para trabalhar com Susan Sontag pela prestigiosa The New York Review of Books, de que era colaboradora, e ajudar sobretudo com a correspondência acumulada enquanto a escritora operara um câncer de mama que continuava tratando.
Nova York e o mundo literário ofereciam muito em comum às duas, além do trabalho a ser feito juntas. Só que em pouco tempo, Sigrid se mudou para o famoso 340 Riverside Drive, apartamento que dava vista para o rio Hudson e por onde passavam escritores, como Joseph Brodsky, prêmio Nobel (namorado de Susan por certo tempo), críticos, jornalistas, professores, dentre os quais o charmoso amigo Edward Said e outros intelectuais críticos do status quo americano.
Pouco depois de começar a frequentar o apartamento, foi intrépida: passou a namorar David Rieff, filho único da escritora, que, é claro, morava com a mãe. É sobretudo sobre o período de um ano e meio em que conviveram e conversaram os três, geralmente em volta da mesa da cozinha, que o livro fala.
A mãe que dormia no quarto ao lado fora sempre determinada a não deixar que houvesse um gap geracional entre ela e David, tratando-o como adulto desde criança. Fica, porém, chocada quando um psicoterapeuta lhe pergunta certa vez: “Por que você tentou fazer de seu filho um pai?”. São confidências que vão da sessão de terapia aos encontros, amores e desilusões com homens e mulheres que a poderosa intelectual partilha com a aspirante a escritora.
Escrever sobre alguém é sempre mais do que falar do biografado, é sempre, de algum modo, falar sobre si mesmo. O período serviu a Sigrid como iniciação ao mundo literário, político, do gosto requintado, e o livro é, de certa forma, uma breve novela de formação.
A figura de Susan que nos é apresentada é cercada de admiração e afeto, mas também não é poupada na apresentação de suas idiossincrasias: generosa e exigente, forte mas com dificuldade de ficar sozinha, apaixonada ou furiosa. Cobrava da jovem dedicação à carreira de escritora, mas exigia sua companhia o tempo todo. Não tolerava qualquer vitimização, especialmente nas mulheres: “Cuidado com a guetização. Resista à pressão de pensar em si mesma como uma mulher escritora”.
Sigrid referenda que Susan era feminista, mas era também capaz de criticar as irmãs feministas, consideradas pouco intelectualizadas, ingênuas e sentimentais, e garantia que o cânone (ou a arte, ou o gênio, ou o talento, ou a literatura) “não era um empregador que oferece oportunidades iguais”. E não é mesmo.
A melhor definição de Susan Sontag forma todo um parágrafo que resume a biografada e evidencia o talento da romancista:
Ela era tão Nova York. E no entusiasmo, na energia e na ambição, no poder de tudo fazer, no espírito de superação de revezes, na natureza infantil – e na crença em seu excepcionalismo e no poder da própria vontade, na autocriação e na possibilidade de renascer, na possibilidade de novas chances infinitas e de tudo ter –, também era a pessoa mais estadunidense que conheci.
A identidade nacional apontada não deixa de parecer estranha ao falar da intelectual que em 1966 afirmava: “Os Estados Unidos foram fundados sobre um grande genocídio, sobre o pressuposto inquestionável do direito dos brancos europeus de exterminar uma população nativa”.
Conheci Susan Sontag pessoalmente em sua vinda ao Brasil em 1993 para lançamento do romance O amante do vulcão pela Companhia das Letras. Seus livros de ensaios arrebatavam a intelectualidade durante os anos 1980. Cansados do esquematismo estruturalista, já distantes da herança francesa, pensadores e formadores de opinião recebiam os escritos de uma mulher de pensamento independente que já estivera até no Vietnã do Norte como uma possibilidade nova de se olhar cultura e política.
Luiz Schwarcz, seu editor, preparou um lançamento nos moldes americanos, com a autora presente, lendo trecho do romance diante de uma plateia fascinada: a mecha branca, o sorriso largo, todo um corpo que expressava a coragem daquela mulher.
No entanto, o romance não foi o sucesso que as publicações anteriores, conjuntos de ensaios, pareciam anunciar.
Em Sempre Susan, a autora faz o tempo todo restrições à ficção em que a ensaísta se empenhava tanto e que ela lia com dificuldade: “assim como outros leitores de sua obra, considerei os ensaios fascinantes e os romances custosos de ler”.
Depois, em setembro de 2002, a Fundação Biblioteca Nacional sediou o seminário internacional “Caminhos do pensamento: Horizontes da memória”. Susan Sontag foi convidada a partilhar com Carlo Ginzburg, popular entre nós pela obra O queijo e os vermes, a mesa “Conceitos de memória contemporâneos”. Eduardo Portella, diretor da Biblioteca, que fora meu professor e orientador, me pediu que fosse ao aeroporto para recebê-la na véspera da palestra. E lá fui eu, tensa e insegura.
A figura da escritora não desmentia as hipnóticas fotos de estúdio que conhecíamos, e do aeroporto fomos para o Hotel Glória, onde ficaria hospedada.
Apesar da gentileza da convidada, tremi nas bases quando chegamos à recepção. Queria um quarto com cama de casal – mesmo sozinha só dormia em camas duplas, disse –, mesa para escrever com um abajur que realmente iluminasse – justíssimo – e, finalmente, um banheiro com banheira. Aí fiquei em pânico: banheira! Felizmente estávamos no velho Glória e havia um único quarto com todos os requisitos.
Era cedo, havia um dia todo pela frente e ela não conhecia ninguém na cidade. Propus então darmos um passeio e fomos ver a praia, Copacabana, no tempo adorável de setembro no Rio. No caminho falou que tivera câncer e logo se corrigiu: eu tenho câncer. Deu fome e fomos almoçar. Pensei na reles diária oferecida para os gastos, mas ponderei: euzinha, almoçando com Susan Sontag, tenho que caprichar. Estacionamos então num belo restaurante de frutos do mar em frente à praia para o mais inesquecível almoço que desfrutei. Era dia de sorte, tudo estava ótimo, inclusive o vinho que ela pediu. Enquanto conversávamos, a cada frase parecia que de algum modo me testava, enquanto falava sobre o mundo, os Estados Unidos e literatura. No carro me dera uns foras, a maneira como eu entrara no táxi e outra bobagem, mas fomos ficando quase amigas.
Sigrid fala várias vezes do horror que Sontag tinha de ficar sozinha, então era melhor aquela professora brasileira do que um almoço sem companhia no hotel meio triste.
Às páginas tantas falei alguma coisa sobre os anos em que morei na Europa e subitamente a crítica passou a prestar atenção ao que eu falava. Em resposta a suas muitas perguntas – alma de jornalista –, contei que morara em Paris, estudara na École de Hautes Études e assistira às aulas de Roland Barthes. Fora um ano especial para os estudantes, porque as aulas eram dadas num teatro e o crítico francês, vaidoso, aproveitava a iluminação da ribalta.
Daí em diante tudo mudou e tornou-se uma conversa quase entre pares. Poupava minhas observações para ouvi-la o máximo possível e tudo o que falava era da maior importância, sempre marcado pelo magnetismo de sua presença. Política ainda mais que literatura, cultura em todas as expressões possíveis, e pelo mundo afora.
Lembrei-me tanto dessa cena quando li o que Sempre Susan fala sobre a admiração que a ensaísta, ela mesma capaz de se utilizar da belle écriture, tinha por Barthes. No livro está o relato de uma conversa entre as duas a propósito de como David e sua mãe eram próximos e se pareciam:
Ela me mostrou uma fotografia que a encantava, o jovem Roland Barthes com sua mãe (…) Roland Barthes, um dos maiores heróis literários de Susan, a quem eu muito admirava também, viveu com a mãe até o dia em que ela morreu.
A experiência barthesiana nem foi tão importante para mim. Naquele momento o crítico seguia em análises que me pareciam um tanto áridas, no caminho do enjoado S/Z. Nada ainda dos arrebatadores escritos de A câmara clara, que serviu de estímulo para Sontag escrever Sobre a fotografia, ou o íntimo Incidentes, mas me garantiu minimamente o interesse daquela mulher poderosa durante o almoço.
Concluímos o passeio enquanto esperávamos o quarto ficar pronto, indo, por sugestão dela, ao Pão de Açúcar. Subimos até o morro da Urca e lá me dei conta de grave erro meu: não levara nenhuma máquina fotográfica (pré-história: não havia celular para fotos!). Um quiosque vendia aquelas pequenas máquinas descartáveis. Perguntei se poderia tirar uma foto dela com aquela vista, e é claro que ela aprovou, adorara fotos. Foi com a precária maquininha que pude garantir que não fora tudo um delírio.
Antes de irmos, propôs uma foto juntas e essa é mais uma que resistiu ao tempo.
Voltamos para o hotel, deixei-a no quarto, onde abriu a mala e tirou uma série de livros seus e me disse que escolhesse um. Interessei-me por uma obra crítica que se ocupava de teatro e eu não conhecia. “Rubbish”, exclamou, e me estendeu um romance.
Sigrid diz: “insistia que era uma escritora de ficção que por acaso escrevia ensaios, e não o contrário”.
No dia seguinte era a conferência. Na programação não constava o título, porque a palestrante não mandara. Ainda em nossa breve biografia a autora fala da relação ambígua que Susan guardava com as palestras, conferências, aparições públicas de modo geral, necessárias para vender livros, e ela precisava vender. Sigrid fala da impressão que a ensaísta passava de que, se não fosse pelo dinheiro, estava perdendo seu tempo.
Ganhou fama de ser um monstro de arrogância e falta de consideração, mas conforme a vida seguia, os convites continuavam chegando, ela os aceitava, e a má reputação crescia cada vez mais.
E vai mais além:
“Não tenho uma palestra entalada”, dizia, insinuando que ter uma palestra pronta não era algo de que qualquer escritor deveria se orgulhar. Ela improvisava – com resultados variados.
De fato a palestra, com “tema a confirmar”, não foi o sucesso que poderia ter sido. Na verdade, não apresentou nada que os leitores mais aplicados já não conhecessem. Carlo Ginzburg fez uma bela fala sobre “Memória e Distância”, mas, por mais que o historiador italiano esbanjasse simpatia, ninguém poderia concorrer com o carisma de Susan.
Deixou-nos em dezembro de 2004, pouco depois de publicar o fundamental Diante da dor dos outros, dedicado a David, sobre guerra, dor, violência, imagens de atrocidades. O livro começa por citar Virginia Woolf escrevendo sobre a Segunda Grande Guerra, passa por conflitos e atentados, e, a cada imagem do horror de novas guerras telemonitoradas a que assistimos, o livro parece mais atual.
Falando de fotos que constroem nossa ideia do presente e do passado imediato, diz: “Essas ideias são chamadas de ‘memórias’ e isso, no fim das contas, é uma ficção”.