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ÁRVORES, LÍNGUA E HISTÓRIA: UMA ANÁLISE DE TYBYRA

Ao caminharmos em alguma floresta antiga, dessas que existem há milênios, ou que ao menos puderam crescer em paz por algumas centenas de anos, às vezes nos deparamos com pequenos montes de terra, da altura de uma pessoa, ou de uma sobre os ombros da outra, no máximo. No meio da sensação mágica de abafamento da mata antiga – o ar parado, os mosquitos indo e vindo, o completo silêncio pesado como uma coberta de inverno, e o ritmo dos pés estalando camadas de folhas que caíram umas sobre as outras ao longo de anos até que viraram terra macia –, esses montes parecem alheios e externos, como se fossem postos ali por um ato de um deus criança. Frequentemente, esses montes de terra, onde já crescem árvores menores, são acompanhados por um buraco no sopé, em um de seus lados, formando uma espécie de gruta em que muitos animais, como tatus e quatis, cavam suas tocas, ou então onças passam as noites dormindo ali. É estranho que esses pequenos morros não sejam criados e feitos por alguém. Existem, é verdade, montes de sepultamento, em que povos antigos construíam grandes morros de terra para honrar figuras importantes que ali eram enterradas, sendo que a quantidade de solo deslocado demonstrava a importância daquela pessoa. Também há montes geológicos, formados pela erosão, por fricção de placas tectônicas, por pedras enormes que rolam em dias de chuva ou são arrastadas pelas forças de rios em torrente, entre outras tantas possibilidades.

Esses montes, na realidade, são sinais de tempestades de décadas ou de séculos atrás que afetaram aquela floresta. Quando uma tempestade muito forte assola uma região da mata, às vezes os ventos são tão intensos que derrubam as maiores árvores, que muitas vezes resistiram por toda a sua vida contra a ação das tormentas e que, velhas, vencidas pelas formigas, cupins, pelo solo que cede, pela própria força do vento, finalmente tombam. E quando tombam, seus troncos e galhos pesando toneladas derrubam tudo à sua frente, formando uma cicatriz na mata que logo será coberta por árvores menores que nasceram e permaneceram pequenas por muito tempo, esperando sua chance de crescer. Na extremidade oposta da árvore, no entanto, o tronco se derrama sobre o chão, e junto as raízes rompem-se e rompem a terra, erguendo-se parcialmente no ar e trazendo um toição de terra, o qual forma esses montes, amaciados pelo tempo até tornarem-se um outeiro. Se a árvore não resiste, ela morre e ao longo de décadas ela apodrece, criando casa para os mais diversos animais e plantas no meio do caminho, até que por fim ela desaparece, fertilizando o solo onde as árvores menores que tiveram sua chance já se tornaram as novas árvores velhas, e formando os montes que estamos agora estudando na paisagem do mato verde; onde o tronco se unia às raízes, fica um espaço oco que serve de tocas aos animais que citamos; onde as raízes ficam expostas com a terra, fica o lado mais suave desse monte. É incrível como um dia de chuva e vento há tantos e tantos anos pode deixar sinais inscritos na carne da terra e que podem ser lidos como um livro em língua antiga e esquecida, parcialmente compreensível, mas com muitos trechos perdidos e rasgados.

Figura 1: “Forest cemetery”, Ivan Ivanovich Shishkin, 1893 (National Art Museum of the Republic of Belarus, Minsk)
Figura 1: “Forest cemetery”, Ivan Ivanovich Shishkin, 1893 (National Art Museum of the Republic of Belarus, Minsk)

Entretanto, frequentemente essas mesmas árvores, ainda que velhas e prejudicadas pelo tempo, continuam a viver. Seu tronco tomba sobre a floresta, abrindo uma nova clareira. A maior parte de seus galhos seca e suas raízes ficam expostas no ar, junto à terra revolvida. Quase todo o seu tronco seca e apodrece, mas uma pequena parte sobrevive, lançando novos galhos que, mesmo que não retornem à altura majestosa que a árvore tinha anteriormente, são testemunha de sua força de vida, postando-se humildes junto às árvores mais novas. As raízes no ar secam e se tornam casas para marimbondos e besouros, mas a parte das raízes que permaneceu no solo continua a crescer e se desenvolver. Também é assim com poemas, povos e falas indígenas, ou ao menos é o que imagino quando leio Tybyra.

Juão Nyn e seu povo já são por si mesmos uma dessas árvores que lutaram por viver. Morando no Rio Grande do Norte, uma das áreas de início do contato entre os primeiros comerciantes e exploradores, incumbidos da tarefa da conquista, Juão e sua comunidade não se consideravam indígenas, sujeitos às pressões da colonização. Se víssemos externamente, pareceriam como uma árvore morta, como tantas que de fato pereceram nessa espécie de paisagem natural e colonial do Brasil. Mas restaram raízes vivas no solo, ainda que as outras tenham morrido e sido expostas à ação da erosão, e houve galhos que se mantiveram verdes e florescendo. Os Potiguara, (também) do tronco Tupi, pegaram emprestada a fala da outra ponta de seu tronco linguístico Tupi-Guarani para retomar sua língua e, aos poucos, aquele povo e o autor citado renovaram sua língua e seus costumes, como brasas mexidas na fogueira ou então a clareira exposta após a tempestade, aberta a todas as novas formas de vida.

Nyn, artista Potiguara, estudou teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atuando e dirigindo várias peças desde 2014 e, a partir de 2018, começou a escrever suas próprias obras, enfocando, de maneira geral, o tema de sua ancestralidade indígena. Escreveu, em 2020, Tybyra, uma tragédia indígena brasileira, peça centrada no personagem Tybyra, que aparece em um monólogo dividido em atos – chamados de luzes. Tybyra, resumidamente, foi um indígena Tupinambá executado em 1614 por colonizadores franceses, conforme aparece na narrativa de Yves d’Évreux, que conta seu relato a partir de seu ponto de vista religioso, em Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614 (D’Évreux, 2002 [1844]). Especula-se que a morte do indígena tenha decorrido de uma acusação de sodomia, apesar de não se afirmar claramente no trecho. O Tupinambá, quando foi acusado e condenado, solicitou o batismo e, neste momento, o padre afirma que, após sua morte, “se quiseres ter no Céu os cabelos compridos e o corpo de mulher antes que o de um homem, pede a Tupã que te dê o corpo de mulher e ressuscitarás mulher, e lá no Céu ficará ao lado das mulheres e não dos homens” (D’Évreux, 2002, p. 232). Isto é, é presumível que o indígena fosse uma pessoa transsexual ou homossexual, sendo que alguns comentaristas associam o relato desse indígena executado com outro relato posterior, em que o frade francês narra que havia um indígena hermafrodita na ilha de Juniparã, apesar de essa conexão não ser explícita no texto. Tybyra, de qualquer modo, foi perseguido pelos franceses e executado a tiro de canhão – e esse relato de perseguição, julgamento religioso e execução foi gravado na historiografia colonial. Por conta disso, Tybyra tem sido visto como a primeira vítima de homofobia no Brasil.

Além disso, a peça explora o corpo e sua relação com elementos naturais de maneira muito aprofundada: os atos se chamam luzes, as quais, ao longo de cada seção da peça, iluminam determinada parte do corpo do ator, até que, no último ato, todo o corpo é revelado de uma única vez. Do mesmo modo, há trechos dedicados a cantar a natureza, como os nomes das árvores nativas, ou o som de rio corrente enquanto transcorre o monólogo. Entre outros elementos, há o canhão, no último ato, que executa o indígena. Mas, não por acaso, o tiro do canhão e a morte do personagem são postos em suspenso, e a peça, na realidade, é finalizada não com a execução e a violência colonial, mas sim com um discurso inflamado e premonitório de Tybyra, com a tônica final, novamente, na imagem, no corpo e na fala do indígena, e não nas ações ou falas colonizadoras – um exato reverso da obra do frade Yves d’Évreux, que salienta os atos impuros de Tybyra, seu batismo e sua morte.

Juão ainda apresentou outras invenções em sua peça, como a língua falada por todo o monólogo: o Potyguês. Mistura do Tupi-Guarani, em que a semivogal Y tem ampla presença, com a língua portuguesa, esse novo idioma indianiza e demarca a língua do colonizador, moldando-a a novos sentidos menos coloniais e mais afeitos ao sentido indígena. Mantendo as metáforas vegetais, é como realizar um enxerto: nessa operação, cortamos um pedaço de uma planta e inserimos em outra planta já cortada, amarrando bem as duas partes. Se tudo der certo, as duas plantas (independentemente de serem indivíduos diferentes ou de espécie distinta) podem se desenvolver e criar um híbrido em que a parte enxertada recebe a força da planta original, geralmente mais forte e resistente. No caso de Tybyra, o Potyguês tem a força do Y, do silêncio, do deslocamento causado ao lermos e ouvirmos palavras que são quase indígenas, quase portuguesas. A mistura descentra as duas línguas e cria um híbrido que nos dá a sensação de que mudanças são possíveis, de que as línguas e histórias coloniais não são estanques ou imunes à influência dos colonizados.

Figura 2: Índios usando um tronco de árvore caída para atravessar o Rio Paraíba do Sul, ilustração de <em>Voyage Pittoresque et Historique au Brésil</em>, de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), publicado em Paris, 1839
Figura 2: Índios usando um tronco de árvore caída para atravessar o Rio Paraíba do Sul, ilustração de Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), publicado em Paris, 1839

Para Nyn, o Y por si só já é uma vogal produzida no fundo da garganta, quase próxima ao silêncio, como as tocas onde os tatus e as onças dormem à noite, recobertos pela mata abafada. Na linguagem de Nyn, vemos que há uma língua menor, na acepção de Deleuze (2014), em seu espaço criativo desterritorializado: Nyn resgata o “y”, que vê como uma semivogal vinda da profundeza e da gruta, como uma maneira de dar peso à linguagem de Tybyra. As palavras do português perdem seu caráter de língua do colonizador e ganham a profundidade e o lastro temporal vindos da imagem da gruta, do fundo da garganta. O próprio autor e sua comunidade vivem esse processo, ao passarem a aprender e a falar o Guarani, tendo nascido falantes do português. Esse espaço de descoberta da língua e de, por contraste, nova percepção da língua materna e colonizadora transparece na própria obra e atinge cada leitor, como se cada um também devesse (ou pudesse naquele momento) ler/ouvir a língua portuguesa de outra maneira, vendo nela suas possibilidades de transformar-se em um enxerto entre português e Tupi-Guarani.

Em Tybyra, o silêncio é o interlocutor por excelência, pois a peça se constitui por poucos elementos: o monólogo de Tybyra, as luzes que demarcam partes do corpo dos atores e que denominam os próprios atos, a tinta sobre a pele, os sons de mato e água e, essencialmente, a fala. É uma fala truncada, dirigida a um silêncio persistente, marcada por avaliações, convites, reclamações, ironias, beliscões, deboches e prazeres, em que acompanhamos a história de Tybyra. Nela vemos esse contato colonizador-colonizado, quando esses termos ainda nem eram postos, em uma relação regida pelo prazer da descoberta e do encontro sexual, não problematizado por Tybyra, mas que se transforma, para os colonizadores europeus, em recalque, culpa e raiva.

No diálogo da peça, o interlocutor implícito, o silêncio, se torna frequentemente esse colonizador do passado e, por desdobramento, se transforma na imaginação da plateia e, por fim, na própria plateia, que percebe a si mesma no silêncio do passado a que Tybyra se dirige, uma mistura entre as figuras dos colonizadores como interlocutores e a audiência. Um silêncio marcado pela vergonha, pela negação da vontade e do prazer, o silêncio de preconceito, das ameaças e pecados que se tornaram parte do nosso pensamento, e que ocupa o fundo de nossas mentes. Por isso a importância de falar em uma nova linguagem, uma linguagem que descentra e desconcerta e que permite identificar e nomear esse silêncio do interlocutor a que Tybyra se dirige e se tornou parte de nós, culpando, tolhendo e punindo os prazeres, vontades e, de maneira mais concreta, os corpos e povos indígenas.

É necessário ainda ressaltar o papel da ironia e do chiste na peça Tybyra. Como frequentemente aparece em obras indígenas, a ironia tem papel central, ao afirmar o oposto do que se aparenta dizer, ao criar jogos de palavras em que o verdadeiro significado se esconde sob a face do humor e pode ali ser apreendido sem um embate direto. É claro que, em Tybyra, há falas diretas, confrontos com esse outro silencioso e colonizador; entretanto, o humor e a ironia aparecem com mais força na obra, como piadas e deboches sobre o que está escondido. Não por acaso, essa ironia é dirigida aos desejos e ações do colonizador, que transforma sua sexualidade – ao tolhê-la, puni-la e castrá-la – em agressividade e violência. Freud (1980) comentava que o chiste, a ironia e o humor em geral são meios de se conseguir liberar tensões e recalques sem precisar entrar em um conflito direto com eles, o que é muito custoso psiquicamente e que se pode resolver com muito mais facilidade e vantagem para o locutor por meio da ironia, do duplo sentido, do chiste, da piada. Ao mesmo tempo, também parece ser uma forma com que Nyn opera para evitar conflitos diretos entre Tybyra e o colonizador e, extrapolando, entre o indígena colonizado e o colonizador, talvez porque ainda não haja um jogo de forças suficiente para que as coisas possam ser ditas com clareza e justeza sem prejuízo a quem fala a verdade.

Nyn aponta a crueza da modernidade, vista aqui em seu viés colonial, heteronormativo e violento, por meio da regulação do prazer, da língua e da instituição do processo (Tybyra é preso, ouvido e condenado). Seus crimes são confessados, admitidos, redimidos (pelo batismo e pela execução). Nyn aposta em uma transformação vegetal e em metáforas de crescimento e temporalidade: ao desnudar seu personagem e iluminá-lo gradativamente, chamando seus atos de luzes e intercalando com raízes e sons de água, e colocando-lhe no fundo da boca novas palavras que não são nem português nem Potiguara, o autor transforma Tybyra em árvore e em potencialidade criativa. Nyn, desse modo, usa sua linguagem enxertada e demarcada como uma maneira de reformular o passado que criou a própria modernidade. O autor desenvolve, no futuro, a voz de Tybyra e cria um meio de reescrever a história colonial, abrindo a possibilidade de alterar o próprio futuro – por isso as imagens vegetais, de árvores, plantas, raízes crescendo, se desenvolvendo, multiplicando-se, são tão relevantes na peça. A árvore como um signo do passado e do futuro, juntos, tanto na linguagem quanto na narrativa de Tybyra e em seu significado como indígena LGBT. Tybyra, de certa maneira, escapa da bala de canhão que o dividiu ao meio – bala esta que é o término do relato feito por d’Évreux e que, sintomaticamente, é retirada da obra de Nyn justamente para evitar a apoteose da prática colonial, o prazer e o gozo que, inconscientemente, poderiam afluir à plateia ao ver a morte do indivíduo questionador a fim de, assim, retomar um status quo. No lugar disso, Tybyra vira árvore e semente, como ele mesmo coloca em seu monólogo final. É como se o enxerto do português no Tupi-Guarani formasse uma árvore estranha, mas talvez mais forte e produtiva do que seriam individualmente cada uma das línguas em separado, e que consegue ultrapassar os relatos de violência e unir um passado pré-colonial às possibilidades de um futuro (as sementes) em que a única lógica não seja uma espécie de monocultura colonial.

Resgatando a história inicial deste ensaio, os montes dos quais falei anteriormente ainda existem nas matas, e as grandes árvores de raízes no ar com seus pequenos brotos ainda existem, apesar dos dois serem cada vez mais raros pelo fato de as próprias matas antepassadas serem cada vez mais raras em todo o Brasil. Para limpar o mato e possibilitar o plantio da lavoura, um método bastante comum usado em áreas densamente florestadas é a passagem do correntão, em que dois tratores, postos em paralela, são unidos por uma enorme corrente de metal, com força suficiente para derrubar tudo. Todas as árvores tombam, e depois as maiores são serradas e vendidas, abandonando as menores no local, e depois a terra é queimada, reduzida a cinzas. Os tocos restantes são destocados e a terra torna-se pasto ou lavoura. Gradativamente, com o passar das décadas, a força e a fertilidade da terra esmorecem, e aparecem imensas manchas de solo nu, arenoso e pobre. E os montes, em seus pequenos relevos em forma de outeiro, são aplainados e desaparecem, porque dificultam a passagem de caminhões, colheitadeiras, sementeiras e pivôs. As frases do antigo livro da terra já não podem ser lidas, pois tudo se tornou um único grande continuum de lavoura, boi, pasto, cortado por uma estrada de terra vermelha. O mesmo processo ocorreu, poderíamos dizer, em relação às vivências indígenas, negras, quilombolas e de outros povos em nosso país: o correntão serviu para derrubar as línguas (inclusive seus troncos linguísticos), fazê-las desaparecer, deixar de serem faladas, praticadas e lembradas. Os povos foram reduzidos à categoria de periféricos, de vilas que servem para serem controladas e manejadas por um poder local, com pobres endividados e presos à sobrevivência. Mas por vezes essas árvores se mantêm vivas, com seus brotos, e um desses brotos poderia ser a peça de Nyn e seu Potyguês.

Se, nas línguas menores que os artistas encontram – seja a língua de um autor judio e desterritorializado como Kafka, de que trata Deleuze (2014), seja como indígenas que perderam suas terras e seus direitos e buscam retomá-los –, existe um espaço de enxertos, transformações, chistes e brechas, que serve tanto para reformular a linguagem quanto a própria lógica dominante, que pode ser melhor vista através da estranheza, Nyn consegue criar o espaço do reencantamento. Por oposição, a política do desencante (Rufino, Simas, 2011) seria a produção de escassez e mortandade, a administração burocrática da vida, a hierarquização dos seres e a lógica colonial e racional. Essa política, além disso, ignora, tolhe e uniformiza outras lógicas que giram em torno do encantamento, como a integração e interlocução entre diferentes seres vivos, a indissolubilidade entre material e espiritual, racional e irracional, entre outras lógicas que perpassam a modernidade (Goldman, Lima, 1999) e que não se guiam por divisões como racional/irracional, natureza/cultura ou material/espiritual, que retiram do mundo a interligação dos seres vivos, os conhecimentos de povos tradicionais que pensam de outra maneira o tempo. Esse universo de desencante – universo narrado pelos escritores modernos e que culmina na obra de Kafka, entre outros – é questionado por Nyn ao possibilitar modos de contornar e reformular o desencante colonial, a violência e a lógica que podem sim ser reescritas, reimaginadas e rememoradas. A imaginação criativa não se dirige a um espaço melancólico de transformações negativas, unidas pela incompreensão, inação ou incomunicabilidade, mas sim a um espaço de produção positiva das narrativas presentes, passadas e futuras.

Juão Nyn (2020, p. 07) comenta no início de seu livro que os povos indígenas sonham a arte e vivem o sonho, e que fazer arte é um ato coletivo e espiritual. Essa prática permite ver na criação artística um modo de gerar não uma representação sobre o mundo, isto é, um discurso externo do artista sobre os objetos, mas sim uma forma de inscrição do humano sobre os objetos em si, ou então da criação de um novo objeto-sujeito em meio a outros objetos-sujeitos, como Tybyra, que é árvore, antepassado cuja história foi criada no presente e que se tornou uma história de um antepassado. A árvore não como um sinal régio de autoridade, ordem e hierarquia, como esse símbolo opera no Ocidente (podemos pensar no formato árvore da cruz, na presença da árvore como símbolo da nobreza ou da antiguidade do poder, da autoridade que se ergue sobre os demais, como Deleuze [1995] estudou), mas a árvore como símbolo do tempo e do coletivo, como um ser em meio a outros seres, formado pela união dos que crescem juntos, unindo o passado (raízes e tronco) com futuro (flores e sementes). Essa árvore que serve como portal ao passado e ao futuro, e que é corporalizada em Tybyra, morto e transformado, por assim dizer, em árvore e semente aos filhos e netos da posteridade, como o próprio Nyn coloca. Nesse espaço, o sonho vira arte, e arte vira vida: a obra de Nyn é factualmente posterior às de D’Évreux, as falas de Tybyra nunca poderiam ser resgatadas segundo a lógica do desencante, apenas suas ações vistas pela voz colonial (que não era silenciosa na época).

Mas Tybyra e a narrativa da peça se tornam uma nova realidade, como sua linguagem enxertada, como se retomassem a terra do passado e tornassem real a voz que não havia sido falada, mas que agora é uma realidade concreta. Nesse jogo entre passado, presente e futuro, podemos inclusive retomar a noção Aymara, trabalhada por Cusicanqui (2010), do “qhipnayra uñtasis sarnaqapxañani”, ou seja, o passado que poderia ser o futuro, que vive nos sonhos e atualiza utopias. Esse passado que se torna realidade e que abre novas portas ao presente e também ao futuro, como a árvore que estava e estará, que provoca o sonho, é semente e tronco, é vida e gera vida, mesmo que tombada, com as raízes no ar e brotos lutando pelo sol.


* Eduardo Schaan é doutorando em Estudos Literários na UFRGS, organizador e produtor da Tela Indígena, grupo que produz eventos, filmes, exposições, entre outros, sobre a temática indígena no Brasil.

 

Referências

CUSICANQUI, S.. Oprimidos pero no vencidos: Luchas del campesinado aymara y quechwa. 4. ed. La Paz: La mirada salvaje, 2010.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). São Paulo: Ed. 34, 1995.

D’ÉVREUX, Y. Viagem ao Norte do Brasil: feita nos anos de 1613 a 1614 (obra original publicada em 1864). São Paulo: Sciciliano, 2002

FREUD, S. O humor [1927]. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XXI.

GOLDMAN, M.; LIMA, T. S. Como se faz um grande divisor? In: GOLDMAN, M. Alguma antropologia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999, p. 83-92.

NYN, Juão. Tybyra: uma tragédia brasileira. Selo do Burro, 2020.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política da vida. Mórula Editorial, 2020.

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DE CUBA PARA O HARLEM: LANGSTON HUGHES TRADUZ NICOLAS GUILLÉN

Se é que existe reincarnações (sic), eu quero voltar sempre preta.
Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus

 

Como se nota já pelo título, “Tu no sabe inglé” (1930), do poeta cubano Nicolas Guillén, faz uso de uma variante não-padrão da língua colonial espanhola. Guillén apropriou-se do idioma e escreveu-o com marcas de oralidade próprias das comunidades afro-cubanas. O poeta estadunidense Langston Hughes, na tentativa de manter o tom do texto caribenho, fez uma tradução com o título de “Don’t Know no English” (1948) por meio do inglês afro-americano. Essa transposição é interessante por muitos motivos, pois, além do aspecto linguístico do criollo cubano transformando-se em African American English, há também uma questão intercultural, visto que o poema de Guillén brinca com o chamado Spanglish, isto é, com a mescla entre o espanhol e o inglês, fenômeno tão comum até hoje nos Estados Unidos, sobretudo em regiões de grande presença latina.

O poeta, ensaísta, dramaturgo e ficcionista estadunidense Langston Hughes é ainda pouco conhecido no Brasil. Nasceu no ano de 1901, no Missouri e muito jovem, após o divórcio de seus pais, foi morar com a avó materna, graças à qual entra em contato com as tradições orais afro-americanas, que seriam, no futuro, tão importantes em sua obra. É a partir desse momento que o futuro poeta começa a explorar, com o tom lúdico das narrativas caseiras, a relação entre oralidade, ritmo, sonoridade e ancestralidade afro-americana.

Aos treze anos, com a morte da avó, Langston Hughes voltou a morar com a mãe e, alguns anos depois, em 1920, terminou seus estudos em Ohio, sendo eleito o poeta da turma. Concluída a escola, foi morar com o pai no México apesar da conturbada relação que mantinha com ele. Em setembro de 1921, depois dessa temporada fora do país, Langston Hughes foi para Nova York e ingressou no ensino superior. Todavia, mais importante do que os estudos universitários, foi o contato com a atmosfera intensa da cidade, que seria, afinal, o palco da Renascença do Harlem, um movimento intelectual e artístico em Nova York do qual Hughes se tornou o principal expoente.

Entre 1923 e 1924, o poeta foi a Paris apesar da falta de dinheiro. Na volta para os Estados Unidos, fez amizade com outros importantes autores negros de seu tempo, como Zora Neale Hurston, Wallace Thurman e Arna Bontemps. Envolveu-se também na publicação da revista Fire!! e graduou-se pela Lincoln University. Já tendo publicado dois volumes de poesia, lançou o primeiro romance no ano de 1930, Not Without Laughter, e a coletânea de contos The Ways of White Folks em 1934. Ao final da década de 1940, tornou-se professor visitante na Universidade de Chicago no campo de estudos da poesia. Publicou também I Wonder as I Wander, sua segunda autobiografia, na qual narra, dentre outros lugares, suas viagens pelo Haiti, Cuba, Rússia, Espanha e Japão. Langston Hughes faleceu no ano de 1967 na cidade de Nova York. Na década de 1970, foi criada a medalha Langston Hughes, prêmio dedicado a autores que discutem as relações afrodiaspóricas. Dentre os laureados, encontram-se nomes fundamentais da literatura negra, tais como James Baldwin, Toni Morrison, Alice Walker, Maya Angelou, Chinua Achebe, Derek Walcott, Octavia Butler e Zadie Smith.

O segundo autor desta pesquisa é Nicolas Guillén, que nasceu em 1902. O autor estudou Direito na Universidade de Havana, mas, assim como Langston Hughes, não seguiu na carreira acadêmica que escolhera. Dedicou-se, então, à escrita. Ao longo da década de 1920, começou a publicar poesia em revistas literárias. Em 1937, Guillén afiliou-se ao partido comunista. Viajou mais tarde para a Espanha, onde cobriu a guerra civil como jornalista. No regresso para Cuba, mantendo-se firme em sua posição política à esquerda, o poeta recusou um visto para entrar nos Estados Unidos em 1941. Nesse sentido, outra semelhança de sua vida com a de Hughes foram as várias viagens que Guillén realizou. Percorreu diversos países latino-americanos e europeus, além de ter ido para a China.

Nos anos 1950, foi proibido de voltar para Cuba e apenas retornou a seu país de origem com o sucesso da Revolução Cubana em 1959. A partir de então, Nicolas Guillén foi por décadas o presidente da União Nacional de Escritores de Cuba e recebeu amplo reconhecimento por sua produção literária. O poeta faleceu em 1989 e é hoje celebrado como o grande poeta nacional cubano. Sua obra é basilar para se estudar a história afro-cubana, tendo transformado o choque colonial e a mestiçagem em temas centrais de sua lírica.

O encontro com Langston Hughes se deu em fevereiro de 1930, ano em que o autor estadunidense haveria de lançar Not without Laughter, seu primeiro romance. Hughes estava em Cuba, onde sua poesia já era reconhecida pela intelectualidade local e, com diversos interesses literários em comum, não é difícil imaginar como tenha surgido de imediato uma amizade entre os dois jovens poetas. Àquela altura, Hughes já havia publicado, dentre outras obras, os livros de poesia The Weary Blues (1926) e Fine Clothes to the Jew (1927). O poeta, que dominava o espanhol, viu as muitas semelhanças entre os blues e o jazz e o son cubano, estilo musical surgido no século XIX que mistura influências espanholas e de origem africana.

Essa conexão fez com que o laço intercultural entre os dois escritores fosse ainda mais potente. Hughes sugeriu que Guillén absorvesse em sua poesia a tradição do son, algo similar ao que o poeta estadunidense fizera com a musicalidade afro nos Estados Unidos (Rampersad, 1988). Não por acaso, a primeira coletânea de poemas de Guillén, publicada no mesmo ano em que conhecera Hughes, chama-se, justamente, Motivos de son. É possível, por isso, argumentar que houve uma virada na obra de Guillén após seu contato com Langston Hughes pois, antes disso, a poesia do autor cubano não se voltava para os ritmos afro-cubanos como ocorre após 1930. É nesse livro em que se encontra “Tu no sabe inglé”, texto que Hughes haveria de traduzir anos depois.

Figura 1: Langston Hughes (Disponível em: <a href="https://blackhistorynow.com/langston-hughes/">https://blackhistorynow.com/langston-hughes/</a>)
Figura 1: Langston Hughes (Disponível em: https://blackhistorynow.com/langston-hughes/)
Figura 2: Nicolas Guillén (Disponível em: <a href="https://memofromlalaland.wordpress.com/2012/05/23/nicolas-guillen-the-first-west-indian/">https://memofromlalaland.wordpress.com/2012/05/23/nicolas-guillen-the-first-west-indian/</a>)
Figura 2: Nicolas Guillén (Disponível em: https://memofromlalaland.wordpress.com/2012/05/23/nicolas-guillen-the-first-west-indian/)

Língua, raça e colonialidade

Agora que já vimos um pouco da vida de Hughes e Guillén, podemos nos dedicar a uma reflexão teórica sobre o sentido da língua no contexto afrodiaspórico e, sobretudo, sobre as diversas formas de resistência que uma língua pode oferecer. Falar, assim como escrever, é um ato político. Traduzir, portanto, é um ato duplamente político, pois quem traduz não apenas decide o que será traduzido como também precisa escolher como traduzir. Não por acaso o intelectual afro-caribenho Frantz Fanon dedica o primeiro capítulo de Pele negra, máscaras brancas ao fenômeno da linguagem, concluindo que “falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (2008, p. 33).

Essa é uma consciência que tanto Hughes quanto Guillén demonstraram em sua obra. Ambos os autores estiveram atentos às consequências da longa tragédia colonial e escravocrata em seus países de origem. Marcados por múltiplas formas de discriminação, transformaram a experiência colonial e o racismo em tema fundamental em suas obras. Portanto, para pensar a forma como ambos se apropriaram de línguas europeias para elaborar um projeto antirracista e anticolonial, precisamos ter em mente como a linguagem foi fator determinante para produzir um senso europeu de humanidade durante os séculos de dominação. Em consequência disso, o padrão linguístico das metrópoles tornou-se a língua “correta” por excelência, o idioma usado para narrar a moralidade falaciosa e a beleza compulsória que se atribuiu aos corpos brancos.

O mundo, a partir de então, a despeito de suas milhares de línguas e de sua vasta complexidade cultural, passou a ser organizado em algumas poucas línguas de matriz colonial. A riqueza do Outro foi, pouco a pouco, exterminada e todo conhecimento tido como válido poderia ser apenas produzido em uma das seis línguas da modernidade europeia: italiano, espanhol e português durante o Renascimento; alemão, francês e inglês depois do Iluminismo (Mignolo, 2008, p. 289).

Para o/a leitor/a brasileiro/a, esse tema faz ecoar os estudos da antropóloga Lélia Gonzalez, cujo pensamento preocupa-se com a formação do português brasileiro de maneira revolucionária. A autora nos lembra que a língua hoje falada no Brasil é o “pretuguês”, isto é, uma mistura da língua de dominação lusitana com os vários africanismos que compuseram o país ao longo dos séculos de escravidão negra. Sendo assim, essa fala africanizada é fator fundamental na formação do Brasil e, conforme alerta a autora, estigmatizá-la é parte do processo “civilizatório” que se pretende branco, masculino e europeu (1984, p. 239).

No caso de Nicolas Guillén, o espanhol que utilizava era sua própria versão de “pretuguês”, ou seja, o criollo cubano que, assim como a versão brasileira, mesclava marcas linguísticas da diáspora africana com o sistema normativo espanhol. O intelectual haitiano Michel Trouillot dedicou-se longamente aos estudos sobre a crioulização das Américas, tendo dado especial atenção ao fenômeno da linguagem. Para Trouillot, as línguas europeias foram “crioulizadas” ao serem faladas pelos milhões de africanos escravizados no “novo mundo”. Apropriando-se dessas línguas para expressar seus sofrimentos, dores e traumas, as línguas da matriz imperial foram se modificando, adquirindo novos traços fonético-fonológicos e morfossintáticos que não existiam na Europa (2021, p. 196). Como a leitura dos poemas nos demonstrará a seguir, a reprodução, por exemplo, de marcas da oralidade no texto escrito é uma estratégia crucial para que se mantenham vivas as variantes afro do espanhol e do inglês. Dessa maneira, tornaram-se outras formas de dar materialidade ao mundo, subvertendo, por exemplo, o inglês britânico para criar o blues ou o espanhol imperial para inventar a rumba.

É essa notável criatividade que deu espaço para a resistência em terras devastadas pela presença europeia e a escravização de pessoas negras, fenômeno que marca de maneira fundamental a modernidade nas Américas. Conforme discute o historiador francês Olivier Pétré-Grenouilleau (2009) na obra História da escravidão, essa prática já existia na Mesopotâmia, no Egito Antigo e foi recorrente na Grécia e em Roma durante a Antiguidade. Aristóteles, por exemplo, chega afirmar que o escravizado não pertencia a si mesmo e que certos indivíduos foram “naturalmente” determinados à servidão (citado em Pétré-Grenouilleau, 2009). Racismo também não foi uma novidade do tráfico negreiro no século XVI. Já se pode falar de racismo, por exemplo, na época das Cruzadas, pois é um fenômeno que se altera com o tempo (Bethencourt, 2018, p. 21).

O que há de novo, então, na experiência negra escravizada nas Américas e como o uso da língua se inscreve como forma de resistência? O fenômeno inaugurado pela Europa na Idade Moderna revoluciona as práticas escravocratas já existentes, pois estabelece uma relação entre trabalhos escravos e a pele negra, de modo que “a escravidão nas Américas acabou vinculada à cor” (Pétré-Grenouilleau, 2009, p. 83). Em outras palavras, a presença europeia no continente americano fez com que o marcador da raça se tornasse sinônimo de escravidão, fazendo surgir um Outro colonial nos corpos negros. Foi a colonialidade, portanto, que inventou a noção de raça no “novo mundo” e categorizou seres humanos em diferentes grupos hierarquizados (Quijano, 2009; Almeida, 2019). Essa retórica colonial, durante as primeiras grandes navegações, foi associada à falta de fé cristã, pois aqueles que não conheciam a palavra sagrada do Cristianismo deveriam ser “salvos” pelo projeto colonial. Nas palavras de Sueli Carneiro, “os teólogos do século XVI justificaram a escravidão sob o argumento de que o africano era um homem que não tinha língua, mas dialeto; não tinha arte, mas folclore” (2011, p. 153).

Dessa forma, como sugere Gabriel Nascimento (2019) no livro Racismo Linguístico, a língua é parte fundamental da imposição de uma hegemonia colonial. Sendo o idioma a ferramenta com a qual a humanidade dá forma ao mundo, ao deslegitimar o uso de milhares de línguas indígenas e africanas, o imperialismo europeu encontrou um mecanismo perverso e muito eficaz para se afirmar como única visão de mundo possível e, por consequência, relegou os demais povos à categoria de sub-humanidade. Vale lembrar, por isso, o comentário de 1578 do cronista português Pero de Magalhães Gândavo sobre a fonética do tupi: “não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente” (2008, p.65). O etnocentrismo de sua conclusão só não chama mais atenção do que a notável ignorância linguística da análise, dado que à época José de Anchieta já estava há mais de duas décadas no Brasil impondo o catolicismo entre os nativos e aprendendo tupi.

Em linhas gerais, foi essa a importância da hegemonia linguística no processo de dominação colonial. O mesmo recurso foi utilizado em séculos posteriores, ou seja, o racismo se recicla para manter um sistema de poder e, nesse processo, a língua é a espinha dorsal da supremacia branca europeia. Nos momentos finais do século XVIII e ao longo do XIX, quando o cientificismo não mais condizia com um discurso religioso, o projeto imperialista foi baseado na ideia de “civilização”. Como define María Lugones, a missão civilizatória foi “a máscara eufemística do acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma exploração inimaginável, violação sexual, controle da reprodução e terror sistemático” (Lugones, 2014, p. 938).

Se a fé cristã fez uso da língua para demonstrar o que seria “certo” ou “errado” no início da Idade Moderna, a missão civilizatória dos séculos XIX e XX apropriou-se da mesma ideia, traçando então uma linha entre as línguas que falam os “civilizados” e as que falam os “selvagens”. Resultado desse longo processo é a associação imediata, no senso comum, entre as palavras “negro” e “escravo”, as quais pertencem ao mesmo campo semântico no imaginário coletivo graças ao sucesso do projeto europeu de colonização político-econômica, mas também mental. Houve escravizados em diversos povos, culturas e civilizações ao longo da História, porém, para o indivíduo do século XXI, pensar em escravidão ainda é, imediatamente, pensar no corpo negro e pensar na África, esse continente outro que foi saqueado em sua riqueza, sua fé e sua linguagem.

Desse modo, parte crucial da dominação europeia era convencer o africano de sua inferioridade em relação à Europa. Foi essa colonização mental que fez ser possível a manutenção tão longeva do sistema escravocrata e, por consequência, seus desdobramentos até hoje. Alberto da Costa e Silva resume essa realidade explicando que “se o negro não podia mudar a cor de pele, tinha de se comportar como se fosse branco” (2013, p. 120). A essa ideia, eu acrescento: falar como branco, isto é, procurar imitar a norma linguística da metrópole e recusar as tantas marcas de africanismos presentes nas línguas faladas ao longo do continente americano.

Como se vê, a formação da sociedade ocidental moderna foi baseada na ideia de que o negro era uma criatura sem fé nos primórdios da empreitada colonial, um selvagem sem civilidade na era industrial e, contemporaneamente, como herança dessa tradição histórico-discursiva, temos o negro, no senso comum, representado, em muitos contextos, pela falta de bom gosto, beleza, valores morais e caráter. Um dos principais elementos que conecta todas essas imagens produzidas pelo senso comum é a língua, esse elástico constantemente interditado enquanto não for embranquecido.

Langston Hughes traduzindo Guillén

Observemos a seguir o poema original e a tradução de Hughes:

Tu no sabe inglé

Con tanto inglé que tú sabía,
Bito Manué,
con tanto inglé, no sabe ahora
desí ye.

La mericana te buca,
y tú le tiene que huí:
tu inglé era de etrái guan,
de etrái guan y guan tu tri.

Bito Manué, tú no sabe inglé,
tú no sabe inglé,
tú no sabe inglé.

No te enamore ma nunca
Bito Manué.
si no sabe inglé,
sino sabe inglé.

(Guillén, 1980 [1930])

Don’t Know No English

All dat English you used to know,
Li’l Manuel,
all dat English, now can’t even
say: Yes.

‘Merican gal comes lookin’ fo’ you
an’ you jes’ runs away.
Yo’ English is jes’ strike one!
strike one and one-two-three.

Li’l Manuel, you don’t know no English
you jes don’t know!
You jes’ don’t know!

Don’t fall in love no mo’,
Lil Manuel,
‘cause you don’t know no English,
don’t know no English.

(Guillén, 1948)

Já no título de Guillén, chama a atenção do leitor a ortografia propositalmente fora da norma do espanhol. A forma linguística, nesse caso, potencializa e se entrelaça com o conteúdo, uma vez que o assunto do poema é justamente a competência linguística do interlocutor. É nessa metalinguagem que a criatividade da crioulização caribenha ganha forma. Dirigindo-se a um “você” cujo referente recebe um nome próprio na primeira estrofe, a voz lírica traz indiretamente a relação entre língua e poder já no nome do texto, tendo em vista que não saber inglês é o problema em torno do qual se desenvolvem todas as estrofes do poema.

Vale lembrar, por isso, que o tema do letramento é recorrente nas literaturas afrodiaspóricas. Apenas para ficarmos com alguns exemplos, o abolicionista Frederick Douglass escreveu que “o conhecimento torna uma criança inadequada para a escravidão” (Douglass citado em Davis, 2016, p. 108). Ainda nos Estados Unidos, há o caso de Solomon Northup e o indispensável diário 12 anos de escravidão, no qual o tema da educação formal aparece com frequência como possível fuga do cativeiro. Esses são apenas alguns exemplos de uma longa tradição de autores e autoras negras que tematizam a necessidade da educação e do domínio da língua como formas de emancipação ou ascensão social, uma lista na qual poderíamos acrescentar Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Lima Barreto e tantos outros.

No caso do poema de Guillén, não falar inglês é, portanto, a questão que move o eu lírico a aconselhar, ao final do texto, que Manuel não se apaixone mais. O tom de sátira da tradição romântica traz ao poema uma certa leveza, ainda que inscrito num tema trágico da experiência negra em países colonizados. No lugar dos amores impossíveis e das donzelas inalcançáveis que povoaram a literatura oitocentista, o poeta cubano retrata um encontro que jamais se materializa pelo simples fato de Manuel não falar inglês. Em outras palavras, Guillén parece eleger o tema de um homem cubano que não fala inglês para tematizar a falta de acesso à instrução formal das populações negras periféricas. Ao mesmo tempo, destaca assim a influência cultural anglo-americana sobre a ilha caribenha. Langston Hughes, aliás, fez algo semelhante em sua obra. Embora tenha tratado o racismo e a segregação com extrema violência na juventude, foi pouco a pouco optando por uma abordagem mais leve e sarcástica para esses temas, culminando na publicação de Laughing to Keep from Crying (em tradução livre, Rir para não chorar). Essa coletânea de contos foi lançada originalmente em 1952 e já no título demonstrava a virada na forma como Hughes denunciou essa grave e constante problemática, causa social da qual nunca abriu mão.

O primeiro verso do poema abre a estrofe com o tempo verbal pretérito, indicando um conhecimento que o interlocutor detinha, mas agora não consegue mais utilizar. No verso seguinte, descobrimos o nome desse você ambíguo já anunciado pelo título: Bito Manué (Victor Manuel) vertido para o inglês por Langston Hugues como Li’l Manuel. Como se nota, a questão fonético-fonólogica é crucial nessa leitura comparada, uma vez que essa camada linguística é, na maioria dos casos, o componente que primeiro se destaca nos africanismos em línguas coloniais europeias. Por esse motivo, no que diz respeito à variação da norma, tanto o criollo cubano como o inglês afro-americano possuem diversos casos de supressão ou troca de fonemas. No caso do português brasileiro, isso também pode ser facilmente ilustrado, como no ensaio de Lélia Gonzalez em que cita o vocábulo Framengo a fim de demonstrar que a troca do L pelo R nada mais é do que herança linguística africana, de modo que reforçar a ideia de “erro” é parte de um projeto ainda hoje presente de embranquecimento nacional (1984, p. 238).

Assim, o espanhol afro-cubano de Guillén suprime sons em final de palavra, como Manuel que se torna Manué, inglés que se torna inglé, decir que se torna desí e yes que se torna ye. Como poderia, então, Langston Hughes transpor essa característica para o inglês estadunidense e seus africanismos? O poeta do Harlem optou também por suprimir um fonema em Li’l Manuel para reproduzir a forma como a palavra inglesa little costuma ser pronunciada no contexto da diáspora. No entanto, é interessante perceber que, em vez de traduzir os fonemas suprimidos por outros fonemas suprimidos, Hughes opta por escrever a estrofe em inglês modificando fonemas no lugar de cortá-los. É o que se observa em that, que vira dat.

Na segunda estrofe, é evocada a presença de uma mulher estadunidense que busca Manuel, cuja falta de domínio do inglês o impossibilita de falar com ela. Nesse momento, vem à tona, além das inovações linguísticas próprias de comunidades afrodiaspóricas, o tema da influência cultural estadunidense sobre os demais países do continente. Manuel conhece “etrái guan y guan tu tri”, ou seja, “strike one and one-two-three”, termos provavelmente aprendidos ao jogar ou assistir às partidas de beisebol dos Estados Unidos. Essas palavras, no entanto, não são o suficiente para se comunicar com a mulher, de modo que ao hispanofalante resta apenas a possibilidade de afastar-se. Essa ironia cômica em torno de um amor impossível dá a Guillén um potencial crítico de, em certa medida, retomar a tradição romântica do século anterior com um sarcasmo que a desconstrói.

Para traduzir os versos da segunda estrofe, Hughes opta pela supressão de diversos fonemas. As palavras ‘Merican, lookin’, fo’, an’ e jes’ são desvios propositais da norma dos vocábulos American, looking, for, and e just, de modo a reproduzir em inglês o tom do espanhol que o poeta cubano usara no original. É interessante perceber, ainda, que, além do aspecto fonético-fonológico evidente em todas as estrofes, Langston Hughes emprega também um recurso da morfologia para realizar uma transposição tão fiel quanto possível do poema original. É o caso do segundo verso da segunda estrofe, em que traduz y tú le tiene que huí (y tú le tienes que huir) como and you jes’ runs away (and you just run away). Aqui, o tradutor inclui o morfema -s da terceira pessoa que contraria a concordância verbal padrão do inglês, potencializando por meio da forma o sentido do texto de Guillén. Como se percebe, em espanhol é suprimida a marca morfológica de tienes e, para encontrar um correspondente no inglês, Hughes acrescenta o morfema que não se encontra na variante padrão do verbo.

Nas duas últimas estrofes, o eu lírico mais uma vez traz Bito Manué com o vocativo que estabelece a interlocução. Dessa vez, repete o título do poema, enfatizando que o homem não sabe inglês e conclui com um conselho: não se apaixone nunca mais, já que não fala inglês. A despeito do invólucro humorístico dos versos, Nicolas Guillén traz à tona uma questão crucial sobre a influência político-cultural dos Estados Unidos no Caribe e na América Latina como um todo. A jovem estadunidense sem nome pode ser lida, então, como uma metonímia dessa potência inalcançável para a imensa maioria dos latino-americanos. Langston Hughes, portanto, conseguiu verter “Tú no sabe inglé” com sucesso para a língua inglesa. Afinal, assim como uma motivação para o poeta cubano, a relação entre língua, raça e poder foi um tema fundamental para o estadunidense, expressão que retratou na poesia, na prosa de ficção e no teatro.

Por fim, encerrando esta breve reflexão sobre os dois poetas, é importante frisar que pensar as marcas fonético-fonológicas e morfossintáticas das variantes afrodiaspóricas do inglês, do espanhol, do português ou de qualquer outra língua colonial vai além da investigação linguística, por si só fascinante. Trata-se, na verdade, de garantir a dignidade de todas as falas, cores, sotaques e expressões, pois, sendo a língua o tecido com o qual damos materialidade ao mundo, a noção excludente de certo ou errado funciona como perpetuação da lógica colonial de segregar para dominar. Eu concordo com Fanon ao dizer que “existe na linguagem uma extraordinária potência” (2008, p. 34). Por isso, iniciativas de respeito e valorização das várias formas de falar um idioma sejam talvez o primeiro necessário passo para reconhecer a potência que há alguns séculos tantas línguas têm sido proibidas de exercer.


* Gabriel Chagas é doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorando em Estudos Culturais e Literários na University of Miami, onde atualmente leciona Língua Portuguesa e Estudos Culturais Luso-Afro-Brasileiros. Recebeu o 1° lugar do Prêmio Antonio Candido de melhor dissertação de mestrado pela ANPOLL.

 

Referências bibliográficas

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LUGONES, María. “Rumo a um feminino descolonial”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3): 935-952, setembro-dezembro/2014

MIGNOLO, Walter. “Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o significado de identidade em política”. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008

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dossiê
Tempo de leitura estimado: 15 minutos

ENTRE O BOI E A VACA, T[R]OCAR TEU CORPO, INDIGESTÃO

God in the Bible says, “Let there be light”. Only we humans, according to the bible, are in God’s image. So only God and We can say “Let there be light”
But I ask you, what is a rooster at four in the morning saying?
Ursula K. Le Guin, Cheek by Jowl: Animals in Children’s Literature

 

Hoje não vou tentar te comer. Quero falar com vocês. Houve um tempo em que as mulheres só mugiam.[1] Há uma cidade das vacas e dos bois sob a cidade dos humanos. Há uma carne em sua carne que é mais densa do que a nossa. É possível repetir algumas vezes a diferença entre um boi e uma vaca quando se escreve um livro. Quase como uma piada cuja graça é um trocadilho bobo sobre a presença ou não do chifre. É possível repetir quantas diferenças existem num boi e numa mulher? Quando se escreve e se tem dúvida destas questões basta que te respondam: é um jogo entre o real e o ficcional. Quanta carne de boi se pode comer até que se passe mal? É essa a diferença. O quanto você pode contar da diferença entre uma vaca e uma mulher? O mugido e só. A diferença é o corpo.

Berger escreve no livro About Looking (1980) que os animais são a primeira metáfora do mundo. Ele explica que a primeira relação entre o humano e o animal foi e é metafórica; uma relação construída através do que os humanos e os animais têm em comum: que é, paradoxalmente, sua diferença. Os animais são, assim, o fundo contra o qual a humanidade pensa a si mesma. E é justamente pela metáfora que Rousseau, por seu turno, em seu Ensaio sobre a origem das línguas, afirmava que a linguagem tem a sua primeira aparição. Berger, então, aponta para o fato de que aprendemos a falar com os animais. Todo este ensaio vai ser moldado de atravessamentos, mas a questão que permanecerá é a que inicia o livro Mugido, quando, junto ao poema “mmmm”, Marília Floôr Kosby (2019, s/p) nos diz:

parem pra ver uma vaca mugir já nem digo
ouvir
ouvir é difícil, o mugido de uma vaca parem pra
ver e procurem a próxima nota em que palavra daria
aquela melodia aquele esforço
todo
de guela, olho, bicho, língua, rúmen

que fecunda epifania valeria aquele
esforço todo?
traduzam o mugido

Aqui não busco traduzir o mugido, esse papel talvez deveria ficar a cargo de pesquisadores melhores do que eu, mas sim uma tentativa de mugir em conjunto. Philippe Roucan, um criador de animais, define as vacas como um herbívoro que tem tempo para fazer as coisas. Já Michel Ots as define como seres de conhecimento, que conhecem os segredos das plantas e meditam ruminando: “o que elas contemplam são as metamorfoses da luz desde as lonjuras cósmicas até a textura da matéria […] os chifres das vacas ligam-nas ao poder do cosmos” (Despret, 2021, p. 91). O que estes animais têm em comum com as narrativas? Perceber-se como coexistência.

É interessante a forma como Ieda Magri e Marília Floôr Kosby se ocupam desses animais, vaca e boi, como o objeto central de suas narrativas, o próprio coração de suas narrativas. Quando a protagonista de Uma exposição, uma mulher de 40 anos, revisita sua família e retoma o conceito costelliano de imaginação simpática – escrito por Coetzee, dito por Costello – sobre o movimento de coabitar espaços com este coração pulsante, ao dizer “Se uma escritora é apenas um ser humano com um coração, o que existe de especial no seu caso?” (Magri, 2021, p. 107), respondo: o olhar. Compreender o olhar de um boi que é morto, compreender o olhar de um boi que é vivo, escrever com o olhar é sobretudo reconhecer o companheirismo silencioso, a tal ponto que o que se torna a questão é o reconhecimento de se perceber vivo no silêncio. Quando esta mulher olha o Boi de volta, o boi a escrutina a um abismo de não compreensão. Quando Descartes joga os animais ao limbo da máquina, ao separar corpo e alma e torná-los destituídos de alma, o que resta do olhar entre o humano e o animal é reduzido a apenas uma experiência nostálgica, pois, quando destituído de experiência e de segredos, o que lhes restaria é uma ideia de que eles apenas são sempre observados. O fato de que eles podem olhar de volta perde a importância, a medida do olhar é, sobretudo, uma medida de poder e, por isso, uma medida do que nos separa deles (Berger, 2009, p. 25).

Figura 1: Capa de Uma exposição, de Ieda Magri (Relicário, 2021)
Figura 1: Capa de Uma exposição, de Ieda Magri (Relicário, 2021)

A imaginação simpática proposta por Costello modifica esse modo de olhar, a simpatia atravessa tanto Mugido como Uma exposição. Juliana Fausto (2020, p. 220), ao falar sobre o pensamento costelliano, pontua que há, através das formas literárias que implicam um modo de coexistir com os animais, uma “imaginação simpática” e que isso seria “penetrar com o pensamento na existência”, ou seja, o papel que desempenham os escritores destas literaturas animais seria o de justamente “adentrar com o pensamento a existência de outros seres que jamais existiriam”.

Figura 2: Capa da edição portuguesa de <em>Mugido</em>, de Marília Floôr Kosby (Lisboa, Douda Correria, 2019)
Figura 2: Capa da edição portuguesa de Mugido, de Marília Floôr Kosby (Lisboa, Douda Correria, 2019)

A “imaginação simpática”, que fundamenta uma relação de alteridade, retoma a ideia de Massumi de que o próprio instinto é simpatia. E se o instinto é uma simpatia, a imaginação simpática presente na literatura seria o lugar de jogar com as possíveis formas de alteridade, como aponta Fausto:

O conceito costelliano de imaginação simpática, assim descrito, faz ressoar a discussão encetada anteriormente acerca do instinto criador, sobretudo quando comentávamos que Massumi traz Bergson à baila para dizer, junto com ele, que haveria um “esforço de intuição” e “uma espécie de simpatia” na intenção artística que tornaria possível penetrar o “interior do objeto” – um exemplo do “modo de existência do terceiro incluído”. Além disso, Massumi lembra Bergson mais uma vez ao citá-lo dizendo que instinto é simpatia. Costello, então, se seguirmos essa pista, ao reclamar a simpatia como uma “faculdade […] que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro”, estaria, assim, situando a literatura no âmbito do instinto – aquele tipo de resposta criadora, que sempre supera o dado e se constitui como uma faculdade plástica da vida (Idem, p. 220-221).

As literaturas aqui abordadas são, portanto, dotadas, assim como a vida, de plasticidade. Não seria possível separar o fazer poético de um constructo que pode ser associado a uma determinada capacidade que estas literaturas têm de fazer com que conheçamos a partir dela outros modos de vida.

Por isso, quando falamos da literatura de Magri e de Kosby, estas nos levam a compreender modos de vida animais através do próprio fazer literário; o que ambas propõem em seus romances é uma possibilidade de resistência desses seres a partir de um movimento que estreita a vida destes para além da própria literatura. Magri, ao retornar o olhar para o boi que será comido, a partir de uma construção da narrativa que é uma exposição não apenas de seu corpo, mas também do corpo do boi, e Kosby, ao tentar mover o olhar para a vaca e suas relações entre a própria concepção do que é ser mulher, ou ainda, uma tentativa de “compreender, de verdade, uma fêmea de outra espécie” (Angélica Freitas, apud Floôr Kosby, 2019). Atribuindo a essas narrativas uma desarticulação dentro da articulação da própria linguagem e do mundo, ou então: a capacidade destas literaturas animalistas de conferir acesso à voz,[2] aos pensamentos e aos sentimentos desses outros modos de vida.

É pelo boi e pela vaca, pela mulher e pelo homem, pela mãe e pelo pai que essas narrativas atingem o coração, atingem a simpatia. É possível fazê-las conversar a partir das relações entre a vida e a morte desses animais:

Eu sentia que os bois tinham coração pelo modo como nos olhavam longamente do potreiro enquanto estávamos deitados na sombra sob a árvore onde eles bebiam água. O lugar mais fresco das tardes de verão. Eles chegavam muito perto de nós e era como se entendessem o que estávamos falando. O que nunca nos impediu de comer o coração deles. Assim como nossa mãe, as galinhas também não tinham coração. Eram apenas assustadas e barulhentas. E elas eram muito diferentes de nós. Por exemplo, tinham penas. Por exemplo, os filhos não nasciam de dentro delas. Das vacas, sim. […] Mesmo ao matá-las, duas vezes por ano, nosso pai demonstrava ter coração. Porque seus olhos se enchiam de lágrimas ao matá-las. E porque fazia comentários. É triste, ele dizia. Ou então, Será que sofrem? Ou, Mas é feio de ver, né?! É feio ver um boi morrer. Nossa mãe não se preocupava com essas coisas. Ela não comentava. Devia pensar: passei por coisas piores. Tive dois partos. E depois teria mais dois. E as mortes que a nossa mãe dava cabo eram mais corriqueiras, de menor porte, podia fazer tudo sozinha, eram gestos automáticos. No caso dos porcos e dos bois, além da semelhança conosco – os olhos, os filhos, o lamento ao morrer –, mobilizavam a todos, não se podia fazer sozinho (Magri, p. 75, 2021).

Ou quando escreve Kosby:

angélica,
o parto de uma vaca
não é uma coisa
simples
envolve um útero
imenso
que rebenta
e frequenta não raro
o lado de fora

um rebento imenso!

o parto de uma vaca
requer punhos
firmes
finos porém

matar uma vaca
não é
uma coisa simples
requer um tiro
certeiro
alto calibre
o ponto preciso longe
do meio da testa
dois cavalos três
ou quatro homens
um guri
quem sabe uma mulher

carnear uma vaca
exige sangrá-la
até a última gota
para que a carne
não termine
preta

sangrar uma vaca
é para exímios

comer uma vaca porém (Floôr Kosby, 2019, s/p)

É nesse diálogo entre e com outras formas de vida que essas narrativas se encontram, é sobre estas vozes que faltavam; e como não trair a vaca ou o boi mais uma vez? Como traduzir esses mugidos? Pelas mulheres que convivem com outras espécies e as percebem como estreitamento da vida e como coexistência.

A coexistência da protagonista de Uma exposição se desenrola a partir do corpo e do olhar do boi. O corpo é um pedaço da colcha de retalhos do mundo. Ninguém quer dormir descoberto. Entende tua mãe como entende o boi como entende o pai, a morte do boi grita como a galinha de Camus.[3] É nesse sentido que entendo que é pelo coração/simpatia que ambas as narrativas existem, a diferença entre cada um desses sujeitos é o que marca a própria vida, e é quando os escritores conseguem ensinar mais do que sabem. É nessa distância e diferença que o corpo da mãe compartilha a diferença pela semelhança. O quanto desse corpo é possível comer? Que tipo de digestão é feita quando se come o corpo da mãe? Que tipo de digestão é feita quando se come o corpo do boi? O quanto dessa digestão é possível contar sem que se exponha o próprio corpo?

O segredo da exposição está na retirada da condição humana até tal ponto que não se saiba o que é real ou o que é ficcional, assim como se diz das vacas entrando em contato com o cosmos, ou como, por vários motivos, as vacas serão as primeiras a entrarem em contato com os extraterrestres.[4] É preciso que se veja por fora, é preciso que se veja outro até que em dado momento consiga se perceber como outro desse outro. Despida da humanidade, vestida com o coração. É na zona de indiscernibilidade entre sujeitos que se movimenta a ideia de coexistência.

O segredo do mugido é: mmmmmmmmm.


* Louise Furtado de Souza está vinculada ao doutorado em Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGCL/UFRJ). Mestre em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (POSLIT/UFF), tem graduação em Letras – Português pela Universidade Federal Fluminense (2019).

 

Referências

BATESON, G. Steps to an Ecology of Mind. Chicago: The University of Chicago Press, 2000.

BERGER. J. “Why look at animals”, in About Looking. London: Penguin Books, 2009, p. 12-37.

COETZEE, J. M. Elizabeth Costello. Cia. das Letras. São Paulo, 2010.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1994.

DESPRET, Vinciane. O que diriam os animais? São Paulo: Ubu Editora, 2021.

FAUSTO, Juliana. A Cosmopolítica dos Animais. São Paulo: n-1, 2020.

FLOÔR KOSBY, Marília. Mugido [ou diários de uma doula]. Lisboa: Douda Correria, 2019.

LE GUIN, Ursula K. Cheek by Jowl. Washington: Aqueduct Press, 2009.

MAGRI, Ieda. Uma exposição. Belo Horizonte: Relicário, 2021.

ROUSSEAU, J. J. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. Campinas: Ed. da Unicamp, 2008.

 

Bibliografia complementar

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, n-1, 2018.

HARAWAY, D. J. O manifesto das espécies companheiras: Cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

LATOUR, B. Politics of Nature: How to Bring the Sciences into Democracy. Translated by Catherine Porter. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2004.

MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política. São Paulo: n-1 edições, 2017.

RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008.

 

Notas

[1] Adaptação de um trecho do conto “Sinais de um pai sumido, canção” (Ramos, 2008).

[2] “Artaud dizia: escrever para os analfabetos – falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa ‘para’? Não é ‘com vistas a…’. Nem mesmo ‘em lugar de…’. É ‘diante’. É uma questão de devir. O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas se torna. Torna-se índio, não para de se tornar, talvez ‘para que’ o índio, que é índio, se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar a sua agonia. Pensamos e escrevemos para os animais. Tornamo-nos animal, para que o animal também se torne outra coisa. A agonia de um rato ou a execução de um bezerro permanecem presentes no pensamento, não por piedade, mas como a zona de troca entre o homem e o animal, em que algo de uma passa ao outro. O devir é sempre duplo, e é este duplo devir que constitui o povo por vir e a nova terra. […] O povo é interior ao pensador, porque é um ‘devir-povo’, na medida em que o pensador é interior ao povo, como devir não menos ilimitado. O artista ou o filósofo são bem incapazes de criar um povo, só podem invocá-lo, com todas as suas forças. Um povo só pode ser criado em sofrimentos abomináveis, e tampouco pode cuidar de arte ou de filosofia. Mas os livros de filosofia e as obras de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento que faz pressentir o advento de um povo. Eles têm em comum resistir, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente” (Deleuze e Guattari, 1994, p. 131-132).

[3] “Quando Albert Camus era menino na Argélia, sua avó lhe pediu para trazer uma galinha do galinheiro no quintal. Ele obedeceu e depois ficou olhando enquanto ela cortava o pescoço do bicho com uma faca de cozinha, colhendo o sangue numa tigela para não sujar o chão. O grito de morte da galinha ficou gravado com tamanha força na memória do menino que em 1958 ele escreveu um apaixonado ataque ao uso da guilhotina. Pelo menos em parte, o resultado dessa polêmica foi a abolição da pena capital na França. Quem pode afirmar, portanto, que a galinha não falou?” (Coetzee, 2002, p. 75-76).

[4]“Quando leio o que os criadores relatam sobre suas vacas, gosto de pensar que seria com elas que os extraterrestres estabeleceriam as primeiras comunicações. Por sua relação com o tempo e com a meditação, por seus chifres – essas antenas que as ligam ao cosmos – pelo que elas sabem e pelo que transmitem, pelo seu senso de ordem e de precedências, pela confiança que são capazes de manifestar, por sua curiosidade, por seu senso de valores e de responsabilidades ou, ainda, pelo que um criador nos disse e nos surpreendeu: ‘Elas vão mais longe que nós nas reflexões’” (Despret, 2021, p. 91-92).

dossiê
Tempo de leitura estimado: 19 minutos

“LEMBRANÇAS À CAROLINA”: EXPERIÊNCIA DE LETRAMENTO RACIAL NAS AULAS DE LITERATURA NA REDE PÚBLICA

No ano de 2020, em meio à pandemia do coronavírus no Brasil e no período de aulas remotas nas escolas, as professoras Penha Élida e Olivia Melo organizaram o projeto Lembranças à Carolina junto aos alunos do primeiro ano do ensino médio do Instituto Federal Fluminense do campus Macaé. A partir da leitura em sala de aula do livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, e do contato com vídeos de performance de slam, os estudantes produziram coletivamente um e-book repleto de poemas, artes visuais e audiovisuais autorais. Cada turma criou ainda uma conta no Instagram para publicar as produções realizadas em sala e divulgar o material literário, fortalecendo o papel de protagonismo e autoria desses estudantes. O material foi posteriormente editado e disponibilizado gratuitamente na biblioteca digital do IFFluminense.[1]

Para a produção final do ciclo de aulas, os alunos se dividiram em grupos e elaboraram poemas e performances de slam e produções não verbais, como ilustrações e fotografias, que dialogavam com o movimento slam poetry e com Carolina Maria de Jesus. Ao todo, participaram sete turmas de primeiro ano do ensino médio integrado ao ensino técnico. A criação do e-book final foi de responsabilidade coletiva das turmas, o que envolveu confecção de capa, título, artes, QR codes, etc. Ao fim, o livro digital foi separado por seções, reunindo os trabalhos de cada classe participante.

O trabalho realizado pelas professoras germinou, portanto, na produção de dois materiais finais. O primeiro, o anteriormente citado Lembranças à Carolina: releituras de um quarto despejado, contendo a produção artística dos alunos, e o segundo, Algumas poesias: produções inspiradas em Carolina Maria de Jesus, voltado aos discentes, abordando a pesquisa realizada pelas professoras, questões didáticas e instruções de organização de aulas, um material rico que explicita como os alunos leram e interpretaram Carolina Maria de Jesus.

Figura 1: Arte de Victoria de Oliveira, Thyago Andrade e Thomas Alvarenga (p. 62).
Figura 1: Arte de Victoria de Oliveira, Thyago Andrade e Thomas Alvarenga (p. 62).

A questão inicial que impulsionou o trabalho das professoras foi pensar como a autoralidade poderia contribuir para o letramento literário nas aulas de língua portuguesa, uma vez que, em trabalhos anteriores, as educadoras já vinham refletindo sobre a importância do trabalho de produção e publicação de conteúdo literário. Mesmo que, inicialmente, as aulas não fossem pensadas como um trabalho de letramento racial, toda a sua esquematização é um exemplo claro de letramento bem-sucedido que pode (e deve) ser reproduzido por nós, professores, que pensamos o tema.

Em meio à barbárie, por que ensinar literatura? Essa foi a pergunta que a professora Olivia Melo se fez enquanto refletia sobre seu papel como professora da rede pública, ministrando aulas em um período de pandemia nunca visto antes, em um Brasil no qual a necropolítica do Estado ganhava cada vez mais força. A partir dessa reflexão, as professoras buscaram fazer com que os jovens tivessem contato com literatura a partir de um repertório significativo para aquele momento. Nesse sentido, entra em jogo o livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, pobre, moradora da periferia de uma grande cidade que registra em seu diário aquilo que sente e pensa, sua realidade e experiências, evidenciando toda uma potência como escritora.

O livro de Carolina é um exemplo de literatura do século passado que dialoga perfeitamente com o presente vivenciado por aqueles alunos. No mesmo caminho entra o slam poetry, um novo cenário da literatura marginal que rompe com as normas da literatura instituída, um modo de fazer poesia instaurado dentro e fora da fronteira do que tradicionalmente concebemos como realidade e como ficção. Um fazer poético flexível e de período curto de produção, de modo que sempre seja adaptável aos temas e problemas do seu tempo (que, no contexto do projeto, foi a pandemia).

Dessa forma, o cenário político e social do país em 2020 é mesclado à sala de aula, lugar em que o ensino de literatura ganha novo peso-sentido no estado do Rio de Janeiro, que, naquele momento, registrava maior número de mortes por Covid-19 entre pessoas negras e pobres, provando que morte e vida têm valores diferentes a depender da cor da pele. No mesmo ano, o Rio de Janeiro batia ainda o recorde histórico de mortes por policiais dentro de comunidades (a maioria das vítimas negras), polícia que mesmo durante a pandemia seguiu invadindo favelas e exercendo sua licença para matar. O mesmo estado que promoveu condições precárias de isolamento social, dificultando (e em muitos casos negando) o acesso de moradores das favelas à água e ao saneamento básico, necessários ao combate à propagação do vírus.

Logo, o estado passa a criar, a partir da pandemia do coronavírus, uma novíssima tecnologia para o funcionamento do necropoder, um mecanismo bem-sucedido que vem mantendo as funções assassinas do estado (Mbembe, 2016) ativas ao longo das últimas décadas e que agora ganhava reforço. Lélia Gonzalez, ao falar sobre a favela e a divisão racial do espaço em um texto de 1984 intitulado “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, revela uma realidade ainda não superada e que adquire novas camadas com a pandemia:

No grupo dominado o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar. É por aí que se entende por que o outro lugar natural do negro sejam as prisões (Gonzáles, 1984, p. 232).

Quando as professoras se perguntam o porquê de ensinar literatura no Brasil pandêmico, elas mobilizam o lugar da escola como um importantíssimo espaço de reflexão crítica, que historicamente esteve pautada pela perspectiva e pela fala brancas. Em um período agudo de violências contra o corpo racializado, é urgente encarar e debater o mundo a partir de experiências e olhares diversos, uma vez que “a forma mais poderosa de sustentação e manutenção do racismo é a pretensa “transparência”, a neutralidade da linguagem e da história. Em boa parte, é por meio da linguagem que o racismo se mantém e se perpetua de modo aparentemente “invisível” (Almeida, 2017).

Ao deparar em sala com os escritos de Carolina Maria de Jesus e a produção de jovens slammers que estão debatendo o Brasil de hoje, os alunos defrontam (e confrontam) as diversas formas de produção do silenciamento do sujeito-aluno negro, que ao longo da história do Brasil ganharam força a partir dessas novas e velhas tecnologias. Silenciamento a partir da noção de precariedade narrada em Quarto de despejo, como a fome, a falta de saneamento e moradia, ou a partir da falta de cultura e educação (tema constante nas narrativas de coletivos slam, como o Slam Interscolar), impedindo a produção intelectual de pessoas racializadas, dado que a “pobreza e miséria crônicas, ausência de políticas de inclusão social, tratamento negativamente diferenciado no acesso à saúde, inscrevem a negritude no signo da morte no Brasil” (Carneiro, 2005, p. 94). A pandemia do coronavírus foi usada pelo Estado brasileiro como um importante instrumento desses outros silenciamentos de corpos negros e precarizados, o que vemos na falta de atuação dos governos em dar às pessoas mais pobres o acesso a higiene, saúde, vacina, moradia, educação, internet, de uma lista pode seguir adiante.

Torna-se necessário também analisar o outro lado da pirâmide quando tratamos de silenciamento: aquele que silencia. O silêncio dos brancos, ao contrário do silêncio imposto ao negro, funciona como uma espécie de pacto narcísico, que, como escreve Cida Bento em O pacto da branquitude (2022), sustenta um contrato invisível firmado por iguais (homens brancos, em sua maioria), os quais, para manter e alicerçar seus privilégios, desenvolvem uma incapacidade de ver qualquer coisa além de si, engatilhando artimanhas de exclusão e invisibilização da participação negra. Esse pacto narcísico é facilmente encontrado em variados setores da sociedade contemporânea, como em organizações empresariais, na política, nas universidades e nas escolas, respaldado, muitas vezes, pelo mito da meritocracia. O silenciamento branco protege seus participantes em um lugar seguro, onde não há a necessidade de afirmarem ou reverem seus privilégios. Esse silêncio, segundo Sueli Carneiro (2005, p. 115), é uma das táticas mais eficazes de racismo no Brasil, uma vez que omite a existência do problema da discriminação social, problema que atravessa gerações e solidifica cada vez mais a pirâmide hierárquica dos poderes.

Outra tecnologia de silenciamento muito utilizada pela branquitude é a destruição dos nossos arquivos ao longo da história. A partir do trabalho de apagamento das memórias do país, memórias da escravidão, da ditadura, de massacres, para citar alguns dos exemplos, foi-se modelando um Brasil fictício, utópico, para essa branquitude. Ou melhor, um Brasil heterotópico: um lugar dedicado a se opor, a neutralizar, a apagar os lugares demarcados de nossas vidas (Kiffer, 2020), no qual a história, a arte, a cultura e a perspectiva branca passam a ser tratadas como a verídica e dominante, exposta nos museus, divulgada nos jornais, estampada nos livros de história, ensinada nas escolas através das diversas disciplinas.

Portanto, o Brasil se tornou um exemplo bem-sucedido de epistemicídio, ou seja, de ocultação e desqualificação da contribuição do Outro para a história e a intelectualidade do país. O epistemicídio é nada mais nada menos que uma outra representação do silenciamento dos corpos negros e que serve de combustível para a dominação branca. No Brasil, o negro não é apenas impedido de falar, ele tem toda a sua história silenciada e ocultada. Em síntese, a partir dessa discussão, fica evidente a força pulsante e a emergência que há no trabalho de letramento racial realizado em sala de aula pelas professoras Penha Élida e Olívia Melo.

Nessa perspectiva, podemos considerar o projeto “Lembranças à Carolina” como prática efetiva de letramento racial, ainda que não tenha sido planejado explicitamente para esse fim. Na execução do projeto, o letramento literário funciona como via de acesso a um letramento social e racial. Isso acontece não apenas pela tomada de consciência dos alunos a respeito da própria realidade, mas também pelo contato com as diferentes realidades de seus pares e com a lógica que constitui as bases de leitura da realidade social e consequentemente de construção do racismo. Compreender as relações entre diferença racial, segregação e exclusão não implica apenas percebê-las em nível local, mas sim entender os mecanismos de reprodução dessa lógica desde Carolina Maria de Jesus e antes dela.

Anos após o fim da escravidão,
Muitos aspectos mantêm-se inalterados
Já que, mesmo após a Lei Áurea,
Preconceito permanece escancarado
O negro continua a passar sufoco
E sendo descriminado
Tudo devido à dificuldade
Em aceitar a diversidade

[…]

Relatos são marcos
Que não devem ser esquecidos
Cada um tem importância
E Carolina sabia disso
Por isso, escrevia
Por isso, relatava
Sua história de vida
Que para sempre será lembrada

Poema de Maria Fernanda Machado Santos, Rafael de Almeida Prudencio, Rebeca da Silva Paes e Marcelo Gonzalez do Nascimento (p. 36-37)

Estabelecer uma genealogia da produção de uma literatura marginal que desafia a canônica é amparar e fortificar os alicerces de produção da autoria e do protagonismo na produção de conteúdo literário. Por meio desse vínculo de conhecimento da possibilidade de construir e apresentar novas histórias e narrativas, torna-se possível questionar e produzir enunciados que exponham os discursos de dominação epistêmica. A mesma língua que é a base da produção dos discursos segregacionistas e racistas funciona então como meio de subversão dessa lógica.

A língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através das suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é “normal” e quem é que pode representar a “verdadeira condição humana” (Kilomba, 2019, p. 14).

Afirmar identidades e subjetividades contadas em forma de arte e escritas em nome próprio funciona como um ato que transcende o ensino conteudista e se afirma como um ato de formação educacional que é também de emancipação político, social e racial. O combate ao racismo exige posicionamentos contundentes. Dessa forma, “cabe à escola apresentar aos estudantes a diversidade não apenas de textos, de temas, mas também de concepções de mundo, de modos de fazer e dizer” (Almeida, 2017)

COMO DIZIA O POETA

Como já dizia a poeta,
O negro só é livre quando morre
Quando ele morre, há comoção
Mas a justiça é uma negação

E o caso Carrefour?
Aquilo foi uma aberração
Seguranças despreparados
E sem amor no coração

Temos o caso Marielle
Até hoje sem explicação
Será que eles acham piada?
Eles nos devem satisfação

Tudo isso parece novela
Que sempre há reprise
Até quando esse enredo vai ocorrer?

Será preciso outro Luther King nascer?
E, no fim,
Ficam uns questionamentos
Até quando isso vai acontecer?
Quantos precisarão morrer?

Poema de João Alencar, Ícaro Alencar, Álvaro Azevedo dos Santos e João Carlos Rodrigues Maura Rocha (p. 49)

História, Política, Filosofia e Sociologia despertam através do exercício da literatura. Fatos do cotidiano e notícias de jornal são conectados e relacionados através da percepção dos mecanismos que os unem. O projeto alcança assim não só os objetivos a que se propõe, mas também desperta novos sentidos para a prática pedagógica e para o letramento racial. Branquitude, negritude, racismo e segregação não precisam ser tópicos de aula para serem trabalhados ou discutidos. Eles permeiam uma diversidade de temas e constituem as bases de construção de diferentes discursos e realidades sociais.

O DESPEJO É A NOSSA TRAGÉDIA

Oficina de preconceito,
se é preto não é aceito
numa elite só de branco,
Carolina causa espanto
fazendo ode à favela
sem romantizar, sem balela
só poesia nua d’uma vida amarela

sem comunismo, só realismo
pedindo pouco e comendo lixo
dos que vivem no topo endeusando o “mito”,
enquanto o preto morre de tiro.

dizer que é vitimismo é fácil
quero ver ser espancado,
perseguido e chamado de macaco
porque, enquanto branco faz “hashtag”,
mais um preto é morto pelo fardado

Brasil é o país do preconceito
aqui, playboy passa com baseado na mão,
mas, se fosse preto e pobre,
era direto pra prisão,
e ainda dizem que não há discriminação

guerra às drogas põe o jovem pobre no caixão
com esses políticos que não entendem a realidade
com leis e mais leis que não condizem com problemas de verdade.

é tanto racismo e exclusão,
que o preto e favelado
mal tem acesso à escolaridade
é triste saber que dependemos do governo desses animais,
aqui, enquanto uma parte passa fome, a outra pede mais.

dizem que temos os mesmos direitos,
mas sabemos que, no Brasil,
não funciona assim
mesmo que existam aqueles que neguem os problemas sociais,
é como Carolina diz:
as misérias são reais!

Poema de Rafael Ribeiro, Letícia Nunes, Maria Cláudia e Lucas Gabriel (p. 56)

Nas bases foucaultianas do desenvolvimento do processo da escrita de si, o sujeito enfrenta também a realidade de formação das instituições e dos discursos que sustentam a forma como sua identidade é percebida e construída dentro da sociedade. É no processo de escrita que as produções das subjetividades se constituem e novas oportunidades de compreensão das relações raciais e de si mesmo se realizam.

Na parte final do livro (p. 112), o depoimento do estudante Lucas de Azevedo Correia, enviado por mensagem após uma das aulas de leitura coletiva do texto de Carolina Maria de Jesus, mostra o nível de afetação da prática proposta. Mais do que exercício de letramento literário, fica evidente o potencial de estímulo de uma reflexão que parte de uma realidade aparentemente distante em uma esfera temporal e local, mas que pode gerar ecos de empatia e identificação que superam a representatividade e adentram processos psicanalíticos de enfrentamento de processos mentais e emocionais experienciados pelo estudante diante de sua realidade. “Esse livro me quebrou bastante, lembrou de situações que eu enterrei tão fundo em minha mente que eu nem lembrava” (p.112).

O estudante reforça ainda as disparidades de experiências que se refletem na capacidade plena de compreensão da realidade discutida: “Uma pessoa que nunca teve um tipo de contato com alguma das situações (e uma pessoa totalmente sem empatia) vai achar o livro chato e repetitivo. Mas, como já me encontrei em situações como a da Carolina, posso afirmar que essa vida é chata e repetitiva” (p. 112).

Nesse âmbito de afetação dos estudantes conforme a sua própria realidade e experiência, é importante refletir sobre a finalidade do letramento racial. Não se trata de fazer com que todos compreendam ou se coloquem no lugar de alguém, muito menos de gerar ou desenvolver empatia, mas sim de fornecer instrumentos de compreensão dos discursos e lógicas que pautam a criação e a manutenção das relações de poder fundadas na diferença racial. É através dessa compreensão que os discursos e dispositivos podem ser questionados e que o ciclo de reprodução das lógicas de segregação e violência pode ser combatido.

Compreender as formas de leitura do racismo na sociedade por si só não é modo de desmonte do racismo, mas colocar em prática exercícios de questionamento e reflexão a partir dessas formas de leitura pode e deve gerar movimentos antirracistas, como prescreve o Parecer do Conselho Nacional de Educação quando da aprovação da Lei 10639/2003:

Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente (Parecer CNE/CP 003/2004).

Figura 2: Arte de Juliana Pereira, João Romão, Gabriel Lima e Kauã Barbosa de Jesus (p. 49)
Figura 2: Arte de Juliana Pereira, João Romão, Gabriel Lima e Kauã Barbosa de Jesus (p. 49)

As práticas pedagógicas que proporcionam instrumentos para um letramento racial trabalham efetivamente as esferas de formação da identidade, da subjetividade e da compreensão da sociedade e da política. Nesse âmbito tornam-se fundamentais e imprescindíveis, uma vez que o “exercício trabalhado na sala de aula (de letramento racial) pode ser um caminho para que esses indivíduos, que possuem um letramento racial crítico, possam transformar essa conscientização em práticas que venham de encontro à branquitude” (Souta e Jovino, 2019, p. 156).

UMA SITUAÇÃO “COMUM”

A situação no Brasil, é fácil de se entender,
Enquanto uns catam migalhas pra de fome não morrer,
Alguns filhos veem os pais rapidamente adoecer.

Uma mãe de 3 filhos luta diariamente pra vencer.
Diariamente crianças morrem.
“Muito triste, mas é normal!”

Preço da gasolina subiu
“Vamos fazer uma manifestação quase internacional?”
Você se pergunta,
“Onde está tudo isso? Toda essa algazarra?”

A resposta é simples,
É difícil ver a dor da janela da sua casa.

“Onde está toda essa dor?”
O silêncio, sobretudo, é ensurdecedor.

Poema de Bruno Garcia, Breno Oliveira, Rayhan Chamoun e Kayc Rodrigues (p.48).


* Jade de Soares do Nascimento é mestrando em ciência da literatura pelo PPGCL/UFRJ com pós-graduação em educação pela PUC-RS e bacharel cum laude em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Faz parte do grupo de pesquisa em Poesia Contemporânea da UFRJ e publicou seu livro bilingue de poesia Sublime Ideal em 2021.

* Guilherme dos S. Ferreira da Silva é doutorando em ciência da literatura pelo PPGCL/UFRJ. Desenvolve pesquisa sobre poesia negra contemporânea com ênfase no trabalho poético realizado virtualmente por coletivos de slam poesia. Faz parte do Laboratório da Palavra (PACC-UFRJ) e seus últimos textos publicados foram “Eles querem sangue: rompendo estereótipos da poesia negra e periférica” (2023) e “Pode o marginal falar em tempos de pandemia?” (2021).

 

Referências

ALMEIDA, Neide A. de. “Letramento racial: um desafio para todos nós”, Portal Geledés. 2017. Disponível em: https://www.geledes.org.br/letramento-racial-um-desafio-para-todos-nos-por-neide-de-almeida/.

AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Cia. das Letras, 2022.

PARECER CNE/CP 003/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. 2004.

CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. São Paulo, USP, 2005. Tese de Doutorado.

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

KIFFER, Ana. O Brasil é uma heterotopia. Coleção Pandemia Crítica. São Paulo: n-1, 2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1, 2016.

MELO, Olivia; PENHA, Élida. Lembranças à Carolina: releituras de um quarto despejado [recurso eletrônico]. Macaé, RJ: [s. n.], 2021.

SOUTA, Mariveta; JOVINO, Ione da Silva. “Letramento racial e educação antirracista nas aulas de língua portuguesa”, Uniletras, v. 41, n. 2, p. 147-166, jul/dez. 2019.

 

Notas

[1] O e-book Lembranças à Carolina: releituras de um quarto despejado está disponível para download gratuito no link: https://portal1.iff.edu.br/nossos-campi/macae/arquivos/livro/lembrancas-a-carolina-releituras-de-um-quarto-despejado.pdf/view.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 42 minutos

ELA TINHA QUE ME TRATAR COMO SER HUMANO

Atravessamentos Discursivos e Corpóreos no Relato dos Partos de uma Mulher Preta em Situação de Rua

Partindo da análise de dados provindos de relato de parto, o presente trabalho, de cunho qualitativo-interpretativista não essencialista, visa compreender a construção e os efeitos dos discursos dominantes nos partos de uma mulher negra que já esteve por muito tempo em situação de rua, bem como as construções identitárias e implicações em movimentos de agentividade durante o evento do parto.

Os dados gerados foram analisados à luz da análise de narrativa e das performances adotadas em interação pela participante, estando alinhada à Linguística Aplicada Crítica (Moita Lopes, 2006) e à perspectiva de um caminho de pesquisa voltado para a equidade, para a escuta atenta aos grupos subalternizados e para as transformações necessárias no campo social. Servirá de aporte teórico metodológico a Análise de Narrativas. Para tal, me ancorarei sobretudo em Histórias de vida de Linde (1993), entendendo que um parto é evento altamente reportável que vem a constituir o repertório de histórias de vida de alguém, sendo algo a ser contado e recontado no curso de uma vida de acordo com as circunstâncias.

Percepções sobre violência obstétrica

Cunhado na década de 1970, violência obstétrica é um termo antagônico à humanização do parto, conceito que viria a ser amplamente disseminado na década de 1990. Entendo por violência obstétrica o abuso ou privação de medicalização; patologização de processos naturais (gestação e parto); usurpação da autonomia e poder de decisão maternos, dizendo respeito a ações relativas ao parto que afetam a dignidade e geram danos à mãe e ao recém-nascido. Embora seja esta a forma como a violência obstétrica é compreendida pelo senso comum, é este um termo disputado no contexto médico e com diferentes perspectivas de entendimento.

Cabe lembrar que a violência obstétrica extrapola a esfera das violências deferidas sobre o corpo físico, haja visto que as violências verbais também ferem a dignidade humana e geram traumas, distorções e violações sobre a percepção que a parturiente tem de si enquanto mãe, mulher, cidadã, sujeita, fixando a experiência singular do parto como um momento de sofrimento por toda a vida. Aquilo que aqui entendemos por violência verbal tem raízes espraiadas nos grandes Discursos[1] normativos do racismo, do patriarcado e da medicina. Segundo Diniz et al (2015 p. 91) há uma correlação entre raça, classe e escolaridade, visto que mulheres negras, pardas e com menos escolaridade são as principais vítimas de violência obstétrica.

A medicina tradicional e normativa crê-se soberana. Tende a lidar com os pacientes como se diante de alguém destituído de subjetividade. Como se um corpo apenas, sem opiniões, sentimentos, ingerência. Dona de verdades e performando como um deus, a medicina normativa é branca e masculina em sua espinha dorsal. No que diz respeito ao tratamento deferido a pacientes mulheres dentro da medicina tradicional, as assimetrias se escancaram. Se falarmos de mulheres não brancas e de classe popular, o fosso é ainda mais fundo.

O termo “violência obstétrica” continua sendo um tabu entre os profissionais de saúde, mais especificamente dentro da assistência ao parto, e sua aderência na área médica ainda encontra resistência por ser assimilada aos conceitos de patologização, patogenização e medicalização do parto. (Leite et al. 2022, p.486). Entende-se que haja a partir daí uma espécie de “zona cinzenta”, um terreno nebuloso onde não se pode definir ao certo se determinado procedimento seria de fato abuso ou banalização por parte da equipe médica ou se houve necessidade, de fato, de realizar tal procedimento. Os movimentos sociais pró-humanização do parto têm se empenhado no sentido de fomentar reflexão sobre a temática e de denunciar determinadas condutas que não correspondem ao entendimento de um parto verdadeiramente humanizado e respeitoso. As mulheres negras e de baixa escolarização foram e continuam sendo os principais alvos de violências, abusos, desrespeitos e privações durante o parto, conforme apontam os indicadores de qualidade da atenção ao parto da pesquisa  Nascer no Brasil.[2] Para Diniz et al (2015, p. 4):

[…] quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela. Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro.

O acúmulo de intersecções de eixos de subordinação é fator que delimita a dimensão da opressão sofrida. Enquanto o entendimento de violência intervencionista mais óbvia ao senso comum acomete as mulheres brancas/ de classe média, as mulheres racializadas, além disso e sobretudo, sofrem pela falta de assistência e abusos subjetivos – linguísticos, psicológicos, morais, identitários.

Apesar da esmagadora incidência de violências sofridas por essas mulheres, os entendimentos podem ser distorcidos, uma vez que a mentalidade intervencionista da medicina obstétrica brasileira ainda entende que determinadas intervenções (vide a episiotomia, corte feito no períneo com o intuito de facilitar a passagem do bebê; a manobra de Kristeller que consiste em pressões fortes na região da barriga para acelerar a expulsão da criança; o uso indiscriminado da ocitocina sintética, sendo a ocitocina um hormônio naturalmente produzido pelo corpo feminino que pode estimular as contrações uterinas; e a cesárea eletiva) sejam sinônimo de cuidado e precaução, contrariando as orientações da Organização Mundial de Saúde, que lista estes e uma série de outros procedimentos não recomendados durante o evento do parto.

Por um enfoque de/descolonial

Na intenção da adoção de um enfoque verdadeiramente des/decolonial, me aplico a entender que a experiência da maternagem, bem como do parto, desponta sempre de um corpo sócio e historicamente situado. Para Antoniazzi (2021, p. 93), alinhando-se a bell hooks, a afirmação da interseccionalidade é base para um feminismo que não opera no registro da opressão no sentido da reprodução do racismo ou classismo que despontam de uma visão universalista. Situações são vivenciadas e descritas por corpos situados. A generalização não contempla as partes que constituem o todo, sendo o caminho o acolhimento da diversidade de experiências sem que um enfoque se sobreponha ou se imponha aos demais.

Para Haraway (1988, p. 23), importam as perspectivas parciais por seu viés categoricamente crítico. A autora advoga por uma prática de objetividade em prol da contestação, da desconstrução e da reconstrução de possibilidades de ver. Posiciona-se, assim, a favor de epistemologias não universalizantes, corporificadas, complexas e contraditórias, nebulosas, sem clareza ou precisão (1988, p.30, p.41). Ainda em Haraway, vem bem a calhar dentro do tema de pesquisa aqui desdobrado o entendimento de que “vários corpos biológicos em competição emergem na interseção da pesquisa e dos textos biológicos, das práticas médicas e outras práticas de negócios, e da tecnologia” (1988, p.4). Tratamos aqui de uma disputa de entendimentos situados e corporificados acerca de um evento (igualmente situado e corporificado). Apenas alguns deles, os não marcados, se naturalizam e se respaldam pela capa da objetividade científica, enquanto os corpos marcados, com todas as suas complexidades, são objetivos em sua não objetividade – isto é, muito dizem dentro de sua imprecisão crítica.

Lugones também trata a descoloneidade como tema central. A autora aponta a crítica ao universalismo feminista por parte das mulheres racializadas e do terceiro mundo, denunciando que a denominação “mulher negra” é intersecção que evidencia um apagamento, como se a categoria “mulher” contemplasse apenas algumas, as não marcadas. De acordo com Lugones, tais hierarquias e dicotomias são elementos fundantes do pensamento colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade, que, basicamente, se vale da separação entre humano e não humano, guarda-chuva maior para outras dicotomias (homens e mulheres, por exemplo). É a partir de tais binarismos e dicotomias que os colonizados são subjugados. Quem denomina – dá o nome, intitula – é o colonizador, homem, branco. Entre os animais, a fêmea sendo vista como um piloto ou um avesso do macho, esse sim, a perfeição. Mas se os colonizados são seres primitivos, menos que humanos aos olhos do colonizador, as categorias “homens” e “mulheres” não lhes caberiam. Afinal, “a diferenciação racial nega humanidade e, portanto, gênero às colonizadas” (2014, p. 943), sendo gênero uma imposição colonial que ignora outras cosmologias e formas de perceber e ser no mundo. A autora propõe a partir daí um pensamento de fronteira feminista, entendendo que esse “locus fraturado”, essa liminaridade de fronteira, seja em si lugar próprio, e não uma mera cisão que propulsiona a repetição de hierarquias dicotômicas ad aeternum (2014, p.947). Um feminismo de/descolonial não apaga a diferença colonial, pois é a partir da observação crítica dessa diferenciação que há o espaço para a renovação.

Assim, me aplico ao exercício de suscitar o olhar para esse pensamento de fronteira como espaço onde coabitam cosmologias diversas e de onde é possível percebermos umas as outras e firmar a coalizão feminista e descolonial, tal qual idealizada por Lugones.

As maternagens são múltiplas

A maternidade sempre ocupou lugar central em culturas não ocidentais, haja vista o papel da mulher nos países da(s) África(s) no período pré-colonial, com o prevalecimento do senso de coletividade e igualdade de gênero. Ainda hoje, a experiência da maternidade é considerada locus e fonte de poder (e resistência) para as mulheres negras em muitos países. A maternidade negra é política, uma forma de ativismo social que como tal empodera e é reconhecida como status dentro da comunidade (O’Reilly, 2021, p. 121-122). No entanto, é importante salientar a importância também da autodefinição (p. 133) dentro dos processos de maternagem. Afinal, as experiências e a relação das mulheres negras com a maternagem não é a mesma das mulheres brancas. Enquanto as feministas brancas falam em divisão de tempo com as crianças para disputarem no mercado de trabalho em pé de igualdade com os homens, as mães negras expressam muitas vezes o desejo de passarem mais tempo com seus filhos, não podem se dar ao luxo de serem donas de casa e muitas vezes estão trabalhando como cuidadoras dos filhos de outras mulheres (quase sempre brancas), que terceirizam parte da maternagem para se lançarem no dito mercado de trabalho. Contam então com suas redes de apoio dentro de suas comunidades – o othermothering – como estratégia de sobrevivência (O’Reilly, 2021, p. 118-119). A generalização da maternidade como um problema “de mulher” é uma encrenca que pasteuriza, essencializa e generaliza o que se entende por “mulher”, sendo denominado pela parcela normativa das mulheres que se creem estruturalmente como a régua do mundo feminino. Esse imbróglio afastou muitas mulheres negras do “movimento feminista” (O’Reilly, 2021, p. 114), termo que, como é possível inferir pela explicação acima, já é em si problemático e acachapante.

O feminismo matricêntrico, comprometido com uma perspectiva interseccional, se distancia de essencialismos e de conceitos prévios que universalizam a experiência materna e é um guarda-chuvas que abarca uma multiplicidade de formas de maternar, entendendo que partam de lugares próprios, situados e sociocircunscritos. Assim, se propõe a colocar as mulheres mães em posição agentiva, com autoridade e autonomia (O’Reilly, 2021, p. 104).

Figura 1
Figura 1[3]
Figura 2
Figura 2[4]
Mulheres mães em situação de rua: entre opressões, intersecções, resiliência e agência[5]

Ser mulher-mãe em situação de rua no Brasil é condição que vai de encontro ao ideário normativo da “boa mãe” (Badinter, 1985, p.238), desafiando padrões e atribuições de um dispositivo da maternidade[6], uma vez que ser mãe e os entendimentos de maternidade são construções sociais. Conforme sintetiza Santos et al. (2021, p. 2): “trata-se de mulheres que vivem em um profundo contexto de desamparo e desproteção social, desafiando normas instituídas sobre o que é ser mulher e mãe, provocando respostas do Estado”. Por representarem esse desafio ao que é tido como padrão, são então submetidas a violências múltiplas: medidas proibicionistas, políticas intervencionistas e normas punitivas. Mesmo que esse conjunto de violências interfira nos direitos da mulher e, dentro deles, nos direitos reprodutivos, são legitimadas pelas instituições (como ocorre nas separações compulsórias de mães e filhos), sob o argumento de que essas mulheres não são capazes de dar conta de sua prole, sendo indexicalizadas com perigo, criminalidade, prostituição e correlações preconceituosas entre a situação de rua e o uso de drogas, que desconsideram contexto e nuances. Essas mães são, em sua maioria, mulheres negras e se defrontam com um emaranhado de estigmas e preconceitos em interseccionalidades de raça, gênero e classe, em uma sociedade de mentalidade colonial, racista e patriarcal. Por não serem reconhecidas pelos discursos normativos dentro do protótipo social eugenista de “boa mãe”, encontram resistências constantes na criação de seus filhos e filhas, sendo confrontadas por discursos moralizantes de culpabilização e consideradas, dentro da lógica dos discursos hegemônicos, como um desvio (Mendes e Venosa, 2021). Seriam, então, um “desafio lançado à natureza, a a-normal por excelência” (Meruane, 2014, p. 15) e, por tal motivo, sofrem inúmeras cobranças (Rezende, 2020 p. 211), enquanto nesse movimento de responsabilização a figura paterna segue incólume em seu completo apagamento. Segundo Collins (2019, p. 304), “o ideal tradicional de família delega às mães plena responsabilidade pelas crianças, avaliando seu desempenho conforme sua capacidade de obter os benefícios de uma família nucelar”. A responsabilidade recai única e exclusivamente na mulher.

A ideia de maternagem cooperativa encontra ecos nos entendimentos sobre maternidade e maternagem de comunidades africanas, que muito diferem das construções normativas eurocêntricas. A maternidade é conceito chave nas culturas afrodescendentes, tendo a mulher protagonismo e relevância nessas sociedades (Collins, 2019, p. 292-298). As mães de criação, aquelas que dão suporte às mães de sangue na divisão de responsabilidades, ajudam a consolidar as redes femininas de cuidados cooperativos e se constituem de avós, irmãs, primas, tias, mas muitas vezes extrapolam relações consanguíneas. Em se tratando das mulheres negras em situação de rua no Brasil ou em redes de apoio de mulheres negras de forma geral, o que percebemos é que há mulheres que podem sentir na própria carne o que passam outras mulheres na mesma condição, tendo muitas vezes sido vítimas de opressões raciais do Estado intervencionista ou tendo testemunhado violências contra os seus. (Collins, 2019. p. 299).

Se é um fato dado que a força estruturante dos discursos hegemônicos mira no massacre dessas identidades forjando cobrar agência e apontando o dedo em riste para faltas e renúncias, é bem verdade que a agência cobrada já preexiste. E resiste. As mulheres mães (quase sempre pretas) em situação de rua têm em sua prole a latência da vida, da esperança, da mirada para o futuro e da ressignificação de sentidos de si e do mundo. Embora o desejo de maternar dessas mulheres em situação de vulnerabilidade extrema não encontre garantias de concretização, dadas as desigualdades profundas e necessidades específicas, ele se manifesta como possibilidade de construção de outras formas de caminhar pela vida (Santos et al., 2021, p. 7). A maternidade constitui para essas mulheres locus de transformação, de organização da subjetividade e resgate identitário (Zanello e Richwin, 2022, p. 79).

De uma perspectiva narrativa, o potencial de transformação que o maternar suscita em mulheres em situação de rua, tão presente em suas práticas discursivas, se articula, muitas vezes, como pontos de virada em suas histórias de vida (Kings et al, apud Santos et al, 2021, p. 11). Collins elabora como a maternidade, como símbolo de poder, pode promover crescimento pessoal, além de elevar o status das mulheres dentro da comunidade negra e, ao mesmo tempo, impulsionar o ativismo social (Collins, 2019, p. 296). Agência e maternidade, sob esse enfoque, andam de mãos dadas e determinam a forma como irão encarar e lidar com as questões que orbitam suas maternidades.

No momento em que o feminismo normativo olha com desdém para as mães engajadas em políticas de maternidade, coloca também em xeque o potencial de empoderamento da mulher-mãe na comunidade negra (Collins, 2019, p. 321). A despeito dos percalços e obstáculos na superação de opressões interseccionais, a maternidade e maternagem negras são símbolos de poder, que politizam, movem, produzem agência.

As agruras enfrentadas pelas mulheres mães em situação de rua deveriam ser encaradas como urgência pela pauta feminista. Ocorre que o feminismo normativo entende suas lutas como prioritárias e, à medida que o faz, tende a se limitar a pautas relacionadas exclusivamente à igualdade de direitos, não contemplando as necessidades urgentes de mulheres em situação de vulnerabilidade extrema: manterem-se vivas. Nas palavras de Kendall (2021, p.19):

[…] mulheres pobres que sofrem para colocar comida dentro de casa, pessoas de regiões pobres que têm de lutar para manter escolas abertas e a população que luta para ter o básico em questão de escolha sobre o próprio corpo também são questões feministas e que deveriam receber atenção dentro dos movimentos.

Crenshaw (2004), feminista negra que desdobrou o conceito de interseccionalidade[7], mostra em seus estudos o quanto as mulheres negras se deparam com dificuldades em relação aos problemas enfrentados, experienciando um agravamento da vivência dos problemas que se impõem pelo discurso dominante através dessa dupla opressão de ser mulher e negra. Um reflexo disso é que constituem a parcela social com menos recursos financeiros. Como mencionado, quando se encontra em situação de vulnerabilidade extrema, há outras prioridades mais urgentes do que a pauta por igualdade salarial, tais como questões relacionadas a alimentação e moradia. Denuncia então a opressão da categoria “mulheres” como limitada, essencializante, genérica e normativa.

Retomando Kendall (2021, p. 23), “tudo que afeta uma mulher é uma questão feminista, seja acesso a transporte, alimentação, educação ou salário mínimo”. Assim, o feminismo verdadeiramente interseccional não há de ser internamente hierárquico ou inclusivo por condescendência.

Estudos da Narrativa

Como uma ramificação dos estudos da interação, a análise de narrativa tem como objeto de estudo as narrativas que emergem em encontro social. Seu foco é microescalar – ou seja, focado em situações específicas, situadas e circunscritas em termos geográficos, históricos e sociais. No entanto, cada fala e história faz parte, constitui e diz sobre o macro – a sociedade como um todo, as influências culturais e seus discursos circulantes – havendo uma relação intrínseca entre ambos.

Histórias de vida e pontos de virada

Uma perspectiva fundamental neste trabalho, à qual irei me reportar, são as histórias de vida (Linde, 1993). Para Linde, todos temos histórias que nos constituem e que contamos e recontamos no curso de uma vida. Trata-se fundamentalmente de histórias relacionadas a marcos biográficos, como nascimento, casamento, doença, trajetória profissional. A autora entende que as histórias sofram acréscimos ou decréscimos a cada vez que são contadas, por adequações ao contexto da produção e performance, entendendo que o narrar é sempre situado e relacionado ao que se quer tornar relevante, e também por artifícios da memória e suas minúcias. Linde coloca ainda que uma história de vida contém algum ponto avaliativo extremamente significativo sobre quem narra ou sobre o que é narrado, além de trazer a questão da reportabilidade estendida como um aspecto fundamental de uma história de vida. Para que uma certa unidade discursiva seja considerada uma história constituidora da vida de alguém, ela deve possuir algo extremamente reportável que justifique ser contada e recontada ao longo dos tempos. Por se tratar de um acontecimento com grandes implicaturas, um parto integra, portanto, o repertório de histórias de vida de alguém e a narrativa de tal evento costuma vir encadeada e dar sentido a outras – prévias ou posteriores à narrativa do nascimento em si.

O “ponto de virada” (Mishler, 2002) é também uma categoria narrativa que servirá de aporte para a compreensão de guinadas nos rumos das histórias contadas mediante acontecimentos inusitados ou momentos considerados divisores de águas. Trata-se da construção narrativa de eventos destrutivos em um momento passado pontual que marcam e transformam a vida de alguém (Bastos & Biar, 2015). Segundo Mishler (2002:107), os pontos de virada seriam percebidos pelos narradores como

eventos que abrem direções de movimentos inesperados e que não podiam ser previstos por suas visões anteriores do passado, levando-os a um outro senso de si próprios e levando-os também a mudanças que traziam consequências para a maneira como eles se sentiam e para as coisas que faziam.

Dentro de um contexto de uma história de vida, os pontos de virada são então os elementos que configuram o reposicionamento de alguém diante de grandes marcos em suas experiências, reatualizando a percepção das mesmas e forjando identidades. Conforme veremos, o evento do parto é, potencialmente, um momento de transformações profundas na percepção dos sentidos que se tem sobre si, sobre a própria vida e sobre o mundo

A Força da Avaliação na Narrativa

No presente trabalho, iremos focalizar a avaliação, entendendo sua importância no valor que se atribui a um dado referente através de sua carga emocional e percebendo-a como a razão de ser da narrativa – aquilo que lhe confere o propósito de ser narrada e de sua reportabilidade.

Em Labov & Waletzky (1967), a avaliação pode se apresentar de duas formas na narrativa, podendo ser externa ou encaixada. A avaliação externa se dá quando o narrador interrompe seu relato e diz ao ouvinte a sua percepção sobre o fato narrado. Já na avaliação encaixada, o narrador faz sua avaliação de forma indireta, pela utilização de recursos linguísticos, como entonação; aceleração ou diminuição do ritmo de voz; alongamentos de vogais e repetições, não havendo, assim, interrupções do fluxo narrativo.

Alinhada com tal perspectiva, Charlotte Linde ressalta que na avaliação se encontra a expressão/dimensão da linguagem, exposta através de indicativos da ordem social do narrador. Com um viés mais contemporâneo e social da narrativa, Linde entende a avaliação como algo que constitui a determinação social de sentido atribuído a alguém, a suas ações e ao seu entorno (Linde, 1997, p. 165). Para ela, avaliação e prática social estão diretamente relacionados, sendo a avaliação um elemento através do qual se estabelece a negociação em interação social. A autora lança entendimento sobre a avaliação como um fator essencial para a compreensão de uma determinada pessoa, de suas ações e de seu contexto (Linde, 1993, p. 152).

Em tradução livre: “a avaliação compõe o coração da narrativa: a narrativa oral é bem mais sobre chegar a um acordo sobre o sentido moral de uma série de ações do que sobre um mero relato dessas ações”. Uma vez que avaliação e emoção mantêm uma relação de interdependência, não é possível separar avaliação de discurso. Emoções, avaliação e discurso estão interligados, influenciando-se mutuamente em uma indissociável relação de interdependência.

A seguir, serão analisados os partos de Dinara. Os excertos apresentados são unidades narrativas provindas de uma narrativa maior. Algumas apresentam traços mais canônicos, outras menos. As unidades narrativas podem ser percebidas como partes que funcionariam de forma independente, mas que se inter-relacionam na composição de um todo. Valho-me assim da metáfora do mosaico para aludir aos eventos narrativos que compõem esse painel maior do panorama de uma história de vida.

Dinara

Seus partos são por ela remontados olhando em retrospecto para a sua história de vida e inúmeros atravessamentos que marcaram profundamente sua humanidade enquanto mulher negra e moradora de rua. Tais partos por si sós não são construídos como focos centrais de violências físicas e discursivas em sua vida. Ela relata sua saga com muitos momentos que definem sua trajetória de forma abrupta, e os partos, por esse viés, embora também entalhados com a marca dos discursos hegemônicos, não são mais definidores do que o todo que compõe a sua vida. Proponho que possamos entender que os partos de Dinara não podem ser vistos como eventos isolados, dada a magnitude de suas experiências dentro do contexto situado de onde parte. Os partos de Dinara são parte do que constitui a complexidade de sua história de vida (Linde, 1993) e não serão analisados linearmente, pela necessidade de observarmos outros aspectos fundamentais fundantes de sua vida e de sua forma de se construir no mundo.

A vivência na rua está longe de ser um detalhe na vida de Dinara, se relacionando diretamente com sua percepção de si e do mundo, o que inclui a forma como constrói os atravessamentos em torno do seu maternar. Já os partos são eventos inteiros por si só. Cada parto é uma história que faz parte e sofre influência direta de uma história maior: a vivência na rua.

Se construções ocidentais em torno da maternidade (a partir da industrialização) reforçavam, dentro do “dispositivo da maternidade” performances esperadas da mulher-mãe como a figura que nutre, cuida, educa por instinto e vocação atrelando à mãe o “domínio” da esfera privada, tal relação se complexifica quando pensamos em contexto. E, evidentemente, o construto da maternidade não passa ileso pelos processos de colonização e escravização no Brasil e pelo encontro das concepções europeias sobre o maternar com as concepções culturais indígenas e africanas. Somado a isso, as relações de poder também ditavam as formas de se experienciar e dar sentido à maternidade/ maternagem (Zanello, 2018, 2022). Enquanto cabia à mulher branca procriar e seguir a cartilha ocidental de boa esposa e mãe devota, as mulheres negras tinham seus filhos arrancados de si “como bezerros separados de vacas” (Davis, 2016, p. 19), seja para servirem de amas de leite e “mães pretas” para os filhos das sinhás (Gonzalez, 1984, p. 229, 235), seja para a venda de seus filhos, escancarando a face da desumanização da mãe-mulher-preta na lógica colonial. Esse tipo de violência infligido às mães pretas as leva para movimentos de resistência dentro de seu maternar. A criação de redes de apoio e criação coletiva tem influência de entendimentos da cultura africana, em que maternar não é algo da esfera do privado e do vínculo biológico direto e se ancora na coletividade e na cooperação (Collins, 2019).

Os estigmas sociais sentidos pelos que se encontram em situação de rua marcam seu relato. Em diversos momentos é possível notar a associação dessa comunidade com uma suposta inaptidão para que se exerça o papel de “boa mãe”, construída no ideário dominante.

Análise do parto de Danilo

Em meio às dores de parto, o que poderia passar como sutil pelo filtro da naturalização se escancara à medida que Dinara dá vazão e extravasa sua dor:

Se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha” – sobre poder e opressão

ela falou “não, deixa ela romper porque pode ser que nasça normal” eu fiquei lá, fiquei lá, fiquei, fiquei, quando ela viu que eu gritei, subi, desci, deitei, rolei, ela viu que eu não, ela falou pra mim, “se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha”, eu com quinze anos lá, fiquei desesperada, ah vou parar de gritar, e fiquei ((simula estar fazendo força abafando o som)) aí:::, ela veio, me botou na mesa, abriu minha perna e fez um toque, eu fazia força e a cabeça do Danilo não passava↓, eu fazia força, fazia força

A fala da médica que atende Dinara toma forma de uma ameaça. Em um momento delicado, onde o esperado é o acolhimento, a ameaça de desamparo ganha peso. Através do recurso poético da repetição (“fiquei lá, fiquei, fiquei,”), Dinara enfatiza o tempo que passou esperando o momento de nascimento. Marca e avalia seu esforço e dificuldades físicas pelas quais passou durante o parto através de uma sequência de verbos no passado  (“quando ela viu que eu gritei, subi, desci, deitei, rolei,”). A fala construída aparece na narrativa como uma construção de ameaça de abandono: “se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha”). Diante da ideia iminente de ser deixada por conta própria no ambiente hospitalar por estar externalizando sua dor pelo grito, Dinara marca em avaliação o sentimento acometido: o desespero (“fiquei desesperada”). A instituição médica tem tal força que faz com que se leve a crer, muitas vezes, que devemos mesmo seguir à risca o que dizem, mesmo que isso implique coibir nossos instintos. Assim, Dinara se esforça a ir contra a própria natureza e abafar o grito (“ah vou parar de gritar”).  Novamente, constrói em sua narrativa uma agentividade impositiva por parte da equipe médica, tendo as pernas abertas e o toque subsequente sem o seu consentimento ou sem que ao menos seja informada de antemão sobre as manobras as quais seria submetida (“aí:::, ela veio, me botou na mesa, abriu minha perna e fez um toque”). Seu esforço e agência no sentido da realização do parto é também marcado pela repetição “eu fazia força, fazia força “.

Análise do parto de Maya

A percepção de violências linguísticas e psicológicas mobiliza em Dinara o sentimento da indignação e da raiva. Abaixo, Dinara narra a recusa da médica em tocá-la:

“Parece que loira tem alguma coisa contra mim, porque não é possível” – violências linguísticas, abandono institucional e seus desdobramentos: raiva, humilhação e revolta

DINARA não é! ela não me tocou, porque também minha vagina tava com cabelo, me chamou de porca, falando que eu não me raspei, que eu tinha que vir raspada, falou que não aceitava gritando, eu falei: “moça, mas tá doendo” “tem que se controlar, senão vai ficar aí”, de ironia comigo porque eu tava lá, não podia levantar, não podia socar a cara dela, porque se eu fosse levantar eu ia meter a mão na cara dela, mas com a mãe aberta, ela acabou de parir, ((inaudível)) parece que a loira tem alguma coisa contra mim porque não é possível
BARBARA uma coisa chamada racismo, né?

O circo perverso desferido a uma mulher negra em situação de rua marca sem cessar quem tem o poder e o faz com mais afinco diante de qualquer movimento de insujeição/insubmissão.

Dinara por um momento modaliza e justifica a médica se recusar a tocá-la por não estar depilada: “porque também minha vagina tava com cabelo “. Elenca então a sequência de humilhações desferidas pela médica: “me chamou de porca, falando que eu não me raspei, que eu tinha que vir raspada, falou que não aceitava gritando”. A força opressiva, mesmo com a revolta gerada, respinga e semeia a culpa, no movimento de vai e vem pendular já exposto anteriormente. Ela também constrói como a médica poderia se valer de sua condição para humilhá-la, uma vez que ela não poderia reagir à altura, como gostaria, pela sua condição de uma parturiente deitada com as pernas abertas (“não podia levantar, não podia socar a cara dela, porque se eu fosse levantar eu ia meter a mão na cara dela, mas com a mãe aberta“). A percepção do racismo é então emulada (“parece que a loira tem alguma coisa contra mim porque não é possível “). A humilhação aflora diante do tratamento recebido.

Ainda sobre o racismo:

“Ela tinha que me tratar como ser humano” – racismo institucional

BARBARA ela era a principal assim?
DINARA a principal
BARBARA entendi
DINARA entendeu? ela era a principal, isso que me deu mais tristeza, porque ela tinha que me tratar como ser humano e ela não me tratou, ela me tratou igual um bicho, falando que eu tinha, eu fiquei desesperada porque eu achei, será que é algum exame que ninguém me informou? eu fiz meu pré-natal todinho da Maya, não me informaram que eu tinha nada, eu fiquei dormindo naquele treco lá, eu fazia meus pré-natal todinho e não me informaram, no finalzinho que eu não consegui completar, por causa do negócio da enchente, eu perdi o cartão, perdi documento, perdi tudo, e ela me tratou daquela forma, igual um lixo, e já não tinha nada, aí começou lá na maternidade mesmo, um doou uma roupinha, fralda, eu saí de lá com o ganho da maternidade do pessoal que tinha me doado quando eu perdi as coisas na enchente

O sentimento de tristeza (“isso que me deu mais tristeza, porque ela tinha que me tratar como ser humano e ela não me tratou “) é destacado em forma de avaliação dentro combo das humilhações do contexto do racismo institucional. Dinara denuncia em seu relato a bestialização e desumanização (“ela me tratou igual um bicho”, “me tratou igual um lixo”) sofridos e como aquilo vinha em um momento de extrema vulnerabilidade: uma mulher negra, em situação de rua, parindo e ainda tendo perdido tudo o que tinha em uma enchente. Em sua narrativa, se questiona sobre o que possa ter deixado passar, já que seguiu todo o protocolo do pré-natal.

Análise do parto de Lia

A seguir, Diana relata o momento em que se deu conta que sua filha iria nascer:

“Eu fiz o meu parto” – ponto de virada: agentividade pelo protagonismo no parto eu” botei a mão, não, eu prendi a respiração, porque a contração tava vindo e se eu empurrasse com força, ela ia, eu ficava assim, me tremendo, me tremendo, aí eu levantei devagarzinho me tremendo, a contração parou, aproveitei que eu contava o tempo da pausa da contração, eu tampei o vaso, tirei com uma mão só, era uma coisa de louco, cara, eu tive que passar meu avental, aqueles que eles botam, branco, pelo soro, pelo negócio que segura o soro, abaixar lá embaixo, puxar, tirar, dobrar, abaixar

Relata então todos os passos cautelosos que adotou sem qualquer intervenção externa. Mesmo com medo, marcado em sua fala pela repetição “me tremendo, me tremendo”, esteve a todo tempo nas rédeas da situação. Enumera uma sequência de verbos no passado (levantei, tampei, tirei), que não apenas definem uma narrativa canônica, mas que aqui cumpre o papel de enfatizar sua agentividade: tampou o vaso, tirou apenas uma mão, passou o avental até embaixo, dobrou… A agentividade segue sendo marcada:

“(Fiz tudo) Sozinha” – sobre marcar a autonomia e agência

BARBARA você fez o parto sozinha?
DINARA sozinha, aí eu abaixei, a Lia saiu
BARBARA não tinha ninguém perto?
DINARA a Lia saiu, ela saiu dentro da bolsa
BARBARA empelicada, não é isso que fala?
DINARA é, ela saiu assim, dentro da bolsa
BARBARA mas como é que você se sentiu? você tendo feito o parto dela?
DINARA não, eu fiquei desesperada mas era muito bonito, eu não senti dor naquele dia, eu não senti uma dor, ela era muito pequenininha, ela nasceu um feijãozinho

O relato da construção de um parto sem interferências físicas ou discursivas parece associado a um sentimento de orgulho e uma consciência plena do próprio processo que permite a contemplação de sua beleza (o nascimento de um bebê empelicado, que descreve como “muito bonito”) além de não operar no registro da dor (“eu não senti dor naquele dia”), mesmo com o que descreve como um desespero pelo inusitado e pela responsabilidade sobre algo tão valioso que é nascimento de um filho. Sobre a momento em que a estagiária se dá conta de que Dinara fez seu parto, relata:

BARBARA mas não te deu ao mesmo tempo um alívio que não tinha ninguém, era só você e ela? ela saiu, foi você que tirou
DINARA é, não tinha ninguém, ela saiu, ninguém me machucou, mas veio a doida da menina, estagiária, que eu gritei, não desesperada, “oi, me ajuda aqui”, aí ela veio, eu super calma, quando ela abriu a porta, ela “ahhhhhh, meu Deus, calma mãe, calma”, eu “tô calma” “mas calma, olha pra mim, ai meu Deus o que eu faço” e não sabia o que fazer, aí fez assim na pele, não falava coisa com coisa, na bolsa, aquele saco lá, bolsa ((inaudível)) que fala? ela tocou na bolsa, mexeu, aí estourou, a Lia se esticou, aí a bolsa pá:::, e eu toda encantada lá, coisa que eu nunca tinha visto
BARBARA falam que é lindo
DINARA é uma coisa mágica, só que depois que saiu a Lia,

Dinara chama atenção no excerto acima para como, em um parto por ela executado, saiu ilesa, sem machucados de qualquer ordem. Ao pedir por ajuda, no entanto, a estagiária novata é descrita como alguém desnorteada, sem nenhuma intimidade com os protocolos de um parto e que pedia calma repetidas vezes a Diana como forma dela própria se acalmar. Mediante um toque, a bolsa estoura e revela Lia empelicada como um momento raro de magia.

BARBARA deve ter sido o primeiro parto que ela viu na vida dela
DINARA que ela viu na vida, ela falou, que foi o primeiro parto que ela viu, mais louco (.) ela “menina, você é incrível, hein? você teve a neném sozinha, eu quase matei sua filha, você reanimou ela”, ela chorava tadinha, deu pena dela, e eu toda emocionada, foi, eu fiz o parto da minha filha, eu consegui fazer ela respirar, eu tive calma, eu não gritei, não me desesperei, não tinha médico me apontando, eu fiz o meu parto, eu fiz o meu parto da Lia (.) Lia nasceu muito fora do peso, bem pequenininha porque eu não me alimentava direito

Aqui se coloca que a enfermeira estagiária era mesmo novata e não havia nunca presenciado um parto, muito menos como aquele. Suas qualidades de mãe empoderada são aqui corroboradas e enaltecidas pela enfermeira (“menina, você é incrível, hein você teve a neném sozinha”), que, nesse discurso construído, admite sua inabilidade e se responsabiliza por isso (“eu quase matei sua filha, você reanimou ela”). O sentimento de pena aqui, mais uma vez, evoca o esmaecimento da força da instituição médica (“ela chorava tadinha, deu pena dela”).

Por fim, conclui, com uma coda (uma espécie de “moral da história” que fecha a narrativa, após a qual volta-se ao tempo presente) que reafirma sua potência enquanto mulher mãe preta, a sua grande virada, rompendo com convenções de poder normativo. Elenca ela as suas ações: “eu fiz o parto da minha filha, eu consegui fazer ela respirar, eu tive calma, eu não gritei, não me desesperei, não tinha médico me apontando, eu fiz o meu parto, eu fiz o meu parto da Lia”. A filha é dela. O parto é dela. Dela e de mais ninguém.

A partir da pesquisa aqui proposta, espero ser possível fomentar pensamento crítico a respeito dos atravessamentos discursivos e questões sociais enfrentados por mulheres mães em diferentes contextos sociais (levando em conta, sobretudo, os efeitos que raça e classe vêm sobrepor sobre a condição de ser mulher-mãe Penso aqui que a humanização seja premissa básica em esferas sociais e institucionais na formação de profissionais de saúde e também para além da obstetrícia e da área médica. Por fim, as inter-relações cultura-discurso-corpo-afeto evidenciam como as determinações linguísticas não nos atravessam sem deixar suas marcas. Na mesma medida, seguir os rastros discursivos pelo faro das emoções (tão gritantes nas avaliações) permite reelaborar e redimensionar a experiência vivida.

Anexo: Convenções de transcrição[8]

(1.8) Pausa
(.) Micropausa
= Fala colada
[Texto] Falas sobrepostas
, Entonação contínua
↑texto Entonação ascendente da sílaba
↓texto Entonação descendente da sílaba
. Entonação descendente do turno
? Entonação ascendente do turno
Marca de interrupção abrupta da fala
::: Alongamento de som
>Texto< Fala acelerada
>>Texto<< Fala muito acelerada
<Texto> Fala mais lenta
<<Texto>> Fala muito mais lenta
TEXTO Fala com volume mais alto
°texto° Volume baixo
°°texto°° Volume muito baixo
Texto Sílaba, palavra ou som acentuado
(Texto) Dúvidas da transcritora
xxxx Fala inaudível
((Texto)) Comentários da transcritora
hhhh Riso expirado
hahahehehihi Risada com som de vogal
{{rindo} texto} Turnos ou palavras pronunciadas rindo
.hhh Inspiração audível

* Barbara Venosa é doutoranda em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio, pesquisadora e artista visual. É também membra do grupo de pesquisa NAVIS – Narrativa e Vida Social, coordenado por Liliana Cabral Bastos e Liana de Andrade Biar.

 

Referências bibliográficas

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Notas

[1] Discursos com “D” maiúsculo aqui fazem oposição aos discursos com “d” minúsculo. Segundo Paul Gee (2001), os Discursos dizem respeito ao que permite identificar grupos sociais, suas ações, valores, conhecimento, possibilidades de existências, estruturas, dizendo respeito à estrutura macrossocial). Já os discursos se relacionam com o uso da linguagem, compreendendo a esfera microssocial.

[2] A pesquisa Nascer no Brasil, liderada pela Dra. Maria do Carmo Leal e sob coordenação geral da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz), consiste em um estudo histórico que coletou dados de 23.894 mulheres, em 191 municípios e 266 hospitais, entre 2011 e 2012, e sintetizou pela primeira vez as práticas de atenção ao parto e nascimento no país, no século XXI.

[3] A imagem faz parte da instalação artística Par(t)ir, de minha autoria (bem como as fotografias de minha obra) que fez parte da exposição coletiva Mátria, no Parque das Ruínas, Santa Teresa, Rio de Janeiro, entre dezembro de 2022 e março de 2023. A obra é um desdobramento interdisciplinar da pesquisa aqui disposta e é composta por treze esferas de argila (preta, terracotta e tabaco) dispostas em três escalas diferentes. Cada esfera craquelada possui uma incisão, aludindo às violências múltiplas sofridas por mulheres de diferentes locais sociais no advento do parto. Das três esferas maiores, ecoam os relatos de parto de três participantes de pesquisa, sendo uma delas, Dinara.

[4] Vide descrição da figura 1.

[5] A construção dessa seção foi movida pelos sentimentos gerados durante minha entrevista com Dinara, a partir da qual se escancara como o maternar das mulheres em situação de rua é uma questão complexa, embebida de múltiplas camadas e atravessamentos sócias e com sentidos próprios, e que muito embora seja uma realidade de uma quantidade expressiva da população do país, segue invisibilizada.

[6] Para Foucault (2000, p. 244), um dispositivo seria um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. A abordagem sobre um dispositivo da maternidade é aqui feita a partir de tais construções acerca do entendimento sobre poder e suas relações e modos de subjetivação.

[7] Há controvérsias em relação à autoria, visto que Lélia Gonzalez já se debruçava sobre a temática. Mas de uma forma ou de outra, foram pioneiras.

[8] Modelo baseado nas propostas jeffersonianas de transcrição.

dossiê
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FEMINISMO, A PALAVRA MALDITA

Um dos maiores problemas que as feministas têm enfrentado ao longo do tempo está na sustentação de nome que nos designa, qual seja, feminismo. Heloisa Buarque de Hollanda, em declarações públicas, disse que achava terrível a resistência que a palavra causava, mas que, de fato, via grande afastamento de parte das mulheres, em especial, as periféricas, por causa do horror que repercutia na coletividade a palavra “feminismo”. Sim, representações hostis fizeram do feminismo uma palavra que apavora e, sem dúvida, essas representações são fruto das produções simbólicas, imaginárias, discursivas que o patriarcado operou enquanto sistema linguístico.

As igrejas e suas formas de entender e explicar o princípio do mundo e a disseminação de sua moral, ao lado da linguagem entendida como neutra, para carregar esses valores favorecem a incompreensão do termo e do sentido histórico nele contido. O que chamamos de misoginia se efetiva hoje no processo de produção dessa incompreensão, na desinformação e confusão em torno da temática de gênero e tudo que ela aborda. O patriarcado, enquanto uma das faces do capitalismo, é um sistema comprometido em difundir o discurso de ódio às mulheres e outras minorias políticas, da mesma forma com que o racismo partilha da operação do capitalismo para garantir seu discurso de ódio aos negros e a outras etnias não brancas.

O feminismo tem um potencial epistemológico radical não só pela ação política nele implicada, mas também porque carrega o sentido da luta epistemológica contra o patriarcado. Acredito que a luta atual do movimento feminista plural passa, necessariamente, a ser uma luta que briga para dizer seu próprio nome. E, a partir da afirmação de sua própria existência, segue sendo atacada pelo sistema de opressão e vigilância vigente. Ouso afirmar que dizer-se feminista é, portanto, uma declaração de participação no enfrentamento ao patriarcado e não é à toa que o feminismo, assim como gênero, sejam termos utilizados contra suas próprias signatárias. Ao pautar a insubmissão das pessoas ao sistema heteronormativo branco e capitalista, a máquina de produção linguística do patriarcado transforma o problema que o feminismo cria para ele em um problema para as feministas. A violência patriarcal implica não apenas a força física ou verbal, mas todo um jogo retórico e de inversão de sentidos.

A misoginia, enquanto discurso de ódio, afeta a imagem das mulheres e das lutas feministas em favor do círculo vicioso entre violência verbal e simbólica próprias à dominação patriarcal. Se agentes da discursividade misógina usam o “feminismo” em contextos ofensivos (como o termo “feminazi”, muito popular aqui no Brasil), nessa esteira, o que o sistema consegue é que muitas mulheres passem a abominar o feminismo e outras tantas jamais se sintam seguras e confortáveis para afirmarem-se como feministas. Se, de um lado, algumas pessoas permanecem alheias à análise concreta da realidade, de outro, não querem adotar em suas vidas uma expressão desabonadora que pode vir a prejudicá-las. Se ser mulher ou ser um corpo inadequado ao patriarcado implica a misoginia, já que o patriarcado cria o feminino como um outro a ser abatido, ser e dizer-se feminista implica a possibilidade de ser alvo da misoginia duas vezes.

Não consigo parar de pensar que não é só o termo feminista que sofre com a perversidade sistêmica. Nós, as feministas, sofremos os mesmos preconceitos das mulheres em geral, e nessa matemática atrevo-me a dizer que as mulheres não feministas também sofrem preconceitos como se feministas fossem. Porque a violência patriarcal não coloca no alvo tão somente a sobrecarga política oriunda da palavra maldita, o feminismo, muito pelo contrário; a palavra “mulher” também faz parte da episteme violentada pelo patriarcado; o próprio objeto da misoginia está no corpo dissidente, neste caso, no da fêmea da espécie humana ou, melhor dizendo, das mulheres. Mulher seria, então, um dos termos marcadores de fracasso social, tanto assim que servimos como ofensa, na máxima “só podia ser mulher”, ou ainda, quando fugimos do enquadramento, na outra máxima “nem parece uma mulher”. Ou seja, enquanto corpo ou palavra, as mulheres não conseguem sair do alvo nem enquanto sujeitos mesmos de seus corpos, muito menos enquanto sujeitas de sua ação política enquanto autodeclaradas feministas. O patriarcado trabalha nas duas vertentes para impedir o gesto performativo da autoafirmação, que torna alguém dono de si, ou seja, dono de seu próprio corpo. A misoginia desempenha um papel fundamental nesse processo, impedindo o feminismo como uma mediação necessária para a produção da consciência acerca do direito ao corpo.

Para além do preconceito estrutural construído pela modernidade, que está ligado à palavra, é visível que a operação patriarcal tem buscado evitar que a luta das mulheres avance, e este é o escopo da ação de silenciamento. Usando o preconceito reiterado, atualizado, o patriarcado consegue produzir uma rejeição à luta fundada na rejeição ao termo usado para expressar a luta. Se dizer é fazer (Butler, 2021), a fala violenta é ação em si mesma, mas também incitação a violências materiais e físicas que criam e recriam condições simbólicas e concretas em um círculo vicioso. A misoginia é parte fundamental da pragmática do discurso falogocêntrico; entendendo o patriarcado estruturado com uma linguagem própria, à medida que também estrutura a própria linguagem em um movimento dialético, a misoginia garante a ordem simbólica, conceitual e moral, ou seja, as próprias condições de possibilidade do patriarcado diante das ameaças que ele sofre por parte dos que se negam à sua exigência de submissão.

No contexto atual, a misoginia é o discurso oficial, e as mulheres e os corpos dissidentes divergentes passam a ser vistos como uma fraqueza ou um erro da natureza; se assim é, só posso dar péssimas notícias, pois nós, mulheres feministas, não passamos de um duplo erro da natureza e, com a força da nossa atuação, estamos disputando para que nossa existência também não seja considerada um erro da cultura. Feministas seriam, sem dúvidas, as bruxas da contemporaneidade e portadoras de algo antinatural: sua insubmissão. Acho que dá para ver um exemplo da misoginia didática quando pensamos no ódio a livros como O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, com sua crítica às mulheres que apoiam o inimigo, e sua teoria do seu “caráter inessencial”, no patriarcado, diante do caráter essencial dos homens.

Figura 1: <em>simone de bom voar</em>, de Simone Sapienza Siss (disponível em <a href="https://www.siss1.com.br/siss-who-simone-siss">https://www.siss1.com.br/siss-who-simone-siss</a>)
Figura 1: simone de bom voar, de Simone Sapienza Siss (disponível em https://www.siss1.com.br/siss-who-simone-siss)

A misoginia, como atitude da linguagem, sempre foi providencial na organização da violência para que ela funcione efetivamente de maneira orquestrada. Ela está presente quando se associam mulheres à natureza: na imagem da natureza, no que se diz da natureza, e no prisma usado para se construírem discursos sobre as mulheres. A situação de fala não é, portanto, um simples tipo de contexto, algo que pode ser facilmente definido por seus limites espaciais e temporais (Butler, 2021, p. 15), pois ser violentado pelo discurso é perder o contexto, é não entender onde se está. A redução da imagem da mulher e sua ligação à natureza, por meio do discurso, faz com que a certeza de espaço seja abalada. Toda qualidade preferida ligada a um dado da natureza nos coloca em posição subjugada. Mas é claro que essa falta total de agência foi e é reiterada pelo patriarcado, tornando-o eficiente em providenciar espaços de insegurança para as mulheres. Esses espaços geram mais violência quando nossos corpos estão soltos, avulsos, sem localização conhecida, e a violência é uma metodologia de separação aplicada às mulheres e aos corpos que deseja controlar ou descartar. O poder é uma metodologia criada entre os homens para garantir sua coesão, segurança e proteção, algo que as mulheres não devem usar segundo as normas do sistema patriarcal. Se as mulheres usarem a confiança umas nas outras como metodologia, o sistema sustentado na diferença hierárquica entre homens e mulheres pode ruir.

O feminismo é um operador teórico-prático, que pode funcionar como dispositivo de combate à ordem patriarcal, mas desmontar a máquina misógina é como desativar um programa de pensamento, que orienta o comportamento dos corpos, porque o patriarcado é o verdadeiro articulador do pensamento misógino, que orienta a ação na direção do favorecimento dos sujeitos privilegiados dentro do sistema capitalista. O ódio ao feminismo está ligado ao sistema capitalista de forma compulsória submetendo os corpos e os dispositivos de linguagem.

Em uma tentativa de entender o paralelo entre linguagem e o sistema patriarcal, imaginemos o seguinte: mulheres sofrem com o patriarcado em geral; pessoas trans têm problemas burocráticos, legais e sociais a enfrentar com o seu “nome social” frente ao lugar do “nome” que lhes foi dado pela família em sua estrutura patriarcal; o feminismo enfrenta com seu nome, nomenclatura designada, um problema criado pelo patriarcado. Talvez seja possível tal comparação para fins de entendimento do que considero uma questão de gênero ou um problema linguístico: o feminismo, como expressão carregada de incômodo, trabalha na mesma lógica que uma pessoa trans ou um corpo de mulher no mundo patriarcal; por ser considerado um termo inadequado, o feminismo luta pelo reconhecimento de sua dignidade enquanto termo. Sendo assim, acredito que o problema do nome na cultura patriarcal sempre foi um problema de gênero. Todo problema de gênero é linguístico, mas também performativo. Pesa sobre os corpos violentados pelo patriarcado a proibição de dizerem quem são e como se veem por meio de suas próprias palavras sob pena de atingirem, de maneira manifesta e provocativa, a condição de sujeito, deixando de ser objetos do patriarcado. Entre o nome próprio e a biografia, e entre o nomear a si mesmo e o poder de definir uma autobiografia, avança a política da verdade feminista ou uma ética feminista de promoção de uma política de verdade.

A violência exercida nos corpos considerados abjetos pelo sistema patriarcal tem correspondência na violência que se faz à teoria produzida por mulheres, teorias que disputam a epistemologia e tentam reduzir o patriarcado a somente mais uma teoria. Essas teorias, que estão em rota de colisão com o sistema, ficam na mira da artilharia patriarcal, de um lado, pelo apagamento acadêmico, contra o qual as teóricas feministas vêm lutando, e, de outro, por fundamentalistas que atacam a prática feminista, organizando-se para persegui-la.

Atualmente, existe um campo de batalha em torno da expressão “ideologia de gênero”, e talvez este seja o melhor exemplo do que está em jogo. A artimanha pela qual a citada expressão utiliza uma definição conceitual para combater aquelas estudiosas e todo o campo de estudos de gênero tornou-se popular no Brasil, inclusive em meios escolares. Com que intuito? A pesada violência conceitual contra teóricas, pesquisadoras, estudantes, escritoras, a reflexão, a ciência, o mundo acadêmico e a escola adquiriu ares de verdade em um movimento de populismo patriarcal. Nessa guerra, talvez possamos dizer que estamos assistindo a um retorno da caça às bruxas, sendo “gênero” a nova bruxaria. É bom que a gente se lembre de que o uso distorcido e falacioso da expressão “ideologia de gênero” passou a ser comum a partir de uma Conferência Episcopal da Igreja Católica ocorrida em 1998 em Lima, no Peru. O tema da referida conferência foi A ideologia de gênero – seus perigos e alcances. E de volta à cena, a operação religiosa ocupa seu lugar de nortear contra quem o conjunto da sociedade deve se preocupar, quem deve ser combatido e quem está a serviço de forças obscuras. Da perspectiva da igreja católica, cria-se uma espécie de monopólio epistemológico sobre o tema da sexualidade a partir da ideia de uma natureza sexual que o termo gênero vem questionar. O conceito de gênero passa a ser entendido, do ponto de vista religioso, como uma ameaça.

O gesto da autoafirmação, dizer e contar a própria história, assume o mesmo lugar de sujeito que o herege e a “bruxa” tinham na Idade Média. Dizer-se feminista torna-se uma ousadia e, no extremo, uma heresia pela qual a pessoa é demonizada. Nomear-se é um gesto de empoderamento. Aquele que nomeia é dono do poder simbólico sobre o outro na ordem do discurso. O que está em jogo é, ainda e mais uma vez, o problema da autoridade que implica a “autorização” para dizer o que ou “quem” se é. E esse aspecto diz respeito a um problema mais que verbal: o modo pelo qual algo entra na ordem da linguagem e adquire existência no mundo humano movido pela máquina da linguagem. Pois é, não é possível desconsiderarmos o patriarcado como também um dispositivo que tem, nos termos gênero e sexo, peças de sua engrenagem para promover a dominação. O feminismo tem tentado mostrar que o funcionamento dessa máquina, movida pelo “princípio de identidade masculino” e pela “política da identidade patriarcal”, precisa ser freado. Nesse processo, a epistemologia feminista cumpre um papel fundamental, e acaba sendo tratada como alvo permanente do ódio do opressor.

A invasão das Américas, ou a “descoberta” do mundo novo, pode nos ajudar a entender a política da linguagem colonizadora em analogia com a política da linguagem patriarcal. O caráter de negação da existência de seres humanos antes dos descobridores/invasores é notório quando estudamos a nossa história, mas a negação do outro é parte intrínseca do caráter de dominação presente na política colonial. “Índio” foi o nome dado aos seres humanos encontrados por aqui, e a nomeação do outro está implicada na política da colonização própria à história das Américas. A posse da terra descoberta/invadida foi feita também através de atos de linguagem. A atitude verbal é o que permite a ação da “posse” sobre o Outro. As palavras proferidas nas cerimônias servem à legitimação da propriedade e acobertam o crime de apropriação indébita, para dizer o mínimo, do mesmo modo que os discursos cerimoniais de sedução romântica que fizeram sucesso no período do amor cortês acobertam violências sobre corpos femininos sob alegação de “conquista”. Conquistar a terra e conquistar a mulher fazem parte de uma retórica colonial de dominação, que era feita por homens; entendido assim, posso dizer que o repertório de conquista faz parte de uma retórica de dominação patriarcal.

Nessa trilha, é possível entendermos o porquê, um pouco mais à frente, de os discursos jurídicos de “legítima defesa da honra” e “crime passional” servirem para acobertar crimes de feminicídio, por exemplo. O destino das mulheres ou das terras conquistadas é a sujeição ao homem e/ou a morte, ou seja, sujeição à normatividade estética e política do patriarcado ou a morte literal. A relação entre o poder patriarcal e a violência que ele produz para se perpetuar desemboca em simbolismos e práticas de feminicídio, seja na literatura, no cinema ou na vida.

A docilização e submissão produzidas na matriz de subjetivação feminina têm relação direta com a morte à qual as mulheres estão condenadas. A perseguição às mulheres e a violência contra elas são sustentadas pelo discurso misógino; para docilizar as pessoas marcadas como mulheres, foi inventado o conceito de “feminino”. O feminino é o termo usado para salvaguardar a negatividade que se deseja atribuir às mulheres no sistema patriarcal como uma coisa inofensiva. Parece-me que a produção epistemológica da colonização e do patriarcado se utilizam de métodos e objetivos idênticos; a colonização é epistemológica e patriarcal, assim como o patriarcado é uma forma de colonização baseado em uma epistemologia da dominação. Ela se dá sobre pensamentos e corpos, sobre o espírito e a matéria, sobre a cultura e a natureza e sobre as mulheres e os territórios. Penso no patriarcado como um dispositivo com regime epistemológico e afetivo amparado na linguagem. Dentro deste dispositivo, podemos entender ou enxergar o machismo e a misoginia como um dos jogos de linguagem que exerce um controle calculado nas ideias, nos conceitos, nos textos e nas palavras para o controle dos corpos. Então vai ficando óbvio que todo o controle dos corpos precisa e passa pela linguagem e também pela língua e, ao longo da história, as instituições que dominam a linguagem dominam o corpo.

A necessidade de nomear, lá na descoberta do mundo novo, nos mostra uma forma de pensar, de se emocionar e de agir, que se funda no princípio de identidade masculina e funda com ele uma matriz subjetiva, cuja principal ação é a marcação do outro com o objetivo de submetê-lo. Tal gesto linguístico aparece e reaparece mostrando seu caráter originário e constitutivo do patriarcado colonial ou da colonização patriarcal. Definições tais como “mulher”, “homem”, “macho”, “fêmea”, “hermafrodita”, “sexo”, e toda uma terminologia que escapa à criação feminina e feminista, fazem parte da necessidade de apreender com palavras, e depois com elas hierarquizar a ação ou mesmo a própria vida. Todas as palavras importam, e em nenhum regime as palavras ocupam papéis neutros. Em última instância, isso pode querer dizer que nenhuma palavra está isenta dos jogos de poder, violência e colonização. Embora poder e violência estejam entrelaçados intimamente, e a violência possa ser exercida sem palavras, o poder precisa muito mais delas. Comumente, as mulheres são lançadas na violência e afastadas do poder. A consciência feminista não pode ser solipsista ou universalista como é a consciência patriarcal. Desse modo, proponho que estejamos atentas à intimidade entre diálogo e feminismo na superação dos jogos de poder utilizados pela linguagem patriarcal, bélica e devoradora.

Tomando o diálogo como um operador feminista, que nos permite estabelecer ligações entre os modos de pensar e fazer feministas, levando em conta nossas singularidades, penso que ele, o diálogo, poderá ser um facilitador da ascensão feminista para práticas emancipadoras e transformadoras do momento em que estamos inseridas. O feminismo conecta uma pluralidade de mundos. Em um trecho chamado “A Conversação” de seu livro Metafísica da juventude, Walter Benjamin aborda as potências do diálogo ao fazer a seguinte pergunta: “Como conversavam Safo e suas amigas?”. Essa pergunta se constrói no contexto de um elogio do silêncio que, na visão de Benjamin, as mulheres reconheceram muito melhor do que os homens. Levando em conta a oposição silêncio e diálogo, que surge nessa pergunta, e entendendo que o silêncio também é parte do diálogo no ato de linguagem, em uma relação dialética, acredito ser o silêncio parte fundamental da alegoria metodológica do que se produz em termos de uma potência feminista. Não acredito que este movimento benjaminiano aconteça à toa, pois Benjamin evoca Safo distante das conversas socrático-platônicas e desloca a atenção sobre o diálogo socrático para o desconhecido, complexo e misterioso diálogo entre as mulheres.

O diálogo é o pano de fundo de toda textualidade filosófica e literária das quais as mulheres sempre estiveram excluídas. Por exemplo, no diálogo O Banquete, de Platão, existe uma cena em que as mulheres devem se retirar para que a conversa filosófica comece a ter lugar. Trago para este texto mais dois conceitos que podem nos ajudar a entender melhor o lugar das mulheres nesta antimonologia. Dialogicidade e polifonia, conceitos que encontrei em Bakhtin: a “multiplicidade de vozes e consciências independentes” apresentam o feminismo mais como uma multiplicidade de visões, de questões e, sobretudo, de singularidades que se expressam construindo o seu campo de ação do que como uma visão unitária sob a qual devem se encaixar os discursos, as teorias e as práticas feministas. O feminismo passa a ser um espaço aberto de diálogo ou um diálogo aberto diante das regras instituídas pelo patriarcado.

O feminismo pode até continuar carregando o mal-estar de ser quem se pretende em termos de nomeação. Realmente, não existe feminista que não seja vista com olhos de condenação ou mesmo uma figura da mulher que age contra a natureza. Mas também é preciso que estejamos cientes de que o horror causado por essa palavra é proporcional à sua força. O feminismo sempre foi uma fala inadequada, porque ele é uma fala de mulheres de todas as formas e tipos, bem como de seres que escapam às denominações do patriarcado. Diante do discurso patriarcal, ele mesmo uma ideologia e um fundamentalismo, o feminismo é uma forma dialógica e uma nova episteme. A sua história é a história da luta contra a opressão epistemológica administrada pela misoginia enquanto prática astuciosa da razão patriarcal.

O embate do feminismo é também o de ressignificar corpos e palavras subjugados por uma ordem injusta, que se sustenta pela produção de um discurso de violência. Não existiria patriarcado sem misoginia. Seja imaginária, simbólica ou física, a violência é o destino das mulheres e de todos os seres inadequados à heteronormatividade traçada pelo patriarcado. Nunca houve nada mais eficaz nos processos de subjugação, e por isso podemos dizer não apenas que o poder é um dispositivo, mas que a violência é um dispositivo quando se trata de mulheres. E, mais do que isso, ela é um método que foi introjetado na forma de pensar e de sentir dos sujeitos envolvidos. Coloco minha esperança de que, contra a opressão patriarcal ancorada em seu discurso, o diálogo feminista possa ser um caminho de emancipação das mulheres e dos corpos dissidentes.


* Drica Madeira é doutora em Ciência da Literatura/UFRJ e pesquisadora do PACC – Letras/UFRJ com bolsa FAPERJ Pós-Doutorado Nota 10.

 

Referências bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução Sergio Milliet 2 ed – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.

BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do humana. In: Jeanne – Marie Gagnebin (Org.). Escritos sobre mito e linguagem (1915 – 1921). São Paulo: Editora 34, 2011, p. 212 -156

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

______. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

______. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______. Discurso de ódio: Uma política do performativo. Editora Unesp, 2021.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

PINHO,  Isabela. Tagarelar (schwätzen): itinerários entre linguagem e feminino. Minas Gerais: Ed. Relicário; Rio de Janeiro:  Ed.  PUC-rio,  2021

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Tempo de leitura estimado: 30 minutos

A EMERGÊNCIA DO TERMO “SAPATÃO-NÃO-BINÁRIE” COMO DISPUTA DISCURSIVA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Certa vez, quando eu era ume mere trabalhadore sapatão assalariade em um prédio comercial no Rio de Janeiro, eu fui à cantina do prédio tomar um café no balcão e fiquei conversando com a atendente. Eu usava uma roupa de trabalho tipicamente “masculina”: uma calça de alfaiataria, uma t-shirt preta, cinto e sapatos de couro preto recém-engraxados. Era um momento em que eu começava a ter uma relação saudável e criativa com a minha identidade de gênero, e estava me sentindo muito bem com o meu corpo – apesar de ainda não saber muito bem o que eu era, ou o que estava me (trans)tornando. Um médico que tinha consultório no mesmo prédio onde eu trabalhava abriu a porta da cantina e se sentou ao meu lado. Era um senhor de cabelos brancos, por volta de uns setenta anos. Ele puxou papo comigo e conversamos por alguns minutos. Em algum momento ele perguntou: “você está em qual série?” e eu fiquei um pouco espantade e respondi: “meu senhor, eu já tenho até doutorado, como assim qual série?”. Eu vi o seu rosto  mudar para uma expressão incógnita, pasmo. Ele então tossiu limpando a garganta e com sua curiosidade médica questionou: “Os seus irmãos também são assim, sem barba?”. Eu olhei para a atendente com quem eu conversava diariamente, e trocamos um sorriso cúmplice, e eu olhei novamente para a entidade médica e respondi: “Não, eles têm barba”. Finalmente entendi o motivo de toda a entrevista: o médico achava que eu era um rapaz adolescente, e ao se dar conta de que eu era mais velhe, ele não concebeu outra possibilidade a não ser uma espécie de característica genética familiar que me levasse a não produzir barba e a ter uma aparência de um homem jovem. Agradeci gentilmente à atendente pelo café, me despedi do médico e o deixei com sua pulga atrás da orelha, enquanto eu me dirigi ao elevador para retornar ao meu trabalho.

Eventos como esse são constantes na minha rotina, e eu comecei a perceber que o meu corpo falava comigo, ele interagia com os outros corpos e me mostrava que ele estava em fuga constante, que ele escapava ao inteligível, que ele estava em êxodo das possibilidades que a metafísica platônica ocidental concebia para ele (e os saberes médicos ocidentais). Meu corpo ocupa uma brecha que hoje eu chamo de sapatrans não-binárie ou sapatão não-binárie, ou de simplesmente não-binárie. Sou um corpo de fronteira, um corpo que não está lá-nem-cá, um corpo que está lá & cá. A partir dessa percepção, percebi que há uma possibilidade de escapar dos gêneros binários nas micro-relações cotidianas.

Antes de falar sobre a emergência do termo sapatão não-binárie ou sapatrans não-binárie no Brasil contemporâneo, considero interessante fazer uma breve genealogia do termo sapatão para que entendamos os caminhos que nos trouxeram até aqui e para que possamos compreender as contingências socioculturais e políticas que fazem com que esse seja um assunto que tem gerado bastante polêmica dentro dos círculos lésbicos e feministas do país.

No Brasil temos a figura da “sapatão”, ou “mulher-macho”, que faz parte de um imaginário social popular. A sapatão é percebida no nosso território cultural como a lésbica que possui uma expressão de gênero que passeia por entre os gêneros e que desafia os comportamentos cisheteronormativos próprios das mulheres no mundo patriarcal. A origem do termo é incerta. No Brasil imperial, os portugueses já eram chamados dessa forma, talvez por utilizarem tamancas com grossos solados. Posteriormente os usos do termo para designar lésbicas com características de gênero ambíguas se tornaram mais corriqueiros. De acordo com o portal lésbico “Um outro olhar”:

Várias têm sido as apostas na etimologia da palavra, lembrando que os portugueses aqui em nosso país, na época da Independência, também eram chamados de sapatões, talvez em referência aos grossos tamancos que costumavam usar. A versão mais conhecida para a suposta origem da palavra é a de que lésbicas teriam os pés maiores do que os das héteros por natureza ou por usarem sapatos masculinos que lhes davam a impressão de ter pés maiores. De fato, contudo, não se sabe ao certo qual a origem do termo, mas sobre quem o popularizou não resta dúvida: foi o velho guerreiro, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, com a marchinha de carnaval Maria Sapatão, divulgada em seu programa Discoteca do Chacrinha (Buzina do Chacrinha, Cassino do Chacrinha), programa que durou, em diferentes versões, dos anos 50 aos anos 80. Maria Sapatão foi o maior sucesso do Carnaval de 1981.[1]

A marchinha de carnaval citada é amplamente conhecida e impactou o imaginário cultural brasileiro desde o seu lançamento. A letra narra a forma como a sapatão vive uma vida dupla: de dia vive uma vida de mulher, e à noite expressa toda a sua masculinidade:

Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João

Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João

O sapatão está na moda
O mundo aplaudiu
É um barato, é um sucesso
Dentro e fora do Brasil

Apesar de aparentar ser uma celebração da sapatão, a música geralmente era cantada de forma satírica. A sapatão não estava na moda, nem era um barato e um sucesso no Brasil. Ela é invisibilizada, sofre lesbofobia, violência e estupro corretivo para “virar mulher”. Por conta da marchinha e da sua repercussão, o termo passou a ser visto de forma pejorativa pelo movimento lésbico brasileiro em ascensão a partir dos anos 1980. A palavra melhor aceita internamente entre os coletivos e círculos sociais eram lésbica ou “entendida”[2].

Além disso, é preciso ressaltar a dimensão higiênica do termo “lésbica”. A figura da lésbica se cristaliza a partir dos anos 1990 como um termo politicamente correto, típico da expressão da sexualidade de mulheres brancas, femininas, “que amam mulheres”. A sapatão é associada a sujeitos racializados, que vivem nas periferias, e que sofrem menos aceitação social por engendrarem expressões corpóreo-discursivas que desafiam as expressões de gênero bem aceitas pela branquitude cisheteronormativa.

No entanto, o termo sapatão foi ressignificado e reafirmado algumas décadas mais tarde, por jovens lésbicas ativistas, sobretudo a partir do ano de 2015, quando no Rio de Janeiro surgiu o grupo de ocupação de espaços urbanos e praças Isoporzinho das Sapatão, do qual fiz parte da idealização e produção no primeiro ano. O Isoporzinho, como chamamos informalmente, era uma forma de lésbicas se reapropriarem de iniciativas de jovens que lutavam contra a austeridade econômica que levava a cidade do Rio de Janeiro pré-olímpica a se tornar uma cidade cara para a diversão e lazer. Como as bebidas alcoólicas e a entrada em festas privadas em casas noturnas estavam caras demais, grupos se reuniam com isopores térmicos e levavam as próprias bebidas para praças para consumo próprio. Foi quando surgiu esse termo “Isoporzinho”, que se referia a encontros produzidos inicialmente por pessoas heterossexuais (e dos quais hoje poucos se lembram). O Isoporzinho das Sapatão surgiu nesse contexto, também da necessidade de baratear os “rolês”, mas também de construir espaços de socialização lésbica, que são bastante raros. Foi nesse momento que o termo “sapatão” começou a ter um efeito positivo para a identidade de jovens lésbicas, que ainda tinham resistência de usá-lo, movimento parecido com o que aconteceu no inglês com o termo queer.

Em contrapartida, com a maior aceitação do termo sapatão, a palavra passou também a perder algumas conotações. Por exemplo, passou a se referir menos a pessoas que têm uma vivência mais fronteiriça dos gêneros, e começou a se tornar apenas um termo menos higienizado para se referir às homossexuais mulheres do que “lésbica”. Sapatão foi se tornando uma identidade política que ajudou os corpos de mulheres não-heterossexuais a terem mais visibilidade social, mais impacto político, mas perde grande parte da sua disrupção de gênero. É muito comum hoje, no Brasil, lésbicas femininas brancas se referindo a si mesmas como sapatão.

Ao mesmo tempo, como consequência da visibilidade e negociações culturais que combatiam as imagens “negativas” de pessoas LGBTs nas representações audiovisuais – e que viam as sapatões masculinas como imagens negativas para representar as lésbicas –, as sapatonas gênero-dissidentes começaram a rarear e a se tornarem um corpo marginalizado. Isso colaborou bastante para que a palavra sapatão fosse reapropriada por corpos femininos dentro da vivência lésbica brasileira, com um certo afastamento do seu antigo sentido.

Figura 1: <em>Thumbnail de um dos vídeos canal do Youtube "Nosso canal"</em>
Figura 1: Thumbnail de um dos vídeos canal do Youtube “Nosso canal”

Por conta disso, está em emergência no Brasil uma nova identidade política contemporânea, a sapatrans não-binárie, ou sapatão não-binárie – que pode ser relacionada ao que Audre Lorde descreve como “identidades hifenizadas”, ao se referir a mulheres racializadas na diáspora, como as afro-alemãs (Lorde, 2017).

No artigo “A emergência da cultura e da crítica cultural”, Eneida Leal Cunha (2009, p. 73) nos oferece significações dicionarizadas da palavra “emergência”: “ato de emergir, de vir à tona; situação grave, momento crítico, contingência; dispositivo de segurança que deve ser acionado em situações difíceis; combinação inesperada de circunstâncias imprevistas (ou que delas resulta) e que exigem ação imediata; o que se torna claro e compreensível, o que aparece, se expressa ou se manifesta em determinado momento.”.

Cunha propõe um adensamento do termo através do uso do termo ‘emergência’ recuperado por Michel Foucault, que mapeia em Nietzsche, mais precisamente, em sua Genealogia dos Valores, alguns termos dos quais ele se vale se negando a noção de origem como sinônimo de verdade, pureza, etc:

Como um bom discípulo do mestre que se declarava mais filólogo do que filósofo, Foucault coleciona e interpreta os termos utilizados por Nietzsche para desconstruir a idéia de origem. Proliferam, na Genealogia da Moral e em outros trabalhos, palavras como “começo” (Geburt), “proveniência” (Herkunft), “emergência” (Entestehung), cuja significação não é equivalente entre si, no sentido de que não são permutáveis nem são sinônimos de origem. Constata assim que o termo “emergência” aparece quando Nietzsche se refere ao ponto de surgimento de um valor ou de um conceito, que se produz em um determinado estado de forças; ou à entrada em cena de forças recalcadas, confinadas no silêncio dos bastidores. Nesta perspectiva, a emergência é sempre um lugar de enfrentamento e de afrontamento, de embate entre forças dominantes e forças dominadas, e, portanto, não pode ser compreendida como o ponto inaugural de alguma coisa nem como uma continuidade, mas como efeito de deslocamentos, reposicionamentos ou inversões. Para Nietzsche, a cada momento da história, o que é dominante fixa um ritual, ou seja, um conjunto de obrigações, direitos, marcas e regras, destinado a assegurar uma atribuição de sentido e de valor. Por isto, conclui Foucault, a história de uma palavra ou de uma coisa é a história das forças que delas se apoderaram, é a história de suas significações ou de suas interpretações (Cunha, 2009, p. 73)

A emergência da identidade sapatão não-binárie se aloca nesse lugar de disputas de forças, de reposicionamentos do termo “sapatão”, e de um tensionamento crítico duplo bastante frutífero tanto com o movimento trans quanto lésbico. As sapatões gênero-dissidentes são “forças recalcadas”, que sempre estiveram aí, mas que estão insurgindo neste momento para resistirem e se negarem a se colocar como ponto-cego dentro do próprio movimento LGBTQIA+.

No caso das identidades de gênero contemporâneas brasileiras, podemos tomar também como exemplo e atravessamento para o surgimento da sapatão não-binárie, o termo “bixa travesti”, conceito criado pela cantora, apresentadora, atriz e multiartista Linn da Quebrada. Linn desloca o termo “bicha” – que por muito tempo foi utilizado para se referir pejorativamente a homens gays no Brasil, e com o mesmo movimento que sapatão, passa a ser usado por homens gays brancos masculinos de forma ressignificada e positiva. “Bicha” passa a ser escrita com “x” por Linn, para se diferenciar do termo higienizado “bicha”, e o conjuga com “travesti”, uma identidade cultural brasileira que se refere a mulheres trans. Bixa-travesti é uma identidade cultural da encruzilhada, que ocupa as fronteiras das formas de identificação inteligíveis tanto por parte de uma sociedade cisheteronormativa branca, quanto por parte do movimento LGBTQIA+ hegemônico.

Tanto as sapatrans não-bináries, quanto as bixas travestis, são corpos que desafiam as concepções do norte global sobre identidades trans, que por vezes enrijecem as possibilidades de vivenciarmos nossos corpos de forma livre e criativa dentro das narrativas de transição e das fórmulas do antes e depois. Essas identidades não se comportam dentro de um conceito de trânsito que se encerra em um deslocamento de “Male to Female” ou “Female to Male”, mas se alocam nesse lugar de fronteira, ficam atravessados no meio do caminho. Somos como os corpos de fronteira de Gloria Anzaldua:

tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados. (Anzaldúa, 1987)

Somos corpos que amassam os binários em uma possibilidade nova, somos como as criaturas de um bestiário. Criaturas que não desatam de si o aspecto da monstruosidade, da ininteligibilidade. Somos corpos que fundam uma nova epistemologia e uma nova possibilidade de mundo, de vida, e de processos subjetivos. Somos como a falha de Jack Halberstam em A Arte Queer do Fracasso (2021).

A arte queer do fracasso é, conforme a descrição do próprio autor em sua introdução, “um passeio fora do confinamento do saber convencional e dentro de territórios não regulamentados do fracasso, da perda e do ‘inadequar-se’, [que] precisa fazer um longo desvio para evitar disciplinas e caminhos habituais do pensamento” (Halberstam, 2020, p. 28). É uma construção de um pensamento que parte da perda como potência, e o fracasso como lugar constitutivo e frutífero, através de uma perspectiva que se esquiva do otimismo neoliberal – que se manifesta em “positivismos tóxicos” na cultura contemporânea -, e da chamada “alta teoria”. Halberstam inicia seu livro se perguntando qual é a saída para o dualismo entre uma resignação cínica e o otimismo inocente. O que ele propõe é um entre-lugar, um “in-between”. Esse entre-lugar faz parte de um novo modo de relação que ele propõe não só com o pensamento ou a política, mas com a vida, a cultura, o conhecimento e o prazer.

Sapatrans não-bináries desafiam a concepção de que gênero e sexualidade são espécies distintas que se alocam em gavetas separadas. Para a sapatrans não-binárie, a sexualidade e o gênero são uma continuidade. Sapatrans é um resgate da potência disruptiva de gênero das nossas ancestrais que usavam sapatos masculinos, ternos, frequentavam bares e rompiam com as expectativas de gênero de corpos de pessoas designadas socialmente e juridicamente como mulheres. Sapatrans não são mulheres que amam mulheres, são trans e sapatão. Porque há uma filiação a um circuito cultural, político, de desejo a uma cena sapatão: sejam festas, referências, alianças, amizades, etc; e também a uma cena e um circuito trans*. Só que não há para es sapatrans não-bináries a necessidade de se (homo)normatizarem. Sapatrans não-bináries passeiam em ambos os circuitos (lá e cá) e não consideram ser “sapatão” as “mulheres que gostam de mulheres”, sapatão é uma forma de estar no mundo e viver o corpo que burla as concepções cisheteronormativas.

A categoria sapatão como um conceito político que também diz respeito a uma identidade de gênero. Como as ‘butches’ da cultura estadunidense, o equivalente às caminhoneiras no Brasil – pessoas que constroem seus corpos e subjetividades em um lugar fronteiriço de gênero. As sapatões ou caminhoneires não são somente uma orientação sexual, mas quando falamos delus, por muitas vezes, também temos em mente pessoas que manifestam uma vivência de deslocamento de masculinidades e feminilidades. “As lésbicas não são mulheres”, então, serve às sapatões não-bináries como uma identidade política insurgente, como uma possibilidade que se abre para uma constituição identitária e subjetiva de liberdade. O que retira, além disso, as sapatões de uma certa dependência de suas identidades ao “amor romântico” – dependência que é fruto do machismo. Sapatões não existem só em par, mas existem também em suas existências livres, que navegam no entre-lugar dos binarismos engessados. Daí violências nos banheiros, o estupro corretivo, a invisibilização se dar no cinema, na mídia, nas ruas, sobretudo em relação a esses corpos.

Alguns problemas político-identitários se abrem quando concebemos a existência de sapatrans não-bináries. Uma pessoa que se relaciona com pessoas sapatrans continuam sendo lésbicas? Este é um debate que tem sido produzido de forma bastante categórica e acalorada quando falamos de corpos trans se relacionando com gays ou lésbicas. Tenho sugerido que pensemos os corpos não-heterossexuais como corpos livres para escolherem suas identificações. Não importa se minha companheira continuar se identificando como uma lésbica, porque sei que para ela ser lésbica é uma identidade política que não se limita a uma ideia de “ser mulher” de acordo com a cisheteronormatividade (“as lésbicas não são mulheres”). As lésbicas rompem com esse sujeito engessado do feminismo hegemônico e branco. Um corpo de encontro com outro corpo não precisa necessariamente definir a sua identidade. As produções subjetivas são singulares. Eu não me sinto deslegitimade ao namorar uma lésbica. Acredito que nos encaminhamos para que as identidades sejam provisórias, estratégicas, e dizem muito mais respeito ao nosso trânsito pelo mundo e aos posicionamentos que escolhemos diante do mundo.

O meu processo subjetivo só depende de mim e do meu auto-cultivo, dos meus processos internos e da forma como nego as estabilidades que a sociedade insiste em impor aos nossos corpos. Ser sapatrans não-binárie pode ser percebide como um corpo-enqueerzilhado, para tomar emprestado o termo cunhado pelas pesquisadoras Alessandra Brandão e Ramayana Lira no artigo “Corpas-enqueerzilhadas e alianças insólitas no cinema brasileiro” (2021), ao analisarem como é a aparição dos corpos LGBTQIA+ nos curta-metragens brasileiros contemporâneos produzidos por minorias sexuais e de gênero. Brandão e Lira são

Mobilizadas por uma perspectiva crítica da interseccionalidade, [e se apoiam] na lúcida e revigorante releitura do conceito feita por Carla Akotirene (2019; 2018). A autora ressalta a matriz de pensamento negro que constrói as bases para a formulação do termo antes mesmo de ser cunhado, em 1989, por Kimberlé Crenshaw, no contexto dos estudos de direito nos Estados Unidos. Akotirene também mapeia o percurso teórico e crítico do termo ao longo dos anos, situando-o ao mesmo tempo no âmbito do feminismo negro e da cultura afro-brasileira e diaspórica. Procura, com isso, descolonizar as percepções hegemônicas da interseccionalidade, asseverando que é “da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade” (2019, p. 24). Uma vez que a interseccionalidade é lida em sua dimensão histórica e geopolítica, Akotirene o localiza na complexidade da ferida colonial e do trânsito transatlântico das populações que foram forçadas à escravidão nas Américas. É, portanto, um conceito crivado de ancestralidade, uma “ferramenta ancestral”, como sugere a autora (2019, p. 25), reconhecendo “Exu, divindade africana da comunicação, senhor da encruzilhada e, portanto, da interseccionalidade” (2020, p.20). […] Akotirene recorre à encruzilhada como “o lugar multideterminado dos trânsitos de raça, classe, gênero, sexualidade, fluxos e sobreposições de acidentes identitários” (2019, online). (Brandão e Lira, 2021, p. 58 e 59).

Brandão e Lira propõem uma justaposição entre queer e encruzilhada, como uma recusa do queer para uma apreensão normativa ou de redução identitária e a encruzilhada como “um espaço que acolhe simultaneidades de existências e temporalidades diversas” (Idem, 2021, p. 59). A encruzilhada é um espaço propício para o afloramento dos corpos des sapatrans não-bináries e para o seu auto-cultivo nem-lá-nem-cá, ou com os pés tocando múltiplos terrenos ao mesmo tempo. Um lugar de cruzamento que desafia o pensamento branco e eurocêntrico maniqueísta com sua organização binária.

Talvez seja inconcebível até mesmo para o imaginário de minorias sexuais e de gênero existências que desafiam a concepção corrente do que é uma sapatão. É possível a sapatão ser trans? É possível a justaposição da sapatonice com a transidentidade? Sapatrans não-bináries se alocam na encruzilhada entre masculinidade e feminilidade, entre identidade de gênero e sexualidade. A vivência trans não apaga a vivência sapatão desse corpo. Não é um processo evolutivo se reconhecer trans para es sapatrans não-bináries – passado e presente coexistem nos corpos que não precisam escolher entre passado e futuro.

Jack Halberstam em Masculinidad Femenina (2008), elabora o termo “butch transgênero” que pode nos servir para a compreensão da emergência de outros gêneros trans no contemporâneo, e de possibilidades múltiplas de constituição de si para corpos fora dos binômios de gênero. Quando Halberstam pensa o corpo de butchs transgênero, o autor desafia também uma concepção limitada de masculinidade lésbica que produz uma noção de “graus de masculinidade”, dentro de um contexto norte-americano. Estes graus sugerem que existe uma progressão da masculinidade lésbica que obedece a etapas: androginia butch suave butch stone butch butch transgênero FTM. É uma progressão que vai do não masculino ao muito masculino. Pensar os corpos dessa forma ainda nos deixa limitades a uma percepção binária dos gêneros, como se o corpo transmasculino das butchs e sapatões estivessem em um processo de transição que vai chegar um dia na completa transição para homem trans, e que ainda não são legitimamente trans. As fronteiras bem demarcadas entre sapatão e trans, sapatão e lésbicas, servem a quem? Essa guerra de fronteiras é interessante para os processos subjetivos e para uma prática de liberdade dentro dos movimentos LGBTQIA+ ou só servem para produzir engessamentos identitários? Não estou deslegitimando as identidades de homens trans ou lésbicas, mas abrindo a possibilidade para outras formas de existência que podem ser vividas e construídas pensando os corpos para fora dos binários instituídos nas nossas concepções acerca do esquema sexo-gênero.

Halberstam percebe que corpos de butchs/sapatões podem ter um sentimento de transitividade de gênero em relação à sua corporeidade, à sua subjetividade sexual e na legitimação de seu gênero. Esse sentimento pode ser percebido nas vivências de sapatões não-bináries brasileires. Em uma recente reportagem sobre a emergência de identidade sapatão não-binárie no Brasil, feita pela revista digital AzMina, intitulada “Sapatão não-bináries não é só sobre amar mulheres”, escrita por Helena Bertho e publicada em 26 de agosto de 2021[3], ume des entrevistades, Bê Carobinieri, contexta a percepção política que coloca o corpo da sapatão somente como um corpo de mulher que ama mulheres:

“Nos meus 29 anos, mesmo não sendo uma mulher, eu tive uma experiência na sociedade enquanto sapatão. Muitas pessoas reduzem sapatão a duas mulheres, ambas com vaginas, se relacionando afetiva e sexualmente. Mas na minha experiência pessoal eu vivi algo diferente. A sociedade me atravessou como sapatão desde criança. Muito antes de andar de mãos dadas com mulher na rua, as pessoas gritavam pra me ofender, me chamando de sapatão. Sapatão pra mim, muito mais do que com quem eu me relaciono, tem a ver com como eu fui socializada, minhas pautas políticas, a comunidade onde eu cresci e me formei”

Bê contexta a percepção higienizadora e normativa de que o corpo da sapatão existe apenas quando “ama uma mulher”, e coloca sua subjetividade em um lugar de existência plena, que atravessa a sociedade e sofre violências mesmo quando o trânsito social não envolve uma relação afetiva. Não depende de estar de mãos dadas com uma mulher ou trocar afetos com mulheres para o corpo da sapatão sofrer ofensas. Uma sapatão não-binárie em encontro com a cidade sofre lesbofobia ou transfobia? Ou é um ajuntamento das duas violências, já que a violência acontece por conta do deslocamento que seu corpo produz nas performatividades de gênero aceitas e inteligíveis pela sociedade cisheterocentrada? Acredito que esse é um desafio para as nossas reflexões políticas e para pensarmos uma sociedade possível para esses corpos.

Com a emergência dessas identidades, e a divulgação de que há sapatões que se identificam como não-bináries, têm surgido cada vez mais relatos de violências epistêmicas e exclusões dentro de espaços de socialização e culturais lésbicos brasileiros. Recentemente, em São Paulo, Formigão, ume poeta e escritore que se identifica como sapatão não-binárie e também foi entrevistade pela reportagem de AzMina pregressamente citada, divulgou em suas redes sociais que iria participar dos ensaios de um bloco de carnaval conhecido da cidade de São Paulo, chamado Siga Bem Caminhoneira, e exclusivo para lésbicas. Formigão conta que entrou em contato com as organizadoras pelo Whatsapp e que elas haviam informado o local do ensaio em uma região central da cidade. Elu, que é uma pessoa negra e periférica, precisou gastar dinheiro de passagem e se deslocar para o local do encontro. Ao chegar, as organizadoras não tiveram uma boa receptividade com seu corpo transmasculino, e o informaram que elu não poderia participar do ensaio porque elas não sabiam ainda como tratar pessoas que se identificam como sapatrans ou sapatão-não-bináries dentro de espaços de socialização feitos por e para lésbicas. O relato de Formigão nas redes sociais viralizou e teve um largo alcance (chegou a ser censurado pelo Instagram), e uma parcela significativa das pessoas que interagiram com o post de retratação do bloco[4] transmitiram que a percepção de uma continuidade entre orientação sexual e identidade de gênero tem sido algo mais bem aceito dentro da comunidade, a exemplo deste comentário de @lillianntorqueti:

“Na moral, as mina tem o direito de fazer a festa do jeito que quiserem, mas, é de observar que a festa delimita orientação sexual e não gênero, é interessante o grupo dialogar isso para ser mais acertivo em relação ao que não quer em sua festa. Pois um trans masculino pode ter orientação sexual lésbica, desse modo estaria pertencente ao rolê. Se nunca pensaram nisso meninas, chegou a hora de pensar. Esse vídeo de quem se sentiu excluído também foi um pouco de quero biscoito, podia ter dialogado de outra forma, pois também criou um ataque a comunidade lésbica e BI do rolê. Faltou e está faltando bom senso dos dois lados.”

É interessante que, mesmo não concordando com o fato de que a organização da festa precisa aceitar a presença de Formigão, o comentário citado expõe de forma bastante assertiva que lésbicas podem ser transmasculinas. É cada vez mais visto como legítimo pela comunidade LGBTQI+ brasileira que sapatões podem se identificar como trans. Como diz Formigão em um poema de sua autoria publicado em suas redes sociais: “Sapatão é ser humano / Sapatão é ser um mano.”

Com uma maior visibilidade de sapatrans não-bináries nas redes sociais nos últimos anos, os debates sobre apagamento da ancestralidade sapatão masculina, apagada pela (homo)normatização do movimento lésbico, faz com que influenciadores estejam resgatando a memória de sapatões que desafiavam o binário de gênero no passado e que são, hoje, um ponto cego dentro da pouca visibilidade lésbica na mídia, nas festas jovens, e nas pouquíssimas personagens de séries, filmes, novelas. @raizdomato é o instagram de ume influenciadore sapatão não-binárie indígena da etnia potyguara que em 27 de novembro de 2021 fez um post intitulado “Movimento transmasculine não-binárie e memória lesbi” na sua rede. O texto dizia o seguinte:

Sempre existiram pessoas de identidade masculina e não-binária em espaços lés-bi. Não apenas isso, faz parte da produção intelectual lésbica afirmar a lesbianidade como um lugar fora do binário de gênero. O próprio feminismo/movimento de mulheres não aceitava lésbicas/caminhoneiras/pessoas de buceta que não se adequavam à cisheteronormatividade, pois es consideravam uma ameaça, predadoras, doentes. A real é que na prática e teoria espaços exclusivos para mulheres e lesbianidade/caminhoneirice são coisas que se anulam. A memória lésbica é repleta de pessoas que romperam com a mulheridade e ignorar isso é um processo de higienização e apagamento. Os movimentos lés-bi AINDA são repletos de pessoas que se afastam, questionam, transicionam da mulheridade. Essas pessoas constroem o movimento diariamente, mas sua expulsão segue sendo frequente. A repetição da frase “o que um homem quer fazer num espaço de mulheres” releva como não processam o significado de transmasculino e não-binárie, muito menos o percurso dessas existências. Traidorys da mulheridade, desertorys da cisheteronorma, corpas monstras ininteligíveis, bucetas que não cumprem sua função patriarcal-colonial. Isso é memória lés-bi.[5]

O movimento de resgate de memória que sobrepõe passado e presente, faz com que novas possibilidades se abram para as identidades trans não-bináries no contemporâneo. A emergência de identidades hifenizadas dentro do movimento LGBTQIA+ brasileiro é um sinal de que há uma resistência epistêmica acontecendo no seio desses movimentos, que são atravessados pelo pensamento decolonial, produzido por intelectuais não-branques que fazem parte de minorias sexo-gênero. É um momento de muita importância para imaginarmos novas formas de existir no mundo, e de vislumbrarmos que os corpos podem ser livres e encarnar essa liberdade na forma como se auto-cultivam.

A internet tem sido uma espécie de laboratório de trocas e de produção de saberes e de resistência epistêmica para sapatões não-bináries. É um território possível, sobretudo no contexto da pandemia de covid-19, para produção de redes, comunidades, e apoio, legitimando, assim, a existência de subjetividades em trânsito e em constante (re)construção. “A transição é para sempre”, como diz a faixa criada pelo artista Miro Spinelli. A transição é um processo que não acaba, não nos leva a lugar nenhum, a não ser a nós mesmes, em um infinito inacabamento de si.

Figura 2:<em> “Transição é para sempre”, Miro Spinelli. Despina, 2018.</em>
Figura 2: “Transição é para sempre”, Miro Spinelli. Despina, 2018.

* Dri Azevedo é doutore em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, professore substitute do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ, integrante do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas da UFRJ. É autore do livro Reconstruções queers: por uma utopia do lar (2022).

 

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.

BERTHO, Helena. “Sapatão não-bináries não é só sobre amar mulheres”. Revista Azmina, 26 de agosto de 2021. Disponível em: < https://azmina.com.br/reportagens/sapatao-nao-binaries-nao-e-so-sobre-amar-mulheres/>. Acessado em 04 de fevereiro de 2021.

BRANDÃO, Alessandra; LIRA, Ramayana. “Corpas-enqueerzilhadas e alianças insólitas no cinema brasileiro”. Revista Visuais, v. 7 n. 2 (2021). Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/visuais/article/view/15945>. Acessado em 26 de maio de 2021.

CUNHA, Eneida Leal. A EMERGÊNCIA DA CULTURA e da crítica cultural. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS,. v. 1, p. 73-82, 2009.

HALBERSTAM, J. Masculinidad Femenina. Madrid: Editora Egales, 2012.

_______________. A Arte Queer do Fracasso. Recife: CEPE Editora, 2020.

LORDE, Audre. A Burst of Light: And Other Essays. Mineola, New York: Ixia Press, 2017.

 

Notas

[1] Disponível em < http://www.umoutroolhar.com.br/2012/01/origens-do-termo-sapatao.html>. Acessado em 01 de fevereiro de 2022.

[2] É possível conhecer mais sobre como lésbicas brasileiras se autonomeavam no Documento Especial: Televisão Verdade, programa jornalístico brasileiro criado e produzido pelo jornalista Nelson Hoineff, apresentado pelo ator Roberto Maya e exibido (este episódio) pela extinta Rede Manchete.

“Muito feminina” aborda a homossexualidade feminina. Reportagem de Bernadete Duarte. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=_Mt1aw3a4_E>. Acessado em 02 de fevereiro de 2022.

[3] Disponível em: < https://azmina.com.br/reportagens/sapatao-nao-binaries-nao-e-so-sobre-amar-mulheres/>. Acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[4] Disponível em: < https://www.instagram.com/p/CWykiMqPWPN/>. Acessado em 01 de fevereiro de 2022.

[5] Disponível em: < https://www.instagram.com/p/CWzPzLgtFtG/ >. Acessado em 02 de fevereiro de 2022.

dossiê
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TÁTICAS ANTIRRACISTAS: INTERPELAÇÕES AO LINGUAJAR COLONIALISTA NA OBRA DE SÉRGIO ADRIANO H

Sérgio Adriano H Toma a Palavra

Sergio Adriano H é um artista negro de Santa Catarina, que nasceu em Joinville, em plena ditadura militar, em 1975. Filho de um pai branco e uma mãe preta, cresceu naquela cidade superando muitos obstáculos sociais e lutou pelo seu direito de sonhar além das expectativas de sua família. Conquistou o título de mestre em filosofia em 2016, pela Faculdade São Bento, São Paulo, e Licenciatura em Artes Visuais em 2005, pela Universidade da Regional de Joinville, SC. Atualmente vive e trabalha entre Joinville e São Paulo. Sergio Adriano H sempre reafirma sua origem como forma de luta e resistência: “Eu sou um artista nascido em Joinville, eu sou de Santa Catarina. Eu pontuo muito isto para que as pessoas tenham essa referência de que existem pessoas pretas nesse estado tão branco” (H Adriano, 2023). Em sua produção, Sérgio vem questionando as “verdades apresentadas” a ele desde que começou a se compreender como um corpo negro crescendo dentro de uma sociedade estruturalmente racista. A partir desse lugar de exame profundo das suas vivências, Sérgio Adriano H toma para si a palavra a fim de colocar sua percepção de temas como identidade racial, violência, invisibilidade e apagamento social. Seu trabalho, exibido em mais de 140 exposições individuais, coletivas e salões, vem sendo premiado e reconhecido nacionalmente e tem ganhado visibilidade no exterior. Sua biografia foi incluída no livro Construtores das Artes Visuais: Cinco Séculos de Artes em Santa Catarina (Boppré, 2014).

As imagens e todas citações do artista que integram esse ensaio visual são partes de uma entrevista com Sérgio Adriano H concedida à artista visual e mestranda Dalva França de Assis e sua orientadora Dra. Silvana Macêdo, em abril de 2023. Esta entrevista, ainda não publicada, integrará a dissertação de mestrado de Dalva França de Assis acerca das violências simbólicas contra corpos negros nas artes visuais e mídia contemporâneas, em desenvolvimento no PPGAV-UDESC.

Figura 1: Sérgio Adriano H
“Preto” – Série <em>Palavra Tomada</em>, 2020
Impressão fotográfica em metacrilato
31 1/2 × 47 1/5 pol. | 80 × 120 cm
Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.
Figura 1: Sérgio Adriano H
“Preto” – Série Palavra Tomada, 2020
Impressão fotográfica em metacrilato
31 1/2 × 47 1/5 pol. | 80 × 120 cm
Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.

O que me deu o poder do sonho foram as artes, a arte me tirou da passividade de responder perguntas e me colocou como formulador. Essas perguntas me levaram a questionar a verdade apresentada, e questionar essa verdade me levou ao conhecimento, e o conhecimento me levou à felicidade. Aprendi a sonhar e o sonho me fez artista. Então quando alguém vê uma obra minha é para fazer esse caminho que eu fiz, um caminho no qual eu fui salvo. Eu sempre penso que assim como eu fui salvo pelas artes, eu posso salvar outras pessoas através da minha arte. Se o médico cuida das pessoas com remédio, eu cuido das pessoas com arte e o meu cuidar com arte é levar a pessoa a sonhar, porque quando você perde o poder do sonho, ou você não sabe sonhar, ou estão aplicando em você o racismo estrutural.

Figura 2: Sérgio Adriano H | Série <em>Palavras Tomadas</em>
- Ordem e Progresso – Justiça I | 2018 | Fotografia | 80 x 120 | 3/10 |
Acervo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC – USP), São Paulo (SP)
Figura 2: Sérgio Adriano H | Série Palavras Tomadas
– Ordem e Progresso – Justiça I | 2018 | Fotografia | 80 x 120 | 3/10 |
Acervo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC – USP), São Paulo (SP)

Eu devo ter ganhado um livro lá pelos 12 anos de idade, de uma prima minha que era do Rio de Janeiro, a Rose. Era sobre os direitos universais em forma de desenho. Esse livro me alfabetizou porque os desenhos me levaram a entender o que estava escrito ali. […] Na arte também tem as palavras da moda. Tudo tem as palavras da moda e uma das coisas que eu me mais me preocupo é de como conversar com o senhor que deixa a rua limpa e a senhora que está indo para limpar a sua casa em um nível que não seja raso e que seja entendido por elas. Como transformar o meu repertório intelectual e artístico plausível para todes e conversar com uma pessoa que, mesmo sem saber ler (porque o analfabetismo ainda existe em nossa sociedade), consiga através da observação das minhas imagens de arte transformar em uma experiência significativa. Na minha obra – Ordem e Progresso – da série Justiça I de 2018 tem a imagem da justiça e na boca dela tem um martelo que é um martelo de carne que você usa na cozinha. Como fazer que uma pessoa analfabeta consiga associar esse martelo à nossa justiça e se questionar sobre o nosso sistema judiciário? Essa não-palavra, é a palavra-imagem enquanto se acha que seja o que ela pode ser. Essa é a minha grande questão, porque para mim a palavra é tão importante quanto a imagem.

Figuras 3 e 4: Sérgio Adriano H <em>Enciclopédia da beleza feminina I</em> | Livro Enciclopédia da beleza feminina com pente de ferro para alisar os cabelos, redoma de vidro e cabelo de mulheres sobre uma mesa de camelô dobrável | 2019 | 121 x 49 x 44 | 1/1
Figuras 3 e 4: Sérgio Adriano H Enciclopédia da beleza feminina I | Livro Enciclopédia da beleza feminina com pente de ferro para alisar os cabelos, redoma de vidro e cabelo de mulheres sobre uma mesa de camelô dobrável | 2019 | 121 x 49 x 44 | 1/1
Figuras 3 e 4: Sérgio Adriano H <em>Enciclopédia da beleza feminina I</em> | Livro Enciclopédia da beleza feminina com pente de ferro para alisar os cabelos, redoma de vidro e cabelo de mulheres sobre uma mesa de camelô dobrável | 2019 | 121 x 49 x 44 | 1/1
Figuras 3 e 4: Sérgio Adriano H Enciclopédia da beleza feminina I | Livro Enciclopédia da beleza feminina com pente de ferro para alisar os cabelos, redoma de vidro e cabelo de mulheres sobre uma mesa de camelô dobrável | 2019 | 121 x 49 x 44 | 1/1
Figura 5: <em>Enciclopédia da beleza feminina II</em> | Livro Enciclopédia da beleza feminina colado e trança de cabelo | 2019 | 131 x 21 x 2,5 cm | 1/1 - Imagem do arquivo pessoal do artista.
Figura 5: Enciclopédia da beleza feminina II | Livro Enciclopédia da beleza feminina colado e trança de cabelo | 2019 | 131 x 21 x 2,5 cm | 1/1 – Imagem do arquivo pessoal do artista.

Então, quando eu vou tratar das questões do feminino, elas estão ligadas à afetividade. Por exemplo, há uma história por trás do pente de cabelo que aproprio: a minha irmã mais velha jogava handebol nas competições escolares municipais por um colégio público. Ela jogava muito bem e uma escola particular lhe ofereceu uma bolsa de estudos porque eles queriam ganhar a competição municipal. Então, ela foi estudar nessa escola particular e ela era a única menina negra. Para minha irmã parecer mais com as crianças da escola, a minha mãe pegava um pente de ferro, esquentava no fogão e passava no cabelo da minha irmã para alisar. Todo dia eu via a minha mãe fazendo isso com o cabelo da minha irmã. Quando você passa o pente quente no cabelo dá um cheiro de queimado, mais que isso: às vezes a minha mãe fazia errado e encostava o pente no couro cabeludo e a minha irmã ficava com queimaduras. Então, quando eu fui tratar sobre a estética feminina, desse racismo que perpassa o cabelo, era sobre essa afetividade que acontecia em casa, era essa estrutura na qual a minha irmã foi criada e tinha que se submeter para estudar no colégio particular. Quando eu vou fazer essa obra, que é sobre a beleza feminina, eu coloco um pente em cima do livro Como se tornar bela e tem uma trança gigante com cabelo sintético e liso, estilo cabelo de Rapunzel. É sobre essa ótica, então eu tenho esse cuidado, de tratar um fato que tem a ver com o meu cotidiano e afetividade do meu entorno, é a experiência que eu tive. Então, não é uma coisa solta, eu não vou pegar alguma coisa do feminino que está longe da minha experiência. E aí, vou pensar sobre a trança que está no meu trabalho: a trança foi feita por uma mulher africana daqui do centro de São Paulo, fui eu quem pediu para ela fazer esse trabalho, expliquei para o que era. Ao agregar isso no meu trabalho, eu sempre digo que meus trabalhos não são soltos, todos eles se ligam em pontos, e essa estrutura toda tá dentro de uma redoma de vida que você vê e pode modificar.

Figura 6: Sérgio Adriano H | <em>Negro_a. Preto</em>, 2019, 250 x 250 cm, Definição de negro dos dicionários, acervo MASC
Figura 6: Sérgio Adriano H | Negro_a. Preto, 2019, 250 x 250 cm, Definição de negro dos dicionários, acervo MASC
Figura 7: Sérgio Adriano H | <em>RespiARnegro</em>, 2021, impressão papel 25 x 25 cm, Nova definição para o Dicionário da Língua Portuguesa de Negro_a. Preto
Figura 7: Sérgio Adriano H | RespiARnegro, 2021, impressão papel 25 x 25 cm, Nova definição para o Dicionário da Língua Portuguesa de Negro_a. Preto

Eu penso que deveríamos ter letramento racial. Porque qual é a questão dessas pessoas de não entenderem a sua cor, gênero, raça e classe social? E não entender que eles não estão dentro dos privilégios, estou falando de um homem e uma mulher negra não combaterem o racismo ou discriminação? A minha mãe por exemplo, falava para eu não ficar muito tempo na praia porque eu ficava muito mais preto do que já era. Ela falava: “Não vai ficar tucum – tucum é uma frutinha que é verde e quando amadurece, fica preta (essa fruta tem apenas no Sul) – e na cabeça da minha mãe que estudou até a quarta série, ela achava que quanto mais preto eu ficava, mais eu ia ser discriminado. Mas ela não tinha letramento racial para conseguir transformar o que realmente ela queria dizer sobre a cor do tucum e dizer para eu conseguir combater o racismo, porque ela não tinha força para combater o racismo. E aí quando você entende que, ao se apropriar do letramento racial, de classe, gênero e raça, você combate o racismo. Quando você foi adestrado socialmente, porque existem muitas pessoas que foram adestradas, e quando há esse adestramento você manda a pessoa sentar e ela se senta, ou seja, se eu digo a ela que não existe racismo e ela concorda com esse senso comum que foi incutido no pensamento: não existe racismo e ponto. Tem pessoas que são pretas, mas, não se acham pretas porque elas vivem em locais em que o entorno não as deixa sentir que são pretas, este é o racismo recreativo. Então o que é o racismo recreativo? São piadas de humor que incomodam quem tem a sua cor enquanto consciência; quando você não tem a cor enquanto consciência continua sendo racista e vê o racismo apenas como humor. Então eu acho que é isso que temos que passar para o Brasil: uma educação que toque nesses assuntos e que as pessoas saibam qual é o papel delas e onde elas se ocupam na sociedade.

Figura 8: Sérgio Adriano H | Série <em>História do Brasil</em> – Branca Pintura sobre página de livro História do Brasil | 2021 | 25 x 32 cm, Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.
Figura 8: Sérgio Adriano H | Série História do Brasil – Branca Pintura sobre página de livro História do Brasil | 2021 | 25 x 32 cm, Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.

Eu tenho certeza de que a morte não é só física, mas é moral, social, então devemos prestar atenção nos números no Brasil, quantas pessoas negres tem problemas mentais e se você for pesquisar vai ver que a quantidade maior é de pessoas negres; não são de brancos. E por que isso? Isto está ligado ao cotidiano, está ligado ao racismo. Por isso que eu falo que ela não é só moral, é social. Quando eu não tenho os códigos de comportamento é uma morte social, quando não eu não tenho vocabulário do lugar é uma morte social. Eu vou dar um exemplo porque que um homem negro apanha no Rio de Janeiro por 15 minutos e ninguém faz nada ou uma família tá indo pro batizado leva 80 tiros de fuzil no Rio de Janeiro, e é banal, ou por que que todos os chanceleres mundiais vão ao pico na Suíça onde caiu um avião com 80 europeus e faz a homenagem, o Papa vai lá também. E por que um navio com cinco mil Imigrantes afunda e ninguém fala nada? Porque que esses Imigrantes estavam vindo da África, são negros. Então o descarte do corpo negro em sociedade é gigantesco, por isso quando eu vejo o aumento das questões de violência contra esses corpos, tudo está ligado a essa política de valorização da branquitude, para mim está tudo muito ligado a isso e que a gente continua aí na mesma. Cinco séculos se passaram e continua a mesma coisa; e a gente continua com a imagem do Debret na cabeça. A pintura dos negros apanhando e pronto. Por que que uma mulher branca que é técnica de vôlei pode bater em homem negro, na semana passada, como se ele estivesse preso no tronco, sabe? Então eu vejo muitas dessas ligações, a imagem tá muito presente no nosso cotidiano, a imagem colonial, essa missão artística francesa que veio para o Brasil e retratou a botânica, ótimo! Mas por outro lado, também retratou os negros como se fossem animais e aí essa branquitude continua vendo a gente nesse lugar.

Figura 9: Sérgio Adriano H | <em>MATAR</em>, Série <em>PÁTRIA ArMADA</em> | Dicionário brasileiro colado e recortado
Objeto, 2019, 29 x 35 x 3,5 cm
Figura 9: Sérgio Adriano H | MATAR, Série PÁTRIA ArMADA | Dicionário brasileiro colado e recortado
Objeto, 2019, 29 x 35 x 3,5 cm
Figura 10: Sérgio Adriano H | <em>Escolhido por Deus</em>, Série <em>PÁTRIA ArMADA</em> | Dicionário brasileiro colado e recortado. Objeto, 2019, 49 x 37 x 3,5 cm
Figura 10: Sérgio Adriano H | Escolhido por Deus, Série PÁTRIA ArMADA | Dicionário brasileiro colado e recortado. Objeto, 2019, 49 x 37 x 3,5 cm

Quando eu vou fazer essa série PÁTRIA ArMADA que eu uso a Bíblia e dicionários, todos esses elementos ainda continuam matando pessoas, eles matam de um jeito que é invisível e permitem matar. Isso acontece porque você não vê as igrejas se manifestarem em nenhum momento contra essa quantidade de corpos negros mortos. Se a cada 23 minutos um homem negro morre no Brasil, quantas mulheres negras a mais são violentadas? A quantidade de violência contra corpos femininos negros é muito maior, não tem essa estatística precisa. Em São Paulo a polícia não quer mais colocar a etnia no boletim de ocorrência. São esses apagamentos que você não consegue ver quem está sendo fuzilado na sociedade, quem foi morto pela polícia. Isso é uma forma de apagamento, então, e aí, você vai linkar que o governo e sociedade tão juntas num pacto, juntamente com esses outros movimentos.

Figura 11: Sérgio Adriano H | Série <em>CORpo –MANIFESTO - DECOLONIAL</em> | 2022 | Fotografia | 60 x 90 cm |Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.
Figura 11: Sérgio Adriano H | Série CORpo –MANIFESTO – DECOLONIAL | 2022 | Fotografia | 60 x 90 cm |Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.

Um dos pontos de start foi quando fui para Maceió pesquisar sobre a “quebra do Xangô” que aconteceu em 1912; e como a esquerda estava na frente, a direita falou que era porque a esquerda estava usando magia negra e por isso a Igreja Católica autorizou a quebrar os lugares de matriz africana e matar negres, fui até lá para entender essa história e a do quilombo Palmares. […] Esse foi o primeiro território livre do Brasil, onde eles se uniram para combater os bandeirantes. Quando fui entender esse sistema pensei: estou precisando fazer uma série gigante sobre esse descolonizar cor e corpos. Porque o título ali é descolonizar cor e corpos, tem uma jogada de palavra dentro do título que é uma coisa que eu faço muito. E depois fui para residência no Armazém [Coletivo Elza, Sambaqui, em Florianópolis] e o que fui fazer na residência? Entre N coisas que eu fiz, uma série eu fiz com cobertor de moradores de rua e com a faixa escrito “DEsCOLONIZAR” em vermelho (as letras do título estão maiúsculas e o “s” em minúsculo). Depois vem essas transformações de cortar o “s” com X e ir para outros lugares. A foto-performance foi no Sambaqui, onde Dom Pedro chegaria, em uma rua em Santo Antônio de Lisboa, a primeira rua calçada de Santa Catarina, e quem calçou essa rua foram os corpos escravizados, e a primeira etapa é questionar isso. Depois vou para Porto Alegre na Praça dos Enforcados que foi renomeada como Praça da Harmonia, e não se conta a história de 16 negros que foram enforcados nesse lugar. Depois vou para o Parque das Redenções que tem a ver com a guerra Farroupilha onde eu estou com uma lança na mão fazendo uma alusão aos lanceiros que eram os escravizados e foram para a guerra lutar acreditando que ganhariam a liberdade se voltassem, essa foi a promessa feita a eles. Lutaram descalços, porque os negros não usavam sapatos, escravizados não podiam usar sapatos. Eu fiz uma lança que é uma lança de cana de açúcar.

Figura 12: Sérgio Adriano H | Série <em>desCOLONIZAR CORpos</em> – Redenção RS | 2022 | Fotoperformance | 80 x 120 cm
Figura 12: Sérgio Adriano H | Série desCOLONIZAR CORpos – Redenção RS | 2022 | Fotoperformance | 80 x 120 cm
Figura 13: Sérgio Adriano H | <em>Série– CORpo –MANIFESTO</em> | 2023 | Palácio Cruz e Sousa, SC - Fotoperformance | 90 x 60 cm | Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.
Figura 13: Sérgio Adriano H | Série– CORpo –MANIFESTO | 2023 | Palácio Cruz e Sousa, SC – Fotoperformance | 90 x 60 cm | Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.

Então quando vou para o palácio Cruz e Souza, coloco meu corpo na escadaria de mármore branco. Quando estou só com um cobertor em um Sambaqui e tem uma foto do entorno com duas canas em forma de arco, como um portal. Então quem é esse ser? Quem é essa pessoa nesse lugar? Quem é esse que está chegando? O comportamento, a postura, a indumentária como um cobertor fazem essa alusão. Essa é uma série na qual estou trabalhando muito, e pretendo levar para o Rio de Janeiro e Curitiba, onde tem a Igreja do Rosário. Estou construindo esse pensamento do país, conectando informações sobre o Palmares e a chegada no Rio de Janeiro evidenciando o sul do país, onde os resquícios coloniais são mais presentes.

Figura 14: Sérgio Adriano H | Série <em>CORpo –MANIFESTO</em> - Desterro | 2022 | Fotoperformance | 150 x 100 cm | Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.
Figura 14: Sérgio Adriano H | Série CORpo –MANIFESTO – Desterro | 2022 | Fotoperformance | 150 x 100 cm | Fonte: imagem do arquivo pessoal do artista.

* Dalva França de Assis é mestranda em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGAV-CEART), com graduação em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2019). Professora de arte da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, tem experiência na área de Artes, com ênfase em pintura e Graffiti. Colaboradora da Casa de Apoio à Mulher Helenira Preta na cidade de Mauá.

* Silvana Barbosa Macêdo é PhD Fine Arts (2003) e MA Fine Arts (1999) pela Northumbria University, Newcastle, UK. Fez pós-doutorado pela UCS/CNPq e é professora efetiva da Universidade do Estado de Santa Catarina, com experiência na área de Artes, com ênfase em pintura e multimeios, investigando principalmente ambientalismo e feminismos.

 

Referências

BOPPRÉ, F. et al. Construtores das Artes Visuais: Cinco Séculos de Artes em Santa Catarina – Volume 2. Florianópolis: Tempo Editorial, 2014.

ADRIANO, Entrevista ainda não publicada, concedida a Dalva França de Assis e Silvana Barbosa Macêdo, em 17 de abril de 2023.

Adriano, Sérgio. Exposição Índice. 2019. Disponível em: <https://vimeo.com/669650626> acesso em 10/05/2023.

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A INTELIGÊNCIA E A FORÇA TRANSFORMADORA DA HESITAÇÃO

1. Até que a ventania revele os contornos de uma arquitetura[1]

É tarefa exigente acolher os testemunhos de moradores da Maré sobre a violência armada e seus impactos, fazendo-os ressoar para além de truísmos, glosas e análises projetivas de conceitos previamente formulados, que muitas vezes funcionam como preconceitos. O que se oferece aqui é apenas o movimento na direção desse acolhimento, nem por isso isento de riscos, uma vez que as boas intenções não garantem fidelidade aos compromissos da consciência. Quanto ao primeiro passo não resta dúvida: é preciso escutar, outra e outra vez, apurando a recepção ao que se diz e ao que se cala, levando em conta os contextos interlocucionários e históricos, apreendendo os dinamismos estruturais na mediação performática da linguagem, deixando-se interpelar em todos os registros possíveis pelas manifestações reunidas em entrevistas e depoimentos, de tal modo que as senhas para a decodificação provenham dos próprios autores e das próprias autoras dos discursos coletados. O que se sabe com certeza é que abordar analiticamente uma comunidade criativa implica aproximar-se de uma constelação extraordinariamente complexa, cambiante e contraditória de percepções, afetos e práticas.

Além dos percalços típicos aos mais diversos segmentos das classes subalternas na sociedade brasileira, sobredeterminados pelas presenças insidiosas e combinadas do racismo e do patriarcalismo, acrescentam-se, em nosso caso, conflitos armados entre grupos civis e confrontos sangrentos provocados por incursões policiais. Sobre esse conjunto tenso de fatores incidirão a pandemia e seus impactos econômicos, intensificando o desemprego crônico, o desalento, a precarização do trabalho, a expansão da informalidade em condições críticas e o empobrecimento. Não por acaso os efeitos da Covid se distribuem desigualmente, em prejuízo dos mais pobres, sobretudo das mulheres e da população negra.

A equipe responsável pelo survey, no âmbito da pesquisa “Construindo Pontes”, para a qual esse texto pretende ser um suplemento, teve o cuidado de dividir a amostra em três segmentos, porque há três áreas na Maré nas quais, por hipótese, os moradores tenderiam a responder distintamente às questões relativas à exposição à violência armada: duas áreas onde se destaca a presença de grupos civis armados, ligados a dois diferentes comandos do tráfico de substâncias ilícitas, e uma em que atuam milicianos, cujas relações com as polícias são bem conhecidas, onde, portanto, não há incursões policiais. Os resultados confirmaram a hipótese, revelando diferenças significativas e consistentes não entre as áreas em que estão grupos do tráfico, mas entre essas e a terceira, na qual a influência da milícia bloqueia operações policiais. Ficou evidente que o fator decisivo na exposição traumática à violência armada é a brutalidade policial. Confrontos entre grupos civis são relevantes, provocam tiroteios e vítimas, produzem danos graves, mas o eixo de referência central é a relação com o Estado, o grande divisor de águas é a existência ou não de invasões policiais.

<em>Figura 1: Complexo da Maré (Vitor Paiva/Divulgação/Wikimedia Commons)</em>
Figura 1: Complexo da Maré (Vitor Paiva/Divulgação/Wikimedia Commons)

O recorte da pesquisa focalizou incidentes e sobressaltos provocados por armas e atos violentos, que interrompem expedientes, bloqueiam agendas, fecham comércio, cancelam aulas e atendimentos em postos de saúde, esvaziam ruas, interferem na circulação, ferem, mutilam, matam, abalam, aterrorizam, ameaçam e inscrevem acontecimentos dramáticos na memória coletiva, nas biografias e no curso dos dias.

Os eventos atravessados por tragédias são pontuações que inscrevem a descontinuidade com potencial traumático no fluxo incessante do tempo vivido. Em alguns casos, os relógios param, prendendo à dor as vítimas diretas e indiretas.

Por isso mesmo, o cotidiano torna-se uma conquista e uma construção.[2] Reconciliar-se com o cotidiano corresponde a tocar a vida sem fixar-se no medo e no perigo, sem permitir que a insegurança roube a serenidade, a sanidade e a fruição de prazeres e afetos, abrindo espaço para a perspectiva de mudança. Reapropriar-se do cotidiano está longe de implicar rendição impotente ao intolerável ou denegação da realidade. Não significa acostumar-se ao inaceitável, mas retomar para si a vida, esta mesma posta em risco com frequência por confrontos entre grupos armados e incursões policiais. Mulheres e homens de todas as idades exercitam, antes e em certo sentido acima da cidadania, a guarda desse tesouro precioso que é o cotidiano a ocupar, reinventar e desfrutar. Reapoderar-se do cotidiano, guardá-lo, deve ser interpretado como uma realização que liberta, porque rompe com automatismos, adaptações reativas, ajustes funcionais à ordem da necessidade, normas e expectativas estabelecidas. Liberdade é uma categoria aplicável porque o cotidiano a ser conquistado, e guardado, não é um passado edulcorado a que se queira retornar e que deva ser restituído à comunidade. Não se trata do bem viver ideal nem de projeto político delineado, mas de uma possibilidade de convívio comunitário experimentado em tantos momentos autônomos relativamente à tensão e ao medo, celebrados de forma concentrada e intensa em rituais religiosos e festas, mas desfrutados também nos encontros prosaicos nas lajes e esquinas, nos botecos e nos becos, nos almoços de domingo, nos jogos e brincadeiras, na mansidão solitária da poeta, no enlevo musical, na onipresença redentora da música, na frugalidade que vale tanto, nos espelhos do salão de beleza, no alvorecer em paz, numa noite de amor.

Identificar, valorizar e guardar potencialidades inscritas na prática diária talvez constituam etapas de uma obra coletiva em construção, ensaio de uma modalidade embrionária de sensibilidade utópica: afinal, outra coisa está ali, além do que ostensivamente se dá a ver e saber. Por isso, os testemunhos tendem a nos interpelar sobrecarregados de mundos: a abundância emana do bulir com ambiguidades, contradições e lacunas, avançando e recuando entre ditos e não-ditos, explorando por tentativa e erro os limites da linguagem, excitando a imaginação criativa. Não é fácil divisar o que está na brecha entre atos, muros, linhas e silêncios, muito menos distinguir o que a realidade exclui (por incompatível com quaisquer condições de possibilidade) daquilo que ela recalca mas traz consigo, como a sombra fértil da negação que inscreve o movimento dialético no campo da história. Não é arbitrário que a palavra potência tenha passado a figurar com tanta assiduidade no léxico popular, sobretudo entre jovens que integram coletivos. Se não é simples divisar o que está na brecha, deduz-se quão exigente seria tomar posse do cotidiano, na medida em que tal apropriação implicasse o engajamento no esforço de saber de brechas e das sombras férteis dos fatos. Apropriar-se da vida cotidiana se revela, portanto, “uma busca e uma investigação”, como diz Cavell, citado por Veena Das, em um sentido diverso mas comparável ao nosso (cf. Cavell, 1987, apud Veena Das, op. cit.).[3]

A versão da Maré que vai aqui alinhavada é simplesmente a sequência editada de flagrantes dessa obra de libertação, ou melhor, desse empenho incansável em alcançá-la, da qual o desejo de arte, embora tão importante, está longe de ser a única evidência e para o qual a tenacidade de Sísifo talvez ofereça o modelo.[4]

Uma passagem inspiradora de Veena Das dialoga diretamente com temas que são também os nossos, a despeito das distâncias geográfica, histórica e cultural entre a Índia e o Brasil, entre a trajetória individual da mulher que a autora acompanha, Asha, e as trajetórias que se entrelaçam na Maré, entre a guerra com o Paquistão e os conflitos armados nas favelas cariocas:

(…) a memória da Partição (a sangrenta divisão dos territórios provocada pela guerra) não pode ser entendida, na vida de Asha, como uma posse direta do passado. Ela é constantemente mediada pela maneira em que o mundo está sendo habitado no presente. Mesmo quando parece que algumas mulheres tiveram uma sorte relativa porque escaparam à violência física direta, a memória corporal de estar-com-os-outros faz com que o passado cerque o presente como atmosfera. Isso é o que quero dizer pela importância de descobrir meios de falar sobre a experiência de testemunhar: que se nossa maneira de estar-com-os-outros tiver sido brutalmente estragada, então o passado entra no presente, não necessariamente como memória traumática, mas como conhecimento venenoso. Esse conhecimento pode ser enfrentado apenas pelo conhecimento através do sofrimento. Como diz Martha Nussbaum (1986:46): ‘Há uma espécie de conhecimento que funciona pelo sofrimento, porque o sofrimento é o reconhecimento apropriado do modo como a vida é nesses casos. E, em geral: captar seja um amor ou uma tragédia pelo intelecto não é suficiente para ter um conhecimento humano real’[5] (p. 35).

Um dos aspectos intrigantes dessa modalidade de conhecimento -e quanto a esse ponto Veena Das não necessariamente concordaria, porque seu pensamento é mais fiel a Wittgenstein do que o desdobramento aqui sugerido- poderia ser definido como a irredutibilidade às palavras, o que o situa, em certa medida, além e aquém da inteligibilidade, numa zona incerta entre conceitos, imagens e afetos, sem que por isso o situe fora da esfera do comunicável. Pelo contrário, esse conhecimento é quase inteiramente comunicação, embora prescinda de mediações, e até mesmo por delas prescindir. Mais do que comunicação, cujo modelo esquemático é triangular (emissor, receptor e mensagem), no sofrimento está-se em comum no comum (a mensagem não tem autonomia ou objetividade própria, que permita a seu respeito o juízo de agente externo ao dueto original: a comunicação é o encontro). Também por isso é reconhecimento: não porque se reencontre o vivido, mas porque é comunhão, (re)encontro com o Outro. As mães que perderam seus filhos para a violência policial, por exemplo, sustentam-se umas às outras e nada precisam dizer, sabem que as demais sabem o que quer que se precise saber para comungar a dor indizível. A perda de um filho não cabe em palavras e situa quem a sofre num ponto não localizável, materialmente, mas consabido por quem compartilha a experiência. Trata-se de um ponto de encontro duplo: ali a mãe (ou o pai, ou os irmãos – Antígona é irmã da vítima – usualmente a mãe é a protagonista) se encontra a si mesma e às companheiras de infortúnio. Justamente porque envolve o encontro consigo mesmo e com o Outro (e consigo enquanto Outro – o que desencadeia mudança, pois incita a tornar-se Outro), o conhecimento proporcionado pelo sofrimento é também (re)conhecimento. Dá-se uma dobra porque o sofrimento incorpora uma dimensão reflexiva: o sujeito “se encontra” significa, aqui, não o triunfo da razão ou da consciência, ou a superposição entre o ser e sua “essência”, mas a entrega desarmada à supremacia da dor, movimento que pode ser libertador caso seja uma etapa do trabalho do luto, etapa sucedida pela simbolização integradora, para cujo êxito é decisivo o compartilhamento. O luto se revelaria, assim, um processo comparável, em sua estrutura dramatúrgica, aos rituais de passagem: transita-se da perda dolorosa à aniquilação, e daí, amparada pelas parceiras, ao cotidiano, de volta à vida.

Referindo-se às perdas de Asha, Veena Das escreve: “Isso só poderia ser consertado permitindo a si mesma uma descida ao mundo ordinário, mas como se de luto por ele. A recuperação não estava em empreender uma vingança contra o mundo, mas em habitá-lo num gesto de luto por ele” (Veena Das, op. cit., p. 37 e 38). Lembremo-nos de que habitar o mundo é estar com, e entre, outras e outros. E a estabilidade implícita na permanência, que é um dos significados intrínsecos ao verbo habitar, aponta para o cotidiano. Esse é o horizonte da construção coletiva da liberdade, obra minúscula, volátil e interminável, fruto do modesto e imperceptível heroísmo de tanta gente que sofre, sobretudo mulheres negras nas periferias brasileiras. Nem resignação, nem imobilismo, nada a ver com falta de fibra e de luta, menos ainda com alienação e conformismo. Diante de nós está sendo erguido, no desfiar dos dias e das noites, um monumento invisível, tão majestoso quanto diáfano, que diz sim à vida e oferece à história a fertilidade do espírito e a inteligência do corpo. O novo mundo está em gestação. A chave para intuí-lo está na disposição de experimentar a empatia com o sofrimento alheio e abrir bem os olhos, apurar os ouvidos, admitir a própria ignorância e começar de novo, mais uma vez, até que a ventania revele os contornos de uma arquitetura.[6]

Além de conhecimento, reconhecimento e comunhão, o sofrimento pode ser entendido como a matriz do valor, o que ajuda a explicar o sentido desse ponto de encontro imaterial, elaborado no parágrafo anterior. O encontro se dá no valor e como valor, mobiliza uma ética que transcende epistemologias, métodos e racionalidades, uma ética que é morada, lugar comum que abriga e compreende (sendo continente, antes de ser conteúdo e cognição):

É o sofrimento que constitui o campo de uma experiência humana que, sendo radical e responsável pela inscrição de uma diferença matricial entre momentos do processo existencial ou entre formas de vida, e, não podendo dar-se a pensar ou a traduzir-se, intersubjetivamente, transforma-se em valor, isto é, na qualificação diferenciadora por excelência, independentemente dos conteúdos específicos aos quais se associe. O sofrimento, portanto, é a referência virtual do valor (Soares, 1993: p. 98).[7]

Se o sofrimento é um tipo de (re)conhecimento, talvez previna os mais calejados, e idosos, contra o medo -o que ajudaria a explicar resultados surpreendentes do survey: os mais velhos (dizem que) têm menos medo. Contudo, devemos avançar com cautela (e não só porque a velha geração masculina fora formada na contenção dos sentimentos e de sua exibição): esse paradoxal benefício do sofrer, o conhecimento, pode mergulhá-los no veneno tóxico que conhecer traz consigo. Acompanhemos o diálogo de Veena Das com Stanley Cavell:

Nesse ponto, minha análise do que é para Asha e para a irmã de seu primeiro marido trabalhar para superar esse conhecimento venenoso (refere-se ao) sentido de ser amaldiçoado ou ficar doente pelo fato do próprio conhecimento – isto é, de saber mais que os outros sobre as condições do conhecimento. O contexto dessa reflexão (evoca a ideia do) conhecimento como infectado e (…) tem a ver com todo o tema da desconfiança do cético nas relações, suas demandas por mais e mais provas – e, no entanto, o que pode curar essa condição não é mais conhecimento, mas o reconhecimento de que algumas dúvidas são normais e que a cura da suspeita não pode vir de dentro da própria suspeita (Veena Das, op.cit., p. 37 e 38).

A autora cita Stanley Cavell (1987:196-97), que veria nisso

a questão de aceitar ou rejeitar o conhecimento. Entretanto, assim como Cavell repetidamente aponta para a condição do sujeito moderno dentro do ceticismo (assinalado pela morte de Deus na filosofia), mostrando que a questão é historicamente situada, parece-me que vir a duvidar das relações que a Partição (na India) amplificou tem uma especificidade própria (assim como os confrontos bélicos na Maré têm suas particularidades). Isso só poderia ser consertado permitindo a si mesma uma descida ao mundo ordinário, mas como se de luto por ele. A recuperação não estava em empreender uma vingança contra o mundo, mas em habitá-lo num gesto de luto por ele (Veena Das, idem, ibidem).

Se o ceticismo de que trata a autora indiana diz respeito à especificidade da Partição, na Maré, a incredulidade corrosiva – que prostra, imobiliza, despolitiza e isola as vítimas indiretas da violência armada –, detectada em alguns casos, pode ser remetida às iniquidades cinicamente toleradas, preservadas e praticadas pelo Estado ao longo das décadas em que transcorreram as trajetórias biográficas dos moradores, imigrantes ou não (cf. Soares, L.E.,O Brasil e seu duplo, Todavia, 2019). Evidentemente, nem sempre a força psíquica e a solidariedade bastam para que os indivíduos resistam ao devastador sentimento de impotência para o qual não faltam motivos. Quando o sofrimento suscita conhecimento venenoso, a esperança desaparece e a aridez que a substitui é mortificante. Nesse sentido, a depressão é um subproduto da violência, sua extensão internalizada. No polo oposto estão os modos de percepção e os regimes afetivos desenvolvidos por membros de grupos civis armados, os quais, expostos a riscos extremos e perdas sucessivas de companheiros – sofrendo, portanto –, aparentemente são contagiados pelos efeitos deletérios do conhecimento tóxico, porém metabolizando o veneno de modo inverso àquele conducente à depressão. Em vez de se abaterem, assimilam, alguns, o veneno como combustível para uma vingança imaginária, infindável e impossível. Quando isso acontece, deixam de focalizar o andamento dos negócios e de agir para reduzir tensões em favor da fluidez do comércio. Passam a atuar sob a regência da vingança, prejudicando seu próprio mercado e elevando os riscos a que se expõem, como nos disse quem viveu na carne esse drama[8]. A obsessão por vingança condena o sujeito à prisão perpétua. Entende-se a revolta que cerca a dor da perda dos parceiros mortos em confrontos com as tropas policiais, porque entre elas estão alguns sócios dos negócios ilícitos, o que denota a hipocrisia dos slogans maniqueístas.

2. Virtudes da hesitação

Palavras que definem a Maré? A entrevistada, moradora que nasceu e foi criada no complexo de favelas da Maré, não hesitou:

Potência, resistência, alegria, força. Muitas coisas boas pra jogar você pro alto, porque, apesar de tudo, tem muita coisa boa. A gente não pode focar no que existe de ruim. Faz parte, é significativo, mas tem tanta energia boa aqui dentro, tanto sorriso, tanta vibração pra cima, que me traz muito mais a sensação de resistência e intensidade, força, do que me faz pensar em dor, tristeza, violência. Mudança, a Maré é isso, mudança, desejo. Mudança e desejo.[9]

Esse depoimento poderia abrir ou fechar o presente ensaio. E talvez bastasse, porque entre “potência” e “desejo”, a primeira palavra e a derradeira, o que é decisivo está presente, resumidamente. O sofrimento, as mazelas, a violência e as iniquidades não são subestimadas, muito menos negadas, estão lá, devidamente registradas no “apesar de tudo”, e no “que existe de ruim”. É o que demonstra o conjunto da entrevista, fazendo eco a muitas outras, nas quais não faltam menções a inúmeros problemas dramáticos, entre os quais o saneamento, a saúde, a educação, o acesso a direitos, bens e serviços.

 

<em>Figura 2: </em>Outra Favela<em>, de Rodrigo Guimarães</em>
Figura 2: Outra Favela, de Rodrigo Guimarães

A despeito da nitidez desse depoimento solar, em seu espírito, repleto de afetos positivos, e iluminador para a reflexão, o diálogo inclui momentos sombrios e hesitações que apenas atestam a sensibilidade, a acuidade analítica e a inteligência da entrevistada, mais fortes do que idealizações que acabam sendo, por sua própria natureza, unilaterais e reducionistas. Nossa interlocutora sabe o que são ansiedade e depressão, sentiu na pele seus efeitos, e a pele aqui remete à problemática do racismo, enquanto estrutura profunda que ordena a sociedade brasileira, historicamente, e se manifesta em múltiplas instâncias. É aí que se inscrevem as vivências traumáticas de que ela foi vítima, seja pela disseminação do preconceito na cidade, seja pela brutalidade das polícias que não esconde seu viés de cor e classe, e costuma ser letal.

Nossa interlocutora pondera, em outras palavras: Tem quem talvez não sinta medo e quem não fale para não ter de responder as perguntas seguintes, que decorreriam da primeira resposta. Há quem mascara os sentimentos e prefere não pensar – o mesmo acontece em outras áreas da vida, outros sentimentos também são calados. Nesse caso, o que existe é mesmo a dificuldade de expressar os sentimentos, o que também bloqueia a expressão dos pensamentos. Falar muito pode ser perigoso. Ao longo da vida na Maré, aprendi que: tenho boca e não falo, tenho ouvido e não escuto, tenho olhos e não vejo. É o reinado do silêncio. Falar demais é acusação gravíssima. Houve quem foi expulso e até quem morreu.

Embora enfatize que o alvo principal de seu temor são as polícias, ela relata cenas de violência protagonizadas por membros dos grupos armados. Cenas que nunca lhe saíram da cabeça. Teme agressões policiais a ela e, sobretudo, a seus familiares, assim como ao conjunto dos moradores, quando há operações policiais, em especial cita o medo de que sua casa seja invadida, depredada e roubada, porque é comum a pilhagem de residências por parte dos autodenominados agentes da lei: butim de guerra. Em seus próprios termos:

Nas incursões, tenho medo de um familiar estar na rua, medo de alguém ser atingido, poxa, fulano estava indo trabalhar e levou um tiro, isso é tão comum; medo de policiais invadirem minha casa, de policial fazer alguma covardia comigo, com meu esposo, que é negro, com algum familiar. Medo de encontrar a casa revirada, roubada.

As declarações de nossa entrevistada suscitam uma reflexão mais ampla sobre a relação entre as palavras e as coisas, a linguagem e os fenômenos, as categorias que descrevem a experiência e a experiência da descrição por meio de categorias, o testemunho e a consciência, o depoimento e a especulação crítica. O alcance vai além dos temas imediatamente contemplados. Aqui está um exemplo: ela conta que participa de um bloco, criado em 2006, cuja “proposta é romper as fronteiras imaginárias – imaginárias entre aspas, não é tão visível, é e não é”. A fronteira referida é a divisa que separa territórios sob domínio de facções rivais do tráfico. As questões são, entre outras: o que está visível?, o que não está visível?, e o que, mesmo visível, não deve ser reconhecido ou nomeado? O que não se deve ver, ouvir e falar? Quais os limites da percepção ou da atribuição de sentido? O que é inteligível, na realidade, e o que merece esse nome? Qual o limite da transgressão?

Tudo ganha ainda mais complexidade quando associado ao conteúdo da passagem que focaliza a delicada, difícil, desafiadora convivência com as fontes armadas do medo, internas e externas à comunidade, cuja presença aponta para a iminente emergência dos confrontos, isto é, para o potencial disruptivo que pulsa sob a ordem aparente do mundo, sempre à beira do colapso, portanto. Além da incerteza tensa, essa passagem trata da convivência com os embates sangrentos que deixam atrás de si, e na memória de cada pessoa, rastros de violência, cicatrizes, quando não feridas que não saram. Apesar desse quadro ser abordado pela entrevistada em clave compreensivelmente dramática, seu relato evoca também tesouros afetivos e éticos da comunidade, trazendo à baila episódios de solidariedade entre moradores, surpreendidos na chegada à Maré por incursões policiais, e a generosidade do acolhimento aos desprotegidos em meio a tiroteios. O desconhecido, em vez de inimigo, é irmão, irmã, parceira do infortúnio e fonte, não de medo, mas de suporte e confiança.

Quanto ao convívio com as fontes da violência e a iminência da erupção que agride e mata, as considerações de nossa interlocutora são refinadas e requerem escuta cuidadosa. As pessoas têm de focar outras áreas da vida, ela diz. A música, por exemplo, a família, o trabalho. “Não porque banalizaram, se acostumaram, ninguém se acostuma com armas na sua frente, mas também você enlouquece se pensar nisso dia e noite. Não tem como mudar, é o que as pessoas acham. Como denunciar? É arriscadíssimo. Não é fácil. Nem adiantaria.”

Assim como a divisa é uma “fronteira imaginária – imaginária entre aspas, não é tão visível, é e não é –”, também as fontes do medo são visíveis e reais, e não são: são reais quando precipitam a cadeia de acontecimentos violentos e deixam de sê-lo quando se recolhem ao campo das possibilidades não atualizadas. As fontes do medo são objeto: (1) de transfiguração na memória, de onde não podem ser simplesmente apagadas, mas podem ser elaboradas, desarmadas e resfriadas para que se reduza o risco de combustão (a insistência do real não simbolizável condena o sujeito ao retorno recorrente do episódio irradiador de sofrimento excruciante); (2) de sublimação, por meio da qual (2.1) são incorporadas como índice de instabilidade sistêmica, cuja energia sem finalidade contagia a realidade com o espectro de uma negatividade disruptiva ubíqua (o anverso da insegurança constante, irmã gêmea do medo, é a introdução no princípio de realidade da expectativa -eventualmente benigna- de mudança, em certa medida um correlato do desejo), e (2.2) são ressignificadas e deslocadas, ou transpostas para a esfera das narrativas coletivas e mitologias locais. Se a ordem é tão precária e se assenta na postergação de seu colapso, há um outro que se infiltra no monólito aparentemente impermeável das coisas como elas são, uma sombra imponderável mas perceptível que se mostra em dupla face: o que é pode não ser e os cativos do destino podemos nos tornar livres de amarras e protagonistas de outra história.

Uma película discursiva, intersubjetiva, conecta e envolucra falas e atos, insinuando-se, sutilmente, entre o que acontece, todos os dias, há tanto tempo, impondo-se às percepções, cujos efeitos não admitem ilusões, e aquilo que a comunidade se dispõe a nomear – sabendo-se que nomear é designar, descrever, reconhecer, mas também evocar. Portanto, recusar-se a nomear poderia implicar o engendramento da tessitura simbólica (aqui vale dizer, estética) que operaria o feitiço de promover a atenuação ontológica do indesejado e a gestação da mudança. Essa película poderia ser apresentada, metaforicamente, como a membrana (afetiva, política e estética) que protege o corpo social enquanto o organismo, a coletividade, prepara a troca de pele: a metamorfose que tem a força e o alcance da mutação.

Aquilo que soa ambíguo e impreciso em falas vacilantes – “é e não é” – talvez ganhe nitidez e relevância, interpretado sob esse prisma. Cabe sublinhar que são inúmeras as entrevistas qualitativas em que a presença do tráfico suscita a mesma hesitação aqui provocada pela divisa. Dizer taxativamente que algo é implica assumir o compromisso com essa existência, que a nomeação consagra e, politicamente, de algum modo, autoriza. Trata-se de um pacto de quem nomeia com o nomeado – nesse caso, com as fontes do medo –, pacto cujo preço é a insensibilidade para a fraqueza dessa demanda de realidade (demanda atendida pelo ato que nomeia), é a insensibilidade para a fraqueza dessa vontade de existência, dessa ambição de mundo. Quem nomeia com o desembaraço da certeza ante evidências furta-se a ver quão débil é o pleito por vir a ser de cada fonte do medo, as máquinas entrelaçadas (que se retroalimentam) do tráfico armado, das milícias e das polícias. Sim, porque o que “é” precisa “vir a ser” continuamente, “reiterar-se”, movimento que comporta o risco de desvio embutido em toda reprodução. O que aparece sob o modo de permanência é insistência reiterada. A dinâmica pode ser lida em chave ontológica, mas se apreende mais plenamente como formação do sujeito, configurando-se entre os limites e as exigências da economia psíquica e as vicissitudes da linguagem.

Assim, não é necessariamente por medo ou incoerência que tantos entrevistados e tantas entrevistadas oscilam entre admitir o medo e abjurá-lo, confirmá-lo e negá-lo, entre falar da divisa e dos tiroteios e calar, entre pronunciar carência e preenchê-la com a fartura de esperanças, afetos, virtudes, realizações e compromissos. Esses compromissos com raízes arcaicas, idealizadas ou não, com valores, origens e histórias comuns são provas de lealdade a homens e mulheres que construíram famílias, descendência e uma comunidade. E o que soa como subestimação da gravidade da violência talvez seja exercício de resistência. Resistência a aderir ao que é como realização plena do que pode ser, como se a versão atual da realidade, tão avara, iníqua e apequenada, esgotasse todas as possibilidades inscritas no real, excluindo potenciais não realizados mas contidos no que é.

Hesitar talvez corresponda a fazer reverberar os sentidos da realidade, suas implicações e contradições, para além dos recortes e mesmo da censura que os poderes em jogo tentam administrar. A película discursiva opera como o filtro solar que submete a luz a refrações, abrindo o espectro de cores e tonalidades. Não restringe a visão, amplia o campo do visível e matiza as imagens, introduzindo gradações e variações de outro modo neutralizadas pela intensidade dos raios. Não se trata de ser mais ou menos realista ou de adotar o relativismo como abordagem, reduzindo todo enunciado a escolhas legítimas e equivalentes. Trata-se de entender a estética aplicada nessas estratégias de composição das distintas camadas de sentido, conhecimento e afeto, amalgamadas nas percepções e nas experiências que as falas comunicam e silenciam. Talvez por isso tantos jovens valorizem a poesia e o Slam (os torneios de poemas falados) faça tanto sucesso. O Slam talvez circunscreva, ritualmente, e exponencie o trabalho da linguagem que a criatividade coletiva exercita cotidianamente para dar conta da sobrevivência física e mental, ante muitos percalços, e não se deixar atolar na areia movediça paralisante que alguns confundem com “a realidade” -realidade que, uma vez consagrada na epistemologia rudimentar da capitulação, torna-se profecia que se autocumpre.

Vale descer aos detalhes de alguns exemplos: a moradora lembra-se da cena bárbara que a marcou, um linchamento perpetrado por membros de uma facção armada, mas tampouco esquece a presença do marido a seu lado, que em seguida a acompanha de volta para casa, oferecendo sua companhia como apoio prático e mediação simbólica entre dois polos: de um lado, o indizível, perturbador e inassimilável, de outro, a materialidade plena de sentido da casa que, antes de ser a palavra que a descreve, acolhe, mais que representa, realiza o acolhimento e serve de guia e modelo para toda assimilação – de que a economia psíquica não prescinde para prevenir o trauma. A casa é inteligível e previsível, como a parceria amorosa e o histórico que a sustenta, como as relações familiares e suas reasseguradoras projeções prospectivas. O trajeto entre flagrar o linchamento e voltar à casa não apagou o evento brutal nem anestesiou a indignação e a repulsa. O trajeto deu-se em dupla dimensão, física e simbólica, as duas negociando entre si e se reforçando, mutuamente. Há o assassinato covarde e o amor, o espaço da irrupção do desvario e o abrigo que liga o passado ao futuro e concretiza o presente sob a forma de proteção, traçando forte separação, ética e afetiva, do abominável. Resta a vítima, desafortunadamente entregue a seu destino. Nada havia a fazer para salvá-la ou mitigar seus tormentos, por isso, era necessário impedir que a violência despedaçasse também a testemunha, seu espírito. Aprende-se que não se pode tudo, nem mesmo em nome da justiça, da compaixão, da piedade. Realidade é também o que resiste à vontade, sendo essa opacidade, a impermeabilidade, a crispação dessa diferença, outro componente a identificar na prática cognitiva. São lições de finitude que domesticam a culpa, cujo papel seria aqui exclusivamente corrosivo e autodestrutivo. Conflitos, desespero, impotência, tudo isso é verdadeiro, dói e requer labor consciente e inconsciente, ajuda e recursos simbólicos para ser elaborado, e nem sempre se consegue elaborar, como atesta o sofrimento psíquico tão disseminado.

As ambiguidades e hesitações – que podem ser, como vimos, muito mais do que adaptações subservientes a imposições (e ameaças veladas) dos poderes locais ou a chantagens policiais – geram embaraço grave para a ideologia (a versão da realidade que simula legitimidade e dissimula contradições), na medida em que abrem um hiato pelo qual se percebe, ou intui, o atrito entre o discurso hegemônico na sociedade (deixando em segundo plano as distinções entre credos e valores, que em geral não o abalam) e as condições que lhe conferem verossimilhança. A ordem discursiva dominante, aqui denominada ideologia, carrega conteúdos que justificam as relações capitalistas, excluem alternativas do campo de possibilidades e pressupõem um acordo indisputável (definitiva e irrevogavelmente consagrado) quanto às raízes supostamente ontológicas e indisputáveis do princípio de realidade, cuja implicação primordial é a crença mistificadora na transparência da linguagem.

A hesitação mostra e recolhe o que os nomes retratam. A hesitação os justapõe a outras palavras que desdizem o dito. Esse movimento é chave, porque sua matéria o é. Decide comportamentos e orienta avaliações. Constitui a realidade em seu eixo, ou a destitui e desestabiliza. A instabilidade semântica suspende o pressuposto matricial da ideologia e sua implicação primeira: a indisputabilidade do acordo quanto ao princípio de realidade e a transparência da linguagem. Dizer que algo é e não é desloca a referência do mundo (ingenuamente tomado como o depósito das coisas que são) para a dança da vida real permeável à ação, para o dinamismo intrínseco à história. O movimento que hesita torna-se a referência da enunciação. O performativo salta sobre o uso constativo da linguagem. Hesitar propõe aos afetos e à imaginação a hipótese de que a realidade seja um continente de possibilidades, entre as quais se incluiriam aquelas incompatíveis com a armadura politicamente consolidada pela modernização conservadora e autoritária de nosso capitalismo periférico. Aqui, vale a redundância, hesitar não designa a indecisão entre dizer e não dizer, mas o movimento ativo que formula uma contradição, atribuindo-a ao real, não a deficiências cognitivas. A coisa “é e não é” não porque quem enuncia o verbo não sabe se a coisa, efetivamente, é ou não é. A simultaneidade de ser e não ser é aquilo que é, porque o que é traz consigo, nesse caso, para além das evidências positivas, uma alteridade irredutível, que é potencialidade para a ação, que convoca a ação e inscreve a mudança no campo do real. Quando se fala em esperança, é dessa abundância do real, é desse mesmo excesso que se trata. Está aí isso que é e está aí, ao mesmo tempo, a negação disso que é, sendo essa segunda realidade aquilo que não se vê porque não se afirmou enquanto prática, e nem por isso deixa de ter presença pela mediação de seus efeitos, por antecipação ou potencialização. Se o enunciado fosse unilateralmente negativo, “a divisa não existe”, seria negacionista, delírio ou manipulação; se fosse exclusivamente positivo, “a divisa existe” – “o tráfico e o medo existem” seria o enunciado correspondente em outros depoimentos –, descreveria um fenômeno existente mas de um modo limitado e correndo o risco de reificá-lo, como se a divisa resultasse de uma necessidade à qual fosse irrealista (irracional) resistir, uma necessidade imperiosa que seria impossível transformar. A enunciação dupla é aguda porque recusa o negacionismo e a reificação. Nesse sentido, a enunciação é um gesto, uma pequena obra de arte viva que mobiliza conhecimento e política, especulação e ação, contemplação e protagonismo, epistemologia e estética.

Estamos prontos, agora, para refletir sobre o que nos diz a entrevistada a propósito da categoria “naturalização”, que ela comenta diretamente ou pela categoria análoga “banalização” – cujo diálogo tácito com Hannah Arendt não esgota os significados de seu emprego. Retomemos a passagem já citada: As pessoas não naturalizaram ou banalizaram, não “se acostumaram, ninguém se acostuma com armas na sua frente, mas também você enlouquece se pensar nisso dia e noite”.

Naturalização tem dois sentidos: (1) Reificação, processo em que automatismos alcançam tamanha autonomia que substituem deliberações, as quais implicam responsabilidades, ou as deslocam para que o império dos efeitos padronizados e previsíveis se reproduza sem mediações subjetivas ou intersubjetivas, o que se verifica na medida em que a objetividade (a realidade cristalizada) anula os sujeitos, subordinando-os à ordem das coisas. (2) Atribuição irrefletida e acrítica do estatuto de inexorabilidade à rotina, ou seja, a constatação resignada de que certas dinâmicas a princípio inaceitáveis têm curso contínuo na sociedade e que, mesmo permanecendo inaceitáveis, passam a ser consideradas inevitáveis, o que implica tácita autorização para sua continuidade e cria uma estrutura de realidade em que se admite conviver com o que, entretanto, não se aceita. Na prática, passa-se a aceitar o inaceitável, por força de acomodação supostamente realista aos supostos imperativos da necessidade. Transfere-se à ordem do inevitável, como a morte de quem vive, o que é obra humana, favorecendo – e justificando – sua continuidade. Por isso, esse “acostumar-se” com o abominável tem consequências práticas devastadoras. Ao fim e ao cabo, a resignação nos devolve à reificação. Em outras palavras, a resignação é um dispositivo afetivo-cognitivo-psicológico que atesta e coonesta a lógica da reificação, enquanto modo multifatorial de produção da realidade. É, portanto, a reificação matizada pela culpa; é a rendição e a pusilanimidade que ganham corpo. O viés psicanalítico talvez propusesse uma analogia entre o mecanismo da naturalização e a compulsão à repetição, o primeiro funcionando na vida coletiva como o segundo atua nas experiências individuais. A compulsão, reconhecida ao menos em seus efeitos e repelida no plano da consciência, é mais forte que a vontade, “toma o lugar” do sujeito, assume o protagonismo e se põe em prática.

Nossa interlocutora nega que a resignação cúmplice exista na comunidade. Vai além: afirma que não há hipótese de que haja espaço para esse “acostumar-se”, quando os atores sociais estão diretamente envolvidos, como vítimas diretas ou indiretas, potenciais ou reais. Sem pôr em dúvida a acuidade do que ela diz, que faz todo sentido e é corroborado pelo conjunto de dados reunidos na pesquisa, talvez fosse pertinente sugerir que modulássemos sua constatação, introduzindo um gradiente por meio do qual diferentes formas de “não-se-acostumar” pudessem ser identificadas e analisadas. Consideremos algumas variações que encontram correspondência na experiência empírica:

(A) Há quem se abale tão intensamente ao vitimar-se ou testemunhar atos de violência que lhe faltem forças para submeter a vivência à elaboração simbólica que a elabore e integre. Sem lugar e sentido, recalcada, expelida da órbita da economia psíquica, a brutalidade do real permanece extraviada como um meteoro explosivo. A qualquer momento, um toque fortuito no elemento desencadeador (cuja presença e função se revelam somente a posteriori) pode disparar a corrente insuportável de dor e assombro, provocando pânico, prostração depressiva, a asfixia anímica da angústia, a inquietação vertiginosa da ansiedade. Eis aí o trauma, um fenômeno de repetição, que se manifesta como o histórico de padecimento que o sucede, a síndrome do stress pós-traumático. Nesse caso, atitudes que parecem caber na expressão “acomodar-se” ao inaceitável, porque soam a indiferença ou expressam a negação de sua ocorrência (ignorando os fatos ou os apagando da memória), nada têm a ver com acomodação resignada.

(B) Há quem desenvolva a capacidade de deixar-se impactar por atos brutais, elaborando-os, resistindo a seus efeitos desestruturadores, integrando-os e os deslocando para o segundo plano administrável da consciência e da memória, graças ao equilíbrio psíquico-afetivo que já logrou cultivar e a narrativas poderosas que incluam e valorizem a autoconstrução de si dos sujeitos, sem prejuízo do reconhecimento da própria finitude e, portanto, sofrendo o medo e a insegurança mas sem paralisar-se. Como disse a entrevistada: “você enlouquece se pensar nisso dia e noite”. Há que erguer uma proteção, alguma dose de anestésico pode ser salutar. Nada a ver com ausência de empatia ou “alienação”.

(C) Outro personagem típico hipotético é aquele ou aquela que não renuncia à empatia, tampouco se dessensibiliza, mas adota estratégias de sobrevivência que são também recursos de saúde mental, as quais recomendam o estabelecimento de relações pragmáticas com os poderes locais, cujas decisões incidem sobre a vida comunitária. Não se trata de valentia ou covardia, nem de juízos morais, mas de avaliações racionais de correlações de força no cálculo da própria trajetória, que prescrevem palavras e gestos. Se há tirania, é preciso não se deixar destruir por ela até mesmo para ousar reduzir-lhe o potencial destrutivo. Injunções da sobrevivência não produzem acomodação, mas modalidades de disputa por sentido e liberdade que exigem negociação com os limites -esse processo delicado e tortuoso merece ser designado resistência.

(D) Há também quem, como nossa interlocutora, apure a sensibilidade e a inteligência o suficiente para inscrever o abominável numa dobra da realidade na qual o positivo (fáctico) e o negativo (potencialidades de mudança que inviabilizem o status de sua existência mesma) se sobrepõem, indistinguíveis, como se o que aconteceu (e acontece) ocupasse o limiar entre ser e não ser, ocorresse e não ocorresse, fosse visível e não fosse visível, inteligível e ininteligível, nomeável ou inominável. Não se trata da lógica do trauma nem da estratégia de negociação para sobreviver com vetos e ameaças dos poderes locais, calibrando as palavras, mesmo dentro de casa. Aqui, a hesitação e a ambiguidade, conforme já havíamos procurado demonstrar, inauguram uma epistemologia crítica (ativa em si mesma, enquanto discurso performativo) que dialoga (sem render-se a idealizações ou ao autoengano) com o desejo, a ética e a política, em sua acepção ampla e nobre: aposta-se que o futuro esteja embutido no presente (porque potencialidade é infusão de tempo no ser, ou a melhor definição do ser) e que a reiteração, sempre em curso, do que é (aquilo que é reitera-se para ser) pode ser interceptada, uma vez que a história (a avalanche de ações interconectadas mutuamente funcionais ou colidentes em busca de uma morfologia) não é destino e não oferece garantias ontológicas.

Aí estão algumas das modalidades de relação estabelecidas entre os sujeitos e a experiência da vitimização, seja ela direta ou indireta, atual ou virtual. Nem todos os tipos listados são mutuamente excludentes e podem suceder-se na biografia de um mesmo indivíduo. Por outro lado, a experiência que provoca, assusta, choca ou traumatiza nem sempre é a violência, entendida como ato físico de agressão ou grave ameaça. Há situações passageiras ou prolongadas, derivadas das desigualdades entre as classes (como o desemprego), do racismo estrutural (como o estigma que bloqueia o acesso ao emprego), da misoginia (que se traduz, no limite extremo, em feminicídio, mas se manifesta em iniquidades competitivas com os homens, no emprego ou mesmo no mercado informal), da homofobia ou da transfobia (que matam, mas também desempregam), situações que oprimem, humilham, causam o sentimento corrosivo de impotência, levam ao desamparo e ao desespero.


* Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP. Publicou mais de vinte livros, dos quais os mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019), Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020) e o romance Enquanto anoitece (Todavia, 2023).

 

Notas

[1] O presente ensaio reúne os dois primeiros capítulos de meu livro Maré e a longa gestação do novo mundo, publicado, em 2021, pelo People’s Palace Projects, no âmbito de sua parceria com a Redes da Maré, a Queen Mary University of London, os Departamentos de Serviço Social e Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, e o Núcleo de Estudos em Economia da Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, com o apoio do Economic and Social Research Council e Arts and Humanities Research Council, através do Global Challenges Research Fund. Originalmente, o ensaio foi escrito como contribuição à pesquisa Construindo Pontes, coordenada por Paul Heritage e Eliana Sousa. Minha participação se deu no interior da equipe de cientistas sociais, dirigida por Miriam Krenzinger, para cujo relatório final também contribuí. Sou grato a Paul e Eliana pelo convite para participar da pesquisa, a tod@s @s colegas, por enriquecerem meu conhecimento sobre as comunidades, e muito especialmente a Natália Guindani e, sobretudo, a Miriam, pelo acompanhamento passo a passo de minhas análises e por inúmeras sugestões fundamentais. Devo a Miriam boa parte do que houver de positivo em meu texto – mas não lhe transfiro responsabilidade por meus eventuais equívocos. Nada teria sido possível sem a generosa disponibilidade de moradores e moradoras da Maré a compartilhar conosco suas reflexões, percepções e sentimentos. Sou grato a Paul Heritage também por sua leitura aguda, que propiciou correções e desenvolvimentos muito relevantes.

[2] Michel De Certeau (1998, original 1990) e Veena Das (2011, original 2007), em estudos primorosos que alcançaram o estatuto de clássicos, já demonstraram seu lugar estratégico na formação subjetiva e na tessitura das redes sociais. Certeau, Michel De – A Invenção do cotidiano; artes de fazer. Vozes, 1998 [Tradução: Ephraim Ferreira Alves] (L’Invention du quotidien; arts de faire. Gallimard, 1990).  Das, Veena – “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”, In Cadernos Pagu (37), julho-dezembro de 2011:9-41. [Tradução: Plínio Dentzien] (“The Act of Witnessing: Violence, Gender, and Subjectivity” In Veena Das, Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary, University of California Press, 2007).

[3] A obra de Stanley Cavell citada por Veena Das é Disowning Knowledge in Six Plays of Shakespeare. Cambridge, Cambridge University Press, 1987. Citar a apropriação que faz Veena Das da interpretação polêmica que Cavell propõe sobre a obra de Shakespeare não implica endossar sua leitura do grande dramaturgo. As teses de Veena Das valem por si mesmas.

[4] No ensaio memorável já referido, Veena Das nos dá régua e compasso, embora analisando uma realidade bastante diferente: “Essa imagem de voltar evoca não tanto a ideia de um retorno, mas uma volta para habitar o mesmo espaço, agora marcado como um espaço de destruição, no qual você deve viver outra vez. Daí o sentido do cotidiano em Wittgenstein como o sentido de algo recuperado. Como tornar tal espaço de destruição em seu próprio espaço, não por uma ascensão à transcendência, mas por um descenso ao cotidiano, é o que descreverei através da vida de uma mulher …” (p. 16)

[5] Nussbaum, Martha, The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Cambridge University Press, 1986.

[6] Há extensa bibliografia nacional e internacional em torno de luto, memória, ritos de reparação e lutas de mães que perderam filhos de forma violenta em favelas, sobretudo assassinados por policiais, ou mortos por agentes de ditaduras. Seguem algumas referências importantes:

CATELA, L. S. Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo: Hucitec, Anpocs, 2001

CATELA, L. S. Rituais para a dor. Política, religião e violência no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, P.; LEITE, M. P. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

JIMENO, M. Emoções e política: a vítima e a construção de comunidades emocionais, Mana, v. 16, n, 1, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132010000100005>. Acesso em: 21 ago. 2018.

LEITE, M. P. As mães em movimento. In: BIRMAN, P.; LEITE, M. P. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
LEITE, M. P.; BIRMAN, P. (Orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

VIANNA, A.; FARIAS, J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional, Cadernos Pagu, n. 37, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010483332011000200004&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 21 ago. 2018.

Algumas pesquisas focalizam intervenções estéticas nesse mesmo contexto, como a dissertação de Natalia Guindani:

GUINDANI, Natália. Arte e rituais de luto em contextos de violência: os trabalhos de denúncia e homenagem produzidos pelo coletivo Magdalenas por el Cauca – Colômbia. 2018. 144 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018.

[7] A citação segue: “Explico: valor não se descreve; opera, sim, como ordenador de relevâncias ou como indexador de hierarquias, instituindo e circunscrevendo arenas ou espaços de investimento afetivo e imaginário (com dimensões cognitivas, simbólicas, expressivas e comunicativas) para conflitos entre escolhas ou entre alternativas excludentes de figuração da memória humana, as quais envolvem hesitações intensas, cuja tensão corresponde, segundo meu ponto de vista, à vivência mesma da moralidade. Definido como diferenciador mais importante para o juízo, moral e afetivamente concernido – vale dizer, existencialmente radicado -, o valor qualifica a vida humana, diferenciando-a, o que lhe atribui função ordenadora para os processos de significação e um duplo papel, mnemônico e prospectivo. Não há teleologias desprovidas de valor, ou que não nasçam, em alguma medida, do valor” (Soares, L.E., “O lugar do sofrimento humano no pensamento político moderno”, In Os dois corpos do presidente, Relume Dumará, 1993). (A primeira versão deste ensaio foi apresentada por ocasião do lançamento do livro Impacto da modernidade sobre a religião [editora Loyola], no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, dia 2 de setembro, 1992, em mesa-redonda que também contou com a presença dos professores José Jorge de Carvalho e Maria Clara Binguemer [coordenadora]. A presente versão foi apresentada em 22 de outubro de 1992, no âmbito do Grupo de Trabalho Religião e Sociedade, coordenado pela profa. Maria Helena Villas Bôas Concone, na reunião anual da ANPOCS, realizada em Caxambu, Minas Gerais. O artigo foi republicado em Legalidade Libertária. Lumen-Juris, 2006.)

[8] Em depoimento a Miriam Krenzinger.

[9] O depoimento foi colhido por Natália Guindani.

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DA ANTROPOFAGIA À AUTOFAGIA: APONTAMENTOS SOBRE UMA TENDÊNCIA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

1. Antropofagias e autofagia

Como é bem sabido, a antropofagia da qual fala Oswald de Andrade no manifesto de 1928 é um ritual que permite englobar no sistema cultural de uma tribo (no caso, os Tupinambás) os valores do inimigo. Uma atitude absolutamente revolucionária até hoje, se a compararmos com o nosso sistema de lidar com o adversário capturado: a nossa estratégia é a de isolar, confinar, encarcerar; em alguns casos suprimir; e, em todo caso, esquecer. Quanto mais potente for o nosso inimigo, tanto mais será preciso neutralizá-lo. Excluído e recluso. Ao contrário, na sugestão de Oswald, não se trata de neutralizar mas de utilizar, de incorporar ao invés de rejeitar. Dessa forma, não se dispersa nada do que, pertencendo a quem se é contrário, é potencialmente útil. Sobretudo, o sistema axiológico do inimigo não somente não é negado, mas é ressaltado. Lembremos que se trata de uma provocação, mas por trás de cada provocação há um desejo autêntico de subversão e de novos valores: por exemplo, o “matriarcado de Pindorama” parecia ser (e talvez ainda pareça) uma miragem aliciante, e isto muito embora possa não ter sido real.[1]

É usual indicar poucas obras que tenham seguido as indicações do manifesto oswaldiano (e nenhuma de Oswald, por sinal, a não ser o próprio Manifesto, que, não por acaso, se define Antropófago e não Antropofágico), e tais obras são, como se sabe, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e, retroativamente, O Guesa errante, de Sousândrade. Substancialmente, por uma espécie de crase interpretativa, definiram-se como antropofágicas – ou antropófagas – as obras que de certa forma incorporaram as culturas indígenas.

Na realidade, observando bem, quatro anos antes do Manifesto antropófago, a Poesia Pau-Brasil já praticava a devoração da cultura europeia (inimigo sagrado) para criar quadrinhos nacionais. E, sem querer deformar um autor universal como Guimarães Rosa, vemos como Grande Sertão: veredas também se alimentou daquela cultura europeia que se encontra nos antípodas do mundo representado no romance: um texto brasilianíssimo, embora nutrido de saberes clássicos (não somente ocidentais), uma obra local e global, como indicou, entre outros, Ettore Finazzi Agrò (2001). Confirmando esta visão, Eduardo Sterzi (2022) acolhe Guimarães Rosa em seu ensaio recente sobre antropofagias.

E um estudo amplo e aprofundado sobre a reelaboração – frequentemente estereotipada – do conceito de antropofagia na cultura brasileira, desde a redescoberta do movimento nos anos 1950 até hoje, é oferecido pelo ensaio de Alessia Di Eugenio, La cultura della divorazione, estudiosa que ampliou suas pesquisas no exame da reapropriação indígena deste conceito, de certo modo inventado pelo colonizador branco a partir de sua própria visão das culturas locais.

Parece-me, porém, fundamental sublinhar que, no exame do fator antropofágico, deve-se entender como “inimigo” seja quem, antagonista e estrangeiro, é admirado (a cultura europeia, por exemplo), seja o inimigo interno (os conteúdos recalcados porque inadmissíveis). Neste caso, por exemplo, o ato de comer a própria tradição inimiga do progresso significa reconhecê-la ao mesmo tempo positivamente como criadora de progresso, carregando valores em seu próprio mundo na época em que se apresentara como novidade.

Se o moto da antropofagia literária pode ser superficialmente aproximado da mera prática da citação ou do pastiche (e neste caso as praxes pós-modernas o englobariam cabalmente), na realidade ele inclui uma segunda fase que é a do reuso, da profunda reciclagem, da metamorfose. E é através desta metamorfose que se amplia o cânone. O que era excluído agora chega a ser integrado, por um ato de vontade do artista que o resgatou.

Gostaria de propor uma reflexão ulterior que conduz ao conceito que eu definiria como “autofagia”, pelo qual quem é comido faz parte da mesma cultura de quem comeu. Observo, com efeito, que a cultura brasileira de hoje parece com frequência querer digerir a si mesma, não somente recuperando e re-ingerindo a tradição oposta à vanguarda, mas também, e especialmente, as partes mais indigestas do suposto “progresso”, tais como a escravidão, o subdesenvolvimento, a dependência ou a desigualdade social extrema, para tranformá-las numa mensagem ou um aviso para os tempos presentes.

Não se trata, portanto, da diferença aberta entre antropofagia endo e exocanibálica, porque não são as qualidades positivas dos antepassados que são ingeridas (como no endocanibalismo, ou endofagia), e sim as qualidades incômodas porém poderosas. Através da incorporação dos assuntos mais dissonantes – difíceis de serem incluídos no discurso literário ou artístico –, os momentos disfóricos não somente são mencionados e criticados, mas são encaixados no discurso criativo. O passado e o presente que incomodam serão reabsorvidos e replasmados.

Considerando bem, ainda, quando a Poesia Pau-Brasil repercorria (como diz o Manifesto homônimo) “toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil” e apresentava casos e cenas de donos e escravos num tom ligeiro (talvez o humorismo pirandelliano, o tragicômico “sentimento do contrário”), estava digerindo o intolerável – porém real – passado colonial, não renegado mas sim corajosamente exibido no estilo antirretórico das vanguardas, ousando até o sorriso.

2. Desmascarar com ironia: a Canção do subdesenvolvido

Como para criar uma trilha sonora para estas considerações, quero trazer como primeiro exemplo a “Canção do subdesenvolvido”, de Carlos Lyra e Francisco de Assis, de 1962.

Figura 1: Encarte de O Povo Canta, álbum do Conjunto CPC, do Centro Popular de Cultura da UNE (1964)
Figura 1: Encarte de O Povo Canta, álbum do Conjunto CPC, do Centro Popular de Cultura da UNE (1964)

Nesta obra atuavam ambos os tipos de antropofagia descritos acima, os mesmos que se encontram em Pau-brasil: utilizavam-se os modos do inimigo externo (que neste caso é também um adversário econômico-político) para falar de um tema local negativo e presente desde sempre, porém tão visível que não era mais percebido: a dependência.

Fagocitando diversos estilos musicais tirados do mundo anglo-saxão, o mundo dos especuladores estrangeiros, uma melodia animada por um refrão alegre lembrava como o Brasil tinha sido explorado e vendido em várias fases de sua história, portanto procurava através do humor recuperar verdades indizíveis (o inimigo interno!) e conscientizar a população, de forma que a ironizada “vida nacional” se tornasse uma realidade conhecida por todos os que nela estavam ignaramente imersos. Vale ressaltar que a longa palavra “subdesenvolvido”, fonicamente pouco apta para ser musicada, é repetida inúmeras vezes no estribilho, de modo que quase perde o sentido, tornando-se normalizada assim como fora normalizada a realidade correspondente, sobre a qual os autores quiseram despertar a atenção.

3. Cantar o inaceitável: Noites do Norte

Sempre passando da ingestão do que pertence a outros para a ingestão do que é interno à própria cultura brasilieira, podemos mencionar uma canção insólita de Caetano Veloso, que já com o movimento da Tropicália nos acostumara com miscigenações antropófagas.

A canção “Noites do Norte” dá o título ao CD de 2000 dedicado à história e à cultura afrobrasileiras. Eis a letra:

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte… É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.

São as palavras de Joaquim Nabuco tiradas de sua célebe autobiografia intelectual, Minha formação, de 1900.

A música do Caetano para esta letra é bastante anômala, pois oferece uma melodia dificilmente memorizável, justaposta ao trecho de forma a não alterá-lo, mas sofrendo pela falta de ritmo desta prosa cheia, porém, de imagens poéticas. Apesar das dificuldades em adaptar o canto a um texto tão refratário, Caetano quis oferecer, para divulgá-lo, suas capacidades de cantor e compositor, para fazer transitar a mensagem para além do restrito círculo dos leitores do grande abolicionista. Sobretudo, engolindo e reexpondo o texto a um século exato de distância, Caetano nos fazia aceitar o inaceitável: a existência de uma nostalgia da escravidão, a presença liricamente transfigurada de mulheres e homens deportados no solo americano e destinados a uma vida de sofrimento, num trecho que começava pela palavra “escravidão” e elencava uma série de termos positivos: “suavidade”, “religião natural e viva”, “encantamentos”, “alegrias”, “felicidade”, para rematar com o luar.

A figura do inimigo interno acima definida foi aqui neutralizada, e pode ser desvelado o elemento que fora recalcado (em termos freudianos) pois moralmente condenável. Sobre escravos e escravidão pode-se falar também poeticamente, e não somente em termos de violência ou condenação. Mais adiante no texto, Nabuco falava de sua ama africana e do afeto para com a população negra. A complexidade da questão do legado afetivo do regime escravista, explicitada por Nabuco, é enfrentada e divulgada por Caetano numa operação preciosa. Uma reciclagem de grande efeito que ressalta o que existia e parecia inadmissível.

4. Relembrar palimpsestos violentos: Descobri que estava morto

Um terceiro exemplo, outra digestão que também durara um século.

Quando o jovem escritor João Paulo Cuenca recupera a posição política e cultural de Lima Barreto de forma direta e indireta no romance Descobri que estava morto (2016), não está somente exibindo um jogo literário, está apontando para o fato gravíssimo de que o governo do Rio de Janeiro (e metonimicamente do país) não aprendeu a lição da História, repetindo na cidade – ironicamente e às vezes sarcasticamente definida “olímpica” em vista dos Jogos de 2016 – a demolição das moradas pobres em prol de uma política ao mesmo tempo de “depuração” e de especulação mobiliária. O protagonista autobiográfico, que atravessa todas as camadas sociais num enredo tingido de romance policial, desde os festins dos jovens de sucesso até as áreas mais degradadas, está remapeando uma cidade que se rasura a si mesma. As observações paralelas sobre o atual violento programa político-militar do Choque de Ordem e sobre as muitas demolições do início do século XX (particularmente a do Morro do Castelo), acompanhadas estas últimas pelas coevas citações de Lima Barreto, nos lembram que já passamos por isto. Devorar o escritor incômodo e corajoso de um século atrás significa reavivar um passado escabroso de destruição que fora neutralizado por uma arquitetura moderna e modernista, como provavelmente seguirá acontecendo com as construções pós-modernas e pós-modernistas que cobrem elegantemente o extermínio dos pobres.

Mas eis que, devorado o passado para transformá-lo em lição, o escritor ousa exibir-se e mostrar sua insuficiência citando-se de forma sincera e desencantada, e, de alguma forma, autodevorando-se:

[…] no fim das contas, o movimento de encarecimento da cidade e as violações dos direitos humanos me incomodavam apenas o suficiente para eu me aproveitar disso num livro antes de me mudar de cidade e país.
Ou, pelo menos, esse era o meu plano.
(Cuenca 2016: 63).

5. Reexumar vidas do lixo: Lixo Extraordinário

Música, literatura, e um exemplo das artes visuais.

O artista e fotógrafo Vik Muniz conduz há tempo uma operação de releitura das ícones da cultura ocidental, reconstruindo tais obras com materiais insólitos de forma a apontar para uma reflexão sobre a nossa relação com uma realidade frequentemente fetichizada: chocolate, ketchup, diamantes, açúcar, retalhos de revistas. A operação talvez mais extrema é a que se encontra narrada no célebre documentário Lixo Extraordinário (2010), por si já um título antropófago que engole T.S. Eliot para chegar ao material incomum empregado por Vik para criar o objeto de sua fotografia, ou seja, o lixo do aterro de Jardim Gramacho (RJ), que foi descrito como o maior do mundo e que hoje não existe mais. Como é sabido, o vídeo emocionante relata a experiência de arte compartilhada com jovens catadores de lixo reciclável: Vik teve a ideia de recuperar alguns destes objetos descartados para reconstruir, em escala gigante, imagens artísticas que fizeram a história: a Repasseuse de Picasso, o Atlas de Guercino, a Morte de Marat de David ganham vida com os vultos das meninas e dos meninos catadores, resgatando-os do olhar que vê a eles mesmos como descartes. E as imagens são tão tocantes como é tocante a consciência de que atrás daquelas caras transfiguradas pelo resultado artístico há percursos humanos tão afastados de nós como tão em primeiro plano.

Figura 2: Cartaz de <em>Lixo Extraordinário</em> (Lucy Walker, João Jardim, Karen Harley, 2011)
Figura 2: Cartaz de Lixo Extraordinário (Lucy Walker, João Jardim, Karen Harley, 2011)

Como na ação antropofágica, temos aqui um movimento circular, que parte do reconhecimento do que é alheio (“Só me interessa o que não é meu”, diz o Manifesto oswaldiano) e de sua valorização para torná-lo próprio através de uma transformação radical, uma digestão, e devolvê-lo sob a forma de um valor agregado. Para cumprir até o fim esta ciclicidade, nesta como em outras operações (por exemplo, as Crianças de açúcar da ilha caribenha de St. Kitts), Vik doa parte dos lucros da venda das obras aos protagonistas com quem trabalhou. Nada mais próximo da arte da reciclagem, nada mais mágico do que a transformação do lixo em emoção e aviso.

6. Reafirmar pertenças ancestrais: Ori/cachoeira

Para variar, um pouco de teoria, um pouco de feminino.

Na teoria feminista de estudiosas afroamericanas e afrobrasileiras como Carla Akotirene, a pertença à cultura yoruba é reafirmada com convicção como uma forte herança ancestral e existencial que marca a maneira de se aproximar da realidade seguindo modos afins aos outros seres da natureza. Akotirene, enfrentando o ambiente asséptico da teoria literária, se define corajosamente em tal sistema como a “cachoeira”, que com suas afirmações cria “estrondos” à sua passagem, ou seja, tem um efeito de subversão. O choque epistemológico pode ser avaliado se imaginarmos comparar este lance a um(a) cientista que ponha em relação sua tarefa de descobridor(a) de novos terrenos com seu nascimento sob o signo de Áries. E em seu volume Interseccionalidade, de 2018, o primeiro agradecimento da estudiosa “pela firmeza da escrita” é justamente para seu Ori, a divindade pessoal (a “cabeça”) que norteia os indivíduos desde antes de nascer até depois a morte.

Saberes complementares, frequentemente menosprezados como irracionais e portanto irrelevantes e daí risíveis, são resgatados publicamente para gerar imagens poderosas e eficazes. Em vez de o irracional rebaixar a importância do aporte intelectual, o valor deste último é inserido num sistema que reavalia o que geralmente é descartado.

7. Nota à margem e conclusão moralizante

Uma nota à margem. O objetivo do prêmio Right Livelihood Award, criado pelo sueco Jakob von Uexkull e considerado por alguns um Nobel paralelo, é o de “ajudar o Norte a encontrar uma sabedoria que corresponda à ciência que possui, e o Sul a encontrar uma ciência que corresponda à sabedoria que possui”. Ou seja, para além da mecânica divisão Norte/Sul, por vezes simplificada e estereotipada, a mensagem é: aceitar a necessidade de integração.

Pequena moral, para concluir: se aprendéssemos com “o que não é nosso”, ou com o que é nosso mas não é reconhecido, os nossos saberes seriam talvez menos impotentes.


* Maria Caterina Pincherle é professora da Sapienza Università di Roma.

 

Referências

AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2018.

CUENCA, J.P. Descobri que estava morto. São Paulo: Planeta, 2016.

DI EUGENIO, A. La cultura della divorazione: Antropofagia culturale, miti interpretativi ed eredità nel Brasile contemporaneo. Roma: Mimesis, 2021.

FINAZZI-AGRÒ, E. Um lugar do tamanho do mundo. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

NABUCO, J. Minha formação. Rio de Janeiro: Record, s.d.

STERZI, E. Saudades do mundo: Notícias da Antropofagia. São Paulo: Todavia, 2022.

 

Notas

[1] Numa conferência, Eduardo Viveiros de Castro observa que a sociedade Tupinambá tomada como exemplo pelo Oswald não estava de fato estruturada pelo matriarcado:
https://www.youtube.com/watch?v=_2E3BgHpm7o&list=PL28Xomry0aoeId03HtCjrK0JG_TAN-OAp&index=11&t=3144s

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CONTINUIDADE E RUPTURA NO MODERNISMO BRASILEIRO

A revisão do modernismo paulista, que tomou fôlego com a efeméride dos cem anos da Semana de Arte Moderna de 1922, mas já vem sendo feita há décadas na academia, depende de um debate terminológico que não é fácil de fazer. Modernismo, modernidade, modernização e moderno – para não falar da noção mais que problemática de pré-modernismo – são quatro conceitos que parecem se referir à mesma ideia central, mas a ampla gama de significados dificulta a compreensão exata dos termos. São palavras que têm usos comuns e especializados diversos, conotações positivas e negativas, que podem se contradizer. No caso brasileiro, há ao menos dois usos que conformam uma constelação específica de significados com a qual sempre lidamos ao usar esses termos: primeiro, o uso no discurso da modernização, de caminho em direção à modernidade (de perfil ocidental), em oposição ao arcaísmo, oposição esta que atravessa o pensamento de autores progressistas e conservadores; segundo, a apropriação pelo Modernismo de 1922, que instituiu, para falar como Pascale Casanova (2002, p. 118), o meridiano que determina, no caso do sistema literário brasileiro hegemônico, o que é moderno, qual é o “presente incessantemente redefinido” a partir do qual autores, grupos, tendências, obras eram situadas, tivessem surgido antes ou depois de 1922.[1] Afinal, “moderno” vem, lembra Williams (2007), do latim modo, no sentido de “precisamente agora”, e é a partir desse “agora” que se traçou o que é moderno e o que é arcaico.

Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945, de Rafael Cardoso (Companhia das Letras, 2022), está inserido nessa onda de revisões dos modernismos e tem o grande mérito de chamar a atenção, na esteira do trabalho de Monica Pimenta Velloso (2010), para outro tipo de modernismo – termo cujo uso discuto mais à frente – que cronologicamente antecederia o movimento paulista de 1922. Esse modernismo, cuja capital era o Rio de Janeiro, ocorria nos bares, nos salões de carnaval, nas galerias de exposição, mas principalmente na imprensa, onde eram testadas novas formas de escrever, mas de maneira ainda mais destacada novas técnicas de desenho e de impressão, em linha com os avanços tecnológicos.

Aliás, é ao analisar as obras gráficas da época que Cardoso, historiador da arte, professor da Universidade Livre de Berlim e membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atinge melhores resultados analíticos, como no primeiro capítulo (“Coração das trevas no seio da metrópole moderna: favelas, raça e barbárie”), em que relaciona as representações das favelas e dos negros na iconografia da época – indo de Uma rua da favela (c. 1890), de Eliseu Visconti, às caricaturas de J. Carlos no final dos anos 1920 – com os movimentos de modernização, muitas vezes autoritários, do Rio de Janeiro.

Outro exemplo de bom resultado analítico é quando discute Boemia, quadro de Helios Seelinger de 1903. Aquela pintura, escreve Cardoso, é um “manifesto visual, anunciando um novo espírito artístico livre das amarras das convenções, tanto morais quanto pictóricas, e engajado na busca de liberdade e leveza, prazer e vivacidade”, além de registrar, na figura dos boêmios, a existência “de um grupo artístico concreto”, entre os quais estavam Gonzaga Duque, João do Rio, Luís Edmundo, Raul Pederneiras, K. Lixto e Seelinger. Apesar de, para o olhar da época, parecer “esboçada e mal-acabada”, e sua composição, “caótica e confusa” (Cardoso, 2022, p. 100), a pintura foi não apenas aceita como também premiada pelo Salão da Escola Nacional de Belas-Artes (Enba), o que mostraria uma abertura, já no começo do século XX, das instituições cariocas para as novas experiências artísticas europeias e para uma mistura entre tradição e modernidade e entre alta – Boemia tinha 103 por 189,5 centímetros, “grande demais para ser um quadro de costumes” (Cardoso, 2022, p. 102) – e baixa cultura – afinal, o quadro não apenas retrata uma cena boêmia, como nela estavam figuras populares como o caricaturista K. Lixto (Calixto Cordeiro) e o jornalista e escritor João do Rio.

Figura 1: <em>Boemia</em>, de Helios Sellinger (Foto: divulgação/MNBA)
Figura 1: Boemia, de Helios Sellinger (Foto: divulgação/MNBA)

Esse modernismo carioca, que não teria se comportado como movimento organizado, mas como um grupo difuso com práticas comuns disseminadas em meios intelectuais e profissionais, formado por escritores, artistas plásticos e jornalistas que tinham de trabalhar para viver, teria ainda lidado de maneira mais orgânica com a questão racial, incorporando pontos de vista mais variados e menos mitologizantes que o modernismo paulista. Isso porque, diferente de Paris ou Nova York, “o Rio de Janeiro é uma cidade onde o velho e o novo, o rural e o urbano, o sagrado e o profano desenvolveram maneiras únicas e peculiares de coexistir” (Cardoso, 2022, p. 35). Esse contato produziu um fenômeno – o samba e o Carnaval, “formas culturais específicas nascidas do contato entre as elites cariocas, ávidas por uma fantasia da Europa, e a pujante população constituída por imigrantes, migrantes e descendentes de pessoas escravizadas” (idem). Isso permitiu, segundo Cardoso, que “esse modernismo carioca carnavalesco tenha aberto espaço para incorporar artistas afrodescendentes como K. Lixto e um Arthur Timotheo [da Costa]”. Já o “modernismo paulista que o sucedeu – e, em grande medida, apagou sua memória – detinha uma relação bem diferente com temas de negritude” (Cardoso, 2022, p. 143).

Esse breve resumo mostra algumas das contribuições de Cardoso e alguns dos problemas de sua argumentação. A primeira, mais geral, é uma extensão do sentido do autodenominado “Modernismo” (um conceito que é, em si mesmo, questionável) de 1922 para outros grupos mais difusos, como o carioca. Afinal, como Cardoso dá a entender, e parece-me que de maneira acertada, o modernismo carioca não foi um movimento fechado, mas uma movimentação de atores do campo artístico e literário. A segunda é uma questão teórica que relaciona a prática cultural com o movimento histórico concreto: por que a literatura do modernismo paulista se transformou no “agora” literário, mas não ocorreu, por exemplo, com a música paulista?[2] A que problemas históricos essas produções responderam e por que o sistema literário, o sistema artístico e o sistema musical se formaram de maneiras diferentes? Em terceiro lugar, dialogando com as duas primeiras questões, está a relação entre essa modernização (no sentido de absorção, mesmo que transculturada, do “agora” ocidental da virada do século XIX para o XX), representada pelas reformas gráficas no Rio de Janeiro, e o processo de modernização conservadora, que constituiu uma possível constante da nossa história desde a independência.

Comecemos pela ideia de modernismo. Na introdução, Cardoso, com razão, critica uma ideia simples de continuidade e ruptura, que transformaria a história da cultura em algo unidirecional, quando ela deve ser vista como “fenômeno histórico disperso e diverso” (Cardoso, 2022, p. 16). A partir disso, ele propõe a ideia de “modernismos alternativos”, “outras correntes de modernização cultural em paralelo àquela geralmente conhecida”. No caso brasileiro, enquanto o cânone modernista veio das esferas elitistas da arte, esses modernismos alternativos “brotaram da cultura popular e de massa” (Cardoso, 2022, 17). Um dos problemas da instituição do Modernismo de 1922 como centro do cânone, portanto, é o apagamento de outras formas de arte que já rompiam com o academicismo do final do século XIX e do começo do XX, categorizadas como “pré-modernistas” por alguns críticos e historiadores. Como escreveu Beatriz Resende (2016, p. 16), o “cânone modernista terminou por se fazer responsável pelo esquecimento, pela desvalorização ou mesmo pelo desaparecimento de obras e autores que, já desvinculados do academicismo, do beletrismo, não chegaram, porém, às vezes por mera questão de calendário, a fazer parte do que se consagrou como Movimento Modernista”.

O problema aqui é que Cardoso acaba produzindo um esquema binário em que um modernismo vem antes do outro – ou seja, ele recai na história unidirecional que havia criticado –, e esse segundo não apenas se torna hegemônico como também é menos democrático do que o primeiro. Dessa forma, o livro parece instituir outro cânone, o que significa refazer o movimento de exclusão, algo que parece ser uma tendência de outros analistas críticos aos modernistas de 1922. Como termo de comparação, vejamos o que escreveu outro autor, o biógrafo e jornalista Ruy Castro (2021, p. 16), na introdução de As vozes da metrópole: uma antologia do Rio nos anos 1920: “desde 1920, o Brasil já tinha um escrete de escritores afiados na observação de sua época e que já escreviam brilhantemente em brasileiro, em todos os estilos correntes e em outros que, a partir dos anos 1920, seriam caracterizados como ‘modernistas’ (embora os autores do Rio, modestamente, fossem apenas modernos) […] sem dispensarem o humor e a leveza que são as marcas do Rio”.[3] Essa citação de Castro mostra como o uso livre e pouco específico de moderno, modernismo e modernização provocam confusão, sobre a qual falaremos mais à frente. Moderno, enquanto oposição ao antigo (ou ao clássico), não é algo exclusivo das vanguardas do século XX, nem da passagem do século XIX para o seguinte. Para mencionar um uso nas nossas letras, Antonio Candido lembra como Gonçalves de Magalhães justificava seu “repúdio do imaginário clássico” em 1833: “Outro deve ser o maravilhoso da poesia moderna; e se eu tiver forças para escrever um poema, não me servirei dessas caducas fábulas do paganismo” (Magalhães, apud Candido, 2017, p. 378). De forma semelhante, o que se chamou modernismo nas letras hispano-americanas se chamou “art nouveau, modern-style, liberty, jugendstil, sezessionsil” (Ramírez, 2016, p. xx). Um crítico como José Paulo Paes (2002) chegou a sugerir, a partir de Brito Broca e Flávio L. Moura, substituir o infeliz “pré-modernismo” por art nouveau ou “arte nova”, e Beatriz Resende sugere “literatura art-déco” para a produção carioca moderna dos anos 1920 a 1945 (Ferreira; Ernesto; Resende, 2014).

Sergio Ramírez, em sua introdução à obra seleta de Rubén Darío, propõe ainda uma segunda diferenciação, entre o modernismo decorativo e barroco finissecular, cuja figura principal é William Morris, ao modernismo invasivo dos anos 1920, que ele relaciona à Bauhaus e a Walter Gropius (Ramírez, 2016, p. xxi-xxii). Haveria, portanto, dois processos de modernização das artes, ambos com suas contradições: um de resistência à industrialização por meio do artesanato, mesmo que incorporando os novos materiais (Morris), e outro de despojamento (Gropius), entre os quais há tanto continuidade quanto ruptura.[4] No Brasil, a oposição toma outra forma: entre uma “arte nova” ou, mais à frente, “art-déco”, com grupos dispersos, ligada à profissionalização; de outro um Movimento Modernista, com revistas, manifestos e correntes mais ou menos definidas.

Parece-me, portanto, que há, no livro de Cardoso, uma contaminação (talvez inevitável, mas que não é tratada adequadamente) entre moderno (em oposição a arcaico ou clássico), modernismo (enquanto nome de um movimento específico de tentativa de modernização) e modernização (termo que trataremos mais à frente). Sigamos a argumentação. A modernidade carioca é descrita por Cardoso e por Castro em oposição ao modernismo paulista. De um lado, artistas e escritores profissionais, vindos de classes diversas, escrevendo para o público, tratando com organicidade a questão racial e surgindo também organicamente de uma cidade que era em si moderna e cosmopolita, cidade-luz – Ruy Castro (2019, p. 305) menciona que Albert Einstein teria dito, ao visitar o Rio em 1925, que “os brasileiros mataram a noite”. Do outro, artistas e escritores diletantes, saídos da elite cafeeira, escrevendo para os pares, abordando a questão racial de um ponto de vista abstrato, quando não racista, tentando desprovincianizar uma cidade ainda provincial e ao mesmo tempo querendo produzir uma arte não cosmopolita, mas nacional. Mencionando Monica Pimenta Velloso, Cardoso diz que o modernismo carioca é “assumidamente cosmopolita e menos primitivista do que seu equivalente paulista” (Cardoso, 2022, p. 23). No entanto, ao menos no que tange ao aristocratismo do movimento paulista, embora real, talvez também deva ser nuançado, como sugere Maria Arminda do Nascimento Arruda (1998). A citação é longa, mas a reproduzo:

A postura irreverente foi igualmente marca registrada de Oswald de Andrade, comportamento que lhe rendeu incontáveis dissabores e o relegou à posição de marginalidade em relação às instituições. No fim da sua vida, Oswald revelava a consciência agônica do seu distanciamento diante das instâncias de consagração cultural e de inserção institucional, o que o tornava um verdadeiro outsider na vida intelectual paulista. Diferentemente, vários membros do grupo carioca possuíam empregos públicos, entretinham colaboração permanente em jornais e revistas, criavam anúncios para o nascente mercado publicitário, cultivavam relações próximas com políticos, altos funcionários e empresários, que lhes rendiam financiamentos para a publicação das suas obras. Emílio de Menezes conseguiu até mesmo ser admitido na Academia Brasileira de Letras. Por isso, é desejável redimensionar a possível marginalidade desses intelectuais cariocas e, talvez, interrogar sobre a construção das autoimagens que proliferam entre os produtores culturais, sequiosos em se destacarem do conjunto dominante.

Para que o esquema de Cardoso funcione, é preciso criar algumas divisões onde não havia ou onde não eram tão claras, muitas vezes recorrendo a supressões de evidências ou ao menos a interpretações bem controversas. Menciono um caso específico. Ao falar da Antropofagia e, dessa forma, tratar das fases do modernismo,[5] Cardoso faz uma ótima análise da oposição entre primitivo e selvagem segundo o movimento liderado por Oswald de Andrade, assim como do seu vínculo com a psicanálise e da contradição entre a prática e o discurso antropofágico. No entanto, ao tratar da relação do grupo antropofágico com os demais subgrupos, afirma que, “dado o desgaste das relações entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que foi da amizade para o antagonismo, seria temerário presumir qualquer continuidade entre os propósitos da Semana de Arte Moderna e da Antropofagia” (Cardoso, 2022, p. 206). Há aqui um salto argumentativo, que permite que o autor não leve em conta que os posicionamentos artísticos sempre são respostas tanto aos movimentos reais da sociedade quanto às disputas e tensões internas ao campo artístico (que é relativamente autônomo, como tão bem demonstra Pierre Bourdieu). Logo, mesmo que tenha havido ruptura pessoal entre os dois principais nomes do modernismo paulista, cabe ao historiador e ao crítico inquirir as movimentações reais dos atores. Desse ponto de vista, o que há é uma dialética sempre aberta entre ruptura e continuidade, como o próprio Cardoso sugere na introdução. Mas, afinal, o que permite que ele afirme não haver continuidade? Segundo ele, “as opiniões dos próprios antropofagistas”, como quando Oswald afirma que a Semana de Arte Moderna seria um “falso modernismo” (Cardoso, 2022, p. 201). Aqui o autor decide tomar ao pé da letra as afirmações dos atores, como se elas próprias não fossem posicionamentos em grande medida em reação a movimentações de outros atores dentro do campo artístico. Uma crítica das fontes ajudaria a ler com um grão de sal afirmações como a de Oswald.

Figura 2: Primeira edição da <em>Revista de Antropofagia</em> (Biblioteca Brasiliana/USP)
Figura 2: Primeira edição da Revista de Antropofagia (Biblioteca Brasiliana/USP)

A própria formação de grupos é uma resposta a essa dupla pressão sobre os atores, tanto externa (social, econômica e política) quanto interna ao campo artístico.[6] É interessante que, ao descrever Boemia, Cardoso chegue perto do tema ao notar que o quadro expressa a existência “de um grupo artístico concreto”. Essa afirmação poderia abrir espaço para outro tipo de investigação, de caráter mais sociológico, que levasse em conta a importância de grupos para a transformação estética e social, como mostrou Raymond Williams – autor citado por Cardoso – em relação ao Círculo de Bloomsbury (Williams, 2011, pp. 201-230), ou Bourdieu com os grupos realistas, naturalistas e impressionistas franceses (Bourdieu, 1996). No caso brasileiro, é o que Sérgio Miceli tem feito com o próprio modernismo, mais recentemente em Lira mensageira: Drummond e o grupo modernista mineiro (2022). Miceli é um bom exemplo – com acertos e erros, como qualquer pesquisa – de análise que busca trabalhar as mediações contraditórias entre os campos políticos e intelectuais na história do modernismo.

Por fim, para concluir esse tópico, a impressão que se pode ter é de que se quer instituir outro modernismo canônico, em que uma cidade substitui a outra, as artes gráficas, a crônica e a imprensa profissional substituem as artes plásticas, o quadro, a escultura e o livro. Mas, como sugere Maria Arminda Arruda (1998), “as discussões construídas em torno de primazias e de correntes hegemônicas são desnecessárias e podem até aludir a posições revalidadoras de disputas ingênuas”. O caminho de crítica ao cânone modernista talvez possa ser outro. Por um lado, é necessária “uma releitura [do modernismo] onde se dê uma efetiva abertura para a superação de fronteiras definidores e limitadoras”, como sugere Resende (Ferreira; Ernesto; Resende, 2014), levando em conta o trânsito não apenas entre tendências anteriores (como o simbolismo) e o modernismo, mas também entre autores, revistas e jornais identificados com um grupo ou outro. Por outro, dado que há relativa autonomia dos grupos carioca e paulista, é necessária uma releitura em que enxergaríamos em um modernismo a verdade do outro: no carioca, a explicitação da ligação entre arte moderna e mercadoria, relação esta relegada a segundo plano no Modernismo de 1922 por causa do diletantismo; no paulista, a explicitação da relação entre modernidade e escravidão, que no carioca muitas vezes era preterido diante da celebração cosmopolita da democracia que representariam a imprensa e a metrópole.[7] Talvez essa contradição entre dois modernismos (de muitos outros que poderiam ser elencados em Minas Gerais, no Sul ou no Nordeste) seja um caminho mais interessante para descobrir algo novo sobre nossas próprias contradições do que a escolha historicista de um caminho apenas como o da verdadeira (ou melhor) modernidade. Isso se considerarmos mesmo que faz sentido usar o termo “modernismo” para designar não apenas movimentos – uma vez, repito, que havia uma consciência da condição de movimento nos paulistas de 22, não nos cariocas antes dessa data –, mas grupos mais dispersos que promoveriam uma modernização das práticas artísticas e culturais.

Essa dicotomia reaparece quando Cardoso trata da relação de Mário de Andrade com a música, o que nos leva à segunda questão: o que torna uma prática cultural “nacional”? O autor parte de uma série de afirmações de Mário de Andrade sobre Sinhô para afirmar que o autor de Macunaíma sugeria que “ser carioca era ser distinto de ser brasileiro e, por extensão, [que] a capital da República não era representativa do Brasil” (Cardoso, 2022, p. 230). Diante da visão em ascendência “de que a mistura racial seria a maior característica da brasilidade”, característica simbolizada pelo Rio de Janeiro, Mário nutriria “algum paradigma exaltado de pureza cultural e étnica”, contrapondo “a atualidade degradada a um estado primevo de pureza” (Cardoso, 2022, p. 231). Por mais que a relação de Mário de Andrade com a identidade nacional seja complicada – aqui, vale a pena retomar o ensaio “Macunaíma e a ‘entidade nacional brasileira’”, de Leyla Perrone-Moisés (2007) –, as conclusões às quais o autor chega são contundentes demais para as evidências elencadas, que se concentram em poucos textos sobre Sinhô. Ainda mais quando o objeto de crítica é um autor com tantas flutuações quanto Mário de Andrade. Além disso, a crítica à defesa de Mário à gravação de música folclórica nos leva a ver como essa dicotomia leva a um binarismo: ou o cosmopolitismo de Sinhô, ou o primitivismo de Mário, como se a questão fosse determinar qual representa a nacionalidade ou o “agora” do sistema artístico brasileiro. E não uma questão de investigar a quê cada uma dessas práticas culturais responde, a quais pressões internas e externas do campo artístico, e como essas respostas rendem. Cabe ainda refletir quanto há, em Mário, uma crítica à centralidade do Rio de Janeiro na Belle Époque como uma espécie de “meridiano de Greenwich” do agora nacional. No artigo já citado, o autor de Macunaíma escreve que uma das conquistas do modernismo foi a “descentralização intelectual”, contribuindo para que a literatura alcançasse “estabilização normal no país”. E continua: “O movimento modernista, pondo em relevo e sistematizando uma ‘cultura nacional’, exigiu da Inteligência estar ao pardo que se passava nas numerosas Cataguazes” (Andrade, 2002, p. 272), numa referência ao grupo da revista Verde.

Vamos ao terceiro ponto. Embora toque na questão teórica na introdução, ao longo do livro Cardoso não define o que entende como “moderno”, termo que pode recuar até a querela dos Antigos e dos Modernos no século XVII, polêmica possibilitada por um processo que podemos chamar de modernização (estabelecimento de um capitalismo editorial). No Brasil, podemos dizer que há ciclos de modernização, no sentido de atualização das práticas sociais de acordo com a atualidade europeia e, depois, americana, isto é, com o “moderno”: após 1808; a partir de 1821, com a liberdade de imprensa; e assim por diante. Esses processos de modernização sempre foram contraditórios, baseados na manutenção ou no reforço da escravidão, na disputa entre oligarquias regionais, no fortalecimento da exploração da mão de obra assalariada.[8] A pergunta que fica é: qual é a contradição específica do modernismo carioca? Se o modernismo paulista teve uma relação com a oligarquia paulista – por meio do capitalismo editorial modernizante simbolizado pela família Mesquita e pelo mecenato –, quais são as relações entre o modernismo carioca (enquanto momento artístico, não movimento organizado), o grupo de artistas profissionais carioca, que estabelece uma autonomia relativa proporcionada pelo capitalismo editorial da capital da República e que se organiza em torno dos valores da art nouveau e da “civilidade” carioca, e as pressões exteriores ao campo artístico? De que maneira esse cosmopolitismo, em oposição ao nacionalismo paulista, responde a certa necessidade de ignorar, ali no centro de poder, o que havia de permanência de formas antigas de exploração em todo o país, enquanto se olhava para o que havia de moderno, de iluminado e de atual na capital? De que modo o gosto pela velocidade, pelas luzes e pelo prazer seria uma continuidade da “miragem compensadora” de que falava Candido (2023) ao tratar da opulência do parnasianismo?

Se o livro de Cardoso não pretende responder a essas perguntas, certamente acrescenta novas questões e nuances relevantes que podem e devem ser exploradas por pesquisadores. Apesar das imprecisões mencionadas e do que me pareceu uma insistência “em torno de primazias e de correntes hegemônicas”, Modernidade em preto e branco é uma contribuição importante para tentar complexificar a recepção contemporânea dos chamados modernismos e para reaproximar campos de estudo que ficaram por tempos afastados, como as artes gráficas e a literatura.


* Lucas Bandeira é editor da Revista Z Cultural e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.

 

Referências

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Notas

[1] São inúmeras as histórias da literatura que se baseiam na premissa de que a literatura brasileira percorreu um caminho mais ou menos único até chegar à autonomia com o Modernismo de 22, tese que vai de Eduardo Portella (1971, p. 34), em texto 1963, para quem o percurso literário brasileiro se dividiria entre o longo início, a formação em curso e a plena autonomia, ao Antonio Candido de “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, texto de meados dos anos 1950, que levanta a hipótese de que haveria dois momentos decisivos da dialética do localismo e do cosmopolitismo que seria como uma “lei de evolução da nossa vida espiritual”, o Romantismo e o Modernismo (Candido, 2006, p. 117-120). Para um apanhado das revisões do modernismo, ver Velloso, 2010, e Dealtry, Fischer e Leite, 2022.

[2] Hermano Vianna (2002, p. 29) trabalha essa questão, a partir de uma breve e instigante observação de Antonio Candido, em O mistério do samba, livro que completa 28 anos em 2023.

[3] Ver também Castro, 2019.

[4] Menciono um pequeno mas curioso momento dessa relação entre ruptura e continuidade no livro de Luiz Ruffato: em cartas ao grupo da revista Verde, Alcântara Machado insiste em que eles simplifiquem o aspecto gráfico da revista, em que ainda perduram, como o leitor pode ver nas capas reproduzidas no livro, elementos art nouveau (Rafatto, 2022, p. 98-99 e 170-182).

[5] Mário de Andrade (Andrade, 2002, 260, 265-266) fala de uma fase heroica, pré-1922, uma fase destruidora e uma fase construtora, em que entram de maneira mais clara o nacionalismo e, dessa forma, a questão racial.

[6] Em A revista Verde, de Cataguases, por exemplo, Luiz Ruffato (2022, p. 133) levanta a importância de publicações fora do Rio de Janeiro e de São Paulo, antes do surgimento da Revista de Antropofagia, em 1928, para a “divulgação das novas ideias modernistas num momento em que praticamente não havia um canal de expressão adequado nos grandes centros”. O livro de Ruffato também tem o mérito de, por meio de um estudo de caso, mostrar a importância das relações pessoais, tanto quanto dos posicionamentos políticos e estéticas, como determinantes das escolhas de filiação dos escritores mineiros às correntes do modernismo. Além disso, ele dá indícios da penetração do modernismo paulista em outros estados já em meados dos anos 1920.

[7] O próprio Mário de Andrade, em uma de suas autocríticas, afirma que, “socialmente falando, o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo”, já que o “Rio era muito mais internacional”. Em um movimento argumentativo a princípio desconcertante, Mário continua: “É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro de sua malícia vibrátil de cidade internacional, uma espécie de ruralismo” (Andrade, 2002, p. 258-259). O modernismo é paulista, segundo Mário, porque lá havia uma aristocracia rural – oposta à burguesia carioca – que ao mesmo tempo daria condições financeiras e se escandalizaria com o movimento. No “Rio malicioso, uma exposição como a de Anita Malfatti podia dar reações publicitárias, mas ninguém se deixaria levar” (Andrade, 2002, p. 259).

[8] Ver Arantes, 2021.

artigo
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PAGU NO METRÔ: QUANDO BIÓGRAFA E BIOGRAFADA FORMAM O MESMO CORPO DE MULHER

 

“Vários meses se passaram desde o momento em que comecei essa narrativa, em novembro. Levei bastante tempo para conseguir escrever porque não era nada fácil lançar luz sobre fatos esquecidos, talvez fosse mais simples inventar.” (Ernaux, Annie, 2021)

Todas as profissões têm cacoetes. Os jornalistas, como eu, têm a obsessão de achar um lead e um título nos textos que leem. Acho que hoje, mesmo que cada dia mais longe das matérias jornalísticas e mais próxima dos literários, ainda procuro um lead e um título para o que leio. Uma busca sem pretensão de encontrar um sentido absoluto para o texto, que me serve apenas como método para facilitar minha orientação nas obras da literatura contemporânea. É apenas uma estratégia para percorrer narrativas que abdicam do que o filósofo Jacques Rancière chama de racionalidade ficcional, dada pelo encadeamento de causas e efeitos que organizam um arranjo de eventos estruturante de uma certa realidade, e, que testado pela inversão das expectativas geradas por ele, produz as peripécias vividas pelas personagens (Rancière, 2010). Uma literatura marcada pela diluição da importância dessas peripécias em favor de escritas não lineares, híbridas, compostas por vários gêneros que transformam o romance em uma obra comprometida não apenas com a narração de uma história, mas também com um exercício autobiográfico do autor, que pretende unir arte e vida em sua escrita e dar a sua voz um caráter coletivo e crítico, abordando questões políticas e teóricas caras ao contemporâneo. Uma literatura que não se preocupa em traçar caminhos para o leitor e que se dedica a fazer seu próprio percurso na narrativa, como é o caso do romance Pagu no metrô, da escritora Adriana Armony, em busca de sua biografada, a escritora Patrícia Galvão, a Pagu.

Antes de deixar Rouen, vou visitar a célebre catedral, pintada por Monet entre 1892 e 1894. Por um longo período e várias estações do ano, o pintor traduziu em pontos de luz a mesma igreja, de vários ângulos, a cada vez diferente segundo o clima, a hora, e as sombras dos dias. Gostaria de pintar Pagu assim, não apenas com minhas palavras de escritora, mas também com as histórias, as decepções e esperanças que a atravessam, como leitora (Armony, 2022, p. 106).

Esse trecho do romance é a chave que proponho para a leitura de Pagu no metrô, o meu lead. Assim como o pintor Claude Monet, que instalou seu ateliê em frente à Catedral de Rouen, para observá-la em todas as suas possibilidades, Adriana mudou-se para Paris, onde morou no ano de 2019, em busca de dados sobre a permanência de Pagu na cidade nos anos de 1934 e 1935. Mas, ao contrário de Monet, que se postou diante da matéria da catedral, ela sabe que seu objeto não passa de um espectro em constante movimento, provocado pelas leituras e releituras de sua personagem ao longo de quase um século que as separa. A pesquisadora que precede a autora parece estar convencida de que a experiência em Paris de Pagu está perdida (“É então que me dou conta de que tenho pouquíssimos indícios do que se passou com Pagu em Paris em 1935” [Idem, p. 65]), e que a única tarefa possível à biógrafa é buscar os rastros da passagem da brasileira pela cidade, dispersos em arquivos franceses. Ela fará a biografia de sua personagem dessa letra morta, guardada nos arquivos e observada com a mesma paciência de Monet diante da Catedral de Rouen, que ela sabe não ser totalmente confiável (“Uma distração do funcionário, um carimbo equivocado, e as peças não se encaixam, e todo um castelo pode ruir” [Idem, p. 106]). Dar vida a Pagu como sua leitora, explorando todas as possibilidades de sua biografada sem a certeza dos biógrafos, exige que ela trabalhe a personagem por meio da ficcionalização do real, assim como as impressões de Monet produziram 30 telas diferentes de uma única catedral. O que ela entrega ao leitor é ficção composta pelos restos do real, que colhe em sua permanência em Paris. Real vivido em dois tempos, o dela e o de Pagu.

Figura 1: Montagem de Adriana Armony
Figura 1: Montagem de Adriana Armony

Restos que se interligam a histórias da própria autora e de suas conhecidas ou amigas e de mulheres que se relacionaram com a biografada na vida real ou na ficção produzida por ela. Mulheres que compõem uma única sujeita. Valho-me aqui da dubiedade desse neologismo sujeita, que, se por um lado dá a elas a condição de sujeito negada pelo patriarcado, por outro nos lembra a desqualificação imposta àquelas chamadas de sujeitas, sujeitinhas. As mulheres que não se assujeitam não são perdoadas. (“(Será que um dia conseguiremos superar a dicotomia santa-puta?)” [Ibidem, p. 79].) Pois é essa sujeita renegada pelo patriarcado – não importando se santa ou puta -, resultado da fusão de várias vozes femininas convocadas por Adriana para o romance, que constitui o corpo de mulher materializado no texto. Vozes, incluindo a da biógrafa, que gravitam em torno de Pagu. Vozes que reverberam na escrita e no corpo da autora, assim como na escrita e no corpo de Pagu. (“Posso imaginar como Patrícia se sentiu. Como muitas mulheres, também perdi um bebê. E tive outros, como Patrícia teria depois o seu. Rudá, seu menininho de cabelos dourados, com seu pijaminha, o polegar deformando a boca e a outra mão atrapalhada nos cabelos. Aquele que ela queria esmagar no seu seio, aquele que não devia conhecer aquela ternura criminosa. Eu me reconheço na Pagu de 14” [Ibidem, p. 11]) Uma sujeita que indica quando autora e personagem, ou, no caso estudado aqui, biógrafa e biografada, formam o mesmo corpo de mulher.

Na plataforma do metrô République, duas mulheres se encaram. Uma tem mais de 100 anos, a outra praticamente a metade disso. A centenária tem também 52, e ao mesmo tempo 24. A pesquisadora tem também 24 anos, caminha para os 52 e em um piscar de olhos ultrapassará os 100 (Ibidem, p. 126).

Um corpo coletivo, múltiplo, constituído em uma colagem que une fragmentos da vida de mais de 20 mulheres reais ou fictícias trazidas para o romance. Fragmentos que não são um sintoma da impossibilidade da linguagem, mas, sim, da impossibilidade de se recompor uma vida em uma narrativa teleológica. Assim, eles servem, como uma estratégia da escrita contemporânea, para compor uma rede de interconexões que problematiza o real, e que, no caso de Pagu no metrô, forma um sentido para a vida narrada, sem qualquer pretensão de reconstruir essa trajetória em seus detalhes. Um sentido dado por um vozerio de mulheres que compõe uma experiência marcada pela repressão, pela violência sexual, pela hipocrisia e pela invisibilidade vividas por Pagu. Adriana tece, assim, uma teia em torno de sua biografada, com o objetivo de dar visibilidade não apenas a mulheres que nunca foram vistas em suas múltiplas possibilidades, mas, sobretudo, à experiência daquelas que fizeram de suas vidas uma história de resistência à ordem de um mundo patriarcal. Mulheres que “produziram importantes rupturas e sucessivos deslocamentos no imaginário social, especialmente no que tange às questões da moral, da sexualidade e dos modelos de feminilidade e corporeidade que lhes deveriam ter servido de referência” (Rago, 2013, p. 35). Essas vozes femininas se agregam ao romance pela técnica da montagem, como uma forma de dublar ou redizer essas experiências, uma estratégia narrativa que Clara Schulmann (2022) vai identificar como comum na literatura contemporânea feminista.

Trata-se de ouvir vozes, isolando-as dos terrenos ou dos contextos em que elas puderam aparecer, para capturá-las de outro modo. O trabalho se parece portanto com uma forma de transcrição, eventualmente de montagem, de assemblage. A escrita faz nascer essa comunidade ao desenhar ligações de parentesco: como se eu tentasse dar existência a uma família improvável, que o tempo, as épocas e as disciplinas não pudessem separar (Schulmann, 2000, p. 14).

Pagu é a principal destas vozes. Musa dos modernistas paulistanos, é vista como uma femme fatale, que com sua beleza e poder de sedução nunca despertaria um sentimento puro (Galvão, 2020, p. 20), ou, ainda, que colocaria homens e famílias em perigo. (“Pagu chegou a ser inocentada numa sentença inusitada em que o juiz federal Bruno Barbosa propunha sua inocência, mas destacava o “poder de atração das mulheres revolucionárias” [Ibidem, p. 100]) Um estereótipo que Pagu não conseguiu se libertar nem mesmo quando saiu da prisão, durante o Estado Novo no Brasil, com 26 anos e apenas 44 quilos, e que acabou por obscurecer não apenas sua militância política e a literatura, mas, sobretudo, seu modo de existência marcado pela condição feminina e sua subjetividade. É a experiência dessa mulher que atrai o interesse da pesquisadora e biógrafa, que parece querer, acima de tudo, enxergar na militância política e na literatura dela a mulher que Pagu foi, como deixa claro ao comentar a participação de uma ala de feministas brasileiras em uma manifestação em Paris.

(Por que me esqueci do horário do cortejo? Me pergunto se não tenho ciúmes das moças que carregam os cartazes com a foto de Pagu, o meu cartaz; que empunham o mito talvez sem conhecer a sua história; sem ver as mil e uma mulheres dentro dela, suas contradições, sua complexa e humana beleza.) (Armony, 2022. p. 89).

Chego aqui com o lead e o título de que precisava para percorrer o texto e os caminhos que Adriana traça no romance, mas isso é apenas o começo. A primeira dificuldade que se apresenta a mim é como classificar a obra. Buscar essa classificação, mesmo sabendo que na literatura contemporânea isso é praticamente impossível, é uma forma de esmiuçar a escrita de Adriana, que, em sua busca pela história de Pagu na Paris dos anos 1930, se multiplica. Ela é ao mesmo tempo pesquisadora, biógrafa e ficcionista de um texto que mistura o relato do esforço da pesquisadora em recuperar os fatos do passado e o desejo da ficcionista em interligar a si própria e a biografada em uma rede de experiências feministas. O que seria então esse texto? Uma biografia? Um relatório de pesquisa? Um diário? Um ensaio? Um romance? É possível dizer, logo de saída, que a biografia que Adriana faz de Pagu não é como a que ela faria se fosse uma jornalista. Não vemos no texto o esforço de recompor a vida da biografada, oferecendo ao leitor o maior número possível de informações verificáveis. Aqui, Adriana é ao mesmo tempo autora e a personagem narradora, responsável por estabelecer interconexões entre os fragmentos que compõem a obra. Uma escrita que se filia, assim, a uma tendência contemporânea de deixar visível no texto um “rastro de pontos de tensão em um espaço/movimento de transformação incessante” (HOISEL. 2019, p. 33). Uma tensão que produz não apenas um efeito estético, formal, mas, sobretudo, um sentido para uma vida que não pode ser recuperada, assim como o crítico Silviano Santiago enxerga nos índices remissivos que criam várias entradas para a mesma biografia.

Amplia-se o relato propriamente biográfico de Vargas pelo recurso dos editores a remissões. Elas, uma a uma, introduzem cunhas sucessivas no verbete, fragmentando a grafia de vida predeterminada pela obediência à cronologia e pela sucessão linear dos fatos. As várias remissões ampliam o texto obediente à ordem do alfabeto, retrabalhando-o pelo processo de fragmentação e de dispersão da grafia de vida, com o fim de levar o leitor a conhecer a figura em pauta de maneira mais acidentada e incoerente. Ao mesmo tempo, leva-o a situá-la entre seus distantes e universais companheiros de ideias e de atuação no passado, no presente e no futuro (Santiago, 2015, p. 13).

Essas remissões são constantes no texto de Adriana, que recorre ao passado e ao presente, a Pagu, a si própria e a outras mulheres para construir a personagem que biografa, como se confessasse ser impossível constituí-la apenas com as fontes da memória coletiva ou individual. Admitir essa falha é, na prática, pôr em xeque a clássica divisão entre “as duas fontes de grafias de vida – a enciclopédia, de um lado, e a biografia e a ficção, do outro” (Santiago, 2015, p. 13). Em Pagu no metrô, está tudo junto e misturado. Pagu é real e ao mesmo tempo fruto da ficção de Adriana, assim como Violette Nozière, assassina do pai, o é para Pagu no conto “O dinheiro dos mutilados”, assinado por ela com o pseudônimo King Shelter. Nele, aparecem os personagens Violeta Cottot e Paul Crevel, uma fusão dos nomes dos surrealistas Paul Éluard e René Crevel (esse último quem apresentou a Pagu a história da assassina do pai abusador ocorrida um ano antes de sua chegada a Paris), e muitos elementos do crime que assombrou a cidade. As duas se alimentam do real para produzir ficção, mas há entre elas uma diferença de estilo e de época. Pagu, em sua escrita, faz o esforço dos ficcionistas modernos de apagar a persona real do texto, escondê-la “por trás da observação refinada e das frases compostas a duras penas, com vistas a uma ambição superior − a da criação de um ser de papel e em letras, autônomo, futuro e complexo personagem de ficção” (idem, p. 21). Já Adriana, como os contemporâneos, deixa expostos seus procedimentos de escrita para o leitor, ligando sua obra ao real, mesmo que lhe dê tratamento ficcional, como faz com o texto que encerra o romance em que narra o encontro da biografa e da biografada na Estação République, em Paris. A narração é marcada por uma temporalidade e uma espacialidade surreais, que tornam possíveis um encontro entre Pagu e Adriana em tempos e em lugares diferentes. Elas embarcam em Paris, passam por várias fases da vida, e desembarcam na Estação Carioca, no Rio de Janeiro, em 2022.

Figura 2: Adriana Armony (Divulgação)
Figura 2: Adriana Armony (Divulgação)

Os fragmentos que compõem a obra têm ainda uma função ética de buscar uma forma para o texto literário que o transforme em um documento político, sem, no entanto, empobrecê-lo esteticamente. O arquivo, onde textos e documentos de diversas origens e gêneros podem conviver, para, depois, serem amalgamados na obra pela experimentação formal da escrita contemporânea, é uma estratégia de uma literatura interessada em produzir espetáculos do real ou “realidade-ficção”, como definiu Josephina Ludmer (2013), e não mais em apenas criar um efeito de real na narrativa, como era a intenção das obras oitocentistas percebida por Roland Barthes (2012). “A mistura de gêneros ficcionais e documentais, a inclusão de documentos e imagens de arquivo, o jogo permanente com a identidade real do autor, são algumas das estratégias usadas pelos textos para produzir esses efeitos de realidade” (Gutiérrez. 2017, p. 15). É nesse terreno movente, em que se transformou a escrita literária contemporânea, que os textos híbridos se situam “na fronteira entre o ficcional e o documental experimentando permanentemente esses limites” (Idem, p. 14), e deixando à vista do leitor os procedimentos que desestabilizam o estatuto do ficcional, baseado na imaginação comprometida com o princípio da verossimilhança.

Um dos aspectos destacados na análise destas formas híbridas é que se constroem misturando o discurso ficcional (que não teria presunção de verdade, tal como definido por Costa-Lima) com outro tipo de discursos em que existiria essa presunção de verdade (como o ensaio, o discurso da crítica e da história literária e a autobiografia) (Ibidem, p. 49).

Adriana escreve nessa fronteira explorada por múltiplos escritores em textos híbridos, que dão aos autores um novo protagonismo, com as escritas autobiográficas ou de autoficção. Ela é leitora, pesquisadora, admiradora e cúmplice de Pagu, ao mesmo tempo que se propõe a ser sua biógrafa em um romance que narra um biografema da vida da modernista (Barthes, 2005): a experiência de Pagu em Paris nos anos de 1934 e 1935. O hibridismo de seu texto se materializa nas páginas finais do romance. O livro se encerra não com o fim da história, mas com anexos onde está listada “alguma bibliografia” a que autora recorreu na pesquisa; com os agradecimentos a quem participou de seu estágio pós-doutoral iniciado na UFRJ e terminado na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3; e com a reprodução de documentos consultados por ela. Anexos inusuais na literatura, que, no entanto, não surpreendem os leitores dos romances contemporâneos. A pesquisa de Adriana rende frutos que são registrados no romance, com os detalhes da permanência da modernista na cidade, marcada por uma intensa militância comunista que a levou à cadeia e ao risco de extradição. Entre as descobertas que a autora-pesquisadora fez nos arquivos franceses está uma foto inédita, tirada na ocasião da prisão pela própria polícia, e um prontuário de internação de Pagu em um hospital, decorrente de uma metrorragia, que a faz desconfiar ser provocada por um aborto ou de um mioma, mas que, ao fim, descobre ser sequela de um ferimento causado por uma tentativa de suicídio. Os dados, até então desconhecidos, são comemorados pela pesquisadora, mas quem se alimenta deles é a romancista.

Metrorragia (do grego antigo, metra, útero, + -rrahagia, fluxo excessivo): sangramento uterino excessivo fora do período menstrual.
(…)
(Um choque súbito: o nome do sintoma de Pagu contém o radical “metro”. Uma nova camada, inesperada, cobre o título deste livro.) (Armony, 2022, p. 114).

Sexo, útero, gravidez, aborto. Esses são temas que perpassam toda a narrativa do romance. O nome que Pagu usou em Paris parece aos olhos da biógrafa a fusão de muitas dessas situações. Leónie Boucher, ou, em português, Leonina Açougueira. Leonina era a parteira que recebeu todos os brinquedos que comprara para a filha que teria com Oswald de Andrade, o marido de sua “ídola Tarsila do Amaral”. Um feto que morreu depois que a genitora se jogou no Rio Pinheiros, onde “ficou uma hora lutando contra a correnteza” (Idem, p. 10). Açougueira, por sua vez, é uma alusão à forma como as aborteiras eram conhecidas em Paris. Adriana descobre a ficha de uma mulher chamada Léonie Boucher, condenada à prisão por um aborto ilegal, em suas pesquisas nos arquivos das prisões, outros dados, no entanto, mostram que essa Léonie não era Pagu. Mas a violência a que as mulheres que fazem um aborto estão expostas e a interdição ao prazer do sexo perpassam a narrativa. O sexo quase nunca aparece como um encontro de corpos movidos apenas pelo desejo. Ele cede lugar à luxúria do homem, exercida como um instrumento violento ou não de dominação das mulheres, e, nem mesmo a musa das vanguardas brasileiras conseguiu fugir a essa regra. Adriana reproduz no romance um trecho da carta que Pagu escreveu na prisão para Geraldo Ferraz, que viria a ser seu marido, falando do amadurecimento sexual como sendo uma das “páginas mais doídas” do relato da vida de sua biografada. (“Foi quando começou a compreender que o ato sexual poderia ser mais do que “uma carinhosa dádiva do meu corpo ausente” [Idem, p. 27]). Mas não é apenas Pagu que sofre na mão de homens narcisistas que não enxergam as mulheres com quem se relacionam. Quase todas as mulheres que Adriana reúne, inclusive ela, são ou já foram vítimas desses homens, inclusive a adolescente protagonista de Zazie no metrô, de Raymond Queneau, de onde vem a inspiração para o título do romance, que sofre um abuso sexual.

No entanto, o que une todas essas mulheres que gravitam em torno de Pagu no romance não é o sofrimento, mas um modo de vida que não diz respeito aos homens. Uma forma particular de existência, que Adriana está interessada em iluminar ao buscar os detalhes da permanência de Pagu em Paris. A autora mostra-se consciente da disputa política entre homens e mulheres, que está em torno do “controle do que significa ser mulher” (Rago, 2001, p. 59). (“Quando eu tinha 14 anos, a palavra feminismo evocava mulheres brutas queimando sutiãs, como bruxas. Algumas usavam botas pesadas e eram chamadas de sapatão. Mas havia as moças que tinham aproveitado para libertar os seios sob vestidos esvoaçantes.” [Armony, 2022, p. 84]) Recusar esse estereótipo e outros, como o da femme fatale, é afirmar o modo de existência das mulheres, o que, segundo Rago, é uma das questões centrais dos feminismos que têm se preocupado em “propor a construção de identidades femininas sob outras bases e parâmetros conceituais” (2001, p. 59). A literatura contemporânea, ao colar-se à vida e à experiência das mulheres, tem sido uma grande aliada do feminismo na recusa às formas de sujeição impostas a elas pelo patriarcado. Mais ainda em romper com o silêncio que lhes foi imposto pelo determinado patriarcado. As mulheres, enfim, à custa de muita luta travada ao longo do século XX conquistaram o status de testemunhas da história, papel que lhes era negado pelas sociedades tradicionais, que tinham o testemunho como “um dispositivo de controle dos corpos e da mente” (Seligmann-Silva in Rago, 2013, p. 19). Adriana, com sua Pagu no metrô, com certeza dá sua contribuição a essa luta. Como ela mesma diz, no fim do romance, “estamos vivos” (Armony, 2022, p. 130). Ouso apenas corrigir o gênero do sujeito do enunciado e falar com a voz aguda das mulheres: “Apesar de tudo, estamos vivas.”


* Luciana Conti é jornalista e doutoranda no Programa de Ciência da Literatura/ Letras/ UFRJ, com bolsa da Capes.

 

Referências

ARMONY, Adriana. Pagu no Metrô. São Paulo, Editora Nós, 2022.

BARTHES, Rolland. “O efeito de real” in O rumor da língua. São Paulo, Martins Fontes Editora, 2012.

_______________. “Prefácio” in Sade, Fourier e Loyola. São Paulo, Martins Fontes Editora, 2005.

GUTIÉRREZ, Rafael. Formas híbridas. Rio de Janeiro, Editora Circuito, 2017.

HOIZEL, Evelina. Teoria, crítica e criação literária: o escritor e seus múltiplos. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2019.

RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2013.

______________. “Feminizar é preciso. Por uma cultura filógina”, São Paulo em Perspectiva, Revista da Fundação Seade, vol. 15, nº 3, Jul-Set de 2001, pp. 58-66.

SANTIAGO, Silviano. Grafias de vida – a morte. Rio de Janeiro, Revista Serrote, nº 19, IMS, 2015.

SCHULMANN, Clara. Cizânias: vozes de mulheres. Belo Horizonte, Editora Âyiné, 2020.

Poesia
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TRÊS POEMAS DO DIA A DIA

I

Só escrevendo
Aguento
Esse dia a dia
Sem vento
Mas gosto do calor
Sol entrando pela casa
Céu azul
Infinito a ver

 

II

Céu de anil

 

Amanhece
Mas não adormeço
O azul vem
Substituindo a escuridão
Primeiro azul escuro
Azul profundo
Até vir o sol
E clarear o mundo

 

III

Escrever
Aliviar
Mexer nos abismos
Escavar
E pra fora
Jogar
Toda a inquietação
Em palavras
Transformar


* Vera Lins é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e autora de Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador (Tempo Brasileiro, 1991), Novos pierrôs, velhos saltimbancos (EdUerj, 2009), Ingeborg Bachmann (coleção Ciranda da Poesia, EdUerj, 2013) e Desejo de escrita (7Letras, 2013), entre outros livros.

resenha
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PAIXÃO SIMPLES. SIMPLES?

Passion simple

Annie Ernaux abre a introdução de Écrire la vie, edição em um volume do conjunto de sua obra publicada até 2011, com a frase: “Escrever é um presente e um futuro, não um passado.” O futuro estava próximo, o prêmio Nobel, recebido em dezembro de 2022. O passado se torna presente pela escrita que olha para o futuro. Annie Ernaux olha para frente, não para trás.

O passado, nas narrativas que se ocupam fundamentalmente da própria vida, não são memórias, nem autobiografia. A razão fundamental para serem narrativas originais em seu formato está em se constituírem no que a própria autora chama de “biografia impessoal”. Os melhores recursos do ficcional podem estar presentes, assim como as observações sociológicas, a avaliação política do contexto em que os fatos da vida acontecem. Quando narra sua vida pessoal, as relações familiares, quando fala da mãe trabalhadora ou do pai que falava patois mortos, é a memória social da filha do povo que aparece. As obras que tratam de seu percurso intelectual traçam a trajetória da jovem do interior da França que precisa ir para Paris, para os grandes centros para se transformar na escritora que é.

Annie Ernaux prova que o pessoal, na vida de uma mulher, é político. A narrativa da violência do aborto clandestino a que se submete, memória mais do que pessoal, torna-se leitura tão importante quanto o discurso que Simone Weil faz em 1974, diante de um parlamento composto de apenas 2% de mulheres eleitas, em defesa da legalização do procedimento. O acontecimento, no entanto, tornou-se leitura ainda mais importante num Brasil que continua condenando o aborto.

Partilhamos das leituras combativas, dos relatos da filha de operários, dos testemunhos das desigualdades da ordem social, e tudo nos parecia coerente, quando nos chega a tradução de Passion simple (Paixão simples, trad. Marília Garcia, São Paulo: Fósforo, 2023).

O título é o primeiro desafio que se impõe à competente tradutora, a poeta Marília Garcia. Trata-se de uma simples paixão, que poderia se diferenciar de outras, mais complicadas? É apenas paixão, sentimento que exclui outros, como o amor? Melhor mesmo foi ter ficado com a complexa simplicidade: Paixão simples.

Atribuir a uma mulher, ou a qualquer pessoa, uma identidade fixa é sempre um erro. Os estudos biográficos frequentemente cometem tal equívoco, sobretudo quando os autores são incluídos nos grandes cânones, nacionais ou internacionais.

No pequeno romance, especialmente contundente por sua concisão, a mulher é outra. Nada do passado importa, as questões políticas desaparecem, nem família nem trabalho vêm ao caso. Só o que importa é a experiência de uma paixão arrebatadora. “Sentia que estava no direito de me opor a tudo o que atrapalhasse uma entrega sem limites às sensações e narrativas imaginárias da minha paixão.”

Um diplomata estrangeiro, casado e que a seu país deverá voltar, captura o corpo e o cérebro da mulher de meia idade, e a partir daí não existe espaço para nada mais em sua vida senão o estar com ele.

Andar pela cidade, fazer compras, escolher um vestido, assistir a um filme, tudo só tem sentido ao se relacionar com a paixão vivida. Desejá-lo é esperar pelo telefonema, pelo barulho do carro que chega, pelo sinal à porta. Não importa quanto tempo espere, desde que o homem chegue. E os corpos se encontrem, o gozo se repita. “Gastávamos um capital de desejo.”

Roupas e copos se espalham pelo chão como em músicas românticas, cenas de filmes de sessão da tarde, talvez com trilha sonora de Roberto Carlos. O intrigante para o voyeur que atravessa as páginas do romance é que nada soe brega, vulgar. Ao contrário, quem lê se reconhece timidamente em alguma lembrança.

Nada se oculta no relato da paixão: na presença, o sexo, na ausência, a masturbação.

A cada êxtase de preenchimento se sucede a dor da falta que a ausência deixa. Porque é paixão será efêmera e o amante se vai. Fica a escrita, e é aí que Annie Ernaux mostra sua genialidade, a escritora raríssima, só ombreada mesmo por outra francesa, Marguerite Duras.

Os franceses se gabam do número de prêmios Nobel de literatura recebidos: 16. A única mulher premiada foi Ernaux, em 2022. Duras só recebeu o Gouncourt, o maior prêmio francês, no final da vida, em 1984. Talvez porque a imagem que criam de seus homens não deixem os vaidosos críticos satisfeitos.

Para a narradora de Paixão simples, é muito pequeno o limite entre reconstituição e alucinação, entre memória e loucura. O texto escrito é, para ela, vestígio daquele outro texto, vivido. Diante dos julgamentos que virão, a mulher que se revelou da forma mais nua durante a paixão acredita que, sob a forma de romance, “as aparências estão a salvo”.

Complicado, isso de paixão.


* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e editora da Revista Z Cultural.

vale a pena ler de novo
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GUIMARÃES ROSA: ENTREVISTA INÉDITA, POR GRAÇA COUTINHO

Guimarães Rosa é conhecido por não dar entrevistas. Durante sua vida, mostrou-se exímio fugitivo de qualquer jornalista ou pesquisador. Essa entrevista, que encontrei numa visita à Graça Coutinho no Vale das Videiras, tornou-se, então, uma joia de acervo. Não que Graça Coutinho tenha tido alguma estratégia especial para fazer Guimarães ceder a uma entrevista. Foi simples. Graça era filha de Afrânio Coutinho, um intelectual de ponta que introduziu o New Criticism no Brasil e grande amigo do escritor, que sempre a levava ao Itamaraty em suas visitas a Guimarães. Aos 15 anos, Graça teve que fazer um trabalho de colégio com um autor brasileiro, e lembrou de procurar Guimarães, porque lhe parecia mais fácil. Essa é a origem desta raríssima entrevista com o gigante Guimarães Rosa feita por uma adolescente de 15 anos. Senti, na hora, que tinha de compartilhar isso com os leitores da Revista Z. Está aí. Se as perguntas são amadoras, as respostas traduzem em vários pontos a grandeza de nosso escritor maior.
Heloisa Teixeira
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo

Mobilizada pelos 80 anos de Guimarães Rosa, lembrei-me de uma entrevista que havia feito com o grande escritor brasileiro nos tempos de colégio. Eu tinha então 15 anos e o privilégio de conhecê-lo e de privar de seu convívio nas visitas que fazia a meu pai.

Tendo que entrevistar o escritor brasileiro para um trabalho de estágio de português, escolhi imediatamente a grande figura de Guimarães Rosa, que muito admiro e a quem me ligam laços afetivos muito fortes, pois ele me honra com sua amizade.

Fui encontrar o grande escritor, que consentiu em conceder-me a entrevista no seu gabinete do Palácio do Itamarati ou Ministério das Relações Exteriores, pois, como embaixador brasileiro, ocupa o posto de escritor de departamento de fronteiras.

O seu gabinete de trabalho tem as paredes todas recobertas de mapas de nossas fronteiras. Recebeu-me, como sempre, com a maior simpatia, pondo-me logo à vontade. Não posso esconder que estava muito encabulada, pois aquela seria a minha primeira experiência nesse tipo de trabalho, sem falar em que estava diante de um dos maiores escritores brasileiros de nosso tempo e de todos os tempos, criador de um universo de ficção autenticamente brasileiro.

Mas consegui vencer a minha inibição e passei a formular ao escritor as minhas perguntas, a que ia respondendo de mistura com palavras amáveis e relatos de episódios de sua vida de diplomata e escritor.

Graça Coutinho: Diplomata e escritor ao mesmo tempo, como prefere o senhor viver, como escritor ou como diplomata?

Guimarães Rosa: Como escritor (mas escritor retraído).

GC: Onde prefere viver, no estrangeiro ou no Brasil?

GR: No Brasil sempre! Só no Brasil me sinto em perfeito equilíbrio psicológico.

GC: Na sua vida de diplomata, que países conheceu? E quais os de que mais gostou?

GR: Morei quatro anos e meio na Alemanha, dos quais três durante a guerra; dois anos na Colômbia (Bogotá) e três anos em Paris. Tive posto diplomático nestes lugares. Visitei também muitos países da Europa. Gosto da Alemanha, da França, mas meu carinho especial é com Portugal, que é o encanto, e com a Itália, que é deslumbrante.

GC: Que cidade mais o encantou no mundo?

GR: No Brasil é Salvador e o Rio de Janeiro, e no mundo é Florença, Roma e Veneza.

GC: Descobri há pouco tempo que o senhor é médico. Por que deixou a carreira?

GR: Ora, porque eu queria ir a fora e conhecer o mundo. Deixei a medicina para fazer o concurso para o Itamarati e talvez, inconscientemente, para me dedicar à literatura.

GC: Chegou a clinicar?

GR: Cheguei. Formei-me em fins de 1930 e fui para a cidadezinha no interior de Minas chamada Itaguara, onde cliniquei durante dois anos. Era médico da roça. Ganhava para ir às fazendas. Em 1932, houve a revolução e fui chamado para prestar serviços médicos. Fiz concurso para capitão médico. Em começo de 33, fui mandado para o 9º Batalhão de Infantaria, como capitão médico em Barbacena. Em 34, fiz concurso para o Itamarati, tendo sido nomeado em julho desse ano. Fui nomeado cônsul de terceira classe e fiquei três anos e meio no Brasil; depois, fui nomeado cônsul de segunda classe e fui para Hamburgo, onde permaneci até 1942, quando o Brasil rompeu relações com a Alemanha.

Mais tarde fui para Bogotá, como segundo secretário da embaixada. Em 44, retornei ao Brasil, onde fiquei como chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura.

Em 46, fui a Paris fazendo parte da delegação do Brasil à Conferência da Paz. Em 48 fui como primeiro secretário da Embaixada do Brasil para Paris. Lá fui promovido a conselheiro da Embaixada. Em 51, voltei para o Rio, a fim de chefiar novamente o gabinete do ministro.

Daí por diante, permaneci no Brasil, como ministro de segunda e agora de primeira classe (embaixador). Desde 1956 chefio o serviço de marcação de fronteiras.

GC: Recolheu da vida de médico alguma experiência para o escritor?

GR: Tudo o que nós vivemos serve de experiência. As lembranças misturam-se em nosso subconsciente e afloram mais tarde na obra.

GC: Quando começou a fazer literatura? Que o influenciou neste sentido?

GR: Comecei quando vim para o Rio, em 34. Em 35, escrevi um livro de poemas Magma, que obteve o prêmio da Academia em 36 e ficou inédito até hoje. Em 37, escrevi Sagarana, publicado somente em 46. Comecei a escrever movido pela saudade do interior de Minas.

GC: Quanto tempo levou escrevendo Sagarana?

GR: Escrevi em sete meses e retoquei-o em quatro. Da mesma forma Grande Sertão, apesar de muito maior.

GC: Sei que a publicação deste livro despertou um grande sucesso. Como o recebeu? E como se sentiu diante do êxito extraordinário de seu livro?

GR: Fiquei muito entusiasmado. Quem nunca comeu melado quando come se lambuza. Depois me fui acostumando.

GC: Como costuma trabalhar, e a que horas?

GR: Trabalho sem parar. Quando já tenho as ideias prontas. Prefiro, no entanto, trabalhar à noite.

GC: Gosta da vida social?

GR: Detesto. Gosto muito das pessoas, mas tenho horror à vida social. Não tenho paciência para aturá-la. Não gosto de frequentar a vida social, tenho logo vontade de escrever. Quando ando de ônibus estou sempre planejando algum trabalho. Concatenando ideias. Prefiro muito as montanhas ao mar. O campo agrada-me imensamente.

GC: Como ficcionista, qual a sua obra de que mais gosta?

GR: Eu gosto mais da história “Campo geral”, a primeira novela do livro Corpo de baile. Toda vez que releio esta história, enchem-me os olhos de lágrimas. Ela é assim mais forte do que eu, pois comove-me.

GC: O senhor trabalha lentamente as suas obras?

GR: Trabalho, porque eu retoco muito. Trabalho com “vagareza rapidez”, ou “rápida lentidão”.

GC: Quais os seus planos para o futuro? Tem algum livro em preparo?

GR: Eu não faço nunca planos. Mas, no momento, tenho um livro de novelas em preparo. Estou agora colaborando no jornal médico Pulso, que circula entre os médicos do Brasil inteiro.

Escrevo neste jornal contos de página e meia. Numa semana sai um artigo meu, na outra, um do Carlos Drummond de Andrade.

Acho o conto um excelente exercício de despojamento. Cada palavra tem de ser justa como um bordado delicado.

GC: Como vê o êxito de suas obras no estrangeiro, em traduções?

GR – Inesperado, uma surpresa que muito me comove, mas tive a sorte de ter excelentes tradutores. Vai sair este ano Sagarana em inglês, nos Estados Unidos, e a tradutora consultou-me muito.

GC: Como concilia o seu trabalho de diplomata e de escritor?

GR: Tirando muito o meu tempo de divertimento. Sacrifico os fins de semana, feriados e fico até tarde à noite.

GC: Quais os escritores brasileiros do passado e do presente que mais admira?

GR: Acho muito difícil responder assim, pois não tenho fanatismo por nenhum escritor do passado. Todos ensinam muita coisa. Machado de Assis, por exemplo, José de Alencar, Pompeia, Aluísio Azevedo. Ainda Bernardo Guimarães, o presente, faria uma longa lista. Entre muitos, poderia mencionar Monteiro Lobato, José Lins do Rego, não tenho preferência marcada. Na poesia, poderia citar Gonçalves Dias, Castro Alves, Alphonsus de Guimaraens e Bilac.

GC: Acha que a literatura brasileira já pode ser encarada como original e autônoma?

GR: Quase. Está fazendo força para isso.

GC: Qual o romance que mais admira na literatura brasileira?

GR: O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e D. Casmurro, de Machado.

GC: Quais os livros da literatura universal que mais admira?

GR: A Divina Comédia (Dante), Os Irmãos Karamazov (Dostoiévski), A Ilha do Tesouro (Stevenson), Macbeth (Shakespeare), D. Quixote (Cervantes), Os Miseráveis (Victor Hugo), Dr. Fausto (Thomas Mann), A Relíquia (Eça de Queirós), Contos (Andersen).

Citei 9, pois é meu número de sorte. Ou então 7. Sou religioso e supersticioso.

GC: Qual a obra de arte universal que mais o impressionou?

GR: O que muito me impressionou foram: os quadros de Tintoretto, em Veneza, todos os de Velázquez e os quadros de Tiepolo.

GC: Que brasileiro mais o impressionou no passado como figura humana?

GR: Borba Gato – bandeirante paulista, genro de Fernão Dias Paes.

GC: Dos personagens da sua obra, qual o de que mais gosta?

GR: Maria da Glória (Corpo de baile), Miguilim (Corpo de baile), Manuelzão (Corpo de baile), Zé Bebelo (Grande Sertão), Manuel Fulô (Sagarana).

GC: Como se sentiu com a eleição para a Academia Brasileira de Letras?

GR: Honrado e feliz, como todo escritor teria que sentir.

Antes de me despedir, Guimarães Rosa me mostrou as diversas edições de suas obras em alemão, italiano, inglês e francês.

Estava terminada a entrevista, e eu me retirei encantada com o nobre ambiente daquele palácio e com a nobreza daquele grande espírito.


* Graça Coutinho é artista plástica.

editorial
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LITERATURA E FEMINISMO II

O número anterior dessa nossa Revista Z Cultural, lançado no segundo semestre de 2021, apresentou o Dossiê “Literatura e feminismo” sob a curadoria de Beatriz Resende, Carolina Correia dos Santos e Mariana Patrício. A chamada aberta a colaborações em torno do tema proposto despertou enorme interesse, resultando no envio de um número tão expressivo de artigos importantes que um só número não pôde dar conta do material recebido, todo de alta qualidade.

Diante da dificuldade que a seleção provocou, tomamos a decisão de publicar um outro número da Revista Z Cultural com o mesmo dossiê: “Literatura e Feminismo”. Reconhecemos, assim, a importância e a premência de se discutirem as relações entre a literatura e o feminismo, provocando o debate e trazendo a público novas perspectivas críticas sobre a literatura produzida por escritoras contemporâneas brasileiras, como propusemos em 2021.

No presente dossiê, publicamos quatro ensaios que tratam de diferentes aspectos da relação entre literatura e feminismo. Em “O que pode a literatura?”, Carolina Correia dos Santos parte de seu encontro com Cidadã: uma lírica americana, da poeta jamaicana Claudia Rankine, para elaborar uma possível ética da leitura, em especial da escrita biográfica, que nos “permite experimentar posições/identidades diversas”, no caso específico relacionadas ao racismo, tema do livro. “Contos, cantos e desencantos sobre a maternidade em romancistas do Brasil e da África”, escrito a quatro mãos por Mary Garcia Castro e Fernanda Leal, investiga “como a literatura escreve a maternidade e a mãe” a partir de quatro romancistas negras, as brasileiras Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo, a ruandense Scholastique Mukasonga e a nigeriana Buchi Emecheta. Em um possível diálogo com o artigo de Correia dos Santos, aqui se trata de reconhecer na literatura o encontro com “subjetividades múltiplas”: “cada mulher é única, e consequentemente, cada mãe e cada maternidade que decola de materialidades inclusive simbólicas na economia política e cultura de cada tempo”. Em seguida, Juliana Gelmini analisa Risque esta palavra, de Ana Martins Marques, na qual discerne sinais de subversão do “lugar previsto para a escrita de autoria feminina”, com destaque para o recurso intertextual à memória literária, reescrevendo a história de Penélope, Ofélia e da Medusa. Por fim, Fabiana Carneiro descreve mais um encontro de leitura: a descoberta de As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, no qual, escreve ela, “reconheci a minha herança”, fechando assim um itinerário de leituras que são também (re)conhecimento de identidades diversas.

Nas margens do literário, o dossiê publica dois relatos. Em “Uma escola para Alan”, Paul B. Preciado propõe, ao refletir sobre um caso de transfobia em Barcelona, na Espanha, uma escola que seja “mais atenta à singularidade do aluno do que à preservação da norma”. E, em “Ceci n’est pas une femme: a morte, o buraco negro e a donzela”, Pérola Milman parte de experiências pessoais para debater o lugar da mulher na ciência e como são construídas imagens conflitantes da mulher cientista. Fechando o dossiê, Mariana Meneguetti discorre sobre a construção do corpo – principalmente do corpo feminino – na arquitetura modernista por meio de análise contrapatriarcal da Casa das Canoas, residência do arquiteto Oscar Niemeyer entre 1953 e 1959.

Além do dossiê, reunimos neste volume poemas inéditos de Mar Becker e Julia de Souza, uma resenha de Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste, livro de Gonçalo Tavares, por Augusto Guimaraens Cavalcanti, e uma entrevista com a escritora angolana Yara Nakahanda Monteiro, autora de Essa dama bate bué!, romance que revisita a memória angolana da guerra civil e delineia seus rastros presentes na reconstrução do país.

Para reiterar a importância da relação entre literatura e artes visuais, identificada desde o número anterior, voltamos a pedir à artista Cristina Salgado uma de suas obras fortes, belas e provocativas centradas em figuras de mulheres.

A Cristina Salgado agradecemos por podermos usar na capa do presente número a obra Mulher fértil, 1986.

Revista Z Cultural

dossiê
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UMA ESCOLA PARA ALAN

Tradução de Maria Vigorito

Na última véspera de Natal, Alan, um menino trans de 17 anos, morreu em Barcelona.[1] Ele havia sido um dos primeiros menores trans a obter uma mudança de nome em sua carteira de identidade nacional na Espanha. Mas o certificado não conseguiu superar o preconceito. A legalidade do nome não poderia superar a força daqueles que se recusaram a usá-lo. A lei não poderia superar a norma. Os constantes episódios de assédio e intimidação que ele sofreu durante três anos nas duas escolas onde estava matriculado o fizeram perder a confiança em sua capacidade de viver e o levaram ao suicídio.

A morte de Alan pode ser considerada um acidente dramático e excepcional. No entanto, não houve acidente: mais da metade dos adolescentes trans e homossexuais dizem ser objeto de agressão física e psicológica na escola. Não houve exceção: os maiores números de suicídio são registrados entre adolescentes trans e homossexuais.

Mas como é possível que a escola não tenha conseguido proteger Alan da violência? Digamos rapidamente: a escola é a primeira escola de gênero e violência sexual. A escola não só falhou em proteger Alan, mas também facilitou as condições de seu assassinato social.

A escola é um campo de batalha para onde as crianças são enviadas com seus corpos moles e futuros em branco, suas únicas armas: um teatro de operações em que uma guerra é travada entre o passado e a esperança. A escola é uma fábrica de machos e bichas, de bonitos e gordos, de espertos e idiotas. A escola é a primeira frente da guerra civil: o lugar onde se aprende a dizer que não somos como eles. O local onde os vencedores e os vencidos são marcados com um sinal que acaba por assemelhar-se a um rosto. A escola é um anel no qual o sangue se mistura com a tinta e no qual são recompensados ​​aqueles que sabem fazê-los correr. Que importa quais línguas são ensinadas lá, se a única língua falada é a violência secreta e surda da norma. Alguns como Alan, certamente os melhores, não sobrevivem. Eles não podem se juntar a essa guerra.

A escola não é simplesmente um lugar de aprendizagem de conteúdo. A escola é uma fábrica de subjetivação: uma instituição disciplinar cujo objetivo é a normalização do gênero e da sexualidade. A aprendizagem mais crucial que se exige da criança na escola, na qual ela se baseia e da qual depende qualquer outra formação, é a de gênero. Essa é a primeira (e talvez a única coisa?) que vamos aprender lá. Fora da esfera doméstica, a escola é a primeira instituição política em que a criança é submetida à taxonomia binária de gênero pela constante demanda por designação e identificação normativa. Cada criança deve expressar um gênero único e definitivo: aquele que lhe foi atribuído em sua certidão de nascimento. Aquele que corresponde à sua anatomia. A escola potencializa e valoriza a teatralização convencional dos códigos de soberania masculina nos meninos e submissão feminina nas meninas, ao mesmo tempo em que monitora o corpo e o gesto, pune e patologiza todas as formas de dissidência. Justamente por ser uma fábrica de produção de identidade de gênero e sexual, a escola entra em crise ao se deparar com os processos de transexualidade. Os colegas de classe de Alan exigiram que ele levantasse a camisa para provar que não tinha peito. Eles o insultaram, chamando-o de maria sapatão (marimacho) ou recusando-se a chamá-lo de Alan. Não houve acidente, mas planejamento e concerto social ao administrar a punição ao dissidente. Não houve exceção, mas regularidade na tarefa realizada pelas instituições e por seus usuários de marcar aqueles que questionam sua epistemologia.

A escola moderna, como estrutura de autoridade e reprodução hierárquica do conhecimento, continua a depender de uma definição patriarcal da soberania masculina. Afinal, mulheres, minorias sexuais e de gênero, sujeitos não brancos e com diversidade funcional integraram a instituição escolar há pouco tempo: 100 anos se pensarmos nas mulheres, 50 ou até 20 se falarmos da segregação racial, dificilmente uma dezena se tratando de diversidade funcional. À primeira tarefa de fabricar a virilidade nacional, somam-se, depois, as tarefas de modelar a sexualidade feminina, de integrar e normalizar a diferença racial, de classe, religiosa, funcional ou social.

Juntamente com a epistemologia da diferença de gênero (que tem em nossos ambientes institucionais o mesmo valor que o dogma da divindade de Cristo tinha na Idade Média), a escola trabalha com uma antropologia essencialista. O tolo é um tolo, o queer, o queer. A escola é um espaço de controle e domínio, de escrutínio, diagnóstico e sanção, que pressupõe um sujeito unitário e monolítico, que deve aprender, mas que não pode e não deve mudar.

Ao mesmo tempo, a escola é a escola mais brutal e fantoche da heterossexualidade. Embora aparentemente assexual, a escola potencializa e estimula o desejo heterossexual e a teatralização corporal e linguística dos códigos da heterossexualidade normativa. Estes poderiam ser os nomes de algumas das disciplinas centrais em todas as escolas: “Princípios do machismo”, “Introdução ao estupro”, “Oficina prática sobre homofobia e transfobia”. Um estudo recente realizado na França mostrou que o insulto mais comum e degradante usado entre os alunos nas escolas era “bicha” (pédé) para meninos e “puta” (salope) para meninas. Não houve acidente na morte de Alan, mas premeditação da violência, continuidade do silêncio. Não houve exceção, mas uma repetição impune do crime.

Sabemos, pela revolução dos escravos no Haiti e pelas subsequentes revoluções afro-americanas, feministas ou queer, que existem pelo menos quatro maneiras de lutar contra as instituições violentas. 1) Sua destruição. Isso requer uma mudança radical nos sistemas de interpretação e produção da realidade. E, portanto, leva tempo. 2) A modificação dos seus estatutos legais. 3) A transformação que se dá por meio de seus usos dissidentes —embora aparentemente modestos, esta é uma das formas mais poderosas de destruir a violência institucional—. 4) Fuga, que, como insistiam Deleuze e Guattari, não é fuga, mas criação de uma exterioridade crítica: uma linha de fuga pela qual a subjetividade e o desejo podem fluir novamente.

Para acabar com a escola assassina, é necessário estabelecer novos protocolos de prevenção da exclusão e violência de gênero e sexual em todas as escolas e institutos. Todos: públicos e privados. Todos: metropolitanos e rurais. Todos: católicos e leigos. Todos. Não estou falando aqui da fantasia humanista da escola inclusiva (e de seu slogan “toleremos o diferente, integremos os doentes para que se adaptem”). Ao contrário, trata-se de deshierarquizar e desnormalizar a escola, de introduzir heterogeneidade e criatividade em seus processos institucionais. O problema não é a transexualidade, mas a relação constitutiva entre pedagogia, violência e normalidade. Não era Alan que estava doente. É a instituição, a escola, que está doente, e que deve ser curada submetendo-a a um processo que, com Francesc Tosquelles e Félix Guattari poderíamos chamar de “terapia institucional”. Salvar Alan teria exigido uma pedagogia queer capaz de trabalhar com a incerteza, com a heterogeneidade, capaz de aceitar a subjetividade sexual e de gênero como processos abertos e não como identidades fechadas.

Diante da escola assassina, é preciso criar uma rede de escolas em fuga, uma rede de escolas Trans-Feministas-Queer que acolham menores que estão em situação de exclusão e assédio em suas respectivas escolas, mas também todos aqueles que preferem a experimentação à norma. Esses espaços, embora sempre insuficientes, seriam ilhas restauradoras que podem proteger crianças e adolescentes da violência institucional, evitando que a história de Alan se repita. Uma escola Trans-Feminista-Queer funcionaria como uma heterotopia compensatória capaz de fornecer os cuidados necessários para permitir a reconstrução subjetiva e social de dissidentes político-sexuais e de gênero. Por exemplo, na cidade de Nova York, o instituto Harvey Milk funciona desde 2002 (em memória do ativista gay assassinado em 1978 em São Francisco) que acolhe 110 estudantes queer e trans que sofreram assédio e exclusão em seus respectivos centros de formação.

Quero imaginar uma instituição de ensino mais atenta à singularidade do aluno do que à preservação da norma. Uma escola micro revolucionária onde é possível promover uma multiplicidade de processos de subjetivação singulares. Quero imaginar uma escola onde Alan pudesse ter continuado a viver.

Disponível em: https://elestadomental.com/especiales/cambiar-de-voz/un-colegio-para-alan
Disponível em: https://elestadomental.com/especiales/cambiar-de-voz/un-colegio-para-alan

* Paul B. Preciado é um dos mais importantes filósofos e ativistas queer da atualidade. De sua autoria, foram traduzidos e publicados no Brasil: Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (2020), Pornotopia: PLAYBOY e a invenção da sexualidade multimídia (2020), Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018) e Manifesto contrassexual (2015).

 

Nota

[1] Texto originalmente publicado em: https://elestadomental.com/especiales/cambiar-de-voz/un-colegio-para-alan, em 24 de janeiro de 2016.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 23 minutos

O QUE PODE A LITERATURA? UM ENCONTRO COM CLAUDIA RANKINE

Este artigo parte de uma palestra feita a convite da Comissão Científica da SPRJ (Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro) para um evento, “Nuances dos afetos”. Assim, o texto se volta às questões que o evento parecia impor a mim, professora e pesquisadora de literatura. O que seria o afeto na literatura? Quando aconteceria? E, ainda mais produtivo para alguém atenta ao feminismo, o que é e como é ser afetada pela literatura?

De certa forma, este texto se volta também a uma pergunta que aparece, reiteradas vezes, nos escritos e aulas de Gilles Deleuze sobre o filósofo judeu nascido na Holanda, filho de portugueses, Baruch Spinoza: o que pode um corpo? Essa dupla investida – em afeto e corpo – na verdade é única. Ela acontece porque Deleuze está basicamente preocupado com os afetos, com o corpo afetado, com a potência do corpo. A pergunta, colocada de outra forma – do que um corpo é capaz? – é a problemática central da filosofia de Spinoza, segundo Deleuze. “Spinoza não faz nunca ‘moral’, diz, pela simples razão de que não se pergunta jamais que coisa se deve fazer. Ele se interroga sobre o que se pode fazer, sobre a potência. Uma ética tem a ver com a potência, jamais com o dever” (Deleuze, 2010, p. 58).[1]

Outro modo de colocar a pergunta central da filosofia de Spinoza, segundo Deleuze, é: qual é o poder de um corpo de ser afetado? A sabedoria, dizem, só chega com o conhecimento do poder de ser afetado que eu tenho sobre o meu corpo, superando os acasos dos encontros que me causam alegria ou tristeza. Superando as paixões.

Brevemente: Deleuze explica que um primeiro elemento para distinguir a ideia do afeto é que, enquanto a ideia representa alguma coisa, tem “realidade objetiva e formal”, o afeto é todo modo de pensamento que não representa nada, como a esperança, a angústia, o amor (os sentimentos). A ideia, prosseguimos, vem antes, cronológica e logicamente, tem primazia sobre o afeto; para amar, precisamos ter uma ideia daquilo que se ama. Por serem de naturezas diferentes, ideia e afeto são irredutíveis um ao outro.

Deleuze então diz que, para Spinoza, nós somos autômatos espirituais. Não somos nós a ter a ideias, mas são as ideias que se afirmam sobre nós. Assim, estamos constantemente expostos às ideias, mas não só. Estamos também em uma constante variação, “variação da força de existir”, “potência de agir”. Se encontramos alguém que nos faz feliz, nossa força de existir e nossa potência de agir aumentam. Quando encontro alguém que me entristece, a potência de agir é inibida e diminui. Assim, vou de um grau de perfeição (das ideias que os encontros suscitam) a outro. Variação contínua.

O afeto em Spinoza é uma variação contínua da força de existir, determinada pelas ideias daqueles (ou “daquilos”) com quem entramos em relação. O afeto é vida, é uma transição vivida de um grau de perfeição a outro graças às ações das ideias. O affectus é a variação contínua da potência de existir causada pelas ideias.

A alegria de um lado, a tristeza de outro. Alegria e tristeza são paixões fundamentais. “Ideias inadequadas” porque nos deixam à mercê, digamos, dos encontros casuais. Sair do domínio das paixões e entrar naquele das ações, “afetos ativos” e não passivos, demanda o pleno governo da potência de agir. Deleuze (2010, p. 58) pergunta: “se estamos condenados a este mundo, seremos capazes de abandonar os afetos passivos? Conseguiremos ultrapassar o mundo das ideias inadequadas?”

O que eu gostaria de discutir, a partir das lições que Deleuze faz sobre Spinoza (Lezioni su Spinoza), a partir dessa compreensão de afeto como variação da potência de agir e da força de existir, é a relação que a literatura pode estabelecer conosco, que espécie de encontro ela poderia ser ou, se quisermos pensar nos afetos ativos, que tipo de conhecimento podemos produzir a partir da literatura, do encontro com ela.

É evidente que essas são questões sem respostas – e espero não estar estragando o final para ninguém –, a literatura não tem essência nem função intrínsecas e não poderíamos, de modo algum, afirmar que ela necessariamente aumenta nossa potência de agir e nossa força de existir. Mas, então, o que pode a literatura?

Vou me dedicar a um passo da literatura contemporânea que, acredito, discute uma ética da literatura, evoca a potência da literatura, demonstra, de certa forma, que “escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor”, como diz Deleuze (2011, p.17). Em um primeiro momento, testemunho a minha leitura, relato minha experiência com uma parte do livro da poeta jamaicana Claudia Rankine, Cidadã: uma lírica americana, e relato minha experiência com o racismo, tema do livro. Em um movimento posterior, disserto sobre uma ética possível para Cidadã. Penso que é através da filosofia feminista, de um pensar feminista sobre o relato, que conseguimos discernir uma ética para a literatura – especialmente, a biográfica –, instituição que parece não se conter em normas, subvertendo leis e deformando continuamente seus contornos[2].

*
O que gostaria de esboçar, aqui, é o modo como a parte II de Cidadã me afetou. Mas, como consequência e além disso, também acredito que o livro de Rankine seja uma espécie de dissertação sobre os encontros, sobre as paixões, os encontros casuais, portanto, e, acima de tudo, sobre como os maus encontros – aqueles que diminuem a potência de agir – parecem ser, via de regra, a maioria das opções para os corpos negros em sociedades racistas. A parte do livro de Rankine à qual me dedico é também dedicada a um corpo, negro, sim, como todas as outras partes, mas um belo corpo negro conhecido, o corpo de Serena Williams.

Por um lado, então, há a minha relação com o livro, minha contra-assinatura de Cidadã, e, aqui, já podemos adiantar uma coisa. Esta é uma relação que aumenta minha força de existir, minha potência de agir, e a evidência é este texto mesmo, esta minha comunicação. Fui capaz de produzir, de agir, a partir do livro. A leitura me gerou alguma tristeza, é verdade, mas cá estou eu escrevendo, lendo, dissertando sobre o livro, relacionando-o a outras leituras, expandindo meu… meu o quê? Meu conhecimento, claro. Mas há algo de perturbador nesta minha afirmação. O que perturba é dizer que algo que li e que é extremamente triste me motiva.

A questão sobre uma ética da literatura, ou sobre o que ela pode, é impraticável, impossível, e, ao mesmo tempo, não pode deixar de ser feita, reiteradamente. Se a literatura pode dizer tudo (Derrida), o que ela pode, realmente, dizer? Onde podemos chegar, a que conhecimento a partir do encontro com ela? E, finalmente, na melhor das hipóteses, quando o encontro com a literatura me ensina, se torna uma ideia-noção, segundo Deleuze e Spinoza, quando minha inteligência aumenta, o que posso contra o racismo? Como tornar-me alguma coisa além de leitora de Cidadã?

A parte II de Cidadã é um encontro provocante, ameaçador. Ele começa com a apresentação de um certo Henessy Youngman, youtuber cujo canal discute arte contemporânea. Rankine trata, especificamente, do seu vídeo sobre “como se tornar um artista negro bem-sucedido”. Ela aproveita o vídeo, que, em poucas palavras, sugere que um artista negro deve sempre parecer “raivoso” (assistindo, para isso, “o vídeo de Rodney King enquanto trabalha” [Rankine, 2020, p. 31]), para falar da raiva, mas de um tipo especial de raiva que o vídeo não aborda: “aquela construída através da experiência e da luta diária contra a desumanização”, escreve Rankine (2020, p. 32). Esse tipo de raiva, continua, “responde aos insultos e à tentativa de apagamento apenas para atestar a sua presença, e a energia necessária para provocar, reagir e afirmar é acompanhada por uma decepção visceral: a frustração ao perceber que nenhuma visibilidade vai alterar as formas como o indivíduo é percebido” (Rankine, 2020, p. 32). “Se esse discernimento cria um ser mais saudável, embora mais isolado, você não tem como saber” (Rankine, 2020, p. 33), conclui.

Essa raiva, o afeto-raiva, paixão triste, diríamos com Deleuze e Spinoza, raiva de gente insana, diz Rankine, é o que ela vê aflorar em Serena Williams enquanto assiste à final feminina do US Open de 2009: “Oh meu Deus, ela enlouqueceu, você fala para você mesma” (Rankine, 2020, p. 33).

“Como o corpo de uma mulher negra, vitoriosa ou derrotada, se parece em um espaço historicamente branco?” (Rankine, 2020, p. 34)

Rankine faz uma digressão e relembra, anos antes, quando os detratores – as relações nocivas ou os maus encontros pelos quais passou Serena – tomam a forma da árbitra de cadeira Mariana Alves. Relembra as cinco decisões erradas que tomou contra Williams, tirando-a do US Open de 2004 na semifinal. Bolas boas, como se diz no jargão do tênis, bolas boas que todos podiam ver. Uma delas: uma bola fora da adversária, tão fora que nem o sensor automático capaz de captar o fora incerto acionou: aquela bola fora era fora demais. Williams perde, é eliminada do torneio, mas “mantém a linha” e ganha elogios por seu “autocontrole”.


“Embora ninguém tenha dito nada explicitamente sobre o corpo negro de Serena, você não foi a única espectadora a pensar que ele era o que atrapalhava a visão de Alves em relação às linhas” (Rankine, 2020, p. 36). Rankine (2020, p. 34) menciona Zora Neale Hurston: “Eu me sinto mais negra quando jogada contra um fundo extremamente branco”.

 

Foto parcial de Untitled: Four Etchings, 1992, de Glenn Ligon. Extraído de Rankine, Claudia. Cidadã: uma lírica americana, p. 64-65.
Foto parcial de Untitled: Four Etchings, 1992, de Glenn Ligon.
Extraído de Rankine, Claudia. Cidadã: uma lírica americana, p. 64-65.

 

Você se sente ultrajada por Serena.

Mas, diz Rankine (2020, p. 37), “o corpo tem memória. A carroça física puxa mais do que o próprio peso. O corpo é o limite que cada decisão questionável atravessa até a consciência – toda a resiliência ilimitada, convicta e inconfundível não apaga os momentos pelos quais passamos”.

Nosso encontro com Rankine e com Serena Williams está ficando “perigoso”. Estamos nos aproximando demais. Primeiro Rankine nos chama a todo tempo: você, você, você. Agora, essas orações com “nós”. De repente, a coisa toda é conosco, realmente. Nós procuramos os registros de vídeo da semifinal de 2004, lemos uma reportagem do New York Times, assistimos à cobertura televisiva dos episódios controversos em que Serena se mete novamente. Estamos indignadas. Nos sentimos ultrajadas por Serena.

Cinco anos depois, conta Rankine, Serena volta ao US Open. Serena não está jogando bem, mas está no jogo. Então, num momento crítico, a juíza de linha diz que Serena pisa na linha ao sacar. “O quê? O quê! Você está falando sério? Ela fala sério; ela viu uma falta com o pé, uma que ninguém é capaz de identificar apesar dos inúmeros replays” (Rankine, 2020, p. 38). Serena está jogando contra a belga Kim Clijsters.

“Eu juro por Deus que eu vou pegar essa porra dessa bola e enfiar pela porra da sua goela abaixo, tá me ouvindo? Juro por Deus!” Por mais ofensiva que seja a explosão dela, é difícil não aplaudi-la por reagir imediatamente ao ser jogada contra um fundo extremamente branco. É difícil não aplaudi-la por agir naquele momento, por lutar loucamente contra o suposto erro do seu corpo estar posicionado sobre a linha de saque (Rankine, 2020, p. 38-39).

A reação de Serena, agora, é lida como insana. Pelo “momento de alforria”, como coloca Rankine, ela paga com a perda da partida, uma multa de 82,5 mil dólares e um período probatório de 2 anos pelo Comitê do Grand Slam.

Rankine, então, desafia, ou, se quisermos, aprimora a questão filosófica de Spinoza. “O que pode um corpo?” torna-se mais complexo no mundo racista que, infelizmente, é o nosso. Também, por outro lado, se Serena foi acometida pela tristeza, paixão nociva, não podemos dizer que não há, nela, a potência de agir ou a força de existir.

Rankine (2020, p. 39) diz:

é difícil não pensar que se Serena perdeu o contexto ao abandonar todas as regras de civilidade, pode ser porque seu corpo, aprisionado por um imaginário racial, aprisionado pela descrença – que faz parte das regras de ser negra na América – está sendo governado não pela partida de tênis da qual ela participa, mas por um relacionamento fracassado que tinha se comprometido a funcionar de acordo com as regras.

É muito interessante a ideia de que o corpo de Serena Williams entra em uma relação que o desagrega, uma relação triste que, agora assim, olhando desse ângulo, diminui sua potência de agir: Serena foi, efetivamente, retirada do torneio e ficou dois anos em probatório. O que pode, assim, um corpo negro sob o racismo?

Em 2011, Serena volta ao US Open. E, de novo, uma árbitra a penaliza, dizem que dessa vez corretamente. Mas Serena sente. E “de novo” é a expressão que Rankine enfatiza, fazendo com que o peso da repetição também arque nossos ombros. “Cada olhar, cada comentário, cada penalidade equivocada aflora da história, a atravessam, tocando você” (Rankine, 2020, p. 42).

Ao voltar a Henessy Youngman, o youtuber, para comentar um vídeo em que ele explica que suas dicas para que um branco se torne um artista não funcionariam para um negro, Rankine (2020, p. 44) afirma: “qualquer relação entre um espectador branco e um artista negro se torna imediatamente uma relação entre pessoas brancas e um negro que é uma propriedade, o que foi uma situação legalmente autorizada uma vez há um tempo”. E, então, ao retomar Serena e sua vitória na Olimpíada de 2012, Rankine acerta o foco e conta que um repórter britânico diz à tenista em uma entrevista que havia ouvido que sua dança ao comemorar a vitória era a dança de uma gangue. Rankine: “Incrédula, Serena responde perguntando se ela parece um membro de uma gangue para ele. Sim, ele responde. Tudo uma piada…” (Rankine, 2020, p. 45).

O ponto é que Serena se torna mais contida depois de 2012 e até a escrita de Cidadã. Rankine elenca os comentários “elogiosos” que destacam sua maturidade, o fato de estar se parecendo mais e mais a Arthur Ashe (famoso tenista negro), a superação daquilo que pareceu “teimosia e rancor” e que era, na verdade, política: seu boicote, seu e da sua irmã, Venus, a um torneio no qual haviam sido agredidas por gritos e ofensas racistas. Rankine (2020, p. 46) diz: “Assistindo a essa nova e contida Serena, você começa a se perguntar se ela finalmente desistiu de exigir o melhor de quem a cerca”. Essa observação me faz pensar em uma espécie de vantagem que brancos teriam ao conviverem com negros, um privilégio, uma oportunidade. Então, a pergunta spinozista também se declina ao corpo branco: o que pode o corpo branco sob o racismo?

Segundo Rankine, o corpo branco é ambíguo, não é capaz de mais do que a ambiguidade. Duas semanas depois de Serena ter sido escolhida a jogadora do ano pela Associação de Tenistas Profissionais, a dinamarquesa Caroline Wozniack, eleita a melhor no ano anterior, imita Serena em um jogo não oficial.

Tennis-Brazil-Wosniak-Exibition. 7 de dezembro de 2012. AFP/Getty Images Extraído de Rankine, Claudia. Cidadã: uma lírica americana. p. 49.
Tennis-Brazil-Wosniak-Exibition. 7 de dezembro de 2012. AFP/Getty Images
Extraído de Rankine, Claudia. Cidadã: uma lírica americana. p. 49.

A imagem e a atitude podem ser interpretadas de diversas maneiras, afirma Rankine, mas, nas suas palavras, Wozniack “finalmente deu às pessoas o que elas queriam o tempo todo, ao incorporar os atributos de Serena, e ao mesmo tempo deixar para trás sua ‘aparência de negona raivosa’” (Rankine, 2020, p. 47-48).

Cidadã nos convida a uma leitura, a uma contra-assinatura (Derrida), a uma cumplicidade, se quisermos, difícil de suportar. Por um lado, uma empatia visceral com o corpo negro, a possibilidade mesma de assumir-se negra, corpo negro, Serena Williams, ou a espectadora que a narradora encarna. Por outro lado, uma distância e uma impotência. O reconhecimento do racismo em nós cada uma das vezes em que Serena nos pareceu exagerar. E o reconhecimento de que o conhecimento talvez seja inócuo.

Rankine (2020, p. 32) diz que “nenhuma visibilidade vai alterar as formas como o indivíduo é percebido” e, de repente, para nós, os gritos de Serena Williams em uma das suas controvérsias, já depois de Cidadã, gritos de “não sou ladra, nunca fui”, ou, em inglês, never cheated in my life, fazem ainda mais sentido e esse sentido é terrível. Não pode mais ser uma piada, então, a resposta do jornalista de que ela se parecia uma gangster depois de ter celebrado sua vitória dançando passos de rap na quadra. Era uma piada. Com certeza Serena riu – e eu, de fato, vi inúmeras aparições do comentarista britânico Piers Morgan com Serena em uma relação muito amistosa. Era uma piada, mas era ambígua. A performance do corpo branco.

A ambiguidade do corpo de Wozniack, como coloca Rankine, “real e irreal”, a ambiguidade da sua atitude: homenagem? Só uma piada? Um corpo branco “irreal”, feito com toalhas, imitando um corpo negro; uma brincadeira ambígua. “Há muitos modos de ler a atitude da tenista dinamarquesa”, lembra Rankine. E o resultado é a estranha construção, sintática e referencial, que, segundo Rankine, expressa o desejo branco: “a imagem sorridente da loura e boazinha Wozniack posando como a melhor jogadora de tênis de todos os tempos” (Rankine, 2020, p. 48). Na ambiguidade da brincadeira o que também pode ser lido é a vontade de brancos de que a melhor tenista de todos os tempos não fosse a negra Serena Williams, mas uma branca, “loura e boazinha”.

*
O outro aspecto que chama nossa atenção no livro de Rankine e que nos remete à chance de pensar uma ética (da literatura) é sua escolha insistente por um “contar prosaico”, recontar uma série de episódios cotidianos narrados a uma interlocutora imediatamente recrutada à escuta. Essa característica não está presente somente na parte II, dedicada a Serena Williams, mas está espalhada pelo livro. A estratégia é e não é comum. Tampouco é facilmente determinável. Uma mulher, negra, conta a uma outra mulher, possivelmente negra – talvez a amiga, enunciada em tantos fragmentos –, algo que a aflige, um episódio mais ou menos recente da sua vida, do qual às vezes a outra mulher participa, inclusive. Enquanto conta, a narradora, claro, constrói certa cumplicidade com a interlocutora. Esta assume o lugar da narradora, é atravessada por suas histórias de modo a sofrer ela mesma o racismo narrado ostensivamente. A interlocutora, então, não só “escuta”, não só lê, ela é, imediatamente, lançada no mundo negro e feminino da narradora. Torna-se, ela mesma, ora sujeito ora objeto do livro.

Depois que aconteceu eu perdi as palavras. Não foi você quem disse isso? Você não disse isso para uma amiga íntima que no início da sua amizade, quando distraída, teria chamado você pelo nome da empregada negra dela? Você concluiu que vocês eram as duas únicas pessoas negras na vida dela. Eventualmente ela parou de fazer isso, ainda que ela nunca tenha reconhecido o lapso (Rankine, 2020, p. 15).

Em outros momentos, “você” é o outro, racista, às vezes homem. Mas não por todo o tempo – não por todo o tempo de um mesmo fragmento:

…ele diz a você que o reitor dele está fazendo ele contratar uma pessoa de cor quando existem tantos grandes escritores por aí. […] Por que você se sente à vontade em me dizer uma coisa dessas? […] Como sempre, você dirige direto passando pelo momento com a expectativa de que retirem o que foi dito anteriormente (Rankine, 2020, p. 18).

As modalidades que “você” assume, as diferentes posições que incorporam, dão conta dessa variação contínua da força de existir, que Deleuze explicava em Spinoza. Somos afetadas e o afeto é vida. Se ler Cidadã inclui uma relação ativa, uma escolha, a eleição deste e não de outro encontro, estamos vivendo plenamente os afetos ativos, aumentando nossa potência de existir. De novo, somos, de certa forma, gratas ao livro de Rankine, à força deste encontro que escolhemos e à energia encerrada nos seus relatos.

Além disso, parece que Rankine também faz uso de uma técnica feminista, de um método alternativo ao solipsismo em que pode incorrer a autobiografia encerrada na enunciação do eu.

O clamor por “você” da narrativa poética de Rankine não estabiliza a leitora – “você” como uma identidade fixa –, fazendo-a experimentar posições diversas e escapar do maniqueísmo do eu versus você, ou eu versus outra. A estratégia, no entanto, não gera mistura. A cada momento, a cada fragmento, sabemos bem quem é “você” e qual é ou quem representa a sua alteridade. Se nos tornamos a narradora, este é um momento preciso, circunscrito, que será superado por uma outra posição, logo adiante. É neste sentido que podemos aproximar Rankine daquela prática narrativa que a filósofa feminista Adriana Cavarero (2011) chama de “ética altruísta da relação”. “Por mais que você seja parecida e consoante, a sua história não é jamais a minha” (Cavarero, 2011, p. 120)[3], afirma. E, ainda, o reconhecimento da outra

não tem uma forma que possa se definir dialética, ou seja, não supera e nem salva o finito no movimento circular de uma síntese mais alta.[4] O outro necessário é, de fato, aqui um finito que permanece irremediavelmente um outro em toda a impermutabilidade, frágil e não passível de julgamento, do seu existir.

[…]

No horizonte do si narrável, o pronome da biografia não é, de fato, o ele/ela mas o você. Aquele que nos relata a nossa história fala a língua do você. Na cena narrativa compartilhada, o destinatário do relato e sua presença vencem sobre o papel clássico, no texto, do protagonista ausente (Cavarero, 2011, p. 120).

A exposição que alcança aquela que participa do relato, relatando-se ou relatando uma outra, necessariamente a insere em uma relação. Não há um “quem” que antecede a relação e que seria anterior ao relato e à exposição. Por outro lado, o que há é um estatuto ontológico do quem que, por ser exposto, relacional e altruístico, se volta inteiramente à exterioridade (Cavarero). Ao invés da repetição do mesmo, de uma identidade que gostaria de vincular-se a uma autoridade promovida pela enunciação do “eu” e da sua suposta interioridade, o relato que obedece à ética altruísta da relação é exterioridade, depende do contexto e da outra para existir.

O que se vê em Cidadã é, ainda de acordo com Cavarero (2011, p. 114), “uma identidade que é, do começo ao fim, enredada em outras vidas – com exposições recíprocas e inúmeros olhares – e necessitada do relato da outra”. É desta forma que Rankine, como nas observações de Cavarero, desloca um humanismo moderno centrado no homem que não corresponde a um “quem” mas a um “o quê”: o que é homem? E não: quem é o homem?

A pergunta tipicamente feminista, profundamente contextualizada e relacional – “quem é?” –, desestabiliza a velha certeza individualista na qual o outro é, mais ou menos parecido ao mesmo, um ente com o qual se estabelecem regras de convivência (Cavarero), um ente, afinal, anteriormente definido que em nada interfere ou é influenciado pelo mesmo. A resposta à pergunta feminista, então, é estruturalmente instável, dependente da relação a partir da qual alguém é.

A cidadã americana que emerge das páginas escritas por Rankine, a identidade que surge, justamente, da sua lírica, do seu estranho poema lírico [i.e., tradicionalmente, expressão da subjetividade do poeta], clama incessantemente por você, como uma verdadeira condição de existência. Condição altruística na qual nos encontramos, individualmente provocados. É esta ética, acredito, que além de nos fazer deparar com um outro modelo de escrita biográfica, nos permite experimentar posições/identidades diversas, todas necessárias. Através de cada uma – não de todas ao mesmo tempo –, sofremos o racismo, sabendo, no entanto, que esta não é jamais a experiência da poeta. Proximidade e distância. Experiência individual, não individualista. Na convocação da outra, no encontro com Rankine e sua cidadã, me torno alguém diferente do que acreditava ser. E isso não é necessariamente mais confortável: posso ser racializada e racista; vítima, algoz e observadora. Me divirto e me incomodo. Quem sou? Sou aquela que surge da relação; também eu relatada por Claudia Rankine.


* Carolina Correia dos Santos é professora de Teoria da Literatura da UERJ.

 

Referências

CAVARERO, Adriana. Tu che mi guardi, tu che mi racconti. Filosofia della narrazione. Milano: Feltrinelli, 2011.

DELEUZE, Gilles. Cosa può un corpo? Lezioni su Spinoza. Trad. Aldo Pardi. Verona: ombre corte, 2010.

DELEUZE, Gilles. “A literatura e a vida”. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34. p. 11-17, 2011.

DERRIDA, Jacques, ATTRIDGE, Derek. “This Strange Institution Called Literature: an Interview with Jacques Derrida”. Derek Atteridge (ed.), Acts of Literature. New York, London: Routledge, 33-75, 1992.

DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Trad. Marileide Dias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014 [1992].

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

RANKINE, Claudia. Cidadã: uma lírica americana. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Edições Jabuticaba, 2020.

 

Notas

[1] Todas as citações de Deleuze, retiradas do livro em italiano, foram traduzidas por mim.

[2] Faço referência à problematização de Derrida da literatura, exemplificada na entrevista a Derek Attridge, publicada como “This Strange Institution Called Literature”.

[3] Todas as citações de Cavarero são traduzidas do original em italiano por mim.

[4] Impossível não lembrar da evocação que Fanon (2020) faz da dialética hegeliana do senhor e do escravo. Também para Fanon, na relação do branco (senhor) com o negro da colônia (escravo) não há síntese. É trabalho que o senhor quer e não o reconhecimento de quem é o escravo.

dossiê
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CONTOS, CANTOS E DESENCANTOS SOBRE A MATERNIDADE EM ROMANCISTAS DO BRASIL E DA AFRICA

1. Apresentação

Este artigo decola de outro (Leal e Castro, 2018), contudo se expande para mais debate sobre os temas gênero, patriarcado e maternidade, em especial na literatura brasileira e africana, referindo-se a outras romancistas, além das consideradas no primeiro artigo nosso sobre o tema. Como o anterior, é modelado por quatro mãos, na intersecção entre psicanálise, literatura e história (Leal) e estudos culturais, feminismo, em especial de corte decolonial e sociologia (Castro); navega por perspectiva interdisciplinar, tecida em diálogos gostosos, pelo comum interesse na construção sociopsicológica da maternidade como saber/poder. Conhecimento e prática que entrelaçam ordem patriarcal e maternagem como afeto, cuidados e dádiva como expectativa de trocas.

Vasculhando a palavra mais apropriada para iniciar um artigo sobre literatura e feminino, ocorreu-nos falar da maternidade. Como a literatura escreve a maternidade e a mãe? O que escutamos nessas narrativas? O que escutamos é uma espécie de voz que nunca foi ouvida. Um não lugar, carregado de ruídos que tiveram que permanecer sempre inaudíveis. Um grão de voz que arranha os ouvidos. Um ritmo sem precisão, sem previsão. O grito sufocado. A solidão. Um oco. Um eco que clama, que rompe a barreira do silêncio ao qual foi condenado.

O que de fato encontramos nessas narrativas escapa àquilo que foi construído ao longo da história da mulher e da mãe. Não se trata nem da santa-mãe do período colonial, muito menos da maternidade regida pelo discurso maternalista dos manuais de puericultura que parecem ter definido o ideal de maternidade da década de 1920. Encontramos corpos cansados, o corpo de quem passou pela maternidade, como mãe, como filha, como mulher. Encontramos o atravessamento dessa experiência, do ser mãe, do que ela deixa de rastros invisíveis, os restos, tudo aquilo que as sociedades que funcionam a partir da diferença de gêneros, de sexo e de classe não querem ver sobre a realidade do ser mãe e do ser mulher.

O cenário da maternidade na literatura nos coloca diante de uma realidade bem diferente daqueles discursos que ao longo da história transitam entre a concepção naturalizante que tende a endeusar a mulher que, sob a auréola da mãe ideal, conduz sua maternidade e o contexto de enquadramento e normatização que esse ideal propõe à conduta feminina. A crítica feminista, por outro lado, tende tanto a narrativas em que a maternidade é codificada como uma estratégia patriarcal de limitação da mulher ao privado, culpas e frustações quanto a um poder feminino que há que resgatar.

De fato, uma perspectiva que se proponha como único modelo possível de mãe e maternidade representa não apenas o enquadramento das relações humanas (no caso, a relação mãe e filhos) num molde predeterminado, de influência patriarcal, mas principalmente representa a negação da ancestralidade e da história de cada povo e de cada mulher.

Ainda hoje, a mulher que se aventura a ser mãe encontra nesse percurso referências e expectativas que, se não inviabilizam, ao menos dificultam a experiência pessoal de maternidade. É o que testemunha com frequência a clínica psicanalítica. Encontramos no contexto clínico o eco dissonante de vozes raramente ouvidas para além dos limites da privacidade do consultório do psicanalista. São vozes que ressoam e entoam experiências de conflitos, angústia e mesmo de sofrimento, relacionadas à tarefa de ser mãe, que muito escapam aos ideais maternos socialmente valorizados. Presas no espaço privado, que se assemelha ao confessionário – e, portanto, recheado de culpas e autorrecriminações –, essas histórias permanecem secretas e, portanto, como que inexistentes, mantendo-nos abrigados da difícil realidade que presente no mundo materno.

Essa história é antiga, tem suas raízes no Brasil de 1500. Raízes antigas que, no entanto, foram sendo realimentadas ao longo da história e que hoje adquirem versão ainda mais opressora, visto que as mudanças do mundo moderno e as conquistas das mulheres, sobretudo na esfera pública, se tornaram, em muitos aspectos, difícil, senão incompatíveis, com o modelo ideal de mãe. Além disso, para muitas mulheres, como as na pobreza, o público e o privado se interpenetram quanto a cargas de trabalho como cuidadoras e provedoras.

São muitos os saberes que colaboraram para o reforço da idealização da mãe, como a influência das teorias freudianas sobre a feminilidade. A premissa freudiana de que o bebê corresponde ao “objetivo do mais intenso desejo feminino” (Freud, 1933, p. 128) acaba por favorecer uma concepção da mulher e da mãe como personagens equivalentes e ao mesmo tempo a maternidade como algo natural do feminino, sobretudo quando lida e entendida unicamente a partir das ideologias de seu tempo. Mas não estamos mais no século XIX. E pensar a mulher dos séculos XX e XXI com a lente dos séculos anteriores é enveredar por uma espécie de atrofiamento, ou mesmo de involução, como bem destacou Badinter (2011, p. 9) ao se referir a acontecimentos que influenciaram a vida da mulher em fins do século XX e início do século XXI:

1980-2010: quase sem que percebêssemos, aconteceu uma revolução em nossa concepção da maternidade. Nenhum debate, nenhum estardalhaço acompanharam essa revolução, ou melhor, essa involução. Contudo, seu objetivo é considerável, já que se trata, nem mais nem menos, de recolocar a maternidade no cerne do destino feminino.

Não se trata, portanto, de identificar o desejo feminino – enigma perseguido, e não solucionado, por Freud –, mas de desconstruir a ideia de que a maternidade é o fim natural de toda mulher. A maternidade não esgota o ser feminino, assim como ela não terá a mesma importância para todas as mulheres. Há que olhar e escutar o que elas, as mulheres e as mães, têm a dizer para além daquilo que se quer ouvir. Há que possibilitar uma outra escuta. Uma escuta que, no lugar do enquadramento, permita a revelação, a desconstrução dos padrões preconcebidos. Mas uma escuta que ultrapasse os limites do privado, da confissão, do segredo.

Se as mazelas da maternidade não encontram espaço de manifestação nas sociedades contemporâneas, pois para que isso ocorresse seria necessário um rompimento com o ideal da mãe tão amplamente divulgado e sacralizado, essas mazelas, dificuldades, sofrimentos e adversidades, no entanto, encontram outros espaços, que não se restringem ao privado de um consultório psiquiátrico e psicanalítico, mas ganham as páginas, as escritas, os cartuchos das impressoras, ao transformarem-se em contos, poesias, romances de mulheres que não se calaram. Nessas páginas, encontramos histórias de personagens que representam as Marias, Paulas, Joanas que não tiveram a possibilidade de contarem suas próprias experiências de maternidade. É nesse contexto, da literatura, que as vozes de mulheres podem ganhar uma escuta reveladora, sem o estigma da loucura, da insanidade, do crime. Fictícias, suas personagens dão lugar a fala de mulheres reais, de sujeitos femininos.

Essas vozes, que ressoam íntimos de intensas vivências adversas àquilo que se crê como norma, encontram expressão pública e acessível na literatura, sobretudo na letra de escritoras femininas contemporâneas. Trata-se de escritas que desconstroem a concepção costumeira da maternidade, possibilitando a reconstrução de outras formas de perceber e abordar a mãe e o materno e, consequentemente, a mulher, ou que indicam materialidades, tradições e ética de responsabilidade que de fato colaboram para entender melhor a participação da mulher em performances da maternidade dádiva, ou seja, a que entrelaça ambíguas representações sobre sacrifício e gratificações.

Abordamos neste artigo a maternidade a partir de representações de autoras negras, no Brasil e na África, dando chão a vivências e histórias. O terreno que apresentamos como pleno de poderoso debate se refere à geografia que se concentra entre os trópicos – África e Brasil. Como autoras com tais chãos, e suas histórias, abordam a mulher, a mãe e a maternidade? O que a personagem, mãe, como abordada na narrativa dessas autoras, nos indica sobre a história e a ancestralidades de seus povos?

Não se pretendem comparações, nem busca de comunalidades, escrita de mulher. De comum serem mulheres negras que se referem a elas, ou a outras, em cenários de colonialismo, pós-colonialismo, tempos de barbárie capitalista, histórias de vida por vulnerabilizações e violências várias. Algumas privilegiam mais o plano das relações sociais de gênero sexualizadas, outras a díade mãe e filhos, ou o sentido comunitário da mãe, indicando que não há lugar para concepções essencialistas, como a divisão entre o público e o privado, entre matriarcado e patriarcado, entre prazer e doação, gratificação e sacrifício. De comum a referência a mulheres situadas e sitiadas, que estão na produção de vida, são mães, em tempos de produção da morte, que se metamorfoseiam por sentidos culturais étnicos que englobam histórias de opressão e de resistências, mas que se estruturam territorializados em processos sociais tanto molares como moleculares.

A seguir, primeiro referências ao caso Brasil, em que se destaca como a maternidade é modelada em duas escritoras negras, voltadas para a intersecção classe, raça e gênero e, sobretudo, origem, ancestralidade, em percepções sobre maternidade, a saber: Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo, análises essas precedidas de breves referências a cenário histórico como apresentado por Mary Del Priori (2008) e Maria Martha de Luna Freire (2007).

Em um segundo capítulo, acessamos tanto a escritora ruandense Scholastique Mukasonga (2017), ilustrando sentidos étnico-históricos da maternidade em vivência de desterro e vésperas do terrível massacre de 1994, e o aclamado trabalho de Buchi Emecheta (1979/2017) em que mais se delineiam os paradoxos da maternidade para as mulheres, fonte de sofrimentos, culpas, frustrações e alegrias, e a vingança de uma mãe que se considera traída em suas expectativas. Precedem essa apresentação reflexões de autoras africanas críticas a categorias feministas ocidentais que tenderiam a generalizações e que essas autoras não consideram pertinentes à compreensão de vidas e imaginários de mulheres diversas e de tradições singulares, como Ifi Amadiume e Oyèrónké Oyèwùmí (Castro, 2021).

Como se trata de um trabalho escrito a quatro mãos, cada seção traz em si uma identidade particular, tanto na forma escrita quando no viés sobre o qual se constroem suas reflexões. É um testemunho de que o feminino não pode ser definido exclusivamente por uma perspectiva, ao mesmo tempo que se revela em subjetividades múltiplas – cada mulher é única, e consequentemente, cada mãe e cada maternidade que decola de materialidades inclusive simbólicas na economia política e cultura de cada tempo.

2. Brasil, reflexões sobre maternidade

2.1 Desconstruindo mitos: o pano de fundo da maternidade no Brasil

Há um pano de fundo, um cenário inaugural, sobre o qual se ergueu aquilo que se transformou no modelo eurocêntrico e normatizador da maternidade e da mãe. Longe de ser um cenário de calmarias e mesmice, o território feminino do período colonial do Brasil mostrou-se repleto de conflitos, ambivalências, diferenças e complementaridades.

Através dos arquivos, documentos históricos e fontes impressas, Mary Del Priori (2009) vai descortinando a realidade da origem da concepção da mulher e da mãe no Brasil. O ideal da santa mãe, criado pela Igreja com o objetivo de organizar o processo de povoamento da nova terra, se encontrava subjugado ao projeto tridentino, criado para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica.

Para execução e êxito desse projeto, a Igreja entendia que era necessário adestrar a mulher. Recorreu a algumas armas para concretização de seu projeto. Dentre elas, explorou a relação de poder já implícita no escravagismo para estendê-la às relações entre marido e mulher. Desta forma, cabia à mulher ser uma escrava doméstica, cuja obrigação se definia em cuidar da casa, cozinhar, servir ao chefe de família com o seu sexo, dar-lhe filhos, assegurando sua descendência e servindo como modelo para a própria família (Priori, 2009).

O importante era fazer da mãe um exemplo, e da maternidade uma tarefa árdua que elevasse a mulher branca ao sagrado a partir do seu papel materno. O sacramento do matrimônio dava-lhe garantias institucionais para proteger o casamento e a ordenação tanto da reprodução quanto dos nascimentos, ao mesmo tempo que fazia de cada mulher uma potencial santa mãe que poderia, ao se dedicar aos filhos e às tarefas domésticas, assegurar a transmissão desses princípios à sua descendência. “A fabricação da ‘santa’ foi resultado da percepção que tiveram a Igreja e o Estado modernos da influência salutar ou perniciosa da mulher na família e na sociedade” (Priori, 2009, p. 107). O papel da mãe jamais poderia ser negligenciado.

Apesar do empenho da Igreja, na prática, as coisas corriam à sua revelia. As famílias nas Colônias se encontravam marcadas pelos “fluxos e refluxos humanos, sobretudo masculino” (Priori, 2009, p. 40). Essa mobilidade masculina, decorrente dos vários momentos econômicos da colonização, acabavam por favorecer um tipo de família que se caracterizava pela ausência de maridos e pais. “Conhecem-se também algumas de suas características: muitos maridos ausentes, companheiros ambulantes, mulheres chefiando seus lares e crianças circulando entre outras casas e sendo criadas por comadres, vizinhas e familiares” (Priori, 2009, p. 42).

Esse cenário demonstrava que, apesar do esforço da Igreja, que queria implantar as regras do matrimônio como forma de garantir o projeto tridentino, grande parte das mulheres, principalmente as “pobres e empobrecidas”, vivia, na verdade, em corriqueiras uniões consensuais. O casamento se encontrava, na prática, reservado às “uniões de elite, em grande parte contraídas no interesse de manter patrimônios, reforçar esferas de influência ou pela necessidade de garantir às filhas a proteção que pais desvalidos não podiam assegurar” (Priori, 2009, p. 43).

Eram frequentes as mulheres que sofriam com a partida do companheiro, que viajava em busca do sustento, seguindo o fluxo da economia do Novo Mundo. Consequentemente, o que prevalecia, sobretudo entre as classes subalternas, casadas ou não, eram as mulheres chefes de família.

As famílias, majoritariamente monoparentais e matriarcais – ainda que condicionadas pelo sistema patriarcal –, se erguiam em torno da mãe e sua prole, que contavam com a solidariedade de outras mulheres (vizinhas, parentes…) que viviam como ela. Assim, “mães e filhos solidarizavam-se numa cadeia de rentabilidade doméstica voltada para a produção de gêneros comestíveis e para o comércio de retalhos” (Priori, 2009, p. 57). Ser mãe representava a possibilidade de enfrentar as limitações impostas às mulheres pela Metrópole, e principalmente pela Igreja. Desta forma, a maternidade no período colonial acabava por se tornar um forte campo de poder informal da mulher (Figura 1).

Figura 1: Desenho de Carybé (Fonte: Fundação Pierre Verger: Carybé e Verger: Gente da Bahia. Salvador: Solisluna Design Editora, 2008). “São aguadeiros, lavadeiras com trouxas, homens e mulheres com balaios e tabuleiros, flores, cestos, latas d’água, tijolos, frutas, animais, moringas, madeira, caixas e caixotes, barris, até caixões de defunto. Aqui, tudo nessa vida se carrega na cabeça” (p. 126).
Figura 1: Desenho de Carybé (Fonte: Fundação Pierre Verger: Carybé e Verger: Gente da Bahia. Salvador: Solisluna Design Editora, 2008).
“São aguadeiros, lavadeiras com trouxas, homens e mulheres com balaios e tabuleiros, flores, cestos, latas d’água, tijolos, frutas, animais, moringas, madeira, caixas e caixotes, barris, até caixões de defunto. Aqui, tudo nessa vida se carrega na cabeça” (p. 126).

Mas, além disso, a maternidade permitia à mulher exercer, dentro do lar, um poder e uma autoridade que raramente dispunha em outros campos da vida social. Assim, identificada com o papel de mãe, que lhe era culturalmente atribuído, a mulher valorizava-se socialmente por uma prática doméstica quando era excluída de qualquer atividade na esfera pública.

No Brasil Colônia, a realização do poder feminino residia, portanto, apenas e exclusivamente, na maternidade. Apegar-se e dedicar-se aos filhos e à maternidade não era apenas um desejo, mas uma necessidade. Ainda que a história da maternidade no Brasil Colônia traga também seus testemunhos de conflitos, violência, abortos e abandono materno, o que prevalece é a aderência da mulher a esse modelo sacralizado da mãe. Lugar de refúgio, conforto e poder, assim podemos definir o que foi a maternidade no Brasil do período colonial.

Essa antiga origem alcançou um novo impulso no mundo ocidental após a Primeira Guerra Mundial, refletindo de formas diferentes em cada sociedade. E, para complexificar ainda mais a situação da mulher, além das justificativas demográficas, sanitárias ou patrióticas, “o maternalismo associou-se, na década de 1920, à valorização social da ciência, a qual lhe conferiu novo caráter” (Freire, 2008, p. 154).

Se, no período colonial, o ideal da santa mãe – criado pela Igreja, com o objetivo de organizar o processo de povoamento da nova terra – encontrava-se subjugado ao projeto tridentino, criado para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica, na década de vinte foi o projeto modernizador republicano – que depositava na conservação das crianças, entre outros elementos, a esperança de viabilidade da nação – que desenhou o novo panorama materno.

Os esforços eram outros na década de vinte. Objetivava-se a eliminação de elementos do passado que representassem “atraso”, pois o projeto republicano visava à ordem e ao progresso, e com isso a uma verdadeira transformação cultural, que implicava “a adoção de comportamentos e atitudes adequados aos ‘novos tempos’” (Freire, 2008, p. 154).

Se antes a mulher se encontrava a serviço do marido e dos filhos, ou seja, da cena doméstica, na década de vinte ela é convocada a permanecer na cena doméstica, porém, não apenas como mãe, esposa e dona de casa, mas como a responsável principal na educação dos filhos de acordo com os propósitos da nação. E para isso era necessário se preparar. Suas armas, no entanto, seriam outras. Colher, panela, mamadeira/seio, colo, continuariam ferramentas fundamentais na sua lide diária, mas além disso, a mãe da década de 1920 carecia de um saber.

De santa, a mãe torna-se um ser social de suma importância. A maternidade adquire um valor social. Agora, todavia, sua principal fonte inspiradora era a França, como destaca Freire (Freire, 2008, p. 156): “o discurso maternalista brasileiro mostrava-se claramente inspirado no modelo francês de sociabilidade e civilização, ainda hegemônico nas primeiras décadas do século XX”. E entre os costumes importados da França, encontraremos o costume de ler revistas femininas. “Veículo privilegiado para a expressão de opinião dos diversos grupos sociais, a revista assumiria o duplo caráter de entretenimento e doutrinação, transformando-se no suporte ideal para a atividade política mais ampla, a difusão de ideários e propostas de mudanças de comportamento” (Freire, 2008, p. 157).

Seduzidas pela ideia de modernidade, as revistas femininas viraram febre. Se, por um lado, elas podiam ser um signo da mulher moderna, por outro elas acabavam contribuindo para a conformação das mulheres às transformações que a sociedade sugeria.

Exclamações e metáforas exaltavam, nas páginas dos periódicos, aquela que era considerada a missão primordial da mulher, como revelava o título da longa matéria ilustrada de Vida Doméstica de 1928: “A glória incomparável de ser mãe!”. Articulistas, médicos, educadores, feministas, juristas e políticos, todos concordavam quanto à relevância da maternidade como o principal papel social das mulheres e, ao mesmo tempo, sua própria essência, devendo, portanto, ser amparada e protegida (Freire, 2008, p. 157).

Assim, a década de vinte imprime na maternidade e no ser mãe uma missão divina e um dever social. Porém, para isso, era preciso se munir das novas ferramentas necessárias ao cumprimento da missão. Os médicos defendiam a existência do instinto maternal, contudo, “consideravam-no insuficiente para o desempenho da maternidade conforme os novos padrões exigidos pela modernidade. Devia, portanto, ser aprimorado pela educação” (Freire, 2008, p. 161). Era indispensável que as mulheres se preparassem intelectualmente para essa tarefa, e quem oferecia o caminho era a ciência, na figura dos médicos higienistas, puericultores, especialistas na promoção da saúde das crianças. Dessa forma, esses mestres acabavam por contribuir para a redefinição do papel feminino que comportava o novo papel social da mulher: a mãe moderna.

Vemos então, a partir da segunda metade da década de 1920, as revistas femininas serem invadidas por artigos que privilegiam esse modelo de mãe moderna, aquela que se dedica a compreender aquilo que é importante na educação dos filhos de acordo com os médicos e cientistas da puerperalidade. Mais do que propagar informações técnicas sobre a fisiologia infantil – que implicavam consequentemente mudanças nas atitudes e nos comportamentos da mãe com o filho –, esses artigos tinham outro propósito, o de disseminar o ideário da maternidade científica, como indica Freire (2008, p. 161):

O discurso das revistas dirigia-se diretamente às mulheres, confirmando que a elas competia tal função. Munidas do arsenal científico da puericultura, com base na supremacia da razão sobre a emoção, e rompendo com “antigos” dogmas religiosos ou crenças tradicionais, elas estariam supostamente aptas a desenvolver sua “nobre missão”. Usar e fazer ciência: este seria o novo papel social da mãe moderna. A ideologia da maternidade científica aproximava as mulheres do universo “masculino”, racional, da ciência, deslocando a maternidade da esfera estritamente doméstica e lhe conferindo novo status.

Esse novo status contribuiu para a adesão cada vez maior das mulheres à nova maternidade, a mãe científica. E o que inicialmente se configurava como uma atenção voltada ao corpo infantil – preocupação com os cuidados de puericultura e a alimentação adequada – passou também para a mente da criança. Cabia à mãe estar preparada para atuar, com bases nas orientações científicas, diante das peculiaridades da mente infantil.

Esse panorama pode ser lido a partir de um viés que coloca a mulher como refém de modelos construídos pelo mundo masculino, pelo patriarcado, o que nos daria uma interessante reflexão para o debate pretendido, mas optamos por destacar um outro aspecto que não pode ser negligenciado.

Com frequência nos deparamos com abordagens sobre a mulher ao longo da história que a colocam em um lugar de fragilidade. Sempre, de alguma forma, interpretada como o sexo frágil, mas tendo, ao mesmo tempo, destacada sua dimensão desmedida e, portanto, temida, a mulher se encontra na literatura como aquela que possui uma natureza que demanda vários tipos de repressão. Para além desse olhar construído em torno dela, o que de fato salta aos olhos mais cuidados não é a fraqueza, mas a capacidade de se reinventar diante daquilo que lhe é imposto. E não precisamos ir muito longe para identificar isso. A análise que nos propõe Freire sobre a maternidade científica da década de 1920 nos coloca frente a frente com essa dimensão da mulher. Pois foi por causa da mãe, de certa forma, que foi possível à sociedade brasileira materializar as transformações sociais e políticas almejadas, alcançando aquilo que perseguiam, o projeto republicano.

Se, por um lado, o maternalismo – base de sustentação do modelo de mãe na década de vinte – aprisionou as mulheres em sua dimensão biológica, por outro, impulsionou o aumento do poder da mulher na sociedade. Ainda que restrita e exercida no ambiente doméstico, a maternidade científica, valorizada socialmente, ultrapassou os limites da casa e da família, permitindo a permeabilidade das fronteiras entre o público e o privado.

A imagem de fragilidade e incapacidade que às vezes vemos associada ao feminino logo se dissipa no olhar mais atento que dedicamos à sua história, sobretudo a seu papel de mãe. Parece, inclusive, que, historicamente, foi a maternidade quem impulsionou a mulher para além dos limites identificados à natureza feminina. E ainda hoje, não estando mais aprisionada à esfera privada, a maternidade permanece um importante veículo de revanche contra uma sociedade androcêntrica e contra a desigualdade nas relações entre os sexos, mas também um instrumento de enfrentamento das adversidades de uma vida pobre ou empobrecida.

2.2 Cantos e desencantos sobre a maternidade na escrita de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves

Considerando esse contexto do período colonial e da década de 1920 no Brasil, é possível identificar o quanto a mãe e a maternidade foram importantes para o processo civilizatório e colonizador do Novo Mundo, bem como para a realização do projeto republicano. Ao debruçar-nos sobre a análise realizada por Mary Del Priori (2009) e por Maria Martha de Luna Freire (2008), nós nos perguntamos o que seria do Brasil e da sociedade brasileira se não fossem a mulher e sua maternidade.

A mãe como detentora do poder sobre a casa e os filhos, o que se perpetua até os dias atuais em uma enorme parcela dos lares brasileiros, é algo que pode soar a princípio assustador, até mesmo como uma responsabilidade que a mulher não deveria carregar sozinha, mas que tem sido um dado de realidade que evitamos, muitas vezes, enxergar, pois furta-se de reconhecer os motivos que a sustenta.

Pois a exclusividade (ou quase exclusividade, dependendo do contexto) dos cuidados dedicados aos filhos, longe de corresponder à realização do maior desejo da mulher – que, com a ajuda da psicanálise freudiana, quiseram propor como resposta ao mistério feminino e, ainda mais distante, como conformidade à equivalência entre mãe e natureza que os discursos masculinos quiseram impor –, contribui para a divisão de trabalho por gênero e, consequentemente, o evitamento de uma possível feminização das sociedades, tão frontalmente temida pelos homens que sempre estiveram no poder.

Na história da psicanálise se reconhece a histeria como sendo, de certa maneira, esse grito retesado das mulheres, como bem destaca Roudinesco (2016, p. 60): “a histeria tornara-se em toda a Europa a expressão de uma revolta impotente das mulheres contra o poder patriarcal assombrado pelo espectro de uma possível feminização do corpo social”.

Mas aqui as falas não são das histéricas de Freud. Aqui serão as vozes femininas que ganharam e ganham um lugar na literatura. É na escrita de mulheres (e às vezes também de não mulheres) que esse real vivido vai aparecer, numa escrita que se realiza a partir de uma experiência com o próprio corpo. Um corpo marcado por essa passagem, de um filho. Passagem que deixa uma marca, um traço, uma rasura, um resto, um risco. Nessa busca pela linguagem que dê conta de tamanho acontecimento, na procura pela palavra retida, riscada, calada, reprimida. Assim vai sendo escrita a mãe, a maternidade, a relação da mulher com essa outra dimensão que não é nem natural, nem biológica, mas um acontecimento de corpo, de linguagem, de ancestralidade, que é o ser mãe.

Arriscamos, então, neste artigo, o encontro com essa realidade a partir de algumas escritoras mulheres, brasileiras e africanas. Uma realidade que não é a da alegria e da realização plena diante do filho, mas da ambivalência e da aventura a que a experiência de maternidade convoca a mulher. Adentremos a saga de Kehinde em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (2020), e as escrevivências de Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo (2016), que nos servem de testemunho poético e real.

Nessas histórias, as mulheres encontram na maternidade o suspiro necessário para enfrentar os infortúnios de cada dia, de uma vida de dificuldades e solidão, em que o homem é coisa rara e, quando presente, na maioria dos relatos, é fonte de violência, opressão e exploração. Mas, para além disso, nos deparamos também com a mulher sujeito, aquela que não se define ou não se limita pela sua função materna. São sujeitos complexos, que comportam desejos que extrapolam o ideal da mãe.

Em Um defeito de cor, desde o início da travessia da personagem principal, mulher africana trazida ao Brasil ainda criança num navio negreiro, o livro já nos coloca diante das insistentes provações e ressignificações pelas quais passa uma mulher ao longo de sua vida num mundo regido e ditado pelos homens.

Toda a narrativa é bastante peculiar, sobretudo porque é Kehinde, nossa heroína, quem escreve. Escreve uma carta, uma carta para o filho perdido, roubado, vendido como escravo mesmo depois de ter conquistado a liberdade. E por quem ele foi vendido? Pelo próprio pai. Escreve porque não sabe se ainda estará viva quando finalmente puder tê-lo novamente em seus braços depois de mais de trinta anos distantes.

Entretanto, o leitor só descobre os detalhes desse acontecimento à medida que avança na leitura. São 947 páginas. Mas a grandeza desse livro não está no número de folhas. Apesar de serem inúmeras coisas que fazem Um defeito de cor um grande livro, o que grita, ou que nos arrebata, o que nos captura é a força, a perseverança, a inteligência, a resiliência de Kehinde, mulher, negra, de origem africana, escrava.

A história de Kehinde começa na África. Mas é no Brasil que ela passa a maior parte de sua vida e onde lhe acontece a maioria dos eventos mais significativos. São tantos fatos terríveis, inúmeras situações de provação, que a força de Kehinde nos comove.

Longe do modelo feminino e materno disseminado por alguns discursos masculinos que colocam a mulher como ser frágil e, até mesmo, incapaz, veremos nessa narrativa uma mulher dona de si mesma e do próprio desejo, detentora de uma sagacidade e de uma coragem que muitos homens jamais sustentariam. Além de aprender com certa facilidade a ler e a escrever, nossa heroína mostra sua habilidade na gestão de atividades da esfera pública – campo eminentemente masculino, sobretudo no Brasil colônia –, levando-a inclusive a alcançar uma vida de conforto e posses num Brasil misógino, escravagista e colonialista.

Mas se engana quem pensa que Kehinde rompe com os padrões femininos apenas por sua aptidão para o comércio. A dedicação e o afeto dirigidos aos filhos não impede que Kehinde experimente sentimentos ambivalentes com relação à maternidade, como demonstram esses dois trechos abaixo:

Às vezes eu queria que o tempo passasse logo e eu envelhecesse, mas às vezes queria voltar a ser criança e ter uma vida igual à daquelas que corriam por ali, rindo e brincando. Eu sentia vontade de brincar também, olhava para o Banjokô sugando meu peito e achava que ele era um brinquedo sério demais com o qual eu sempre teria mais responsabilidade que diversão (Gonçalves, 2020, p. 208).

Às vezes eu me sentia culpada por estar feliz longe dos meus amigos, do Francisco e principalmente do Banjokô. Mas cada vez eu sentia mais vontade de trabalhar muito e, nas horas vagas, de ler, achando perda de tempo fazer algo além disso (Gonçalves, 2020, p. 278).

Ser mãe não anula os desejos femininos que não se encontram relacionados aos filhos. Os seres humanos, não importa o sexo, têm uma tendência à ação. Restringir a mulher unicamente às tarefas do lar não corresponde necessariamente ao que elas desejam. Como escreve Charlotte Brontë (2017, p. 153) em Jane Eyre: “é tacanho por parte desses seres mais privilegiados dizer que elas [as mulheres] devem se limitar a fazer pudins e tecer meias, a tocar piano e bordar bolsas” e, acrescento, a cuidar dos filhos. E ela continua: “É insensato condená-las, ou rir delas, quando buscam fazer ou aprender coisas novas, além do que os costumes determinam que é o ideal para o seu sexo”. Mas quem construiu esse ideal? Como ele foi forjado, com que objetivo? Já vimos com Del Priori e Freire que, à frente dos discursos que produziram esse ideal, está sempre o homem. A mulher aí é apenas uma ferramenta. O que mais choca é que ela está sempre sozinha: “… nem a minha avó nem a minha mãe tinham conseguido um homem só para elas. Em relação à minha avó, eu nunca a ouvi falar qualquer coisa sobre o pai da minha mãe; era como se ele não tivesse existido” (Gonçalves, 2020, p. 271).

Sempre só, tendo que se haver com a solidão, com as dificuldades financeiras, com a casa, com os filhos. Essa é a realidade de grande parte da população brasileira (Figura 1). “Achava necessário ter algum dinheiro guardado, principalmente porque a responsabilidade pela criação de Banjokô estava toda em minhas mãos, como também a da criança que estava esperando” (Gonçalves, 2020, p. 354). Os homens, apesar de serem os detentores do falo, tão culturalmente valorizado, representam o ponto fraco. Em vez de significar a autoridade e a potência paterna, algo que, para a psicanálise, se encontra associado ao processo de constituição dos sujeitos e, portanto, sugerindo sua vinculação à ordem e à proteção do homem, no real vivido dessas mulheres o representante fálico mais abriga formas de violência variadas e até mesmo – como no conto “Adelha Santana Limoeiro” (Evaristo, 2016) – a origem das inconsequências, da perdição e da fragilidade masculina. Imaginem se Kehinde tivesse se submetido ao ideal feminino de sua época? O que teria sido dela, de seus filhos, de sua história? A heroína de Um defeito de cor é apenas um exemplo da realidade vivida pelas mulheres, vale dizer, uma realidade que se encontra muito distante dos ideias e dos saberes construídos pelo discurso masculino em torno do feminino.

Não muito diferente é o livro de Conceição Evaristo, Insubmissas lágrimas de mulheres (2016). É difícil, à primeira vista, escolher um conto que retrate melhor essa realidade. Em sua maioria, as histórias reais inventadas, como a autora mesmo considera suas escrevivências, são contos que testemunham a força da mulher e da mãe diante das adversidades da vida. Adversidades essas que transitam entre as dificuldades comuns ao cotidiano das mulheres negras e pobres e situações de verdadeira crueldade e violência humana que mais parecem retiradas de filmes de terror. Como em Um defeito de cor, nos contos de Evaristo as fortalezas são sempre as mulheres e as mães.

Para a protagonista de “Aramides Florença”, primeiro conto do livro, ter um filho fora um desejo desde pequena. “Vivia a espera de um encontro, em que o homem certo lhe chegaria, para ser o seu companheiro e pai de seu filho” (Evaristo, 2016, p. 11). O filho, então, representava a realização resultante dessa união. Depois de uma gestação feliz e um pós-parto, a princípio, dentro das prédicas de um comercial de margarina, não demora muito a verificar que os pequenos acontecimentos vividos durante a gestação, eventos que permaneceram sem explicação – uma lâmina de barbear deixada ao acaso em cima da cama fere o ventre de Aramides; e a queimadura de um cigarro, que se encontrava entre os dedos do amado e fora “macerado e apagado” (Evaristo, 2016, p. 14) no ventre de Aramides num momento em que o marido a abraçara por trás –, não tardariam a marcá-la de forma definitiva.

Os fatos que se seguiram jamais poderiam dar a imaginar a violência a que chegariam. “Passadas as duas primeiras semanas, já deitados, o homem, olhando para o filho no berço, perguntou a Aramides, quando ela novamente seria dele, só dele” (Evaristo, 2016, p. 15). O passado de um tempo que não fora o dela, quando a mulher era propriedade do homem, na verdade, se encontra ainda bastante vivo em muitos enredos familiares, como no de Aramides. “Buscando apaziguar a insegurança do homem, ela se aconchegou a ele, que levantou rispidamente” (Evaristo, 2016, p. 16).

Cenas semelhantes voltaram a acontecer entre eles várias vezes desde então. E, um belo dia, eis que o marido, sem aviso prévio, invade a casa já se apropriando violentamente de Aramides. “Era esse o homem, que me violentava, que machucava meu corpo e a minha pessoa, no que eu tinha de mais íntimo. Esse homem estava me fazendo coisa dele, sem se importar com nada, nem com o nosso filho, que chorava no berço ao lado” (Evaristo, 2016, p. 18).

Encontramos, nesse livro, a superação da mãe e da mulher, a recomposição de vidas devastadas pela brutalidade impiedosa dos homens e da vida. A maternidade que encontramos em Insubmissas lágrimas de mulheres, longe de ser identificada como destino natural do sujeito feminino, se inscreve como parte de uma história pessoal em cenário social de múltiplas violências. Ora desejada pela mulher como realização pessoal, ou como fonte de um sonho comum do casal, como mostra o conto “Aramides Florença”, ora como um descontentamento pela sua inesperada ou não desejada realização, o que apenas ao se debruçar sobre as particularidades de cada experiência é que se pode compreender, a exemplo de “Isaltina Campo Belo” e “Saura Benevides Amarantino”, como podemos verificar a seguir.

Isaltina, vítima de uma violência brutal – fora violentada por cinco homens, entre eles um pretenso namorado que tentara fazê-la mulher mesmo diante das incontáveis recusas dela –, conta: “Depois, apareceu a gravidez, uma possibilidade, na qual nunca pensara, nem como desejo, e jamais como um risco” (Evaristo, 2016, p. 65), pois ela sempre sentira como se fosse um menino, forma que ela encontrava para definir sua identidade sexual. A gravidez, descoberta aos sete meses de gestação, tamanho era o estado de alheamento em que se encontrava, em vez de ter se transformado na cicatriz da brutalidade vivida e, portanto, em objeto de repulsa, foi o que representou o núcleo pulsante da vida adormecida de Isaltina: “Eu vivia por ela. Tudo em mim adormecido, menos o amor por minha filha” (Evaristo, 2016, p. 66). Um amor construído diante do vazio que ficara na vida de Isaltina. Na solidão vivida, Isaltina se apega à única coisa que possuía, sua filha. E dessa relação, do amor que nasceu, retira a força para seguir na vida.

“Saura Benevides Amarantino” nos conduz a um outro caminho, que não é o do amor de mãe, mas “do desprezo que ela pode oferecer” (Evaristo, 2016, p. 115). Dos três filhos que teve, Saura só acolheu dois em seu coração. Nunca conseguiu se vincular afetivamente à caçula. Os dois filhos, abraçados pelo amor materno de Saura, haviam sido frutos do amor dela pelos pais das crianças. O pai da primogênita, primeiro namorado de Saura, fugiu, com seu consentimento e ajuda, já que não queria se casar tão nova. O pai do segundo, de nome Amarantino, com quem Saura se casou e foi feliz por onze anos, “um dia repentinamente, ele adoeceu e se foi” (Evaristo, 2016, p. 119). Ausência vivida com padecimento.

A terceira gestação foi resultado de um namoro rápido com um ex-colega da juventude. Um descuido.

A terceira, a última, foi uma gravidez que se intrometeu na lembrança mais significativa que eu queria guardar. A imagem da última dança do corpo de Amarantino sobre mim, pouco antes dele adoecer. A enjeitada gravidez comprovava que outro corpo havia dançado sobre o meu, rasurando uma imagem, que, até aquele momento, me parecia tão nítida. E desde então, odiei a criança que eu guardava em mim (Evaristo, 2016, p. 121).

Saura queria a criança longe dela. A menina era a presentificação de um ato que Saura queria esquecer para sempre. A caçula fazia parte de uma história que Saura não conseguia suportar. Foi incapaz de incluí-la entre os seus.

Esses testemunhos literários são escrevivências, contos, cantos, que revelam experiências únicas de maternidade. Os filhos de uma mãe, eles fazem parte de uma história. Uma história bastante particular que em hipótese alguma pode ser catalogada dentro de um molde preestabelecido. A relação entre mãe e filhos é algo que se constitui dentro dessas histórias individuais e familiares. Há um enredo sem dúvida, mas não uma predeterminação estática e previsível. Temos, no conto de Saura, um forte exemplo. A fórmula culturalmente defendida de que a maternidade é algo natural do feminino cai por terra, evapora-se. Reforça, por outro lado, um aspecto importante da condição de mulher: são todas sujeitos. Sujeitos de desejo, com suas contradições e complexidades. As vivências maternas revelam, ao mesmo tempo, que a história importa. Pessoal, familiar ou histórica, ela importa. Ela deixa marcas. Marcas muitas vezes invisíveis mesmo aos olhares apurados.

Se na leitura de autoras brasileiras sobre a mãe e a maternidade é possível perceber a inscrição de seu passado, o que devemos aguardar das vozes que entoam histórias de resistência de mulheres e mães africanas? Escutemos algumas dessas vozes na seção que segue.

3. Maternidade em duas autoras africanas: Scholastique Mukasonga e Buchi Emecheta

Figura 2: Foto de Pierre Verger.
Figura 2: Foto de Pierre Verger.

A leitura de autoras africanas nos adverte que há que cuidar do nosso etnocentrismo, do genérico falar sobre direitos das mulheres, assim como de descuidos em relação a um alinhamento acrítico a uma epistemologia com marcas coloniais ao destacarmos a universalidade de certos conceitos, caros para perspectivas feministas, como o corpo, a sexualidade e o patriarcado ou, como adverte Oyèrónké Oyèwùmí (2005, 2015), organizadora da antologia Uma leitura de estudos africanos sobre gênero, o não questionamento sobre outras lógicas de organização do pensamento, que escapam da metodologia das aparências, da razão em relação ao que se vê, do viés biologizante. Há que imaginar a organização de um outro pensar pelo sentir, pelo simbólico, pelo mágico, que sustentam cosmopercepções na ancestralidade, ou seja, na idade histórica e transcendental, na oralidade, no saber tradição/lenda. Saberes considerados por nós feministas ocidentais como paralisantes de mudanças, mas que, em muitas ambiências, por outras vivências, em especial nas de negação da humanidade do outro, da outra, como das brutalidades coloniais e neocoloniais, assim como as da escravidão, podem alimentar a coragem para a resistência e a utopia de um outro viver.

Há que refletir também sobre como é difícil a seleção de lealdades: estar contra opressões no doméstico quando se vive em relações de macroviolências institucionais, equilibrando sobrevivências na “necropolítica” – ou em tempos de seleção de quem tem o direito à vida e à morte matada por “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte”, como sintetiza Achlle Mbembe (2018, p. 71) sobre os tempos coloniais e pós-coloniais em países da África e não só lá, haja vista a barbárie no Brasil hoje, principalmente contra jovens negros de bairros periféricos.

A violência colonial e a ocupação se apoiam no terror sagrado da verdade e da exclusividade (expulsões em massa, reassentamento de pessoas “apátridas” em campos de refugiados, estabelecimento de novas colônias). Por trás do terror do sagrado, exumação constante de ossadas desaparecidas; a permanente lembrança de um corpo rasgado em mil pedaços e irreconhecível… (Mbembe, 2018, p. 43).

É quando o patriarcado e a dominação colonial e pós-colonial, assim como o poder do pai, do marido, convivem com o matriarcado exercido no plano molecular, da casa, nas relações com os filhos, e até na ordenação da comunidade, lembrando, por exemplo, que as mulheres de diferentes etnias africanas há muito combinam o papel de cuidadoras e provedoras, como comerciantes no mercado. Um híbrido sistema patriarcado/matriarcado, com valências histórico-espaciais diferentes, se afirma em tempos pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais, mas não necessariamente com iguais valências de cada poder, pois o espaço e o tempo e a imbricação com outras relações que não as de gênero impõem hierarquias, como, repetimos, a senioridade, os laços consanguíneos e a ancestralidade – princípios amparados nos mitos das origens.

Ao discutir o matriarcado na África em Ideologias e sistemas de parentesco na África e na Europa, Ifi Amadiume (2005) indica a importância, para a memória, do conhecimento das origens, e que no caso de muitas etnias na África – como indicam estudos de casos históricos sobre os Igbos e os Ashanti, entre outros, em tempos idos – se documenta forte presença do matriarcado, principalmente se se entende matriarcado não necessariamente como antagônico, em termos de coexistência, com o poder do pai, mas como formação alimentada pela matrifocalidade, pela ênfase na matrilinearidade e principalmente modelado em uma ideologia que cultiva não necessariamente a violência de Estado, o poder bélico, o domínio, mas a evocação das deusas mães, o poder do afeto de mulheres, a ênfase nos laços mãe/filha/filho e na sororidade, a união e a cumplicidade subversiva de mulheres. Temas de forte ilustração em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga (2017), do protagonismo da mãe em buscar estratégias de proteção dos filhos e da família, diariamente, na árdua sobrevivência em campo de refugiados quando dos massacres em Ruanda, mais referido na parte que segue.

Ifi Amaudine (2005, p. 87-88) assim reflete sobre a importância de olhar mais atento sobre o que seria matriarcado em casos na história de povos na África:

Parece que o principal problema da ênfase no patriarcado e da desconsideração do poder materno na literatura ocidental é a redução da mulher a objeto a ser trocado ou apropriado […]. Se nos afastamos da questão da propriedade e das trocas nas relações de parentesco e focalizarmos o conceito africano de coletividade, usufruto e importância do acesso à terra, voltamos à importante estrutura tripartite matriarcal, ou o que chamo de relação mãe, filha e filho. Tais termos de parentesco deveriam ser vistos em um sentido de agrupamento coletivo e não no sentido individualista europeu.

[…]

Toda a tese do tabu do incesto como marca do início da civilização, seguindo o pressuposto da organização dos clãs como fundada em tal tabu, traz implícita uma perspectiva sobre o progresso da animalidade/natureza para a ordem/civilização, um fato que explicaria o ordenamento do patriarcado na troca e na apropriação. Ora, tal tese não explica o início da regulação social da sexualidade, pois nessa se assume que a unidade matricêntrica não seria em si um construto cultural – ou seja, que a mulher ou a mãe não podem fazer cultura e normas. Ela não tem uma unidade social ou base material para se constituir em um modo de produção. Contudo, de acordo com dados de estudos na África, a unidade matricêntrica é tanto uma unidade autônoma de produção como também é uma unidade ideológica.[1]

Autoras feministas africanas se posicionam contra essencialismos com referência à mulher africana e a representações de feministas do Norte. Criticam vitimismos das mulheres africanas, sublinhando ativismos; questionam reduções da história de diferentes grupos étnicos, inclusive de alguns em que idade, geração e a ancestralidade são mais definidores de hierarquias que propriamente sexo/gênero; discutem que a maternidade, mesmo que com cargas pesadas de trabalho e responsabilidade para as mulheres, em muitos momentos históricos para algumas nações (como os Igbo, da Nigéria) colaborara para a autonomia e o refúgio frente a relações patriarcais com pais e maridos e a busca de um status social, já que a mãe, em especial de filhos homens, seria considerada socialmente “uma mulher completa” (Emecheta, 2017, p. 33).

Grande parte da produção de autoras africanas, como a que figura na antologia organizada por Oyèwùmí (2005), critica a operacionalização de gênero por imposição de conceitos ocidentais, como propriedade privada, divisão sexual do trabalho, centralidade da sexualidade, e o debate sobre maternidade via referência à família nuclear e às relações entre o homem-pai e a mulher-mãe, privilegiando, portanto, conjugalidade. O interessante é que, independentemente das filiações político-teórico-ideológicas, boa parte das autoras em Oyèwùmí (2005) frisa a importância do colonialismo para a perda da força do matriarcado original e o reforço da opressão das mulheres em relações de gênero e apela, em seus escritos e debates teóricos acadêmicos, para a contribuição da literatura, em particular, de tradição oral e para detalhados estudos de casos sobre diversidade étnico-cultural e cenários históricos com ênfase no princípio da ancestralidade e de geração. Diversas autoras africanas são enfáticas em denunciar o que chamam viés eurocêntrico e imperialista dos feminismos do Norte, que trabalhariam com uma “representação estereotipada da mulher africana” (Mama, 1995, em Martins, 2017). “Descolonizar o feminismo implica, para além disto, uma análise crítica dos próprios pressupostos conceptuais e metodológicos dos feminismos ocidentais […], o desafio que Amadiume e Oyèwùmí colocam é pensar a possibilidade de uma organização social em que o sexo não seja estruturante” (Martins, 2017).

Distintos autores destacam o papel da espiritualidade “na estruturação de hierarquia e autoridade” (Oyèwùmí, 2005), o que leva Oyèwùmí a sublinhar que, “para melhor entender sistemas africanos de conhecimento, temos que estar conscientes da relevância do metafisico na constituição do poder e prestar atenção a maneiras pelas quais a espiritualidade pode orientar interpretações sobre o mundo material” (Oyèwùmí, 2005, p. 3).

A seguir, adentramos mais nos romances de Mukassonga (2017) e Emecheta (2017). O primeiro sobre uma mãe do povo, cantada pela filha por seu heroísmo, fazendo a nação, a reprodução social; o segundo, narrativa de mãe sobre desencanto com filhos, mazelas na produção da vida. Estórias tão diferentes às quais recorremos para defender a tese de que as mulheres buscam resistências em ressignificações principalmente da maternidade, complexa categoria que se traduz, insisto, em carga da mulher na reprodução social e na produção da vida, independente da etnia, combinando sacrifícios e gratificações e representações próprias. Em muitos casos, se insinua o resgate da ordem matriarcal para fazer frente ao poder do pai e à ordem colonial e pós-colonial, assim como a subversão do mito, negando o esperado de uma boa mãe.

3.1 Gênero e o lugar da maternidade em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga

Através do romance, teorias feministas africanas tomam corpo, o que não significa que não venha crescendo um acervo de textos acadêmicos, em especial de autoras na diáspora, que transitam entre universidades na África e na Europa e Estados Unidos, como Scholastique Mukasonga, Chimamanda Adichie e Bucchi Emecheta,[2] entre outras.

A seguir, ilustrações de como se infiltram gênero, sexualidade e etnicidade no romance de Scholastique Mukasonga (2017) e se afirmam pistas do matriarcado, outra forma de exercício de poder, nas relações com os filhos, na família, o que não se contrapõe necessariamente à lei do pai, em especial do Estado, mas alimenta resistências moleculares que influenciam no molar, a sobrevivência da nação.

A saga da etnia tutsi, quando milhares foram assassinados no genocídio de 1994, que aliás contou com o tardio espanto das potências ocidentais, é resgatada por Mukasonga (2017) através da história de sua mãe, Stefania, em terra de desterro forçado e vigiado, nos anos 1950. Sua mãe e suas irmãs, como milhares de outros tutsis, foram assassinados no genocídio de 1994.

Em apenas cem dias naquele ano, cerca de 800 mil pessoas foram massacradas em Ruanda por extremistas étnicos hutus. Eles vitimaram membros da comunidade minoritária tutsi, assim como seus adversários políticos, independentemente da sua origem étnica.[3] Nos anos 1950, os tutsis já estavam em área de refugiados, perto de Burundi, vigiados por milícias hutus e teoricamente protegidos por tropas francesas.

Em Bugsera, o lugar do inóspito desterro, a mãe Stefania protege seus filhos dos perigos da guerra, do terror, dos hutus e dos brancos, tenta cuidar e providenciar uma ambiência de normalidade, e ampara vizinhas, inclusive as que tentam abortar. Ainda que a maternidade fosse considerada uma das maiores bênçãos e de prestígio para as mulheres, o aborto era tentando para evitar a dor de verem os filhos assassinados.

A normalidade é tentada pelo exercício dos rituais de uma família tutsi; os ritos do casamento; o reunir as crianças para no fim da tarde contar estórias; as trocas de receitas e de remédios por plantas; o parlamento das mulheres-reunidas para fumar o cachimbo; e o cultivo do sorgo. Segundo Leonardo Tonus, que prefacia o livro: “Por meio de uma narrativa urdida a várias vozes, Scholastique Mukasonga (2017) constrói em A mulher de pés descalços uma história pungente sobre o amor materno, o gesto testemunhal e nossa implicação face ao dever de memória”.

Em respeito à escuta, seguem destaques que selecionamos do livro de Mukasonga (2017) que ilustram a centralidade da mãe para a sobrevivência da organização tanto familiar como comunitária, e o lugar do imaginário, da tradição tutsi, no período de resistência ao exílio.

A mãe ensaiava rotas de fugas e escondia alimentos em buracos, para o caso de invasões, constantes, dos soldados hutus, que violentamente pisavam os tutsis, para eles baratas. Stefania garantia clima de família e se reunia com as mulheres da comunidade para ter “os seus momentos”, quando juntas fumavam cachimbo e contavam-se estórias que as jovens e os homens não podiam ouvir. Ela constrói uma casa, o inzu, com ajuda das filhas e um filho, já que o pai estaria envolvido em coisas da igreja e da comunidade. Aliás, o pai é pouco referido no romance e, quando o é, é com respeito. Homem que lia a Bíblia, que, diferentemente da mãe, “adotava algumas das novidades trazidas pelos brancos” (Mukasonga, 2017, p. 35), como a casa que a mãe rejeitava, de tijolo e terra batida. A casa que Stefania queria seria diferente da dos brancos, desprezada por ela por “vazia de espíritos”. Era o pai quem ia ao vilarejo comprar o pão, quem fazia para o filho o pedido da noiva aos pais dessa – noiva escolhida por Stefania. O pai é mencionado como um dos “sábios” que administravam negócios da comunidade de refugiados junto aos missionários e “aos brancos”. O pai, como os irmãos, era considerado “civilizado” pela adoção de costumes dos brancos. O pai, o patriarca, cuidava de coisas do Estado, coisas de guerra. Já a matriarca, do bem-estar da comunidade.

A seguir seleção de trechos que a nosso juízo ilustram o exercício do matriarcado em Mukasonga (2017):

Parecia que, graças à casa, Stefania tinha recuperado o prestígio e os poderes que a tradição ruandesa atribui a uma mãe de família. Dobrando com cuidado um talo seco de sorgo com belos reflexos dourados, ela fez um urugori, o arco que prende a cabeleira das mulheres, símbolo da fecundidade, fonte de benção para as crianças da família (p. 37).

Stefania se tornara a guardiã do fogo, esse fogo que, no centro do inzu, nunca deveria apagar (p.39).

Sempre vi minha mãe com a enxada na mão revirando a terra, semeando, capinando e colhendo […]. Foi trabalhando na plantação de sorgo que mamãe me ensinou muitas coisas sobre a Ruanda de antigamente […] segredos passados de mãe para filha (p. 41 e 44).

[Stefania com as mulheres conversava sobre as jovens em busca de casamento:] Mamãe era uma casamenteira de mãos cheias. As opiniões dela sobre essas moças contavam muito na decisão das matriarcas que buscavam esposas para seus filhos. [Cabia às matriarcas a escolha da mulher para os seus filhos.] (p. 88)

As jovens em busca de marido conheciam a influência que minha mãe podia ter sobre seu projeto de casamento. Desse modo elas arrumavam qualquer pretexto para entrar no nosso quintal e para desfilar para ela (p. 89).

É claro que a beleza física não era a única qualidade exigida de uma candidata ao casamento. Na desgraça e na miséria que vivíamos em nosso exílio em Nyamata, o que se esperava de uma boa esposa era sua força de trabalho; pois sobre ela recairia a necessidade de cultivar o campo para alimentar a família (p. 108).

Falar sobre sexo e nomear os órgãos sexuais era proibido, mas havia muita preocupação de que as moças ficassem grávidas, em especial por um estupro das forças de ocupação, ainda que ter um filho fosse conquistar o auge da admiração, respeito e poder desejado por todas as mulheres (Mukasonga, 2017, p. 147).

As mães mandavam as filhas se informar sobre gravidez com uma vizinha mais velha, a quem cabia atestar se as noivas estariam de acordo com a tradição, em estado de virgindade. Caso contrário, a jovem estaria em estado de limbo social. Outro medo é que viessem a ser estéreis, situação que permitia ao marido rejeitar a esposa para evitar o desprezo dos outros homens.

Os interditos das falas sobre sexualidade foram encorajados pelo receio do “estupro revolucionário”, que além de deixar a jovem violentada pelos soldados da repressão, grávida, ainda jogaria sobre ela o estigma de mulher a ser rejeitada e uma possível infecção por HIV-Aids. Mukasonga se refere ao caso de uma jovem estuprada por soldados e que pela tradição seria marginalizada, não sendo considerada digna para se casar. Mas no exílio se desenvolve uma sororidade entre as mulheres que muda a tradição e, no caso, as matriarcas da comunidade consideraram que, se a jovem mãe violentada e a criança fossem banhadas pelas águas do rio, as águas de Rwakibirizi, ela poderia vir a casar com um viúvo. Porém, esse foi um caso único, muitas mães arcaram com a carga de criar seus filhos, sós e marginalizadas, contudo, contribuíram para que Ruanda e a etnia tutsi se reproduzisse. Scholastique Mukasonga (2017, p. 153-154), assim termina o romance:

Em 1994, o estupro foi uma das armas usada pelo genocídio. Quase todos os estupradores eram portadores do vírus HIV. Nem toda a água de Rwakibirizi e de todas as nascentes de Ruanda teriam bastado para “lavar” as vítimas da vergonha pela perversidade que sofreram. Nem toda a água seria suficiente para limpar os rumores que corriam dizendo que essas mulheres eram portadoras da morte, e fazendo com que todos as rejeitassem. Contudo, foi nelas própria e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres encontraram uma fonte viva de coragem e a força para sobreviver e desafiar o projeto de seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das mães-coragem [grifo das autoras].

3.2 Os desencantos de uma mãe em As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta

A rica narrativa de Buchi Emecheta (2017) em As alegrias da maternidade nos situa em uma Nigéria, então colônia britânica (o romance cobre o período de 1930 a 1950), e ilustra uma literatura que critica tradições que legitimam a ordem patriarcal, subordinações da mulher nas relações familiares e como a colonização impede oportunidades de saídas das mulheres dessas situações. Por outro lado, destaca nessas tradições ambiguidades e a força das matriarcas. Emecheta aborda as expectativas de Nnu Ego, a mãe, por recompensas de uma vida de carga com a maternagem, e frustrações com tal dádiva (Mauss, 1950): “a alegria de ser mãe era a alegria de dar tudo aos filhos, diziam” (Emecheta, 2017, p. 308).

Biografia e fantasia se entrelaçam. A autora teve uma vida com casos de violência doméstica, pobreza e sobrecarga para manter os filhos. Seu marido até os manuscritos de seu primeiro romance, por inveja de sua arte e como seu proprietário, queimou, e quando ela pediu divórcio, já vivendo o casal na Inglaterra, renegou a paternidade dos cinco filhos. Coube a ela o sustento da família, mas mesmo assim ela conseguiu concluir seus estudos em sociologia em 1974, trabalhando como bibliotecária e correspondente de vários jornais. Escreveu vários livros sobre saga de mulheres em relações patriarcais e coloniais, quer na Nigéria quer na Inglaterra. As alegrias da maternidade, que data de 1979, é escrito após suas filhas decidirem ir morar com o pai. Entre outros eventos, conta a frustração de não ter sido amparada pelos filhos em sua velhice, mas ser por todos eles venerada após sua morte e contar com um enterro com muita pompa, como reza a tradição da etnia Igbo.

No romance, encontramos a recorrência de temas comuns em outras autoras africanas, mesmo que se referindo a diferentes etnias, quais sejam, sentidos e consequências para as mulheres da centralidade sócio-político-cultural da maternidade, amparada por tradições que atravessaram os tempos, ainda que não se conservem intactas, sobrevivências do período pré-colonial.

O valor para a nação, para a comunidade, para os homens e para as mulheres do ser mãe levou Oyèwùmí (2015) a imprimir o conceito de materpotência, que de alguma forma se confunde com o de matriarcado e que se fundamenta em escritos sobre o sagrado, já que no Ifá, livro baseado na oralidade sobre o espiritual, Oyá é a origem, e a origem é a mãe – quem não se originou de uma mãe? Mas que também decola de teses sobre a singularidade da África versus o Ocidente. Por exemplo, para o historiador africanista Diop, enquanto a civilização africana teria sido modelada no matriarcado, a ocidental, posterior, destacaria o patriarcado.[4]

Diversos romances de autoras africanas sobre tempos pré-coloniais, coloniais e atuais sugerem que, para os homens, os filhos machos não só atestam a virilidade do pai, mas seriam a garantia de uma descendência e de um lugar para este entre os ancestrais. E, no mundo material, seriam guardiões do nome e de bens, como o maior, a terra. O homem que não tem filho é desprezado no seu meio social. Mais ainda as mulheres, com o agravante de que podem ser rejeitadas pelo marido, cabendo à sogra – uma das principais representantes do patriarcado a nível da micropolítica das relações familiares – arranjar outra esposa para seu filho, transformando em poligamia o pensado como uma relação monogâmica e legitimando a rejeição da esposa tida como “seca”, estéril.

Se o formato das tradições muda historicamente, o colonialismo, segundo distintas autoras, como em Emecheta (2017), impinge humilhações a homens e mulheres, desestabiliza marcas tradicionais de gênero. Por exemplo, já em Lagos, a personagem Nnu Ego se choca ao ver o novo marido lavando e cozinhando para os patrões brancos e indo para uma guerra, a Segunda Guerra Mundial, que não é sua, vindo ele de uma etnia, a Igbo, que condena o matar sem justa causa. Mas são as mulheres mães na pobreza as mais penalizadas pela junção patriarcado-colonialismo, quer por imposição de crenças moralistas de um cristianismo que codifica a sexualidade, o vestir e o falar e limita a circulação no público, quer porque o respeito à mãe não tem o amparo econômico-legal com que antes ela contava na vida comunal.

É comum o registro do desespero das mulheres por ter filho, quer para garantir que uma relação conjugal iniciada por amor não seja ceifada pela sogra, quer para agradar o seu homem, quer para gozar de status social, quer pela relação com a criança, tida como o seu único bem. É comum, como no caso do romance em foco, indicar que cabe à mulher maiores encargos com a criança inclusive como provedora, geralmente em vendas no mercado, o que a impede de acumular algum capital, mesmo que se goze da ideia de que se é rica por ser mãe.

As alegrias da maternidade inicia na área rural da Nigéria, na cidade de Ibuza – expressão do pré-colonial, cidade em que se desprezava o branco colonizador, como atestavam várias covas de missionários pela estrada. Daí o romance atravessa fronteiras, desenvolvendo-se na colonial Lagos, chegando às vésperas do pós-colonial.

Expressões do patriarcado patrimonial em tempos pré-coloniais são registradas, bem como o híbrido patriarcado-colonialismo:

Nwokocha Agbadi era um chefe local muito rico. […] Era mais alto que a maioria dos homens e, já que nascera numa era em que a bravura física era o que determinava o papel da pessoa na vida, todos aceitavam com naturalidade que ele fosse o líder. […] Quando ele era moço, a mulher que cedia a um homem sem antes lutar pela própria honra não era respeitada. Considerar uma mulher sossegada e tímida como desejável foi uma coisa que só surgiu mais tarde, depois do tempo dele, com o cristianismo e outras modificações. […]

Nwokocha Agbadi desposou umas poucas mulheres no sentido tradicional, mas quando as via, uma a uma, afundar na vida doméstica e na maternidade, logo se entediava e saía em busca de alguma outra fêmea excitante, alta e orgulhosa. Essa sua predileção também se aplicava às amantes (Emecheta, 2017, p. 17).

Uma das amantes de Agbadi foi avó da personagem central do livro, Nnu Ego, e as referências a ela (apelidada de Ona-joia) indicam a existência naqueles tempos de mulheres com vontade própria, não se ajustando a narrativas lineares de mulheres passivas, mesmo em tempos de patriarcado ativo. A passagem seguinte sugere ambiguidades intrapatriarcais, o poder do pai versus o poder do amante/marido:

Uma dessas amantes era uma jovem muito bela que conseguia ser ao mesmo tempo teimosa e arrogante. Ela era tão teimosa que se recusava a viver com Agbadi. Sendo os homens do jeito que são, ele preferia passar todo o seu tempo livre com ela, com aquela mulher que gostava de humilhá-lo recusando-se a ser sua esposa. Não raras noites ela o punha para fora, dizendo que não estava inclinada a ter fosse o que fosse com ele, embora supostamente Agbadi não fosse o tipo de homem a quem as mulheres dissessem esse tipo de coisa. […]

O pai da moça também era um chefe, e Agbadi a conhecera ainda criança, andando atrás do pai. […] O pai, apesar das diversas esposas, tinha poucos filhos e, na verdade, nenhum filho homem vivo, mas Ona cresceu para corresponder às expectativas do pai. Ele havia insistido para que ela nunca se casasse; sua filha jamais inclinaria a cabeça diante de homem algum. No entanto, podia ter homens, se quisesse, e se tivesse um filho, ele receberia o nome do pai dela, retificando assim a omissão da natureza.

[…] Já que seu pai não tinha um filho, fora dedicada aos deuses para ter filhos com o nome do pai, não com o de algum marido qualquer. Ah, como estava dividida entre dois homens: precisava ser leal ao pai e também ao amante, Agbadi (Emecheta, 2017, p. 18-19).

O extrato seguinte sugere algo sobre o matriarcado, o poder das mulheres, desigualdades de classe/berço mesmo no mundo dos encantados, mesmo em tempos com costumes pré-coloniais:

“[…] O sepultamento da esposa de um chefe não é pouca coisa em Ibuza.”

As danças e os festejos fúnebres começaram muito cedo pela manhã e se prolongaram ao longo de todo o dia. Diferentes grupos de pessoas chegavam e partiam e deviam ser acolhidos. Ao entardecer chegou o momento de instalar Agunwa em sua sepultura. Todas as coisas de que teria necessidade na outra vida foram reunidas e dispostas em seu caixão de madeira confeccionado com o melhor mogno que Agbadi conseguiu encontrar. Depois sua escrava pessoal foi convocada pomposamente em voz alta pelo curandeiro: ela deveria ser posta no interior do túmulo em primeiro lugar. O certo seria que a boa escrava pulasse na sepultura por vontade própria, feliz de partir ao lado da ama; mas aquela jovem e bela mulher ainda não desejava morrer.

Desagradando a muitos dos homens que cercavam a sepultura, ela implorou insistentemente pela vida (Emecheta, 2017, p. 32-3).

Por maldição da escrava, Nnu Ego, filha de Ona, não consegue engravidar. Mesmo tendo casado por amor, por não conseguir ter filhos, Nnu Ego é rejeitada pelo marido, que a amava, mas se curva ao dever comunal de homem, fazer filhos.

Nnu Ego é enviada para Lagos, para um casamento arranjado, quando o romance se situa em tempos coloniais, de dominação inglesa. O desprezo pelo novo marido é substituído por respeito quando ela tem filhos. O primeiro morre e Nnu Ego tenta o suicídio, já que não consegue ser uma mulher completa, mas vem a ter outros e a relação se consolida. A colonização humilha, subverte padrões patriarcais tradicionais, mas se afirma em outros: o marido é o senhor.

O romance de Emecheta faz uma rica etnografia das condições de vida na Nigéria no final do século XIX, das relações interétnicas, da sutil dominação colonial imposta pelo poder do cristianismo e do seu poder pelas armas e pelo domínio econômico, como dos contrastes entre normas culturais e as impostas como legais.

Quando Nnaife, marido de Nnu Ego, é alistado no exército para lutar pelos ingleses na Segunda Guerra, sem saber nem por que, cabe a ela criar, sustentar os cinco filhos. Eles eram sua riqueza, e ela comentava com vizinhas que um dia seria por eles amparada, como se esperava de filhos Igbos. Reage Nnu Ego quando Nnaife é alistado à força, mas se resigna:

“Você já esqueceu que em Ibuza é uma maldição para uma mulher de respeito dormir com um soldado? Já esqueceu todos os costumes de nosso povo, Nnaife? Primeiro, lava a roupa de uma mulher, agora quer se reunir a pessoas que matam, violam e são a desgraça de mulheres e crianças, tudo em nome do dinheiro do branco. Não, Nnaife, não quero esse tipo de dinheiro […]” (Emecheta, 2017, p. 126).

Responde o irmão de Nnaife sobre por que ele foi alistado – pegado à força pelo exército colonizador: “Não há nada que a gente possa fazer. Nós pertencemos aos britânicos, assim como pertencemos a Deus e como Deus eles podem se apropriar de qualquer um de nós” (Emecheta, 2017, p. 205). Reação do senhorio, iorubá: “Por que eles não lutam suas próprias guerras sozinhos? Por que arrastar africanos inocentes como nós para o meio?”, e responde outro: “Não temos escolha” (Emecheta, 2017, p. 206).

De fato, espada e cruz fizeram uma aliança básica para a colonização. Predomina a passividade em gênero, imposta pelo cristianismo: Nnu Ego se resigna à “sua nova religião cristã que a ensinava a carregar sua cruz com fortaleza” (Emecheta, 2017, p. 127).

Nnu Ego por muitos anos passa a ser a chefe de família, da qual constava outra esposa. Nnu Ego costumava reprimir expressões sentimentais, era a esposa mais velha, e a sua cultura “não lhe permitia que se entregasse aos seus temores”. Gênero, como bem observa Oyèrónké Oyèwùmí (2005) sobre muitas tradições étnico-africanas, não se sobrepõe a idade, ao contrário, é a senioridade que desenha papéis. A esposa mais velha, em casa em que não está o homem, é o homem da casa: “E já que os homens não podiam sofrer abertamente ela tinha que aprender a também esconder sua dor. Ouviu Akadu [a outra esposa do seu marido] chorar e invejou sua liberdade” (Emecheta, 2017, p. 192).

A mãe se sacrifica vendendo no mercado fósforo e outras coisas para a educação dos filhos homens, segundo ideólogos da independência “para formar seus governantes e lidar com a modernidade”, para ela para que fossem respeitados inclusive por brancos e a amparassem no futuro. Já para as filhas, a educação seria para lhes buscar um bom casamento. Os filhos vão estudar e trabalhar nos Estados Unidos e no Canadá e não dão mais notícia, e as filhas ao se casarem vão para outras províncias.

Um tipo de matriarcado ou o que chamaríamos de “martiriocado” se modela na vida de Nnu Ego enquanto o marido está na prisão. Ela é dona de seu dinheiro, consolida-se em atividades no mercado, por mãe de filhos homens tem o respeito da comunidade e se encontra ajustada à lógica do mundo dos encantados, encaminhando-se para ser uma respeitável e adorada ancestral quando morresse. Sobre ela se refere um homem iorubá: “Nossa vida começa em imortalidade e termina em imortalidade […] Nnu Ego está imortalizando seu marido” (Emecheta, 2017, p. 230). Os filhos não mandam notícia nem dinheiro: “Durante algum tempo Nnu Ego suportou tudo aquilo sem reagir, até que seus sentidos começaram a ceder. Tornou-se vaga e as pessoas comentavam que ela nunca fora forte do ponto de vida emocional”. Morreu só à margem de uma estrada, “Sem nenhum filho para segurar sua mão e nenhum amigo para conversar com ela. Nunca fizera muitos amigos, de tão ocupada que vivera acumulando as alegrias de ser mãe” (Emecheta, 2017, p. 307).

Já seu sepultamento em Ibuza foi com fausto, vieram todos os filhos e lhe construíram um altar para que os netos apelassem para ela se fossem estéreis. Mas a vingança de Nnu Ego se realiza no plano do transcendente, e ela, ao contrário de atender aos pedidos das mulheres que   lhe vinham orar por filhos, as fazia estéreis. Como era possível, diziam, ela que tivera a alegria de ser mãe e de dar tudo aos filhos?

Por acaso não tivera o maior sepultamento que Ibuza já vira? Oshia [o filho que vivia na América] precisou de três anos para conseguir pagar todo o dinheiro que pedira emprestado para mostrar ao mundo o bom filho que era. Sendo assim, as pessoas não entendiam por que Nnu Ego não atendia às preces que lhe dirigiam, pois o que mais uma mulher poderia desejar, além de ter filhos que lhe dessem um sepultamento decente? Nnu Ego recebera tudo isso, e nem assim atendia às preces dos que lhe pediam filhos (Emecheta, 2017, p. 307).

4. Reflexões finais

A história sugere que o feminino e a maternidade representam um mistério. Inspirado pelo medo, o homem foi obrigado a adestrar o feminino para que pudesse prever seus passos; para que nenhuma surpresa desagradável o surpreendesse. Como observa Priori (2009, p. 33): “Seria impossível conviver impunemente com tanto perigo, com tal demônio em forma de gente”.

O caso Brasil aqui retratado com o apoio de contos de Conceição Evaristo e do romance de Ana Maria Gonçalves, da análise histórica de Mary Del Priori e da médica brasileira Maria Martha de Luna Freire, revela que o que decorreu desse adestramento escapou às expectativas e aos receios temidos. A mulher, principalmente se mãe, mostrou-se maior do que tudo. Uma deusa. Certamente, ainda temida. Mas universalmente endeusada. Na história do Brasil, essa mãe adquire uma importância que transborda, por exemplo, os preceitos psicanalíticos. Nos referimos à relevância que o pai tem na obra de Freud em detrimento da mãe. Para a psicanálise freudiana é sempre o pai quem se encontra como vetor e norteador das vicissitudes do sujeito humano. Ainda que encontremos a mãe como porta-voz, Freud sempre nos lembra que é o pai o centro da família, e o centro dos complexos familiares (Roudinesco, 2003).

Contrastando com a família edipiana proposta por Freud, onde é o pai quem reina, na história dos brasileiros, principalmente entre as classes pobres e empobrecidas, não encontramos o pai, quem dirá um Deus Pai. O discurso é masculino, mas a verdade é que a sociedade brasileira, ao menos uma parte considerável dela, foi feita pelas mulheres. Ainda que submetida ao patriarcado, foi a mãe quem ofereceu uma via de constituição e edificação dos pequenos sujeitos, que surgiam para povoar o Novo Mundo e para realizar o projeto republicano. Quanto ao homem, nem função de pai, nem obrigações de homem (considerando aquilo que prega o patriarcado, já que é ele que serve de suporte ao adestramento feminino). Estes, os homens, são aqueles que escapavam, fugiam, ou se negavam, como nos contos de Evaristo.

Somos, no caso do Brasil de baixo, aquele das periferias, uma nação feita pelas mulheres. Quando o homem se encontra presente, não é regra, mas a exceção. A função paterna aparece sempre longinquamente, como um adereço. Em alguns casos, como um fator e vetor importante que atua ativamente junto à mulher, mas em outros, na maioria deles, o papel do homem e do pai é quase inexistente. Diríamos até que, nesse último caso, o pai e o homem mais atrapalham, pois, ao se manifestarem, o fazem a partir da violência e da crueldade do homem contra a mulher.

Vozes femininas da África trazem ilustrações do matriarcado em nações dominadas pelo patriarcado e pelo colonialismo. O relato de Scholastique Mukasonga (2017) sobre maternidade e o feminino destaca como sua mãe modelou proteção, esconderijos territoriais e anímicos, pelo trabalho de sobrevivência e afetos para seus filhos e sua família, e contribuiu para a vida em comunidade de refugiados da etnia ruandense, tutsis, sob a constante ameaça e violências dos soldados da etnia inimiga hutus, antes do genocídio que contou com o apoio e o beneplácito das forças coloniais e das nações soberanas no cenário internacional de 1994. Narrativa emblemática do ápice do necropoder, “um poder que embaralha as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade” (Mbembe, 2018, p. 71).

Ecos de necropolítica pavimentam, ainda que não necessariamente nomeados, o texto sobre as violências sofridas nas vidas das mulheres negras, também brasileiras, que nos chegam pelas escrevivências de Evaristo (2016).

Se o romance de Scholastique é narrado pela filha, o de Emecheta representa os sentidos de ser mãe por uma mãe quando alegrias se entrelaçam a frustrações. Emecheta (2017) dialeticamente indica formas da mãe se rebelar, inclusive recorrendo à tradição e ao pensamento mágico: quando morre, o espírito de Nnu Ego não atende às preces das mulheres “que lhe pediam filhos” (Emecheta, 2017, p. 308).

As famílias entre os deserdados combina ser sítio de violências de gênero e de produção de gratificações; ser refúgio e proteção inclusive anímica contra o conquistador ou o Estado. É quando a economia de cuidados da mãe, se não enfrenta a lei do pai, colabora na sobrevivência da prole e da comunidade e na sutil instauração de um matriarcado, simbólica proteção, tema que pede mais espaço.

Falta melhor conhecer portos de decolagem no plano de micropolíticas coletivas para aterrisagens mais de acordo com necessidades e principalmente imaginários e cosmovisões, pois é a partir desses que se constroem formas de resistência, de acomodação ou de mudanças. Ou seja, a partir de materialidades vividas e, principalmente, da maneira como essas vivências são modeladas pelo sagrado, pela espiritualidade, por imaginários que fogem do visto e se instauram no sentido, ainda que emprisionadas em uma economia política que cultiva a morte, de muitos, muitas.


*Mary Garcia Castro é Ph. D. em Sociologia pela Universidade da Flórida, pesquisadora Visitante Emérita (FAPERJ/UERJ/NUDERG), professora aposentada da UFBA e pesquisadora na FLACSO-Brasil; Fernanda Andrade Leal é psicanalista, psicóloga perinatal e parental, doutora e mestre em Família na Sociedade Contemporânea e autora do livro A tristeza comum da mãe: reflexões sobre o estado psíquico do pós-parto.

 

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Notas

[1] Original em inglês (tradução livre das autoras).

[2] Scholastique Mukasonga, nascida em 1956, originaria de Ruanda e que hoje vive e trabalha na região da Normandia; Chimamanda Adichie, nascida em 1977, nigeriana que leciona parte do tempo em universidades nos Estados Unidos e na Nigéria; e Bucchi Emecheta, que viveu na Nigéria, em Londres e Nova York, 1944-2017.

[3] “Por que as milícias hutus quiseram matar os tutsis? Cerca de 85% dos ruandeses são hutus, mas a minoria tutsi dominou por muito tempo o país. Em 1959, os hutus derrubaram a monarquia tutsi e dezenas de milhares de tutsis fugiram para países vizinhos, incluindo a Uganda. Um grupo de exilados tutsis formou um grupo rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), que invadiu Ruanda em 1990 e lutou continuamente até que um acordo de paz foi estabelecido em 1993. Na noite de 6 de abril de 1994, um avião que transportava os então presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos hutus, foi derrubado. Extremistas hutus culparam a RPF e imediatamente começaram uma campanha bem organizada de assassinato. A RPF disse que o avião tinha sido abatido por hutus para fornecer uma desculpa para o genocídio. […] Alguém tentou pará-los? ONU e Bélgica tinham forças de segurança em Ruanda, mas não foi dado à missão da ONU um mandato para parar a matança. Um ano depois que soldados norte-americanos foram mortos na Somália, os Estados Unidos estavam determinados a não se envolver em outro conflito africano. Os belgas e a maioria da força de paz da ONU se retiraram depois que dez soldados belgas foram mortos. Os franceses, que eram aliados do governo hutu, enviaram militares para criar uma zona supostamente segura, mas foram acusados de não fazer o suficiente para parar a chacina nessa área. O atual governo de Ruanda acusa a França de ‘ligações diretas’ com o massacre – uma acusação negada por Paris. […] Como terminou? A bem organizada RPF, apoiada pelo exército de Uganda, gradualmente conquistou mais território, até 4 de julho, quando as suas forças marcharam para a capital, Kigali. Cerca de dois milhões de hutus – civis e alguns dos envolvidos no genocídio – fugiram em seguida pela fronteira com a República Democrática  do Congo”, BBC, 7 abr. 2013. Disponível em:  http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140407_ruanda_genocidio_ms – 7.4.2014. Acessado em 20 mar. 2018.

[4] Ver Oyèwùmí, 2015 e Castro, 2021, n.p.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 30 minutos

UMA LEITURA DE RISQUE ESTA PALAVRA, DE ANA MARTINS MARQUES

Capa de Kiko Farkas (Divulgação/Blog da Companhia das Letras)
Capa de Kiko Farkas (Divulgação/Blog da Companhia das Letras)

Ao começar a leitura do livro lilás, que se apresenta como Risque esta palavra (Companhia das Letras, 2021), de Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 1977), somos surpreendidos pela paisagem poética de um fragmento da casa: “a porta de saída”. Trata-se do subtítulo da primeira seção, aceso como uma fotografia, como uma saída de emergência pela poesia.

Aqui, abro parênteses para lembrar a fala da crítica argentina Florencia Garramuño no encontro Leituras do contemporâneo: Literatura e crítica no Brasil e na Argentina, sobre uma literatura contemporânea em modo lanterna, fazendo referência ao livro de Sérgio Chejfec, Modo linterna: “uma literatura que ilumina como se fosse a lanterna do celular, ilumina o pequenino, um fragmento de mundo” (2021, 1h1min14s-30s).

E volto à porta de saída, à luz do modo lanterna da poesia de Ana Martins Marques, que nos dá a ver detalhes de nossos gestos cotidianos, “cria uma espécie de inventário de experiências afetivas”, como lemos na orelha do livro. Poesia que apresenta uma arquitetura precisa e, ao mesmo tempo, um olhar sensível do sujeito poético para o mundo, em “íntima alteridade”, deslocado para fora de si. E nos oferece uma sensação de reconhecimento, indo ao encontro da partilha comum. Portas de saída pela potência do afeto. Poesia que atravessa várias paisagens, do luto, da memória, da viagem, do amor. E paisagens de palavras que pensam sobre si mesmas, giram em torno da escrita. Como já nos sugerem os subtítulos das quatro partes que compõem o livro: “A porta de saída”, “Postais de parte alguma”, “Noções de linguística” e “Parar de fumar”, paisagens em trânsito que nos movem em espaços de fronteira entre o dentro e o fora, como a casa (interior e exterior), o mar (profundidade e superfície), o efêmero (vida e morte), a memória (lembrança e esquecimento), a arte (teor lírico e crítico).

Como diz Ana Martins Marques (2015) em entrevista ao Suplemento Pernambuco: “a poesia é sim linguagem que se volta para si mesma, mas acho que nesse movimento ela pode captar, ainda que furtivamente, alguma coisa de fora. Por isso gosto de pensar que os meus poemas nunca são exclusivamente metalinguísticos”. E mais adiante: “há poemas de amor ‘disfarçados’ de poemas metalinguísticos, ou poemas metalinguísticos que subitamente se transmudam num poema de amor, ou ainda poemas que parecem tratar de outros temas e de repente se dobram sobre si mesmos”.

Ana Martins Marques, em foto de Mauro Figa (Divulgação/Blog da Companhia das Letras).
Ana Martins Marques, em foto de Mauro Figa (Divulgação/Blog da Companhia das Letras).

Riscos dos poemas

“E, então, percebemos, surpresos”, diz a poeta Marília Garcia (2021) no blog da Companhia das Letras, “que uma palavra tão forte como riscar (do título) – que sugere a ideia de rasura, apagamento – pode indicar outros sentidos: riscar um fósforo é acender, iluminar”. E mais adiante: “assim, ‘riscar uma palavra’, nesses poemas, pode ser também mostrar. A linguagem, o mundo, o tempo”.  Desse modo, riscar é também um convite à leitura, que, quando é atenta, acende a palavra e reescreve o texto pela interpretação, nos mostra outros modos de olhar. Um pedido feito a “você”, como vemos no uso imperativo da terceira pessoa do singular em: “Risque (você) esta palavra”. Impossível não lembrar, nesse imperativo, o movimento contrário, presente na ordem de Ana Cristina Cesar, depois sublinhado por Flora Süssekind: Até segunda ordem não me risque nada.[1]

Semelhante ao modo que Süssekind (2016, p. 31) observa em Ana C., Ana Martins Marques compõe uma “poesia próxima a uma ‘arte da conversação’, num ‘texto escrito que fala’”.[2] A poeta conta, na entrevista referida, que os poemas “estão à procura de um ‘tu’ ou de um ‘você’ a que se endereçar, um ‘tu’ ou um ‘você’ que nem mesmo é necessariamente humano. Um dos poemas de amigo mais conhecidos é um poema de amor que se dirige não ao amante, mas às ondas do mar de Vigo” (2021). Marília Garcia (2021) relata sua experiência de leitura desse livro: “tive a impressão de que o livro leva o leitor pela mão e reitera a interlocução”.

A poesia em vozes de Ana Martins Marques, em um gesto em direção ao outro, estabelece um plano de interlocução com “você”, tomado como “meu amigo”, a quem se endereça a carta-poema que abre o livro:

Meu amigo,

quase já não escrevo
passo o dia sentada em algum lugar
olhando florescer qualquer coisa que esteja
posta diante dos olhos

com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol

mas nada disso era uma palavra
dessas que coloco agora uma após a outra
para que depois você as receba como um aviso
de que ainda não morri de todo

não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeça

e o que encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
mas uma canoa em chamas
não foi uma palavra
mas um acidente doméstico
envolvendo um barco de brinquedo
e uma máquina de costura
não foi uma palavra

(embora em torno das coisas
sempre se ajuntem palavras
como cracas no casco
de uma embarcação antiga)

às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio

às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocal

um poema não é mais
do que uma pedra que grita

risque por favor
esta palavra
(Marques, 2021, p. 11-12)

Em busca da palavra, o sujeito lírico surge para fora de si, observador das minúcias do cotidiano, como vemos nos versos seguintes: “passo o dia sentada em algum lugar/ olhando florescer qualquer coisa que esteja/ posta diante dos olhos”. Aqui, a concordância do verbo “sentada” marca o gênero feminino do sujeito poético e podemos inferir, pelo contexto do poema, que é uma poeta. Ela ensaia seu método de escrita ao olhar para o lado de fora, exterior que, ao mesmo tempo, narra o interior. E nos revela um impasse: a cisão entre o mundo das coisas e o mundo traduzido pelas palavras. Diante disso, é pela estratégia da negação que a poeta escreve esse metapoema, como lemos no verso: “já quase não escrevo”. E nos dá a ver imagens de morte em torno de processos do fim: da infância, de um hábito, de um amor, da vida, do verso. Como na quinta estrofe:

não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeça

As imagens de morte em “naufrágio” e “girassol sem cabeça”, pelo enjambement, sugerem um modo subjetivo de morte da mulher. Podemos inferir que se trata talvez de um processo de luto. Ao mesmo tempo, a partir da operação do corte (cesura), também lemos a morte da flor, cena construída pelo jogo do enquadramento fotográfico no plano fechado (close up), com foco para um detalhe: “um girassol sem cabeça”. Pelo contexto do poema, essa imagem pode ser lida também como uma morte impensada, em que a metáfora da “cabeça” personifica a flor. Um olhar que encontra o incomum na metáfora comum do nosso cotidiano (no caso, “cabeça de girassol”). Trata-se de um recurso presente em sua poética, como vemos, em especial, na seção “Visitas ao lugar-comum”, de O livro das semelhanças (2015), com poemas temáticos que repensam certas expressões idiomáticas, muitas vezes tomando-as de forma literal, como em:

Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego
(Marques, 2015, p. 51)

Outras imagens impensadas de mortes são construídas, no poema, em torno de elementos do cotidiano que são deslocados pelo sentido poético. Por exemplo, a morte dos objetos, na sexta estrofe, em “canoa em chamas”, e o acidente doméstico “envolvendo um barco de brinquedo/ e uma máquina de costura”. Um acidente de escrita?

A máquina de costura, pelo gesto de (des)tecer, nos remete à escrita que, aqui, se depara atenta às minúcias do cotidiano, como um barco de brinquedo. Outra imagem metalinguística, como uma metáfora para o poema, como lemos em “barcos de papel”, no livro A vida submarina: [Os poemas] “Dobrados sobre si mesmos,/ lançam-se no mundo/ com a coragem suicida/ dos barcos de papel” (Marques, 2009, p. 21). Apesar dos imprevisíveis acidentes da escrita, a poeta nos lembra: “Escreve poemas/ devolve/ o papel à árvore” (Marques, 2021, p. 85).

E, na terceira estrofe, a personificação da pedra e do cachorro nos dá a ver outras imagens insólitas:

com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol

A “nesga de sol” remete a um valor de vida. Contudo, essa luminosidade torna ainda mais visível a cena de morte. Assim, temos uma tensão entre o valor de vida (“nesga de sol”) e de morte (“morrer uma pedra” e “um cachorro enforcar-se”), que revela um motivo recorrente na sua poesia: a efemeridade da existência. Como nos lembram os versos: “em cada brecha entrou o tempo/ sem convite” (Marques, 2021, p. 24)

Sabemos que é lenta a passagem do tempo que desgasta as pedras em comparação à brevidade da vida humana. Em sua temporalidade ancestral, a pedra sobrevive à memória de nossa passagem no mundo. Porém, a temporalidade antiga da pedra, aqui, é deslocada pelo olhar do sujeito poético que testemunha a cena de morte. Com isso, a possibilidade de morte de algo imperecível como a pedra sugere que nada pode nos sobreviver. Mas isso é relativizado pelo recurso do sujeito desinencial, escolha sintática que “risca” a primeira pessoa do verso em “com isso (eu) já vi morrer uma pedra”. Não por acaso é escolhido um ponto de vista parcial, enganoso. Trata-se de uma estratégia que questiona a certeza desse testemunho da morte da pedra. E problematiza a subjetividade da persistência da memória, sendo a palavra acesa quando articulada à lembrança, como vemos nas seguintes estrofes:

às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio

às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocal

Em seu livro Mito e pensamento entre os gregos, Jean-Pierre Vernant nos conta a antiga relação entre memória e palavra: em Hesíodo (citado em Vernant, 1990, p. 109), Mnemosyne canta “tudo que foi, tudo que é, tudo o que será”, sendo o poeta seu intérprete, possuído pelas musas. E Platão (citado em Vernant, 1990, p. 110), em Íon, acrescenta que “a memória transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em seu tempo”. Assim, o tecer da memória se faz “enganchado” na palavra, no poema, na trama do texto, que, como sabemos, vem do latim textus e significa tecido, enlace, entre outros sentidos que orientam o movimento do narrar.

Vernant (1990, p. 114) comenta ainda que “Mnmosyne, aquela que faz recordar, é também em Hesíodo aquela que faz esquecer”. Esquecer sugere algo que escapa da memória aparentemente seria o contrário de lembrar. Contudo, são movimentos desdobrados, não opostos. Segundo Deleuze (2013, p. 115), “só o esquecimento (o desdobramento, dépli) encontra aquilo que está dobrado na memória (na própria dobra), sendo a memória coextensiva ao esquecimento” (grifo nosso).

A lembrança e o esquecimento, portanto, formam um “par de forças” complementares. Comparável aos valores de vida e morte, luz e sombra, narrativa e silêncio, entre outros. Nas estrofes referidas, o encontro do sujeito poético com a palavra, ainda que casual (como vemos em “às vezes sim”), ocorre em torno do esquecimento e da lembrança, associados a silêncio e palavra, buraco (sugere morte/sombra) e lâmpada (sugere vida/luz).

Na penúltima estrofe, em sua busca pela palavra, agora acesa pela memória, a poeta escreve:

um poema não é mais
do que uma pedra que grita

O silêncio também é outro motivo importante na poética de Ana Martins Marques. Consoante Steiner (1988, p. 73), “o silêncio funda um outro discurso que não o comum; entretanto, é linguagem de grande teor significativo”. Assim, o silêncio também é espaço de interlocução, concebido como uma língua, como lemos no poema “Silêncio”: “Língua das coisas/ Mas também: língua de se falar com as coisas/ e com as próprias palavras” (Marques, 2021, p. 70). A pedra fala a língua das coisas, que, aqui, é o silêncio. E revela um paradoxo que aproxima o silêncio da palavra: a pedra grita pelo silêncio, assim como o poema. Além disso, ambos não são considerados úteis dentro da lógica funcional do sistema, mas respondem a uma ordem afetiva por suas temporalidades prologadas, sendo testemunhas da passagem do tempo.

Ana Martins Marques, em sua tese, destaca a fala de Sebald (citado em Marques, 2013, p. 86-87) sobre o poder dos objetos: “como as coisas (a princípio) nos sobrevivem, elas sabem mais sobre nós do que nós sobre elas; elas trazem em si as experiências que fizeram conosco e são – efetivamente – o livro de nossa história aberto diante de nossos olhos”. Nesse sentido, segundo Benjamin (citado em Marques, 2013, p. 83), “parece haver convicção de que nos objetos cotidianos, nas ruas e nas fachadas, nos rastros e ruínas da cidade podem revelar-se os vestígios, os traços da memória e da história”.

Por atravessarem o tempo, a pedra e o poema, assim como outras formas de arte, podem ser tomados como lugares de memória que fazem perdurar nossas histórias sob a ameaça do esquecimento, do apagamento do sujeito frente a um espelho vazio.

Mas é preciso estar à escuta:

risque por favor
esta palavra

Em busca de uma aproximação com o leitor, a interlocução também é feita, aqui, pela escolha de um processo de composição híbrido de poema e carta, em referência a gêneros de intimidade (cartas, diários, postais, por exemplo). Observamos, assim, que a interlocução é uma questão central em sua poesia e pode ser tomada como uma chave de leitura. Em entrevista a Marília Garcia, Ana Martins Marques (2021) nos conta:

é possível que essa atenção para o endereçamento tenha sido aguçada pelas experiências de escrita a dois, pelo processo de interlocução e correspondência com o Siscar e o Eduardo Jorge, embora desde o meu primeiro livro existam alguns poemas que trazem essa instância da interlocução ou mesmo se apropriam de tipos textuais como a carta ou o bilhete.[3]

O “riscar” da carta e outros “gêneros da intimidade”, outro ponto de encontro com a poética de Ana Cristina Cesar, subverte o lugar previsto para a escrita de autoria feminina, que, como sabemos, por séculos, foi considerada como uma “literatura menor”.

*
A poesia em vozes de Ana Martins Marques também atravessa redes intertextuais, nas quais ouvimos, por exemplo, as figuras femininas da memória literária (Penélope, Ofélia, Medusa, Sereia, entre outras), em poemas que subvertem o lugar do feminino nos arquivos da literatura, “riscam” esse “mal de arquivo”, como diz Derrida (2001). E são um bom ponto de partida para pensarmos as persistências e subversões da performance do feminino na cena contemporânea.

Em Risque esta palavra, o que chama a atenção é a atualização das tramas protagonizadas por Ofélia e Medusa, ainda na primeira seção do livro. Mulheres com voz que, aqui, recontam suas histórias, semelhantes a Penélope, figura feminina recorrente na poética de Ana Martins Marques, como vemos, por exemplo, na sequência de poemas que (des)tecem as tramas de Penélope no livro A vida submarina (2009). A penelopeia subverte, a partir do protagonismo ardiloso e ativo de Penélope, o lugar histórico repisado para a mulher, como em: “E então se sentam/ lado a lado/ para que ela lhe narre/ a odisseia da espera” (Marques, 2009, p. 142).  Deslocamentos críticos que também observamos em outras figuras femininas de sua poesia.

A escolha de “riscar” a trama de Ofélia é significativa, pois mobiliza as águas trágicas da personagem do Hamlet de Shakespeare, de um destino de morte à vida. No livro A água e os sonhos, Gaston Bachelard (2002, p. 85) diz que “Ofélia poderá ser para nós o símbolo do suicídio feminino. Ela é realmente uma criatura nascida para morrer na água, encontra aí, como diz Shakespeare, ‘seu próprio elemento’. A água é o elemento da morte jovem e bela, da morte florida”. E mais adiante: “A água é o símbolo profundo, orgânico, da mulher que só sabe chorar suas dores e cujos olhos são facilmente ‘afogados de lágrimas’”.

Mas, como Ofélia, aprendemos a nadar:

Ofélia aprende a nadar

(…)

quando seu vestido
se torna pesado
ela começa lentamente
a mover os braços
e as pernas
primeiro sem deixar de cantar

depois substituindo o canto
por uma respiração ritmada
mergulhando e levantando a cabeça
e aproveitando-se da correnteza
até chegar à margem
lamacenta

por onde sobe
com alguma dificuldade
carregando o vestido
pesado

há muita coisa em comum entre
cair num rio
e cair em si
e cair fora

(Marques, 2021, p. 39-40)

E, com Medusa, aprendemos a rir:

Um café com a Medusa

(…)

cúmplices
ela e eu
(embora eu evite
confesso
olhá-la nos olhos)
tomamos nosso café quase
em silêncio

ela diz que agora sonha apenas com o mar
que seus cabelos são algas e não serpentes
e que dançam lentamente no fundo de um oceano
cheio de monstros, como são os oceanos,
lagoas enormes e águas-vivas
e outras incongruências marinhas
corais e conchas que são
como estojos
e baleias que vivem até duzentos anos
o que para ela é nada, alguns segundos
como de fato é

e rimos as duas
que duas velhas sonhem ainda
e sempre o sexo

(…)

(Marques, 2021, p. 42-43)

A figura mitológica da Medusa é aproximada de nós, do nosso cotidiano, como uma amiga com quem conversamos tomando café, como “cúmplices/ ela e eu”. Vemos aqui, novamente, a conversação, pelo poema em vozes, sendo essa uma estratégia de riscar as tramas das mulheres na memória literária, dando voz a elas, como vemos na fala da Medusa: “ela diz que agora sonha apenas com o mar/ que seus cabelos são algas e não serpentes”. Vemos também um “passo de prosa na poesia”, como escreve Florencia Garramuño (2014, p. 55) no livro Frutos estranhos,

é esse o passo de prosa – essa espécie de manifestação da tensão entre prosa e poesia, o que coloca em questão a possibilidade ou pertinência de uma definição específica e, portanto, pura e exclusivamente formal desse discurso, o que alguns poemas muito recentes, atravessados por uma forte pulsão narrativa e uma decidida vontade de transgredir os limites do lírico, parecem estar pondo em evidência.

O que também nos chama a atenção é o gênero feminino que marca a voz lírica e narrativa desse poema, como vemos em: “e rimos as duas/ que duas velhas sonhem ainda”. Cena que coloca em diálogo o ensaio de Hélène Cixous, chamado O riso da Medusa. Como escreve Eurídice Figueiredo (2020, p. 72) no livro Por uma crítica feminista, “a autora resgata a Medusa que, segundo o mito, é decapitada pelos homens que se sentem ameaçados por ela. A Medusa é, para ela, ‘uma queer, a queen das queers’, e seu riso é libertador”. E continua: “os homens dizem que as mulheres são monstruosas (como a Medusa), e elas, por conseguinte, sempre tiveram vergonha de seu poder”. Assim, o riso da Medusa liberta as mulheres do medo de se tornarem “monstruosas”, deslocando, como uma forma de poder, os discursos patriarcais.

Na poesia de Ana Martins Marques, as figuras femininas Penélope, Ofélia e Medusa e outras riscam a repetição do estilo mobilizado pelo discurso enunciado sobre o “signo” mulher. Com isso, desestabilizam a categoria como algo fixo, definido e simplificador da performance do feminino. Após séculos de luta, escrita e espera, as mulheres detêm a voz e narram seus diversos pontos de vista. Pelo menos, nos riscos do poema. “É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre mulher e traga as mulheres à escrita”, afirma Hélène Cixous (2017, p. 129) em O riso da Medusa. E mais adiante: “ato também que marcará a tomada da palavra pela mulher, portanto, sua estrondosa entrada na história que sempre se constituiu em sua supressão” (idem, p. 136).

*
Ao viajar pelos “Postais de parte alguma”, título da segunda seção do livro, nos surpreendemos pelo deslocamento através de lugares subjetivos, “de parte alguma”, problematizados pela memória, pela passagem do tempo, mesmo aqueles que giram em torno de lugares reais, como nos versos de “Praia das Maçãs”: “na manhã seguinte a luz filtrada pelas folhas/ a distância do seu corpo na mesma cama/ e eu que jurei não chorar” (Marques, 2021, p. 50). Em entrevista ao Grupo Matinal Jornalismo (2021), Ana Martins Marques diz que alguns poemas “tratam, de forma mais geral, da ideia de viagem como dispositivo que nos afasta e aproxima dos outros e de nós mesmos”. Pela viagem da leitura dos postais, junto ao sujeito poético, vemos a transformação da passagem do tempo que evidencia os (des)encontros de nós mesmos com outros que seremos ou que fomos:

Fazer as malas é tarefa impossível
aquele que ainda não partiu
tem que colocar na mala
aquilo de que precisará
aquele que vai chegar

(…)

Quem está de partida
arruma a mala
de um desconhecido
(Marques, 2021, p. 49)

A seção “Postais de parte alguma” pode ser lida como uma sequência narrativa, e nos conta sobre as viagens em torno do luto do amor. No primeiro poema, “Turismo”, vemos o encontro com o corpo do outro, tomado como um lugar, uma cidade: “Eu rodava em torno do seu corpo/ como se roda num museu em torno da estatuária” (Marques, 2021, p. 47).  No poema seguinte, vemos uma paisagem do luto, do corte, em que o tempo (“estação”) é tomado como um lugar (“serralheria”): “Nunca é fácil/ abandonar o que se ama/ vê: toda estação/ é uma espécie de serralheria/ aqui se cortam/ pessoas ao meio” (idem, p. 48). E mais adiante, no poema “Jet lag”: “a memória é agora o lugar/ diário dos nossos/ únicos encontros” (idem, p. 54). Nessa poesia, a memória é percebida, poeticamente, como um lugar onde habitamos.

Não nos cabe, aqui, analisar todos os poemas que compõem essa sequência narrativa, mas reconhecer que a poesia de Ana Martins Marques apresenta um hibridismo textual e discursivo em que há uma interseção entre enunciação lírica e narrativa. Trata-se de um recurso recorrente em sua poética, como vemos nos poemas que compõem a seção “Cartografias”, em O livro das semelhanças, por exemplo. Em entrevista ao blog da Companhia das Letras, Ana Martins Marques (2021) diz: “sempre tendi a pensar nos meus livros também um pouco assim, mais na chave da continuidade do que na ruptura”. Estratégia que possibilita articular fios de leitura entre diferentes poemas, seções temáticas e livros da autora.

*
Em “Noções de Linguística”, terceira parte do livro, “as línguas são meios/ de viagem, são meios/ de transporte as palavras” (Marques, 2021, p. 65). Os deslocamentos se encaminham em torno das questões da linguagem, da língua, como também retomam a dimensão da interlocução, que “é fundamental para a linguagem, que é, antes de tudo, o nosso jeito de estar juntos (perguntar, responder, ouvir, entender, conversar, participar do mundo com outros seres)”, diz Ana Martins Marques na entrevista mencionada. Como vemos em:

Seu filho hoje aprendeu uma palavra
seus ossos dormem crescendo
em breve andará com firmeza
saberá a ciência do chão
em breve a língua tomará
conta dele
vai emudecer o mundo
moldar seus pequenos dentes
em breve a língua será a mãe
mais do que você é a mãe
(Marques, 2021, p. 61)

O insólito é construído, aqui, com a personificação da língua materna em uma mãe que “obriga ao abrigar” (Marques, 2021, p. 62), a partir do deslocamento do sentido conotativo da expressão idiomática “língua-mãe” para um sentido literal. Assim, vemos, literalmente, a língua viva. Os deslocamentos também percorrem questões da tradução, como diz Ana Martins Marques em entrevista ao Grupo Matinal Jornalismo (2021): “na tradução está em jogo uma espécie de travessia entre línguas, que é também um jeito de ‘atravessar’ até o outro”, como em:

por exemplo
alguém traduziu um poema
e introduziu nele um vulcão
que não havia no original
por causa da métrica ou da necessidade
de uma rima
alguém acrescentou num poema um vulcão
que antes não existia

(…)

(Marques, 2021, p. 72)

*
Os poemas da última seção, “Parar de fumar”, atravessam o tema da morte do hábito de fumar, como anuncia o título. E, ao mesmo tempo, são atravessados pela metalinguagem, como em: “O que fazer agora/ com as mãos/ cegas? // o cigarro é parente/ do lápis” (Marques, 2021, p. 95). O gesto de riscar, aqui, acende, inflama e apaga a palavra como um fósforo, como também vemos nos versos do poema “Fiat Lux”:

(…)

No momento do atrito
a luz se fez o fósforo se foi

(…)

Seu nome acende-se
e extingue-se no instante seguinte
como se alguém subitamente apagasse a luz da varanda
(Marques, 2021, p. 107)

A chama implícita do nome, subitamente, se consome, se apaga, como o fósforo, como a luz da varanda, imagens da transitoriedade da vida, da lembrança rumo à morte, ao esquecimento. Segundo Octavio Paz (1994, p.7), a chama é “‘a parte mais sutil do fogo, e se eleva em figura piramidal’. O fogo original e primordial, a sexualidade, levanta a chama vermelha do erotismo e esta, por sua vez, sustenta outra chama, azul e trêmula: a do amor”. E se refere à dupla chama da vida como erotismo e amor. Assim, em um outro sentido para o que é sólido e durável, essa efêmera corrosão também pode ser lida como uma imagem do processo de morte de um amor líquido (Bauman, 2004), como também da morte de um desejo aceso em “seu nome” e consumido, inutilmente, em si mesmo.

Em entrevista ao Jornal Rascunho, Ana Martins Marques (2021) nos conta: “acho que o cigarro é um objeto literário, entre outras coisas, porque nos coloca em contato com o fogo, mas também, provavelmente, por sua relação com a morte”. Assim, na sua poesia, o gesto do “riscar” nos coloca às voltas em torno de paisagens porosas que deslizam do apagamento (morte, silêncio, sombra) à chama (vida, palavra, lembrança), do fim ao reinício, como vemos no último poema do livro:

Encerramos afinal nossa aventura
eu e tu

e eu, que mais de uma vez temi
que com ela também a poesia se encerrasse

(seria talvez necessário agora
riscar todos os meus versos
com a palavra cigarro)

e no entanto
no transporte público no supermercado
num guichê no meio de uma tarde
qualquer
ela – a poesia – parece estar de volta

quando menos se espera
e sem que se tenha a certeza
de que é mesmo ela
(Marques, 2021, p. 114)

O que fica em sua poesia é o fluxo, o efêmero, o tempo. Como escreve Marcos Siscar (Siscar, 2016, p.15), “estamos incessantemente de volta ao fim, ou seja, às voltas com o fim, em conflito sobre que nome dar àquilo que teria acabado, sobre o que significa de fato chegar ao fim”. Assim, “estamos o tempo todo reinventando nosso lugar, um lugar no qual a visão da catástrofe não faz nenhum sentido, a não ser na medida em que nos permite imaginar outros tipos de começo”. Nesse entrelugar, vemos de volta “ela – a poesia” a riscar formas abertas às travessias.


* Juliana Gelmini é doutoranda em literatura brasileira (UERJ) e atua como pesquisadora-bolsista da Capes. Sua pesquisa investiga a poesia contemporânea de Ana Martins Marques, Angélica Freitas e Marília Garcia. É mestre em literatura brasileira (UERJ) e licenciada em letras (UFRJ). Atuou como professora temporária do Colégio Pedro II e do CAp/UFRJ. É autora do livro de poesia Insólito sólido (Patuá, 2017).

 

Referências

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Entrevistas

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MARQUES, Ana Martins. “Um escudo contra o caos e a morte”, Rascunho: o jornal de literatura do Brasil. Entrevista concedida a Bruna Meneguetti. Publicada em set. 2021. Disponível em: <https://rascunho.com.br/entrevista/um-escudo-contra-o-caos-e-a-morte/>. Acesso em: 30 de ago.2021.

MARQUES, Ana Martins. “’Risque esta palavra’: Ana Martins Marques espia a morte vivendo”, Grupo Matinal Jornalismo. Entrevista concedida a Ricardo Romanoff. Publicada em julho 2021. Disponível em: <https://www.matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/literatura/risque-esta-palavra-ana-martins-marques/>. Acesso em: 30 de ago.2021.

MARQUES, Ana Martins. “Prêmio Oceanos: ‘O livro das semelhanças’, de Ana Martins Marques”, Prêmio Oceanos. 2016. (1min11s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MReAm-i-hlA&t=9s>. Acesso em: 30 de ago.2021.

MARQUES, Ana Martins. “Para escalar e cair em versos montanhosos”, Suplemento Pernambuco. Entrevista concedida a Ronaldo Bressane. Publicada em agosto de 2015. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/entrevistas/1464-entrevista-ana-martins-marques.html>. Acesso em: 30 ago. 2021.

MARQUES, Ana Martins. “Ana Martins Marques fala sobre ‘O Livro das Semelhanças’”, Jornal do Commercio. Entrevista concedida a Diogo Guedes. Publicada em outubro de 2015. Disponível em: <https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2015/10/10/ana-martins-marques-fala-sobre-o-livro-das-semelhancas-203062.php>. Acesso em: 30 de ago. 2021.

 

Notas

[1] Ensaio que faz referência a uma frase dos cadernos de Ana C.: “como mote de uma aproximação da poesia de Ana Cristina Cesar exatamente via rascunho, burburinho. E às vezes literalmente via rabiscos, desenhos, riscos”, escreve Flora Süssekind (2016, p. 55). O que chama atenção nesses projetos de rascunhos de Ana C. é que essa ordem antirrisco se contrapõe sobretudo a “sua desejada limpeza aos riscos e correções dos diários-de-escrita a que pertence” (Süssekind, 2016, p. 55). Além disso, contraria, de certa maneira, a “ironia prévia, lançada em Luvas de pelica: ‘Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias’” (idem, p. 55-56).

[2] Em minha dissertação de mestrado, As paisagens da memória: uma leitura da poesia de Ana Martins Marques, trato do diálogo entre as poéticas de Ana Martins Marques e Ana Cristina Cesar.

[3] A fala de Ana Martins Marques faz referência aos livros escritos em parceira: Duas janelas (Luna Parque, 2016), com Marcos Siscar, e Como se fosse a casa: (uma correspondência) (Relicário Edições, 2017), com Eduardo Jorge. Também faz referência ao seu primeiro livro, A vida submarina (Scriptum, 2009), relançado este ano junto com Risque esta palavra, ambos pela Companhia das Letras.