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SESSENTA ANOS DO GOLPE DE 1964: INTERFACES ENTRE LINGUÍSTICA E LITERATURA

A literatura de testemunho e gêneros correlatos, tais como biografias e autobiografias, dominam o processo de construção da memória da ditadura militar instaurada no Brasil em 1964 e que perdurou até o final dos anos 70. São dezenas de narrativas dos que lutaram contra a ditadura ou foram por ela perseguidos, presos, supliciados, exilados, ou por causa dela perderam amigos, pais e irmãos. Uma produção incessante que continua até nossos dias, mais de meio século após o golpe.

Falam de si, de sua experiência, e falam pelos que não sobreviveram à ditadura ou sobre ela não conseguem falar. Testemunhas participantes, não meramente contemplativas, dos eventos que relatam, o que é uma característica demarcadora do gênero. Suas narrativas frequentemente atingem a fronteira do impensável, do que não se pode expressar por palavras.

O gênero está associado aos eventos traumáticos do século XX, em especial as duas grandes guerras e o Holocausto. É a escrita dos vencidos, dos derrotados, dos que perderam. Embora de natureza essencialmente pessoal, desencadeia processos de construção da memória coletiva ao evocar um passado traumático que a sociedade dos vencedores frequentemente faz por esquecer ou ocultar. Uma escrita naturalmente contra-hegemônica.

Os estudiosos da literatura de testemunho apontam como duas de suas características principais a ênfase no registro factual e histórico e a sinceridade dos relatos, que devem ser entendidos, no entanto, como exercícios da memória, com todas as armadilhas disso decorrentes. Uma escritura também memorialista.

Os estilos são em geral singelos e desprovidos de ambições estéticas. Não obstante, carregam na indignação contra iniquidades e atrocidades cometidas. E um forte compromisso com uma ética humanística. O apelo comum implícito nos testemunhos é o de que “nunca mais” se repita o que aconteceu.

Com frequência, o narrador expressa rancor e vergonha pelas humilhações sofridas e, mais sutilmente, sentimento de culpa por ter sobrevivido ou por não ter feito mais ou melhor por seus companheiros ou familiares mortos ou desaparecidos. É uma literatura de catarse. Tem, muitas vezes, função terapêutica, de elaboração de um trauma ou busca de sua superação.

As obras mais notáveis dessa literatura são justamente as marcadas pela função terapêutica, tais como É isso um homem, de Primo Levi, considerada paradigmática do gênero. Entre nós destaca-se Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares. Diz ele que tinha pesadelos recorrentes que só cessaram depois de escrever seu testemunho.

Capa de Querida família, de Flávia Schilling. Editora CooJornal, 1978.
Capa de Querida família, de Flávia Schilling. Editora CooJornal, 1978.

Na primeira fase dessa produção numerosa, predominaram entre nós os que chamo de livros-exílio. Com a instauração da ditadura, o exílio será a primeira vivência traumática de intelectuais, acadêmicos, pesquisadores e ativistas políticos, cassados, despojados de direitos políticos, demitidos de seus empregos ou na iminência de serem presos. E não eram dezenas e sim centenas de exilados, certamente passando da casa dos mil e quinhentos.

Memórias do Exílio, de Arthur José Poerner, foi publicado em Lisboa em 1976. Nos dois anos seguintes surgem Tempo de Ameaça, de Rodolfo Konder, cujo subtítulo é “(autobiografia Política de um Exilado)”, o primeiro tomo das memórias de Gregório Bezerra, exilado na União Soviética, onde permaneceu até a Anistia, em 1979, e Querida Família, de Flávia Schilling.

Livros-exílio refletem em primeiro lugar o espanto por se verem repentinamente afastados de seus amigos e famílias, destituídos de seus empregos e desprovidos de uma renda do trabalho. São narrativas de travessias, algumas longas e sem retorno, outras repletas de peripécias. Expressam carências, dificuldades de sobrevivência e de adaptação, e obviamente nostalgia e saudade. Alguns, como Bezerra, voltam a vivências anteriores ao trauma que os levou ao exílio e até à primeira infância, no intuito de melhor entenderem o sentido tomado por suas vidas.

O exílio seguirá habitando a literatura de testemunho pelos anos afora, mesmo nas obras em que o tempo mais longo vivido não é do exílio, como em Um Gosto Amargo de Bala, de Vera Gertel, publicado em 2013. O último livro-exílio que me chega às mãos é de 2024: Encontrar seu Lugar, de Bernardo Boris Vargaftig, minucioso testemunho das perseguições sofridas por intelectuais e cientistas assim que se instaurou o golpe de 64. Esse médico e biólogo passou os quarenta anos seguintes de sua vida em instituições de pesquisa da Europa, entre elas o Instituto Pasteur.

Com a anistia no horizonte, vai se dar uma nova onda de literatura de testemunho. Em 1979 surge O que é isso companheiro, de Fernando Gabeira, que provoca um frisson por romper com os dogmas da esquerda. Nos anos seguintes sucedem-se Camarim de Prisioneiro, de Alex Polari, e Os Carbonários, de Alfredo Syrkis, Tirando Capuz, de Álvaro Caldas, Guerra é Guerra, de Índio Vargas, e Pedaços de Morte, de Flávio Koutzii. Predomina nessa fase a denúncia das atrocidades da ditadura. Mas, já está presente a autocrítica da luta armada.

Mais de uma década depois surgiria uma segunda onda de autobiografias, começando pela coletânea de 32 depoimentos de militantes presos no Presídio Tiradentes. Seguem-se a autobiografia de Dom Paulo Evaristo Arns, Da Esperança à Utopia, e O Baú do guerrilheiro, de Ottoni Fernandes Junior, Por um Triz, de Ricardo Azevedo, Minha Vida de Terrorista, de Carlos Knapp, O Assalto aos céus, de Takao Amano, Resistência atrás das grades, de Maurice Politi, Percursos Irregulares, de Carlos Botazzo, O cão morde a noite, de Emiliano José. Em 2022, Roberto Elizabetsky publica Um dia esta noite acaba, que se detém em episódios decisivos da época, entre eles o do justiçamento de Boilesen, o empresário envolvido com a repressão.

É como se cada um que passou pelos cárceres da ditadura, ou amargou o exílio, ou perdeu amigos e parentes, sentisse a necessidade de se explicar. São confissões, ajustes de contas, algumas consigo mesmo, outras com filhos e netos, que conheceram pais e avós como pessoas, mas não como personalidades políticas. E há as que dirigem aos espíritos de companheiros mortos ou desaparecidos.

Talvez se tivesse ocorrido desde cedo um acerto de contas coletivo sobre as atrocidades da ditadura, nem todos teriam necessidade de fazer seu acerto pessoal. A tragédia que foi nacional e coletiva, acabou se manifestando, na elaboração histórica, como um sem-número de tragédias pessoais e familiares.

Antonio Candido aponta três características dos relatos dos presos do Presídio Tiradentes: nenhum de seus autores se coloca como vítima, todos tentam ser sinceros e todos escrevem num tom de “eloquência discreta”.

São narrativas de sobrevivência na dor: “Escrever sobre fatos tão dolorosos como a prisão, tortura, anos afastado da sociedade é muito doloroso. Pior ainda quando se assiste, da prisão, impotente, ao assassinato de tantos companheiros de luta”, escreve Ottoni na apresentação de suas memórias.[1]

Alguns relatos são terríveis, porque terríveis eram os métodos da repressão, poucas vezes igualados na história. Muitos foram levados à loucura ou suicidaram-se anos depois, alguns já no exílio, suas psiques irremediavelmente despedaçadas. Vários vivem até hoje no exílio, e há os que vivem numa espécie de exílio mental, não conseguindo se libertar das sequelas psíquicas da tortura e da perda de companheiros mortos e desaparecidos. “Mais de quarenta anos depois, essas lembranças ainda causam arrepios e lágrimas”, diz o deputado Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, também ex-preso político, numa breve memória recém-publicada.[2]

Ressalto a brutalidade de tudo isso porque ela explica talvez a ausência de ambições literárias nessa produção autobiográfica. É como se não se pudesse fazer poesia com coisa tão sórdida. Theodor Adorno já questionara, em 1949, se era possível fazer poesia após Auschwitz. No estilo, que Antonio Candido educadamente chama de “eloquência discreta”, a eloquência está nos fatos, a discrição está no estilo.

Irmã da autobiografia é a biografia escrita por amigos, parentes, ex-companheiros ou admiradores dos biografados, também numerosas na produção da memória da ditadura. Caracterizam-se pela técnica do jornalismo investigativo, com pesquisa de arquivos e entrevistas com familiares, amigos e companheiros dos biografados. São homenagens aos biografados. São livros-lápides.

Capa de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Oldack Miranda e Emiliano José. Editora Global, 10ª edição.
Capa de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Oldack Miranda e Emiliano José. Editora Global, 10ª edição.

Uma das primeiras é a de Lamarca, O Capitão da Guerrilha, pelos jornalistas Oldack Miranda e Emiliano José, de 1980. O Revolucionário da Convicção, biografia de Joaquim Câmara Ferreira, foi publicada por Luiz Henrique de Castro e Silva em 2010. A mais recente é a do principal líder da luta armada, Carlos Marighella, pelo jornalista Mario Magalhães, publicada em 2012. Também nesse ano foi publicada Antes do Passado, em que Liliane Haag Brum reconstitui a trajetória, até a morte, do seu tio Cilon Brun, desaparecido no Araguaia.

Há três biografias dedicadas ao jornalista Vladmir Herzog, escritas por seus colegas de ofício: o Dossiê Herzog, de Fernando Pacheco Jordão (1979), Vlado, 30 anos, de João Batista de Andrade, um roteiro de filme na forma de livro, e As duas guerras de Vladmir Herzog, de Audálio Dantas, publicado no ano passado, prêmio Jabuti.

Também homenagens são as biografias do líder de esquerda de Belém do Pará, Pedro Pomar, escrita por Luiz Maklouf e outros, e de Ricardo Zaratini escrita por José Luiz del Roio.

Renato Martinelli publicou talvez a mais tocante dessas biografias de amigos, a de Márcio Leite de Toledo, fuzilado pela própria organização a que pertencia, a ALN, por suspeita falsa de ter se tornado informante, tema já abordado por Jacob Gorender no antológico estudo da luta armada contra a ditadura, Combate nas Trevas, de 1987, mas que havia permanecido um tabu.

Em 2012, Cristina Chacel publicou a história do desaparecimento de Carlos Alberto Soares de Freitas e no mesmo ano saiu Um Homem Torturado, a biografia de Frei Tito, que se suicidou no exílio, escrita por Leneide Duarte Plon e Clarisse Meireles. Em 2015, é publicado Cova 312, de Daniela Arbex, história do militante Milton Soares de Castro, integrante da guerrilha de Caparaó.

A última que nos chega é Tempo dos Cardos, de Celso Horta, publicada em 2023. Cardos são uma espécie espinhosa de cactos. O livro investiga o mistério do desaparecimento de João Leonardo, um dos últimos militantes da MOLIPO e mergulha na história da própria MOLIPO e seu massacre pela ditadura.

Quase livros-lápide são as biografias que homenageiam militantes ainda vivos, entre elas Flávio Koutzii, biografia de um militante revolucionário, de Benito Bisso Schmidt, e a recentíssima José Genoíno, uma vida entrevista, de Silvio Kotter e Nicodemo Sena. Ambas têm base em longas entrevistas com o biografado.

* Bernardo Kucinski é jornalista e professor aposentado da Universidade de São Paulo. É autor de obras sobre economia, política e jornalismo e foi assessor da Presidência da República entre 2003 e 2005. Lançou, aos 74 anos, K: Relato de uma busca — seu primeiro livro de ficção, finalista de vários prêmios literários nacionais e internacionais — e, mais tarde, Os visitantes, ambos publicados pela Companhia das Letras.
Notas
[1] OTTONI, Fernandes Júnior. O baú do guerrilheiro: Memórias da Luta Armada Urbana no Brasil. São Paulo: Record, 2004.

[2] DIOGO, Adriano. Bagulhão – A Voz dos Presos Políticos Contra os Torturadores. São Paulo: Comissão da Verdade do Estado de São Paulo (Rubens Paiva), 2014.
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RÉ MEMORANDO

Sabe amiga
Aquela rebeldia
Onde deixada?
Netos e netas
Não a retomam
São outras suas batalhas
Lutamos a justa luta
Justa para quem?
Para muitos para muitas
Que não pediram que a lutássemos
Mas não colho
Frustrações
Ficaram memórias
E nossas mãos
Uma a outra
Bem dadas

E aquela manifestação
E como gritávamos

Capa do livro de poemas Eu, nosotras, de Mary Garcia Castro (Amitié, 2024).
Capa do livro de poemas Eu, nosotras, de Mary Garcia Castro (Amitié, 2024).
* Mary Garcia Castro é Ph. D. em Sociologia pela Universidade da Flórida, pesquisadora Visitante Emérita (FAPERJ/UERJ/NUDERG), professora aposentada da UFBA e pesquisadora na FLACSO-Brasil.
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BRASIL, PAÍS DO FUTURO?: AS UTOPIAS AUTORITÁRIAS E AS DISTOPIAS NA LITERATURA

Este artigo analisa a representação de narrativas utópicas e distópicas na literatura contemporânea brasileira, com foco, especialmente, no romance Tupinilândia, de Samir Machado de Machado. O objetivo é discutir como as utopias autoritárias, associadas à modernização conservadora, à exploração da terra e à “transição à democracia”, se entrelaçam com discursos distópicos na construção de uma narrativa nacional. A obra literária Tupinilândia será analisada a partir de uma temporalidade estendida das “utopias autoritárias” que, mesmo após a ditadura e até a contemporaneidade, se mantêm e se refazem.

A obra de Jaime Lauriano tem se preocupado, há algum tempo, em pensar e discutir as narrativas sobre as quais se fundam a história deste país. Um desses exemplos é O Brasil (2014), no qual reúne, em vídeo, matérias de jornais e propagandas oficiais difundidas principalmente durante o período da ditadura militar, de forma a observar e questionar como a propaganda atuou na construção e manutenção de um discurso ufanista. O Brasil “feito por nós”, conforme definem os governos militares, passa principalmente pelo reforço de premissas como desenvolvimento, nacionalismo, pátria, nação, “bom” cidadão, família, união e paz, além de toda uma imagética pertencente ao mito da “democracia racial”[1]. O campo semântico não é tão distinto daquele do último governo de Jair Bolsonaro. Na arte de Lauriano, as propagandas em que se exalta um nacionalismo exagerado e um controle total sobre as narrativas do país são recortadas por e entre matérias de jornal que demonstram as formas de censura e “excepcionalidade” praticadas a partir dos Atos Institucionais. A frase final do vídeo, “a paz se faz com quem ama o mesmo chão”, aponta para outra premissa problemática: a paz só pode existir com base em um nacionalismo, um mesmo “amor” e chão, dividido com, mas, sobretudo, imposto aos cidadãos.

A ideia de paz, lembra Carlos Fico (1997) no livro em que trata exatamente da análise da propaganda política que o regime militar brasileiro produziu, é central. Junto da paz estão outros tópicos relacionados ao campo do otimismo, ou seja, “exuberância natural, democracia racial, congraçamento social, a harmônica integração nacional, […] a alegria, a cordialidade” (Fico, 1997, p. 147). As propagandas ofereciam, de acordo com o historiador, a percepção de um acesso da população ao projeto desenvolvimentista dos militares e estabeleciam o que seriam as “bases morais” e os “valores brasileiros” que deveriam, então, formar o que entendiam ser a “identidade nacional”. Esse país, formado sobre essas bases, em comunhão, poderia, então, caminhar em direção “ao futuro”. Acima de tudo, a frase final implica que não pode haver paz se há uma divisão desse mesmo chão nacional, excludente e binário, que parte de um “amor” que exalta a família, a pátria, as forças armadas, mas também o discurso do “descobrimento” e da “miscigenação”, questões que o artista insiste em retomar neste e em tantos outros trabalhos, de forma a questionar o discurso de “fundação”, de “descobrimento” ou de “democracia racial” no país.

Se é verdade que as utopias libertárias às quais muitos dedicaram suas vidas nos anos 1960 e 1970, assim como uma certa avaliação dessas utopias no presente, a construção de um discurso utopista, por parte do conservadorismo, que trata similarmente de um “mundo dos sonhos”, de construir ou imaginar outro mundo, nada mais claro do que as utopias conservadoras e fascistas da extrema direita dos últimos anos. Conforme defende David Bell (2017),

[s]e mobilizando em torno de entendimentos nostálgicos, essencializados, racialmente exclusivos e não históricos de “Bom lugar”, supostamente sob a ameaça de “outros” — pessoas de cor, judeus, feministas, migrantes, queers, “gender non-conformers”, “babacas”, “esquerdistas” —, que são considerados como tendo sido empoderados pelas ramificações mais liberais da democracia liberal capitalista (relativa liberdade de movimento, reformas limitadas em torno de gênero e sexualidade), tal utopismo oferece visões de uma vida boa baseada em valores “tradicionais” associados ao lugar em questão. Promete “tornar a América grande de novo”, como diziam os bonés de Donald Trump. (Bell, 2017, p. 51)[2]

A pretensa criação desse lugar “maravilhoso” nas utopias da extrema direita se relaciona, em geral, de acordo com Bell (2017), ao conceito de nação. Nesse sentido, os “outros” seriam aqueles distinguíveis, diferentes, “incompatíveis culturalmente”. Esse utopismo conservador, então, seria afetivo, ou seja, organizaria a sensação de “falta de lugar” associando-se à noção reacionária de espaço que supõe unidade e/ou homogeneidade. No caso do Brasil dos anos 60, de acordo com as propagandas recuperadas por Lauriano (2014) e Fico (1997), o projeto de país utópico da ditadura militar visava uma eliminação da diferença, do outro — o comunista, aquele que não se adequava ao “Brasil feito por nós” e à “pátria”, berço do controle absoluto e autoritário.

Percebe-se, portanto, que os conceitos de “utopia” e “distopia” são relacionais e dependentes, portanto, de uma posicionalidade, conforme demonstra Gregory Claeys (2016), que argumenta, por exemplo, que a “utopia da Alemanha [nazista] era a distopia de todo o resto”. Podemos também pensar na Utopia de More, que, como lembra Bell (2017), apesar de lidar com a “utopia fundadora”, trata substancialmente de ocupação colonial. Similarmente, no caso do projeto de país da ditadura militar brasileira, a utopia pretendida (distopia para muitos) ou a “utopia autoritária” (D’Araujo; Soares; Castro, 2014) tinha como projeto o controle total e completo, a homogeneidade cultural, o monopólio da violência, o conservadorismo moral e o aprofundamento da exploração do trabalho e da natureza.

Além disso, como afirma Quinalha (2017), essa “utopia autoritária” tinha a pretensão de “totalidade e de alcance absoluto em todas as dimensões da vida social”. Não se tratava, de acordo com o autor, apenas de uma forma de governo que tinha como objetivo suprimir direitos e liberdades, mas de um projeto que “se abate sobre os corpos social, político, individual como um verdadeiro laboratório de subjetividades para forjar uma sociedade à sua própria imagem” (Quinalha, 2017, p. 28)[3]. Para tal, era necessário um aparato amplo, complexo e funcional, o que fez com que a repressão política e moral se desdobrasse em diferentes contextos e estruturações. Qualquer oposição a esse projeto de “grandeza do Brasil” só podia ser eliminada.

O projeto utópico da ditadura, entretanto, não dizia respeito apenas ao controle, à censura e à repressão, mas também a um processo de modernização intensa e conservadora pelas vias das características anteriores, conforme define Renato Ortiz (2014). A ditadura buscou um desenvolvimento acelerado da economia durante o “milagre econômico”, uma “intensa industrialização e urbanização da sociedade brasileira, uma reorganização do Estado, bem como a emergência de uma tecnocracia que dinamiza e regula as forças produtivas”, ou seja, “um conjunto de medidas que aprofundam a consolidação do que se denominava capitalismo tardio” (Ortiz, 2014, p. 226). Tratava-se, podemos dizer, de um projeto conectado com as disputas daquele tempo histórico: blocos econômicos, visões de mundo, ou “utopias de massas”, nos termos de Susan Buck-Morss ([2000]2018), comunismo e capitalismo, golpes e respostas revolucionárias, ditaduras e resistências na América Latina. Daí também a importância de ler, como demonstra Buck-Morss (2018), a construção das utopias de massa como o sonho do século XX, ou seja, “a força ideológica que conduziu a modernização industrial em ambas as formas capitalista e socialista. O sonho foi, ele próprio, o imenso poder material que transformou o mundo natural, investindo os objetivos produzidos, industrialmente, e os ambientes construídos de um desejo político e coletivo” (Buck-Morss, 2018, p. 15).

É preciso recuar um pouco no tempo, entretanto, observando atentamente à proposta de Jaime Lauriano, não se pode dizer que a violência da fundação da nação e sua proposta de “civilização”, baseada na barbárie, começou na ditadura, mas é muito anterior: estruturou-se no genocídio da população indígena e se construiu pela força de trabalho do povo negro escravizado, além de um certo discurso sobre a “democracia racial”. De acordo com Ortiz (2014), o projeto de modernização conservadora abarca vários períodos da nossa formação histórica e atravessa a nossa história. Se é verdade que, lembra Fico (1997), a ditadura “consolida e ressignifica a convicção de que vivíamos uma época superadora do atraso” (Fico, 1997, p. 84), é possível embarcar em uma perspectiva anterior que atravessa a nossa história e que tem como fundo um projeto de “longa duração” que quer construir e manter essa visão otimista do país, apagando e ignorando, ao longo do tempo, todos os problemas que supostamente podem ser resolvidos de forma mítica. Nesses processos, inventava-se uma nação que não existia, mas, sobretudo, uma nação para a qual era preciso lutar, exterminar, excluir.

Essa temporalidade, também percebemos, não se esgota com o projeto ditatorial. A “utopia autoritária”, então, mesmo depois do seu suposto fim, encontrará novos caminhos, “pós-transição”. É isso que defende Idelber Avelar (2003) em Alegorias da derrota: não houve uma oposição direta entre as ditaduras e os processos de redemocratização, já que as classes dominantes latino-americanas realizaram o que ele chamou de “transição epocal”, uma transição a saída da ditadura e de uma lógica “nacional” para um cenário complexo de inserção do Brasil na lógica capitalista de acumulação global. A ditadura teria, então, aberto caminho, de muitas formas, para a inserção do Brasil na ordem capitalista global e na estruturação neoliberal da economia, inclusive impedindo qualquer avanço contrário a essa lógica: matando, perseguindo e expulsando todos aqueles que se opunham, ou que poderiam fazê-lo, no futuro. O argumento de Avelar (2003), então, é de que a “transição epocal” não trata exatamente do momento posterior, mas da própria ditadura que, com o suposto retorno da democracia, nos manteve no lugar onde a ditadura nos deixou. A transição, afirma o teórico, seria apenas do Estado ao mercado.

Se a teoria de Ortiz (2014) não se enquadra necessariamente na proposta de Avelar (2003), ele também defende que, quem sabe, podemos dizer, o fim da ditadura militar tenha sido menos uma transição e mais uma “conquista”. Para o teórico, a ditadura possibilitou a modernização requerida pelo regime, alicerçando no país o capitalismo tardio e situando-o no mercado mundial de consumo e produção. O regime, assim, unindo formas de crescimento econômico, modernização e repressão, funcionou perfeitamente para as elites conservadoras que foram as principais favorecidas pelas políticas de Estado, antes e depois.

É o que também defende Ludmer (2013) ao perceber, no contexto da Argentina dos anos 2000, “a utopia realizada do neoliberalismo” na América Latina, um lugar cuja “posição global” se situa sempre no contexto de “atrasados”, incompletos, “instalados em outra situação e em outra história” (Ludmer, 2013, p. 22). O desenvolvimento, portanto, seria a forma de capturar o tempo histórico e estar de acordo com o tempo do capital e do império, de maneira a devolvê-lo como sentido de “progresso”, a serviço da biopolítica do tempo na América Latina, ou seja, “o corte do tempo como regime histórico faz com que a América Latina nunca esteja completa, que seu ser seja sempre remetido ao futuro, sendo essa uma das ideias-chave de nossa posição global” (Ludmer, 2013, p. 22).

Tupinilândia (2018), de Samir Machado de Machado, quem sabe, é um dos romances que mais se dispõem a analisar as formas da “utopia autoritária” no contexto histórico recente do Brasil, suas formas de reatualizações, sua relação com o passado e com o futuro, o mercado e o “progresso”: trata-se de uma espécie de ficção científica, romance de aventura e/ou distopia. Não é o primeiro (ou único) romance relacionado à temática da ditadura com um teor distópico: podemos pensar em Não verás país nenhum (1981) e Zero (1974), de Ignácio Loyola Brandão, e, mais recentemente, nas obras Sob os pés, meu corpo inteiro (2018), de Márcia Tiburi, e Meu corpo ainda quente (2020), de Sheyla Smanioto[4]. Na obra de Machado, um dos personagens principais é um parque de diversões e/ou cidade e/ou complexo de shopping center chamado Tupinilândia, construído no norte do país, perto do Xingu e da Transamazônica. O parque, inspirado na Disneylândia e na Fordlândia[5], projetado pelo magnata e empreiteiro João Amadeu Flynguer, incorpora a figuração do Brasil como “país do futuro”, o lugar da “utopia nacional” via consumo.

O livro é dividido em duas partes principais. Na primeira, intitulada Versão Brasileira e dividida em subcapítulos, constam títulos de distopias como 1984, Admirável Mundo Novo e Não verás país nenhum. O texto também faz uso de diferentes linguagens: matérias de jornal, diários, mapas, áudios transcritos, além de mencionar diferentes mídias criadas dentro do universo de Tupinilândia: bonecos, histórias em quadrinhos, tecnologias.

Conhecemos João Amadeus Flynguer a partir de um perfil feito para uma revista, escrita por Tiago Monteiro, jornalista e filho de um desaparecido político, e publicado no Reader’s Digest, agora impresso no romance. Filho de um americano, Amadeus Severo, vai para o Brasil fazer a sua fortuna em diversos ramos: usinas, móveis, tecnológicas e entretenimento. A fortuna advém desse momento inicial da família, que soube “aproveitar” as condições no Brasil para explorar a terra. Especialmente, o início de toda fortuna se deu na compra de cachoeiras por toda a Região Sul, necessárias para o desenvolvimento de hidrelétricas. O personagem, que havia lutado contra os nazistas, tinha completo desprezo pela ideologia genocida alemã e, no Brasil, isso se traduzia também no desprezo ao “autoritarismo pragmático e modernizante” do Estado Novo, representado pela ideologia própria da Ação Integralista Brasileira. O desprezo se estendia aos comunistas, claro. É já nessa matéria, portanto, que somos introduzidos à história e à ideologia do grupo, que se tornam importantes na narrativa: “nazistas e integralistas tinham cada qual sua visão autoritária de nacionalismo, mas faziam ações políticas conjuntas”; ainda, “convergiam na visão de mundo totalitária, no desejo de poder e imposição da força, e no antissemitismo” (Machado, 2018, p. 26)[6].

A narrativa segue, então, no contexto da dita transição brasileira, com o que chama de a “década perdida”: a passagem do governo militar para o civil. Faz questão de construir esse momento a partir de dois fatos paradigmáticos: o atentado à bomba na OAB, em 1976, e a tentativa de atentado do Riocentro, em 1981. No primeiro capítulo, a voz do narrador principal apresenta as tentativas de impedimento de qualquer avanço na dita transição: “o país caminhava para a abertura política. A economia, ‘para o abismo dos empréstimos do FMI’. A saúde pública, ‘para a epidemia da AIDS’, ainda assim, atentados à bomba vinham sendo uma constante nos últimos anos, desde que os militares anunciaram o processo de abertura política” (Machado, 2018, p. 37). Nesse momento, a investigação sobre atentados está sendo feita por um amigo de Tiago Monteiro, também jornalista, chamado Alexandre Gomensoro, que quer ter acesso à família Flynguer para questionar uma suposta atribuição dos atos à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que, por sua vez, de acordo com seus conhecimentos, já não estava mais na ativa havia mais de uma década. A informação que possuía, então, era a de que os atos faziam parte de uma rede ampla que tentava impedir o retorno dos civis por parte de um grupo de insatisfeitos no Exército, bem como de um grupo de integralistas chefiado pelo personagem fictício do general Newton Kruel, na época, chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI). Kruel, agora afastado do SNI, teria sido designado interventor de um município recém-criado no interior do Pará, considerado área de segurança nacional e chamado “Amadeus Severo”. O projeto, até então sigiloso, parecia se tratar de uma nova hidrelétrica. Entretanto, a tentativa de pesquisar o que acontecia no lugar foi impedida: o jornalista foi encontrado morto.

O momento parecia, para o magnata Flynguer, uma virada no contexto brasileiro: “os tempos estão mudando, um novo começo para esse país, um começo do qual gente como ele não faz parte, um começo para quem vê o futuro, como nós, e que não vive no passado” (Machado, 2018, p. 59). É diante disso que planeja a construção de Tupinilândia, nos anos 1980, e busca arquitetar esse parque de identidade nacional a partir de símbolos também nacionais, conforme demonstra o nome. Para o magnata, o “controle da narrativa” era o que definia a política, seja pela capacidade da Rede Globo em controlar o real – que ele se referia quando dizia “se não passou na Globo, nem aconteceu” (Machado, 2018, p. 80) –, seja para estruturar a forma de dizer e de contar sobre o parque. É para isso que cria também um gibi com o mesmo nome, de forma a tornar os visitantes atentos às questões propostas pelo parque: é necessário, agora, “reconstruir a narrativa nacional”. O objetivo é ter o parque e a nova narrativa prontos para a próxima eleição: “um marco de uma nova era para o país. Uma era de otimismo e modernidade. Uma época de belezas” (Machado, 2018, p. 72). O projeto de modernidade era também central, dado que o parque seria a personificação dos ideais do futurismo de Marinetti: “um canto ao amor e ao perigo, ao hábito da energia, o movimento agressivo, o salto mortal, a beleza da velocidade” (Machado, 2018, p. 72).

O romance insere os diários de João Amadeus e o processo de definição das muitas simbologias do parque. Para começar, era necessário que essa utopia (distópica) fosse construída no Brasil “profundo”: treze quilômetros quadrados próximos a Altamira, no Pará, na margem sul do Xingu, perto da Transamazônica, o que permitia um bom acesso e trazia uma “aura romântica” para o projeto. Usaria apenas “empresas nacionais” como apoiadoras e fornecedoras. Além disso, para essa recriação, seria necessário levar a modernidade e a civilização para esses lados: hotéis, transportes, hospitais para turistas, funcionários que lá morariam, sempre isolados no parque de diversões. O parque era, além disso, tomado por muita tecnologia de controle: tudo se via, se sabia e se controlava, desde a música, a temperatura, os vídeos e o som. O maquinário, trazido dos Estados Unidos, era a única estrutura “não nacional”. A utopia é, então, descrita, em oposição ao mundo fora dali, pelo narrador:

[e]m Tupinilândia, tudo sempre daria certo, pois fora planejado para ser assim, para sufocar a alegria do samba, o sabor das frutas e a rapidez de seus ritmos, aquela tão sutil e oculta tristeza brasileira, tristeza que nascia do sentimento de fracasso pela miragem do progresso do país do futuro, um futuro que projetava constantemente à sua frente e fugia para longe na mesma velocidade com que se corria atrás dele. Em Tupinilândia a realidade cinzenta de inflações e desmatamentos descontrolados, dívidas externas e generais antipáticos, oligarcas grosseiros e celebridades vulgares seria trocada por outra versão da realidade, com seu colorido hiper-realista de gibi, onde tudo funcionaria perfeitamente, tudo seria sempre feliz e animado como num programa infantil onde todos teriam direito a prêmios. Tiago sorriu com a conclusão de que, no final das contas, aquilo era uma coisa genial: se Tupinilândia já não existisse, seria preciso inventá-la. E foi o que João Amadeus Flynguer fez. (Machado, 2018, p. 105)

Na estação de boas-vindas, formada por uma “rodoviária futurista” de onde sairiam os ônibus, direto de um dos maiores empreendimentos da ditadura, a Transamazônica, entregava-se o mapa ilustrado do parque – inserido ao final do romance como paratexto. Eram cinco parques temáticos: País do Futuro, Mundo Imperial Brasileiro, Centro Cívico Amadeus Severo, Reino Encantado de Vera Cruz e Terra da Aventura. Neles, são misturadas uma série de referências: imperiais, coloniais, autoritárias e, principalmente, “nacionais” ou, ao menos, da história hegemônica e violenta do Brasil. Assim, ao mesmo tempo em que se intitula “tupi” e se faz referência à influência indígena, sobressaem-se referências ao “modernismo”, bem como às lógicas imperiais. Valorizava-se, então, uma história monumental, majestosa, de um país que nunca existiu, mas que era preciso criar, inventar, reconstruir, nem que fosse pela narrativa. Cada um dos parques temáticos abrigava ainda uma série de atrações, em grande parte, acompanhadas das marcas nacionais: Roda Gigante Phebo®, Pavilhão Aviação Varig®, Minimundo Lacta®, Piratas do Brasil Guaraná Brahma®, Barco do Amor Laka®, Castelo Encantado Piraquê® e Casa Gigante Itubaína®[7]. Lá, não se tratava apenas de valorizar o nacional, mas sobretudo de consumi-lo, já que o espírito do país, dizia João Amadeus, só poderia ser reinventado, na saída da ditadura, pelo consumo e pelo mercado. As descrições do livro, também muito vivas, coloridas e vibrantes (como a capa), são profusas: são imagens construídas para que se veja e descubra o projeto, como um visitante, à medida que o narrador acompanha os personagens que ali descobrem esse novo mundo, do futuro.

Capa do romance Tupinilândia, escrito por Samir Machado de Machado. Fonte: Todavia.
Capa do romance Tupinilândia, escrito por Samir Machado de Machado. Fonte: Todavia.
Mapa de Tupinilândia.
Mapa de Tupinilândia.

Uma das atrações mais polêmicas chamava-se Museu Brasileiro da Vergonha: ali, com animatrônicos, encenava-se a tortura, de forma bastante realista. Eram bonecos nus em que se enunciavam os métodos de tortura: pau de arara, pimentinha, geladeira, coroa de cristo, corredor polonês. Cada uma das formas era anunciada e reproduzida. João Amadeus entendia naquele lugar uma forma de “reconstruir a imagem que o país tinha de si mesmo apesar de sua história, e não com ela” (Machado, 2018, p. 164). Até porque entendia que não poderia furtar-se de contar o que havia de mais sombrio na história nacional – mesmo que não considerasse a lógica do “descobrimento” e do “poder imperial” como uma delas. Tinha um compromisso, dizia, em denunciar o que essa “corja de fascistas” havia feito e o medo que tinha dessa “mentalidade autoritária” que continuava no país. A possibilidade de recuperar esse passado recente na época faz com que o medo de regresso ao autoritarismo se manifestasse em um deputado que visitou o Museu e que se preocupava com o que fariam os militares se soubessem que Tancredo, o presidente seguinte – a visita mais esperada na inauguração – passaria por lá. O espectro do retorno e do recuo, na transição, tomava as mentes da época, principalmente porque conheciam a extensão e o poder das Forças Armadas naquele momento (e depois dele).

Enquanto isso, o narrador também se volta à figura de William da Silva Perdigueiro: antes, o responsável por evitar “assaltos a banco” ou “sequestros de embaixadores”, agora, entediado, era um oficial burocrata da censura. Sem mais o antigo inimigo, o comunismo, era hora de alargar os sentidos do seu trabalho – já amplos –: “os comunistas tinham se infiltrado nas redações de todos os jornais, com tentáculos que convertiam em oponentes aqueles que antes lutavam a seu lado, chegando até mesmo a fazer do general Golbery […] um defensor da abertura política” (Machado, 2018, p. 68). É ele quem mobiliza outras forças para responder ao projeto do parque de João.

Este projeto audacioso de “utopia futura” via mercado é, portanto, interrompido por “utopias” conservadoras do passado: um grupo de integralistas que acusa o parque de tentar fundar uma cidade comunista. Contrários à abertura e à redemocratização do país e enxergando no projeto de João uma continuidade da lógica “comunista” e da “apologia contrária aos preceitos da ditadura”, um grupo de integralistas toma a cidade e faz uma caçada, em uma das partes mais aventurescas do romance, contra a família Flynguer e seus funcionários. Para proteger a sua família e organizar a fuga dos filhos e netos, João aborta a ideia do parque e decide morrer por lá mesmo, dado o fato de que também já convive com um câncer em estágio terminal. A “utopia do futuro” é interrompida pelas “utopias do passado” integralista.

Depois de um fim que deixa o leitor quase sem fôlego, o livro dirige-se à sua segunda parte: distanciada em mais de 30 anos, inicia com Artur Flynguer (quase o mesmo sobrenome, mas de outra família), um antropólogo obcecado pelas histórias em quadrinhos feitas nos anos 80, que não conhecia a história efetiva sobre o parque, tampouco sabia se havia existido, e recebe uma bolsa de pesquisa do próprio instituto da família Flynguer para mapear e recriar, virtualmente, o que seria esse projeto empreendido por João Amadeus, antes que o lugar fosse esgotado e afogado pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. Mantendo o parque de Tupinilândia como fio narrativo, o romance opera uma ruptura temporal. Agora, não sabemos o que aconteceu com a família Flynguer, com o parque e tampouco com os integralistas. O Brasil está, no momento da narração, em outra “transição” e com intensos debates políticos: o impeachment de 2016 e sua definição como golpe ou não; o contexto da mudança política e sua relação com empresas, empreiteiras, a partir da Lava Jato; a relação que se aprofunda com as Forças Armadas; e a aproximação de novas formas de fascismo. O contexto, bastante específico, de repressão aos atos de rua, de “sigilo” sobre documentos ainda importantes, de radicalização da polarização, do retorno de discursos nacionalistas povoam as perspectivas do momento e são retomado, às vezes, de forma bastante acadêmica e didática pelo romance.

O pesquisador, ao chegar à região onde ficava o parque com sua equipe de pesquisa e família, acaba descobrindo que o lugar ainda se mantém, mas foi tomado e constituído como uma colônia e cidade completamente dominada pelos grupos integralistas, afastada do restante do mundo e parada no tempo: os militares ainda estão no poder, a Guerra Fria nunca terminou e os “inimigos comunistas” ainda devem ser aniquilados. Na primeira parte, que se dizia a construção de uma lógica utópica, nomeiam-se os capítulos com títulos distópicos; a segunda parte, com tons distópicos também evidentes, é recheada por títulos “esperançosos”. Essa ruptura temporal que opera entre a primeira e a segunda parte, portanto, é rapidamente alcançada, dado que a maior parte das questões “do passado” seguem “as mesmas”: o que moveu os integralistas, antes, continua aqui como projeto “nacional”, fundador, e as lógicas autoritárias e violentas permanecem. Não só isso: os privilégios, os problemas, a intensificação de lógicas de poder no Brasil persistem e se aprofundam, como podemos perceber no papel da família Flynguer e dos seus privilégios no romance.

São muitas as questões sobre a “utopia autoritária” da ditadura que, no deslocamento temporal entre a transição para a democracia e o contexto pós-impeachment, são recuperadas. A primeira delas, quem sabe, é um contexto amplo de apoio e complacência das elites com os regimes de governo, independente da ideologia. Conforme demonstrou Maria Helena Alves (1988), as elites brasileiras sempre estiveram engajadas com os regimes políticos, seja antes ou depois da ditadura. A “transição desde o topo” fez com que as elites fossem até mesmo responsáveis pelas negociações e reformas necessárias para “liberalizar” o regime; ou seja, a partir dessas negociações, o Estado brasileiro foi capaz de continuar os processos de abertura não “comprometendo as estruturas básicas de controle político ou alterando significativamente o modelo econômico”[8] (Alves, 1988, p. 49). No romance de Machado (2018), portanto, a figura de João Amadeus, que parece, à primeira vista, dotado de uma ideologia difusa, torna-se, aos poucos, evidente: uma ideologia que insere, como prioritária, a lógica de mercado, de consumo e, principalmente, que destaca uma lógica estrutural de poder e de privilégio das elites nacionais – e internacionais. A utopia da família Flynguer aponta para a “monopolização do poder político pela elite”, à qual remete Alves (1988), mas também para a possibilidade de controlar o discurso e a narrativa da história nacional.

Assim, apesar de declarações supostamente contrárias ao fascismo, à ditadura e ao integralismo, a família Flynguer atuou na manutenção financeira da deflagração do golpe contra João Goulart. Depois, no contexto da transição, facilmente passaram, junto a outros grupos da elite, para a defesa da abertura, junto com as mobilizações populares, a exemplo das Diretas Já, sem esquecer, claro, dos interesses financeiros que estavam em jogo. Agora, na segunda parte, é essa mesma família que está envolvida nos escândalos de corrupção das empreiteiras que adotaram, diante do contexto democrático, formas de intervir diretamente na ordem política, cultural e econômica.

Nessa parte, também retoma o contexto específico de exploração da natureza: a hidrelétrica de Belo Monte. O parque Tupinilândia, construído perto do que seria a nova grande obra, projeto da ditadura militar, e então recuperada décadas depois pelo governo Dilma – extremamente complexa e polêmica, bem como responsável por deslocar e violentar as comunidades ribeirinhas e indígenas, submetida a questionamentos de ativistas ambientalistas – está perto de ser inundado, junto com o restante da área do Xingu. Também me parece importante pensar aqui como o livro, na medida em que insere o contexto de aumento brutal do extrativismo, da expansão de latifúndios, da construção de hidrelétricas, demonstra como qualquer alternativa de futuro não só vai ser difícil como terá que, mais uma vez, tentar ultrapassar outras razões, mais fundamentais e estruturais da ordem econômica e política, que, independentemente de todo o espectro político, até agora ignoram a necessidade de uma proposta séria para as questões ambientais.

A obra do parque – que era um “sonho utópico de consumismo nacionalista e utópico” para João Amadeus – como tantas outras, descobriu o pesquisador responsável por reconstruir sua história, só poderia se dar no deslocamento até a Amazônia. A construção de Tupinilândia, como todas as obras monumentais a que nos referimos, teria se dado por e a despeito das vidas humanas perdidas: “da mesma forma como se dizia que cada pilar da ponte Rio-Niterói era também um túmulo”. Naquele momento, Artur, o pesquisador, percebia a “monstruosidade” da obra e o estrago ecológico que teria feito, caso tivesse dado “certo”. Além disso, “não havia registros de problemas em comunidades indígenas na construção de Tupinilândia, mas, como tudo na época da ditadura, a falta de registro não significa a ausência do ocorrido; muito pelo contrário. Era algo que estava implícito nas fotos que vira, mostrando o perímetro dos parques formado por um muro alto e eletrificado no topo” (Machado, 2018, p. 314).

Assim, apesar do nome do parque e da suposta preocupação com os indígenas, incluindo uma denúncia que conhecia através do Relatório Figueiredo[9], João Amadeus não tinha nenhuma preocupação com os grupos que ocupavam a área que não fosse apenas para estabelecer uma certa “negociação”, capaz de comprar o lugar “sem problemas”. Nesse sentido, o Reformatório Krenak, que era uma prisão “étnica”, não poderia ser de interesse do empreiteiro:

João Amadeus escutou aquela história com um distanciamento quase indiferente, apenas mais um pedaço da colcha de retalhos de histórias cruéis que se entrelaçavam na construção do país. Mas, pouco tempo depois, estava em Minas Gerais, cavalgando na fazenda de um dos muitos sócios de seu falecido pai, quando aquele nome voltou a ser mencionado. “Isso aqui era tudo terra de índios krenaks”, disseram-lhe. A Funai havia cedido aquelas terras aos fazendeiros locais, que, em troca, entregaram ao governo federal uma fazenda, a Fazenda Guarani. E João Amadeus se perguntou: para que a Funai iria querer uma fazenda? Ora, para ter onde enfiar todos os índios da região que seriam realocados com a cessão das terras, e mais os que vinham de todo o país para a antiga prisão indígena conhecida como Reformatório Krenak. (Machado, 2018, p. 169)

A sua postura era de “não entender e tampouco questionar” o que era feito com essas pessoas. A utopia de João Amadeus, então, seria construída em terra indígenas, mas sem se importar com o que aconteceria àquele povo, como, em geral, foram aplicadas as políticas das elites do país. Nessa utopia, portanto, não caberiam outras vivências ou experiências que não aquela de uma população com acesso, de classe alta e branca. Todas as outras formas de vida, situadas fora dessa utopia, portanto, são entendidas como retrocessos, “barbáries” ou “atrasos” no “progresso” do tempo histórico. Importante pensar aqui, também, na incapacidade, até hoje, das políticas públicas de reparação e memória de inserir as demandas específicas dos povos indígenas, um dos grupos mais atingidos pela repressão estatal, antes e depois do regime militar. A ditadura, em muitas formas, atingiu as suas formas de vida (e de morte)[10].

É o que defendem Demetrio e Kozicki (2019) quando falam da (in)justiça de transição para os povos indígenas: a ditadura significou, em números provavelmente postos para baixo, pelo menos oito mil indígenas mortos, povos inteiros e culturas negadas, a prisão e o uso de trabalho forçado indígena, bem como o início da construção de empresas que modificaram completamente as suas formas de vida, como a Transamazônica, a idealização da hidrelétrica de Belo Monte – projeto da época – bem como a construção de Itaipu e da estrada da Perimetral Norte. A resposta a uma política efetiva de justiça de transição, no caso dos povos indígenas, exigiria, portanto, não apenas o direito à memória, à verdade e à justiça, mas também ao território. Isso não quer dizer, segundo os autores, que a exploração e a violência contra esses povos tenham começado no período da repressão militar, mas é fato que os projetos políticos e econômicos da ditadura os atingiram com grande força. Ainda que não os tenha classificado como “comunistas” ou “subversivos”, dizem Demetrio e Kozicki (2019), a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) faz questão de mostrar como os indígenas também foram classificados como inimigos ou, no mínimo, obstáculos para o desenvolvimento modernizador do Estado. Essa história, até o momento, não foi devidamente contada.

Tupinilândia nos faz, então, questionar a falta de personagens indígenas e o que pretende mobilizar quando decide colocar na voz problemática de Flynguer uma avaliação desses povos. Mais: faz-nos questionar o que seria uma distopia para esses povos. Seria o agora? Seria o “Brasil”? Seria a proposta que circulou recentemente de um “marco temporal”, que quer dizer que só podem ser considerados cidadãos com direitos territoriais a partir de 1988 e da Constituição? O romance lida com a representação dessa disparidade fundamental e violenta entre os povos indígenas e as elites do país que mesmo, e sobretudo, porque e quando ocupam as terras destes povos, não têm interesse no seu destino. No presente da narração, os indígenas continuam sem acessar o espaço do parque que lhes parecia, ao que dizem os integralistas, “assombrado”.

A lógica binária que não acolhe esses corpos, típica do autoritarismo, é levada a extremos na Tupinilândia como República Integralista do Brasil. O tempo da ideologia integralista tinha encontrado a sua máxima representação ali. Junto da ideologia de João Flynguer, aprenderam que o que importava era a narrativa que contavam: o Brasil havia sido tomado por comunistas, médicos, padres e jornalistas financiados pelo empresário “comunista” João Amadeus Flynguer e liderados por Miguel Arraes e Leonel Brizola. Contra eles estava o general Newton Kruel, que teria se oposto à invasão e, por conta dessa disputa, dividido o país em dois. Foi assim que teria sido fundada a República. Qualquer inimigo da Nação que invadisse o território, ou fosse identificado, era julgado na frente de todos, mas ninguém era nunca inocentado. Quem julgava, inclusive, eram os animatrônicos do coronel Brilhante Ustra, ministro da Justiça, do general Sylvio Frota, ministro da Defesa, e do presidente da República, Newton Kruel, este último já bastante velho. A economia de governo, política e cultura de Tupinilândia era, então, baseada nisto: entre os cidadãos, aqui chamados de “consumidores”, e inimigos; entre heróis e alvos; e entre integralistas e comunistas. Não por acaso, há um uso reiterado da “saudação integralista” “Anauê”, que, de acordo com Gonçalves e Neto (2020), significa “[v]ocê é meu parente”, uma forma de integrar o movimento, além de demonstrar respeito às hierarquias. Qualquer diferença deveria ser imediatamente eliminada. A simbologia, usada também no parque de João Amadeus, é aqui transportada para símbolos importantes ao integralismo, parte fundamental da sustentação da lógica da “republiqueta”.

Para isso, usavam a estrutura de panóptico e controle criada já no parque de João Amadeus. A utopia do controle tecnológico dos anos 1980 é usada, agora, ao máximo, para o controle total das pessoas, do espaço, da história. Aqui, servia, entretanto, de forma ainda mais intensa para estabelecer toda uma estruturação do viver do “tupinilandês”, ou seja, para controlar como deveriam se portar, falar e viver, e como as “castas” e hierarquias deveriam ser seguidas. A tecnologia, ao fim, é também o que possibilita a falha, antes e agora, a perda do controle: com João Amadeus, a possibilidade de entrada dos integralistas no parque se deu dentro do sistema altamente tecnológico e, agora, é também a entrada no sistema que permite que a verdade seja dita aos cidadãos. Para isso, os jovens insurgentes, junto de Artur e sua equipe, usam a linguagem do jornalismo e organizam um vídeo com uma retrospectiva dos últimos anos. O início: a queda do Muro de Berlim, sendo anunciada por Pedro Bial, simbolizando uma suposta ruptura no sistema econômico e político do século passado, negada ali até então.

Não demorou muito até que a população, que já carregava consigo muitas de suas suspeitas, entendesse o que significava aquele vídeo e a mentira em que viviam: o seu mundo deveria abrir-se para fora de lá, e eles seriam deslocados do que conheciam até então. Deveriam reconhecer uma nova temporalidade desconhecida. Em uma tentativa de negociação anterior, por parte de Helena Flynguer, a herdeira absoluta de João Amadeus, que continuava aceitando toda essa mentira e mandando mantimentos para Tupinilândia, foi oferecida, inclusive, uma forma de anistia “ampla, geral e irrestrita para todos que eram daquela época” (Machado, 2018, p. 376), à qual o general teria negado, dado que só sairia de lá morto, acompanhado dos seus: “povo pode ser gado, mas esse é o meu gado” (Machado, 2018, p. 376). É ela quem tem que negociar uma saída “limpa”, portanto, antes que tudo fosse parar nos jornais. As duas utopias (distopias) se imbricam agora na coexistência de temporalidades, a da família Flynguer e a dos integralistas saudosos do “governo militar”. Encontram-se, sobretudo, no tempo da anistia e da injustiça. Ainda que haja interesses políticos divergentes, não tão diretos, as ideologias a que remetem dialogam entre si: queriam recriar agora o autoritarismo a partir do consumo, do mercado, assim como o da exclusão e da negação de qualquer dissidência.

O epílogo do romance E você pensou que aquele foi o ano ruim – quem sabe um prenúncio de todos os anos desde então – narra o encontro entre Artur e Tiago, os dois outsiders que puderam observar de perto a família Flynguer, e os mecanismos de proteção ordenados pelas elites brasileiras. A utopia autoritária “de longa duração” havia servido para a manutenção dos poderes e para a garantia de uma entrada no sistema global do capitalismo. Ainda assombrados com a falta de informações sobre o parque, e com as curiosidades que ainda os tomavam acerca do futuro desse lugar mágico, relembram o que dizia João Amadeus, para quem: “a vida só faz sentido quando pode ser alinhada dentro de uma narrativa. E, de certo modo, é o conflito que move os tempos atuais […]. Quem contará a história dos tempos que vivemos? O embate final da Era da Informação será sempre pelo controle da narrativa” (Machado, 2018, p. 443).

Quem sabe seja por isso, ao fim, a escolha do autor ao tratar de maneira tão próxima a política nacional e contemporânea como ficção distópica: de que outra forma poderia tentar contar a história contemporânea? Que futuro pode ter esse Brasil? Ao demonstrar que o que há de mais distópico é o nosso presente e ele assim pode ser visto como um futuro de caos, crise e ruínas, uma utopia falha, problemática, como costuma ser descrita a conceituação de uma distopia, de acordo com Claeys (2016), o que sobra de um suposto futuro prometido? Ou de que lugares ele é pensado e construído? É o que faz Tupinilândia, portanto, ao nos aproximar da história do país, denunciar os mecanismos da ditadura militar e mostrar os limites de um presente que não avalia o seu passado, mas, ao contrário, assume no entretenimento e no consumo o seu horizonte final[11]. O romance, construindo uma série de imagens de futuro, possibilita um aprofundamento do nosso olhar sobre o presente – sem que o tenha encarado na época da dita “transição”, em que as forças conservadoras mantiveram o seu poder e controle sobre as narrativas – e, como uma distopia bastante relacionada com aspectos da atualidade, aponta para as formas de sobrevivência das utopias e ideologias autoritárias e poderosas do país. Nessa perspectiva, denuncia os mecanismos autoritários e conservadores do passado e do presente, as suas formas de permanência e de reinvenção. Ao fazê-lo, também situa historicamente esses projetos e podem desarmar a lógica do catastrófico e incontornável. Interroga, assim, o seu limite, o seu projeto e mobiliza as formas de questionamento sobre esse “futuro” que apresenta.

Nesse sentido, Florencia Garramuño (2019) aponta sobre a lógica do “Brasil, país do futuro”, esse país que, em muitos tempos, se apresentou nessa obra, que

[c]om o tempo, a frase quis dizer, antes, que a promessa do Brasil está sempre no futuro e nunca se concretiza. Extrema desigualdade social, fome, persistência do racismo e violência não foram erradicados: “O Brasil é o país do futuro, e sempre será”, é a observação irônica que contém a distância entre as previsões sobre a grandeza do Brasil e suas dificuldades em alcançá-la. O Brasil seria assim o país eterno do futuro, um futuro que nunca se materializa no presente. A promessa teria se transformado em condenação, e o futuro seria um amanhã que está sempre à frente e nunca será alcançado (Garramuño, 2019).[12]

* Lua Gill Cruz realiza estágio pós-doutoral na PUC-Rio. Foi professora visitante na Universidade do Chile através do Programa Leitorado Guimarães Rosa. É doutora e mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp.
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Notas
[1] De acordo com Thula Pires, em Colorindo memória e redefinindo olhares (2015), a Comissão da Verdade do Rio conseguiu recuperar documentos que demonstram como a ditadura militar adotou o mito da democracia racial “como instrumento ideológico-político” e, ao mesmo tempo, apresentava o “racismo institucional […] nas observações dos agentes de segurança sobre os discursos e atividades dos movimentos negros” (Pires, 2015, p. 12).

[2] Original: “Mobilizing around nostalgic, essentialized, racially exclusive and ahistorical understandings of ‘good place’ supposedly under threat from ‘others’ – people of color, jews, feminists, migrants, queers, gender non-conformers, ‘cucks’ ‘lefties’ – held to have been empowered by the more liberal ramifications of capitalist liberal democracy  (relative freedom of movement, limited reforms around gender and sexuality), such utopianism offers visions of a good life based on ‘traditional’ values associated with the place in question. It promises to ‘Make America Great Again’, as Donald Trump’s baseball caps have it.

[3] Também recomendo o catálogo da exposição Orgulho e resistências: LGBT na ditadura. Disponível em: http://memorialdaresistenciasp.org.br/catalogo-exposicao-orgulho-resistencias/. Acesso em: maio de 2021.

[4] Penso também no romance de Kucinski, A nova ordem (2019), não diretamente relacionado à ditadura militar brasileira, mas, podemos dizer, na medida do projeto literário e ético do autor, em grande parte inspirado nos seus mecanismos da repressão militar, bem como no contexto atual brasileiro – ainda que escrito antes da posse do presidente Jair Bolsonaro.

[5] A matéria de jornal, incluída como parte do romance, explica: “[r]eferia-se à cidade planejada por Henry Ford no meio da Floresta Amazônica trinta anos antes, hoje pouco lembrada. Parte utopia, parte hubris, fora feita para baratear os custos de extração de borracha, condenada ao fracasso pelo desprezo que Ford nutria pelas pesquisas em prol de experiências práticas. Isso levou seus homens a penetrarem na selva sem conhecer nada sobre ela ou sobre o plantio de seringueiras. Mas a ideia permaneceu lá” (Machado, 2018, p. 19). Sobre o projeto da Fordlândia, também recomendo o documentário Beyond Fordlândia (2017), de Marcos Colón.

[6] Sobre a temática, recomendo o livro de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo (2020), em que constroem uma interessante e bem fundamentada narrativa sobre o integralismo no Brasil, desde sua origem, com Plínio Salgado e inspiração fascista – com seus símbolos, ideologias e formas de organização política – até os movimentos neointegralistas atuais, como o ataque à produtora Porta dos Fundos no fim de 2019.

[7] A lógica distópica da realidade de venda de lugares com vocação pública para marcas, que recebem os seus nomes, já é, há muito, parte do contexto brasileiro. Enquanto escrevo esta tese, leio nos jornais que a estação de metrô Botafogo, no Rio de Janeiro, passará a chamar-se Estação Botafogo Coca-Cola. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/estacao-do-metro-botafogo-passa-se-chamar-botafogococa-cola-24824755. Acesso em: jan. de 2021.

[8] Original: “compromising the basic structures of political control or significantly altering the economic model.

[9] O Relatório Figueiredo é um documento composto de 29 volumes e abrange as atividades do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), principalmente no que tange a violências, massacres e corrupções contra os povos indígenas do Brasil, seja em relação a abusos, escravização, contaminações intencionais, expulsões de terras, entre outros. O Relatório também foi importante como um arquivo da repressão para a construção da sessão temática sobre as violações de direitos humanos dos grupos indígenas na CNV. Para acessar o Relatório, cf. http://museudoindio.gov.br/divulgacao/noticias/225-museu-do-indio-organiza-e-disponibiliza-relatorio-figueiredo. Acesso em: jun. de 2021.

[10] Cf. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura, de Rubens Valente (2017).

[11] O Brasil como commodity é questionado no interessante trabalho de Gilvan Barreto, Postcards from Brazil (s.d.), em que a partir de cartões postais turísticos convidativos, com os estampados de “Welcome to Brazil”, também insere imagens e discursos da ditadura. Em contraposição ao Brasil que se quer vender, apresenta o Brasil da violência. Disponível em: https://www.gilvanbarreto.com/works/Postcards-from-Brazil. Acesso em: jun. de 2021.

[12] Original: “Con el tempo, la frase ha significado más bien que la promesa del Brasil siempre está en el futuro y nunca se concreta. La extrema desigualdad social, el hambre, la persistencia del racismo y la violencia no se han erradicado: “El Brasil es el país del futuro, y siempre lo será’, es la observación irónica que encierra la distancia entre las predicciones sobre la grandeza del Brasil y sus dificultades para llegar a ella. El Brasil sería, así, el eterno país del futuro, un futuro que nunca se concreta en presente. La promesa se habría transformado en condena, y el futuro sería un mañana que siempre está adelante y que nunca se alcanza”.
Dossiê
Tempo de leitura estimado: 24 minutos

UMA LINGUAGEM QUE PROCURA: ESTÉTICA, EXPERIÊNCIA E POLÍTICA NO PROCESSO CRIATIVO

Em 2013, assisti na televisão o depoimento de uma mulher, ex-guerrilheira na ditadura militar do Brasil, que me impressionou muito. Ela contou que, em 1971, havia se afastado da militância política, por diversas questões, inclusive por pressões familiares. Eram os anos Médici, os anos de chumbo. Um dia, ela estava voltando para casa quando foi interpelada por dois policiais do DOPS. Há muito tempo ela não fazia uma ação de militância, o seu rosto e o seu nome não eram conhecidos pela repressão, por isso, ela procurou manter a calma. Eles revistaram a sua bolsa e não encontraram nenhuma arma, panfleto, livro, nada “subversivo” no sentido político. Encontraram, porém, uma cartela de pílula anticoncepcional. Ela foi presa e torturada por isso.

Na época, eu já havia começado a escrever o romance, O Corpo Interminável. Já havia lido entrevistas e depoimentos de mulheres que participaram da resistência contra a ditadura militar no Brasil. Em todos havia a consciência e a denúncia de que ser mulher levava os torturadores a práticas mais abusivas e cruéis de violência. Nos porões, homens e mulheres eram torturados, mas “as mulheres foram submetidas de formas mais intensa à tortura sexual, como os estupros, as mutilações, inclusive com animais vivos” (Teles, 2015). Eu já estava consciente da barbárie que aquelas mulheres haviam enfrentado, já estava muito nauseada e horrorizada, mas o depoimento de uma jovem presa e torturada por causa de uma pílula anticoncepcional em sua bolsa me levou a outro lugar de repugnância e de reflexão.

Um lugar histórico, ou coletivo, não apenas de um recorte definido no tempo, como se a violência contra as mulheres na ditadura militar nas décadas de 60 e 70 pudesse ser justificada pelo calor e horror da época, com início, meio e fim fincados em datas específicas. E sim um coletivo atemporal, no sentido de que há procedimentos e marcas de opressão que persistem no decorrer do tempo, das histórias, se intensificam, se ajustam, se transformam e permanecem. No caso, permanecem atuando nos corpos das mulheres. Lembro de Silvia Federici (2023), em Calibã e a Bruxa: “Enquanto na Idade Média as mulheres podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o parto, a partir de agora [século XVI] seus úteros se transformaram em território político, controlados pelos homens e pelo Estado”. Se o domínio da mulher sobre a maternidade, a gravidez e, consequentemente, a sua sexualidade e desejo foram, de certa forma, recuperados ou reconquistados na segunda metade do século XX, há ao menos quatro séculos de uma misoginia profunda instaurada na consciência humana e na mentalidade estatal, que trata o corpo feminino como um território político. Os policiais que prenderam e torturaram a jovem que tinha uma cartela de pílula anticoncepcional na bolsa carregavam essa misoginia construída no decorrer dos séculos, e a puniram com a violência correspondente. Essa jovem, como todas as mulheres pertencentes àquela geração, da revolução sexual, pagaram um preço alto nos porões por suas escolhas pessoais e políticas.

Durante o processo da escrita do romance, tentei inúmeras vezes transcrever a situação da jovem da pílula anticoncepcional para o livro, como fiz com outros relatos de guerrilheiras, que me inspiraram diversas passagens e cenas, mas não consegui. Talvez eu tenha suposto, a princípio, que seria menos difícil fazer isso do que as outras passagens, que continham, de forma geral, a ameaça iminente, a consequência ou a própria violência física descrita. Hoje compreendo que não consegui por haver nesta cena uma carga simbólica muito grande e sofrida para nós, mulheres. A cena contém em suas camadas muitas instâncias da misoginia: a violência contra a liberdade, o desejo, o prazer, o amor, a maternidade domesticada, a gravidez, a liberdade de ação pessoal e política, é uma síntese assustadora da apropriação e exploração do corpo feminino. “A mulher, em sua perigosa proximidade com a natureza, é identificada no mundo como recurso e riqueza, que deve ser dominado para o desenvolvimento da civilização”, diz Claudete Daflon (2022), que estabelece em seu livro O meu país é um corpo que dói, a relação entre a objetificação do corpo feminino e as “diferentes formas de extrativismo fomentadas na modernidade”. Essa relação exploradora do “feminino equacionado ao corpo biológico, e este, por sua vez, reduzido à utilidade e tratado como um aparte, seriam dotados de uma humanidade menor”.

Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, Editora Caros Amigos/Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2010.
Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, Editora Caros Amigos/Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2010.

A violência contra a mulher não era apenas a decorrência de uma situação social e política, era a decorrência de uma desvalorização da vida feminina, uma humanidade menor. Outra certeza se estabelecia de um modo mais orgânico, que amalgamava a visão estética do livro com a minha própria experiência como mulher: a escrita deste livro não poderia ser realizada por caminhos intelectuais, de fora para dentro, trazendo o tema para uma perspectiva criativa e formal, elaborada mentalmente, ou por meio de uma narrativa mais tradicional e linear, teria que ser uma escrita de dentro para fora, uma escrita do corpo.

“Não existe separação entre vida e escrita”, Gloria Anzaldúa (2024) disse no ensaio Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, sugerindo aquilo que eu havia compreendido de maneiras diversas durante a escrita do meu romance: há uma conexão orgânica entre a vida e a escrita. “O perigo ao escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com a nossa vida interior, nossa história, nossa visão. O que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras.”

Durante o processo de escrita do meu romance, eu só li mulheres. Fui aos poucos criando um campo de força estética literária ao meu redor de escritoras que, de alguma forma, haviam vivido em tempos de repressão social, e escrito sobre essas experiências, antes, durante ou depois. Eu comecei a buscar e a perceber como as experiências pessoais delas diante desses tempos afetava, atingia, impactava e se materializava em suas narrativas. A leitura que eu havia feito de Anzaldúa me acompanhava: a conexão entre a vida e a escrita pode se desdobrar em diversas manifestações artísticas e caminhos estéticos. Considerando que várias forças atuam dentro de um processo criativo, a própria experiência de quem escreve – vendo essa experiência como a forma de viver no mundo, de estar, pensar/sentir/reagir ao ontem, ao futuro, ao aqui e agora – é também uma força criativa, conectada, por sua vez, de algum modo, às decisões estéticas tomadas pelos escritores (de forma consciente ou inconsciente) em uma obra literária. Experiência pessoal e estética estariam assim relacionadas.

A escritora italiana Natalia Ginzburg escreveu num dos seus ensaios uma frase que volta e meia retornava à minha mente. “Nunca seremos gente sossegada.” Esta frase foi escrita no texto O Filho do Homem, um ano após o fim da Segunda Grande Guerra. Ginzburg perdeu o marido, torturado e assassinado pelo regime nazista, dois anos antes de escrever este texto. “Jamais se esquece a experiência do mal”, ela disse. “Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas.” Para ela, para a sua geração de escritores, não se podia mais viver nem escrever negando a precariedade da vida, disfarçada sobre uma falsa aparência de solidez, assim como é falsa a ideia de que, de alguma forma, a controlamos. “Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos, e talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. […] Nós estamos perto da substância das coisas” (Ginzbur, 2015, p. 68).

Eu estava no meio do processo da escrita do livro e o texto de Natalia Ginzburg me fez olhar de forma diferente para o que eu estava escrevendo. O Corpo Interminável, no início, era um livro sobre a memória. Um rapaz tenta resgatar a história da mãe, uma guerrilheira desparecida na ditadura militar. Mas o que ele encontra nessa tentativa de resgate? Quase nada, rastros, restos, peças, partes, é impossível recompor o quadro, nem a história pessoal nem a coletiva. A história pessoal estava corrompida pelas relações, sentimentos, perdas, a História coletiva estava corrompida pelo Estado, pela brutalidade, pelo silenciamento. E havia um entrelaçamento: a história coletiva impactava a pessoal, e a pessoal também impactava a coletiva. Então, o livro não podia ser sobre a memória, como se fosse possível resgatá-la, descrevê-la, mas sobre a perda violenta dessa memória. A violência do estado, a violência da cumplicidade, a violência do silenciamento, a violência sobre os corpos das pessoas, a violência exacerbada sobre os corpos femininos, eram muitas violências. Muitas vezes, eu me senti paralisada por essa percepção. Incapaz de colocar em palavras, numa forma literária, todo esse universo devastador que emergia a partir das minhas leituras e pesquisas.

No texto “O meu ofício”, Natalia Ginzburg (2015, p. 73) conta o início de sua experiência com a escrita, ainda muito jovem, e como pensava que o que ela escrevia eram histórias corriqueiras e cotidianas, “nada a ver com cultura”. Geralmente, os seus protagonistas eram masculinos, e ela se esforçava para escrever como os escritores que lia, cheios de uma linguagem irônica e cruel para com a vida e com o mundo. Natalia entendeu que aquela era a forma de reação apropriada na literatura. “A ironia e a maldade me pareciam armas muito importantes ao meu alcance; achava que me seriam úteis para escrever como um homem, tinha horror que percebessem que eu era uma mulher pelas coisas que eu escrevia. Fazia quase sempre personagens masculinas, para que fossem o mais possível distantes e separadas de mim” (Ginzburg, 2015, p. 82).

A leitura dessa passagem da Natalia Ginzburg foi perturbadora, contraditória. Se em “O filho do homem” ela cobrava dos escritores um comprometimento literário e estético com o seu tempo, dizendo frases como “Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos […] Nós estamos perto da substância das coisas”, em “O meu ofício”, ela confessava que ao escrever se distanciava de si mesma, tinha horror de ser reconhecida como uma mulher pela sua escrita. Nas frases seguintes, ela desenvolve ainda mais essa forma de escrita que aprendeu distanciada do feminino (e de si mesma, e do próprio corpo): “Eu me tornara bastante hábil em esquadrinhar um conto. […] escrevia contos secos e lúcidos, bem conduzidos do início ao fim, sem desarranjos, sem erros de tom”.

Natalia Ginzburg havia internalizado a escrita do ponto de vista masculino, rejeitando a sua própria visão de mundo, a sua própria experiência no mundo como mulher. A fala dela revela os elementos da narrativa feita pelos homens de sua época, ao menos, pelos escritores da sua estante: “lúcida”, “seca”, ou seja, racional, controlada, organizada de modo a descrever e a reproduzir o mundo dado pelo sistema patriarcal. É preciso esclarecer que, nesta parte de “O meu ofício”, a escrita se refere à sua vida antes da Segunda Guerra e, em “Os filhos do homem”, ela se refere a depois da guerra. E pela diferença das perspectivas dos dois textos em relação à escrita, há contradições fundamentais, é dedutível que a escritora passou por experiências profundas e transformadoras nesse período. Em “Os filhos do homem”, ela fala especificamente da guerra como experiência de ruptura com um modo de viver, de escrever, de estar no mundo, mas em “O meu ofício”, a experiência transformadora é outra: a maternidade.

Natalia conta que quando teve os filhos ficou totalmente envolvida com eles, e parecia impossível voltar a escrever. Algo que comprova como a autora estava condicionada à estrutura patriarcal. Antes de ter filhos, escrevia como homem. Depois de ter filhos, havia se “tornado” uma mulher (ser mãe não deixa escapatória neste caso), então todo o tempo teria que ser dedicado aos filhos (como o patriarcado ditava) e, por isso, não podia escrever (ela só se permitia fazer isso antes, quando podia escrever como um homem). No entanto, um movimento subterrâneo acontecia na escritora enquanto cuidava dos filhos e não escrevia, um movimento feito da sua experiência da gravidez e maternidade, que havia transformado não só o seu corpo, mas também a sua visão do mundo. O que a motivava anteriormente lhe parecia, de repente, opaco e sem graça, e o que começava a estimular a sua imaginação eram outras coisas muito diversas. Descobertas que faziam parte da experiência que a maternidade lhe trouxe, mas não necessariamente diziam respeito especificamente a ela, mas vinham de um saber que essa experiência havia gerado. “Eu recomeçava a escrever como alguém que nunca tinha escrito, […] as palavras estavam como que lavadas e frescas” (Ginzburg, 2015, p. 84).

Penso que Natalia parou de lutar contra o feminino a partir do momento em que o mundo masculino lhe trouxe diversas decepções: as literárias, como contos lúcidos, impecáveis e secos, um modo de escrever que com o tempo se tornou para ela infértil; a humana, como a guerra e os seus desdobramentos devastadores; e o lugar domesticado (e não apenas doméstico), desvalorizado, da maternidade no patriarcado. “A minha personagem principal era uma mulher. Agora não desejava mais escrever como um homem, porque tinha tido meus meninos e a sensação de saber muitas coisas sobre o molho de tomate, e também parecia que as mulheres sabiam sobre seus filhos coisas que um homem nunca poderá saber. Ainda que não as colocasse no conto, sempre era bom que soubesse disso para o meu ofício: de um modo misterioso e remoto, isso também servia ao meu ofício” (Ginzburg, 2015, p. 84). Neste caso, a maternidade apesar de atuar como o plano cumprido do patriarcado dentro do sistema capitalista, pode agir também, em outro nível, como uma forte experiência da mulher com o próprio corpo, e, ao invés do esperado, que seria aprisionar ainda mais a mulher nessas exigências e demandas, pode servir como um despertar da consciência em relação à própria vida e lugar no mundo. No caso da Natalia Ginzburg, serviu também para uma valorização da experiência do feminino, o avesso do que lhe ditava a sociedade, assim como uma forte experiência da sua potência criativa.

No meu caso, escrevi grande parte do meu romance durante a gravidez e, depois que o meu filho André nasceu, amamentado. O corpo à flor da pele, à flor do mundo, em contínua transformação. Na época, quando eu contava para as pessoas que estava escrevendo sobre a ditadura, a tortura e a violência contra as mulheres guerrilheiras, geralmente me perguntavam preocupadas como eu conseguia escrever sobre aquilo estando grávida, mas na verdade era o contrário, era justamente porque estava grávida que conseguia escrever um romance sobre este tema. Não há nenhuma romantização nisso, a gravidez é uma experiência brutal, sofrida, prazerosa, íntima com o nosso corpo, que nos tira do mundo racional cartesiano de forma definitiva, ao menos foi assim que senti. Ao ler e escrever durante a gravidez e amamentação, ao entrar em contato com os depoimentos das guerrilheiras que foram torturadas, às vezes grávidas, às vezes amamentando, ou, se não grávidas nem amamentando, expostas e ofendidas sexualmente em todos os sentidos, no corpo violentado, estuprado, menstruado, pois todas as violências narradas tinham como alvo o corpo da mulher, não tinha como não sentir em meu próprio corpo o embate que se dava entre a opressão e a liberdade, a criação e a destruição, a morte e a vida.

Junto a isso tudo, outro processo acontecia, fora do meu corpo, que me atingia em todos os sentidos, inclusive fisicamente: o Brasil.

Eu comecei a escrever o romance em 2011, data que não ao acaso coincide com a CNV, iniciativa do governo Dilma Rousseff, e, por conta de diversas interrupções por causa de outros trabalhos, terminei em 2018, uma semana antes do terrível segundo turno que elegeu Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. Entre 2011 e 2018, dois fatos muito importantes aconteceram na minha vida pessoal e na vida do país. Engravidei em 2014, meu filho nasceu em 2015, eu o amamentei até 2017, enquanto escrevia grande parte do romance. Em 2016, o segundo acontecimento: o golpe que derrubou a presidenta Dilma Roussef, que levou o Brasil ao pesadelo e horror em que estamos hoje. Então, este era o cenário: enquanto escrevia o livro sobre guerrilheiras torturadas, desaparecidas e mortas na Ditadura Militar no Brasil, escutava os berros das pessoas nas ruas pedindo a volta da Ditadura Militar, ao mesmo tempo que amamentava o meu filho. Um entrelaçamento de coisas tão diferenciadas e indizíveis, um cruzamento do horror do passado e do presente com o imenso amor aflorado na gestação (o que ele carrega de esperança também), todas as experiências da gravidez e da maternidade à flor do corpo ainda, as expectativas, o futuro, e tudo acontecendo de forma tão bruta, material, na vida, nas ruas, no corpo, na escrita, que provocou em mim uma paralisia, um bloqueio criativo de vários meses.

Volto às constatações ditas no começo do texto. Se a violência contra a mulher na ditadura não era apenas uma decorrência de uma situação social e política específica, mas de uma desvalorização da vida feminina construída como uma humanidade menor, como disse Claudete Daflon, no decorrer do tempo, iniciada especialmente a partir do século XVI, como pontuou Silvia Federici, essa construção permanecia na sociedade e se revelava de forma assustadora nos pedidos de retorno à ditadura escutados nas ruas em 2016. Foi também em 2016 que o atual presidente do Brasil exaltou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais torturadores da Ditadura, em pleno congresso nacional, antes dar o seu voto para afastar a então presidenta Dilma Rousseff do seu cargo. Dilma, como Lúcia e Amelinha, foi uma das militantes torturadas pessoalmente pelo coronel Ustra.

Durante a minha paralisia criativa, aumentava a percepção e a certeza de que eu não podia mais escrever da mesma forma, ao mesmo tempo, tudo parecia insuficiente diante da realidade do Brasil naquele momento. Eu olhava para o Brasil, para o passado do nosso país, para o meu corpo, para o meu filho, para o livro, e intuía que havia algo em todas aquelas experiências que eu ainda não havia materializado na escrita. Ao menos, não da forma como eu vislumbrava intuitivamente que deveria ser, uma forma atingida pelo cruzamento de tudo aquilo. No entanto, uma transformação acontecia, sem que eu a percebesse de imediato. E ela tem a ver com as palavras de Anzaldúa no início deste texto. “Não existe separação entre vida e escrita”. E eu sentia isso como uma verdade sendo gestada na minha visão de mundo, de país, de literatura, nos meus sentimentos, no meu corpo e na minha escrita.

Sem liberdade, eu não vivo: Mulheres que não se calaram na ditadura, Laura Beal Bordin e Suelen Lorianny. Editora Compactos, 2013.
Sem liberdade, eu não vivo: Mulheres que não se calaram na ditadura, Laura Beal Bordin e Suelen Lorianny. Editora Compactos, 2013.

O escritor argentino Julio Cortázar tem um livro chamado Teoria do túnel, no qual ele reflete sobre a sua formação de escritor. Cortázar saiu da Argentina antes do golpe, e foi proibido de voltar enquanto durou a ditadura. Neste livro, ele questiona a literatura tradicional, especialmente a do século XIX, dizendo que ela é incapaz de acessar as profundezas e complexidades da vida e do ser humano. “A literatura tradicional não havia atingido uma extensão capaz de cobrir as mais sutis, as mais profundas e remotas intuições humanas? A linguagem que permite a Proust sua introspecção, a Dostoiévski suas decidas ao inferno, a Henry James seu bordado de sentimentos, não é já um instrumento ilimitado e talvez ilimitável?” (Cortázar, 1998, p. 52).

Cortázar responde que não. Para ele, mesmo o irracional em Proust aparece racionalmente traduzido. Dostoiévski desce ao inferno com a narrativa protegida e sob controle. Henry James descreve sentimentos sem se aproximar esteticamente deles. Essa reflexão de Cortázar lembra bastante o que Natalia Ginzburg disse a respeito da escrita masculina, do modo que ela se esforçava para escrever como um homem. Mas dificilmente Julio Cortázar entraria neste assunto, por motivos óbvios. Para ele, assim como para muitos escritores, a questão do gênero passa longe das reflexões voltadas à estética literária. Cortázar se referiu à conhecida e antiga relação entre o tema e a forma questionando o quanto a subjetividade dos personagens e o universo temático do livro poderiam impactar e modificar a sua forma, a sua materialidade estética. A questão da relação entre vida e escrita não entra também plenamente no questionamento do escritor argentino, como encontramos na Gloria Anzaldúa. Cortázar aponta a literatura tradicional como limitada para expressar as dimensões humanas, é verdade, mas sem distinguir o quanto essa forma de escrita foi engendrada pelo discurso racional e científico herdado do Iluminismo. Uma estética patriarcal, portanto. Já Anzaldúa e Ginzburg destacam na literatura tradicional ou realista o discurso masculino, que se tornou majoritário e dominante, estabelecendo regras de linearidade, ordem e lógicas narrativas, que aprisionam as dimensões mais profundas das experiências e da imaginação.

A minha primeira percepção foi a que eu tinha escrito até aquele momento, em 2016, olhando apenas para trás. Para a memória silenciada da ditadura militar, para a violência praticada no passado. A linguagem estava formada a partir dessa matéria da memória. Uma memória partida, impossível de ser recuperada em sua completude. Nesse sentido, já havia a estrutura lacunar, sem linearidade, sem encadeamento lógico, que fugia do realismo, das descrições dos fatos e das lógicas cronológicas e históricas. Portanto, não era uma estrutura narrativa tradicional. Qual era o problema da perspectiva memorialista então? Após a leitura dos textos da Natalia Ginzburg entendi: o problema da memória como núcleo da narrativa, neste caso, era que trazia a realidade, mesmo da memória, como dada, pronta para o leitor. Era uma visão que não unia totalmente a experiência à escrita, como sugeria Anzaldúa. Os personagens Daniel e Melina olhavam o passado da ditadura como memória trágica e sofrida, mas não como algo que poderia se repetir. Eles não se sentiam em risco. Não estavam atingidos, em seus corpos, em suas presenças no mundo. Até 2016, eu também não me sentia em risco. Quando comecei a escrever em 2011, eu olhava para o romance como um resgate do passado, e não como um passado que assombrava o presente. Quando engravidei, em 2014, imaginava que era possível um país mais democrático para o meu filho. Só quando escrevi, em 2016, escutando os apelos na rua de retorno à ditadura enquanto amamentava, que senti concreta e literalmente o monstro do passado se aproximando do presente. O chão tremer. O chão da democracia que de algum modo eu já considerava garantida, como muitos brasileiros. O medo dessa proximidade, desse horror, o abismo, o tremor, nada disso estava no livro, em sua forma, matéria, e precisava estar.

Os personagens precisaram olhar para os traumas herdados, as sequelas, os silenciamentos, os bloqueios emocionais, olhar para seus corpos, seus desejos, suas vitalidades e sonhos para o futuro. É possível ter um futuro digno e feliz quando não se conhece o passado? O próprio passado e o passado de seu país? É possível ter um futuro digno quando se vive num país (num mundo) onde não se reconhece o valor da vida e da humanidade de todos, e no caso do livro, especialmente das mulheres? Os personagens precisavam ter essas questões e conflitos em seus pensamentos e em seus corpos, e o livro precisava também ter essas questões e conflitos em seu pensamento e em seu corpo, quer dizer, na linguagem.

Outra percepção e transformação estética foi em relação à personagem da Julia, mãe de Daniel, a guerrilheira desaparecida. Nas primeiras versões, ela era uma personagem visível no livro, tinha presença e corpo. Só depois da paralisia criativa, só depois de todos os cruzamentos das experiências vividas me atingirem completamente que eu entendi que Julia deveria ser uma ausência no livro. Quando retirei todas as passagens que ela aparecia como personagem, com seu corpo e a sua voz, o que resultou foi um grande buraco no livro, um grande vazio. Eu não podia mais preencher este vazio com a presença da Julia, era a sua ausência que tinha que estar ali presente. A partir daí o livro se modificou completamente, porque tudo que foi escrito depois disso foi a partir dessa ausência. E vieram as outras mulheres. Os fragmentos das guerrilheiras anônimas apareceram neste momento. E as presenças das experiências das guerrilheiras tornou o romance não apenas a história de uma guerrilheira, mas de todas, saindo da perspectiva pessoal para coletiva. Neste processo, assumi esteticamente algo que estava apenas sugerido nas primeiras versões do livro, que era intuitivamente a busca por uma escrita fora do discurso patriarcal capitalista. Claro, eu já o rejeitava, por ele ser parte dos sistemas geradores das ditaduras, violências, misoginias e a mais diversas explorações. O romance se fez ,a partir daí, de narrativas partidas, interrompidas, incompletas, incapazes de entregar aos leitores o resultado de uma investigação, apenas o processo dos esfacelamentos e perdas, da luta e da necessidade de afirmação da vida, terminando em estado de suspensão, em uma pergunta para o futuro. Uma narrativa mais movida pela procura da linguagem do que por sua apresentação e afirmação. Caminhar na direção oposta da narrativa gerada pelo patriarcado na escrita seria também agir contra essa opressão, seria um gesto de revalorização da vida feminina, de suas experiências e de suas perspectivas, de virar ao avesso os modos de fazer, de ser, de escrever dominantes, e ressignificar a linguagem como resistência.

* Claudia Lage é escritora e roteirista, formada em Teatro (UNIRIO) e Letras (UFF), mestre em Literatura (PUC-Rio) e doutoranda em Literatura (UFF). Autora de A pequena morte e outras naturezas e Mundos de Eufrásia, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2010. Em 2013, lançou Labirinto da Palavra, com ensaios-crônicas sobre literatura, que recebeu o Prêmio de Brasília e foi semifinalista do Portugal Telecom (atual Oceanos) em 2014. Em 2019, lançou O Corpo Interminável, que recebeu o Prêmio São Paulo Literatura 2020. Trabalhou como roteirista em produtoras como TV Globo, Conspiração Filmes e Teleimage. Desde 2004, ministra cursos de roteiro e escrita criativa presencialmente e on-line.
Referências bibliográficas
LAGE, Claudia. O Corpo Interminável. Grupo Editorial Record: Rio de Janeiro, 2019.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Violação dos direitos humanos das mulheres na Ditadura. Revista de Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 23, n. 3, p. 1001-1022, dez. 2015.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. Editora Elefante: São Paulo, 2023.

DAFLON, Claudete. Meu país é um corpo que dói. Relicário Edições: Minas Gerais, 2022.

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, [S. l.], v. 8, n. 1, p. 233, 2000. DOI: 10.1590/%x. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880. Acesso em: 11 out. 2024.

GINZBURG, Natalia. As pequenas virtudes. 1ª. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

CORTÁZAR, Julio. A Teoria do Túnel. In: CORTÁZAR, Julio. Obra Crítica I. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
Dossiê
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UM LIVRO DENTRO DE UM LIVRO DENTRO DE UM LIVRO: ESCRITURA, CÁRCERE E ARQUIVO EM SILVIANO SANTIAGO (1975-1981)

A história contada no romance Em liberdade (1981), do escritor Silviano Santiago, poderia ser verdadeira, poderia corresponder ao que, de fato, aconteceu com Graciliano Ramos após a saída da prisão ― suposição alimentada por um falso diário, inscrito dentro do próprio romance, cuja história verossímil é recheada de dados biográficos. O encavalamento de suportes, do diário ao prosaico, a flutuação entre personagens e tempos históricos, a exibição exemplar de técnicas de composição alheias ou ainda os fraseados poéticos do livro não são gratuitos, prestando-se simplesmente à verborragia, mas figuram como nó górdio do experimentalismo ficcional de Silviano, a membrana que amarra os diversos núcleos narrativos que convivem e competem na prosa: um texto que aglutina, de uma só tacada, o escritor Graciliano Ramos, o poeta Cláudio Manoel da Costa, o jornalista Vladimir Herzog e o próprio autor Silviano Santiago, como tentaremos defender. De maneira a tentar reconstituir a composição do livro, devemos remontar o momento em que a ideia do romance emerge no horizonte ficcional de Silviano, salientando a forma como as instâncias narrativas foram concebidas, planejadas e montadas.

Em 1975, em plena ditadura militar brasileira, Silviano decide escrever um diário íntimo apócrifo de um escritor brasileiro cujo mote fosse o corpo encarcerado. O autor, após um longo período como professor nos Estados Unidos, andava às voltas com o romance La peste (1947), do escritor franco-argelino Albert Camus. A célebre epígrafe do livro tinha sua origem anglófona, vinda do romance Robinson Crusoé (1719), do escritor Daniel Defoe, em que se lê: “É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe” (Defoe apud Camus, 1996, p. 5). O corpo aprisionado, portanto, deveria ser o motivo fundador do texto experimental.

O primeiro personagem que lhe vem à cabeça é o poeta mineiro Cláudio Manuel da Costa, figura importante do arcadismo para a formação da literatura brasileira. O que certamente atraiu os olhos do crítico foi a morte do poeta ― àquela altura, preso político sob a guarda do Estado-colônia e réu da Inconfidência Mineira no século XVIII ―, cujas versões soavam contraditórias de acordo com os Autos de devassa: nos registros feitos no Rio de Janeiro, em 1789, o poeta seria suicida, já nos documentos vindos das instâncias embarcadas em Lisboa, teria sido morto. Além disso, o auto de corpo de delito dava margem a questionamentos acerca de sua morte, como anota Laura de Mello e Souza em um perfil biográfico do poeta: “[…] a descrição do cadáver encontrado consta de um dos documentos mais discutidos da história da Inconfidência Mineira”, e continua, “[sob o aspecto] da autenticidade ― seria forjado ― à verossimilhança ― seria mentiroso, relatando um suicídio para, na verdade, encobrir um assassinato” (Souza, 2011, p. 190). Quer dizer, tratava-se de um escritor que, assim como Silviano à época, construía sua obra sob um regime de exceção.

Como era residente no exterior, Silviano viveu o golpe de 1964 e o recrudescimento da ditadura em terras estrangeiras. Longe da celeuma política, os acontecimentos-chave da vida nacional militarizada o afetaram ainda de longe, em exílio voluntário, fato que se majorou pelo convívio, na França, com intelectuais acossados pela ditadura brasileira. Somado a isso, seu irmão caçula, Haroldo, militante atuante do Partido Comunista em Belo Horizonte, foi preso e torturado em 1975, no mesmo ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto pelas forças da ordem num suicídio forjado. Assim, após seu retorno definitivo ao Brasil, quando se tornou professor do recém-criado Mestrado em Literatura Brasileira da PUC-Rio, a ditadura acertou Silviano em cheio, chamando-o a pensar seu tempo histórico e, no limite, posicionar-se diante dos acontecimentos que o cercavam politicamente e o implicaram do ângulo biográfico.

A forma literária, assim desenvolvida, marcaria uma distância da narrativa realista e “engajada” ou confessional, quer dizer, a pergunta que ecoava era: como tratar da violenta relação entre Estado e intelectual sem necessariamente produzir uma literatura realista, explicitamente engajada e comprometida com a verdade dos fatos?

Os anos finais da década de 1970 foram marcados pela volta dos guerrilheiros e pelo surgimento da literatura dos resistentes à ditadura, cujas narrativas, de caráter testemunhal e de denúncia (Sant’Anna, 1979), não interessavam a Silviano por implicações ideológicas e de estilo (Santiago, 2019, pp. 424-425) ― veja-se o livro de maior expressão do período, O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira, lido, aqui, como tipo ideal dessa safra literária. O livro de Gabeira é lançado no ano da sanção da Lei de Anistia, mecanismo aprovado graças à pressão popular, mas que, ao que consta, apesar de trazer de volta parte dos exilados e presos políticos, favoreceu a impunidade dos militares, que se safaram dos julgamentos e condenações após a abertura política. Além disso, outros livros lançados a reboque do de Gabeira funcionaram quase como um antídoto à tímida reabertura, comprometendo-se em contar a verdade que não havia sido assentada pelo Estado, como Cartas da prisão (1977), de Frei Betto, A Festa (1976), de Ivan Ângelo, Reflexos do Baile (1976), de Antônio Callado. Em liberdade se insere dentro e fora desse quadro, já que, apesar de tentar responder às mesmas questões, ele as responde de maneira diferente.

Capa da primeira edição de Em liberdade.
Capa da primeira edição de Em liberdade.

Como foi dito, o livro de Gabeira é publicado logo após a Anistia, como anota o autor no prefácio datado de 1996 (Gabeira, 2009, p. 9), o relato autobiográfico ganha uma dimensão histórica que serve a um desenlace específico arrolado pela crítica literária. O livro de 1979, a partir de seu aspecto eminentemente informativo, teria como intuito “contar a aventura coletiva da resistência à ditadura militar no Brasil” (Gabeira, 2009, p. 9), nas palavras do próprio autor, ou como uma espécie de “informe político” (Waizbort, 2019, p. 142). Assim, O que é isso companheiro? se transformou, à luz de seu autor e de seu público leitor, numa experiência literária que traduziria o momento de liberação da abertura, abarcando o desejo represado pelos anos de chumbo e o manancial de palavras de ordem ligadas aos direitos sociais que ecoavam no mundo. As ficções ditas confessionais ou documentais tendiam a se enclausurar no tempo histórico, cristalizadas como um documento de época, revelando um certo esgotamento diante das mudanças dos arranjos políticos e sociais.

Apesar do desejo de escrever algo que estivesse intimamente ligado ao engajamento contra o regime militar, Silviano não tinha interesse no registro jornalístico de tendência testemunhal dos livros em alta. Sua mirada artística tinha outros alvos que fossem menos explícitos em seu modo de apresentar-se e mais engenhosos do ponto de vista da composição. Em relação a esse tipo de literatura produzida no final da década de 1970, Silviano parece distanciar-se propositalmente das características de composição e escrita apontadas, por exemplo, por Leopoldo Waizbort (2019, p. 143) na obra de Gabeira:

É sempre um narrador homogêneo e claro quem fala ― e, melhor ainda, sabemos que o Gabeira autor assume a forma do narrador. Essa aproximação […] cria um laço de aproximação com o leitor, nas proximidades do “pacto autobiográfico”. O estilo de Gabeira não provoca nem quer provocar tensões nesse pacto, e o leitor não encontra obstáculos: seja na leitura propriamente dita, seja no equacionamento narrador-autor-Gabeira, seja no teor de verossimilhança daí advindo.

Assim, justamente por não colocar em xeque o dito “pacto autobiográfico”, ou seja, a coincidência nominal entre autor-narrador-personagem, a obra ganha abrangência do ponto de vista de mercado, mas perde em qualidade literária. Isso tudo se agrava e se confirma se levarmos em conta o epicentro da composição de Em liberdade, quer dizer, justamente o problema da autoria e sua consequente atribuição. Dessa forma, o texto de Silviano, inscrito em um outro registro, buscava anacronicamente aproximar diferentes cenas da história do Brasil, ganhando uma expressão rica e uma embocadura singular para um livro de literatura publicado sob uma ditadura militar.

Durante entrevista ao Jornal de Letras em novembro de 1975, Silviano responde a algumas questões sobre sua, ainda incipiente, carreira como ficcionista. O crítico já tinha alcançado certa notoriedade nos círculos de literatura e crítica de cinema de Belo Horizonte antes dos anos 1960, uma relativa projeção como teórico e ensaísta graças aos seus textos publicados ainda quando professor no exterior e algum destaque como professor na PUC-Rio, com a recente vinda da French Theory de solo norte-americano. Porém, sua carreira como ficcionista estava desabrochando. Ao final da conversa, Silviano é perguntado sobre os projetos de escrita que estavam sendo gestados, momento em que conta um pouco dos seus desejos mais imediatos como escritor: “Planos de criação propriamente, tenho-os e muitos. O tempo para executá-los é que vai se encurtando. Gostaria de terminar uns contos que tenho na gaveta […], e de realmente começar um romance sobre o século XVIII mineiro (e adjacências como, por exemplo, o nosso próprio século)” (Santiago; Coelho, 2011, p. 17). Em meio a outros projetos deste período, o crítico destacou sua vontade de escrever algo ― à época, um romance ― sobre o passado mineiro. O interesse pelo período não se restringia simplesmente ao passado, mas a uma continuidade extemporânea que o conectava com o presente, com “o nosso próprio século”, implicado nele, empreitada que parece se realizar no seu Em liberdade, anos depois.

Então, o projeto ganhou concretude ainda nos anos 1970, e logo mais de trinta páginas do diário íntimo ficcional do poeta inconfidente foram escritas (Santiago, 2020, p. 45). No entanto, Silviano desistiu. Aquele texto o desagradava. A linguagem ambígua e a confusão histórica não lhe pareciam interessantes. A distância entre o século XVIII mineiro e a recente morte de Herzog, no DOI-CODI paulista pela ditadura militar, criava uma lacuna difícil de ser preenchida no espaço ficcional. Além disso, a distância poderia tornar a associação entre os dois períodos históricos e suas respectivas implicações com a vida intelectual demasiadamente cifrada ou sutil para os leitores de então, constatação que veio à tona em conversa com o poeta Geraldo Carneiro, à época aluno da graduação em Letras da PUC-Rio, onde Silviano lecionava. Portanto, faltava algo ao projeto.

15 de Agosto de 1979. Prof. Silviano Santiago. Fotógrafo Antônio Albuquerque. Acervo Núcleo de Memória da PUC-Rio.
15 de Agosto de 1979. Prof. Silviano Santiago. Fotógrafo Antônio Albuquerque. Acervo Núcleo de Memória da PUC-Rio.

Em abril de 2022, Em liberdade é relançado, agora pela editora Companhia das Letras, após quarenta anos desde sua primeira edição. O livro é comemorado com o lançamento online promovido pela editora e pela Academia Mineira de Letras. A live conta com a presença do crítico e pesquisador Wander de Melo Miranda, do escritor e jornalista Rogério Faria Tavares, além do próprio autor do livro, todos membros da Academia Mineira de Letras. Já no início do lançamento, incitado por uma provocação de Wander, Silviano conta a trajetória da ideia do livro antes propriamente de sua redação. Reconta, digamos assim, o backstage da composição, aquilo que vinha sendo gestado durante anos na cabeça do escritor até atingir a maturação correta para, enfim, tornar-se obra. Em primeiro lugar, foi por ocasião do trabalho de Silviano, como professor nos Estados Unidos, que Graciliano Ramos entrou no seu radar ainda no começo dos anos 1960. Como professor na University of New Mexico, entre 1962 e 1964, o brasileiro precisou montar alguns cursos para as turmas de que ficou encarregado. Como conta Silviano na live, é aí que surge a ideia de ministrar uma disciplina que cruzasse A rosa do povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade, e Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos. A junção entre os dois autores brasileiros e seus diferentes livros ― inclusive em estilo e gênero ― foi oportuna pois, ao final do curso, um aluno, filho de pais mexicanos, disse desejar escrever sua dissertação de mestrado sobre o livro de Graciliano Ramos. O aluno era Carlos E. Cortés, hoje especialista em questões latino-americanas e professor emérito do Departamento de História da University of California, em Riverside. Numa recente troca de e-mails (28/07/2022), Cortés conta que conheceu Silviano no outono de 1962, em Albuquerque ― durante o primeiro ano do brasileiro como professor. Naquela época, Cortés realizava um mestrado em português e espanhol e um doutorado em história, que defendeu, respectivamente, em 1965 e 1969. Silviano acompanhou seu aluno até meados de 1964.

Dessa forma, define-se de maneira mais ou menos precisa a leitura, nos anos 1960, de Memórias do cárcere, o que permitirá, já nos anos 1970, mais especificamente 1975, que Graciliano seja acionado para resolver os impasses criados na escrita do diário apócrifo de um escritor brasileiro encarcerado.

Então, após muito matutar, o xeque-mate foi dado: a ideia formalizada era escrever o diário de Graciliano Ramos, suposto último capítulo perdido de Memórias do cárcere, que narrasse o período imediatamente após a saída da prisão, em 1937, no Rio de Janeiro, momento em que o Graciliano precisaria se haver com a estranha liberdade reconquistada. É do autor alagoano que Silviano toma emprestada a voz, dando sobrevida ao projeto interrompido, alojando-se na coincidência dos eventos políticos – a Inconfidência, o Estado Novo e a Ditadura Militar – e seu alinhamento macabro na macropolítica brasileira, dado que sopra nos ouvidos atentos de Silviano a força necessária para seu projeto engavetado. Assim, Silviano narraria a experiência da liberdade, aprisionado na grafia-de-vida de Graciliano, amordaçado pelo seu estilo ríspido e preciso. Trocando em miúdos, Silviano faria um pastiche de Graciliano Ramos, demorando-se no estudo da sua escrita, imitando-a e falando a partir de sua embocadura, tal como havia aprendido com Marcel Proust, em Pastiches et mélanges (1919), durante sua formação à la française (Barile, 2022). Estava desenhado o projeto definitivo de Em liberdade.

Silviano realizou durante seis meses uma pesquisa exaustiva sobre a escrita do autor para, assim, copiá-la. Quer escrever um diário que nunca foi escrito e, para isso, precisa escrevê-lo como Graciliano, fazendo, por exemplo, do próprio estilo um motivo do diário ficcional (Santiago, 2013b, p. 29-30).

Em entrevista para a nova edição do livro, em 2022, para o jornal Estado de Minas, Silviano conta um pouco sobre esse esforço de pesquisa: “Não era suficiente a narrativa dos fatos, banais na aparência. Tinha de conhecer bem todos os personagens que o rodearam. […] Entreguei-me à pesquisa em documentos e jornais. Reli a obra dos romancistas nordestinos. Anotei detalhes” (Barile, 2022). O projeto exigia um cuidado com os fatos para que o efeito ficcional fosse bem sucedido, o que lançava a composição do livro num paradoxo importante. Apesar de alicerçado numa ficção declarada – um diário apócrifo –, o livro precisava ser o mais verossímil possível, dado que demandou um cuidado dobrado, com close reading de guias da cidade e revistas de época (Santiago, 2002, p. 166), com anotações sobre percursos de ônibus, bondes, os tipos de árvores em cada bairro, etc.

Assim, vai registrando informações até então triviais, como o clima de cada dia, o que aconteceu em cada um deles, as manchetes de jornal, os filmes em exibição, medindo, dessa maneira, a extensão e fundura do romance. À guisa de exemplo, Silviano conta como a anotação dessas minúcias ordinárias e prosaicas deram sustentação e profundidade literária para sua empreitada:

De repente, o detalhe de que tal dia chovia acabou sendo importantíssimo. No dia em que Graciliano saiu da casa de José Lins do Rego e foi para a pensão no Catete, naquele dia, caiu um pé d’água no Rio de Janeiro. Para mim foi ótimo, porque eu queria manter a prisão como metáfora. Mesmo estando ele fora da cadeia, ainda continuava prisioneiro. O personagem é obrigado a fechar todas as janelas porque estava chovendo demais. Não me ocorreria essa mise-en-scène, se não soubesse que naquele dia tinha chovido tanto. (Santiago, 2002, p. 166)

Repetindo-em-diferença Memórias do cárcere, suplementando sua leitura, Silviano desenvolve uma escrita-pastiche e escreve, ao estilo de Graciliano, as páginas do diário apócrifo.

Então, Graciliano é ensanduichado por Cláudio Manoel e Herzog, preenchendo a lacuna temporal e de linguagem que incomodava Silviano, reduzindo o espaço entre as experiências históricas alusivas e garantindo uma outra inteligibilidade para o romance em confecção.

Já com um relativo controle da obra de Graciliano, Silviano resolve escrever o período imediatamente após a saída da prisão. É ali que reside o nó górdio da grafia-de-vida de Graciliano, o ponto oculto, nunca trabalhado pelo autor, e que, justamente por isso, torna-se tão potente. Justamente por esse vácuo literário na obra do alagoano, Silviano pôde projetar sua imaginação nesta negatividade, produzindo, a partir dela, uma outra história – apesar de falsa –, alicerçada em dados biográficos, garantindo a verossimilhança do texto, tanto em estilo como em fatos.

Memórias do cárcere é redigido anos depois da saída da prisão, um livro, portanto, fruto da memória, fruto do trabalho de anamnese do trauma, feito a duras penas. Entre a redação do livro e o evento em si, existe uma lacuna que pode ser preenchida ― mesmo que ficcionalmente. A ausência de texto sobre a experiência do cárcere no imediato após a prisão é, inclusive, tema da própria construção do diário apócrifo, quer dizer, a dificuldade de escrever e formular aquela experiência. Além disso, não há, segundo Silviano, nenhum indício, na obra de Graciliano, sobre o momento de liberdade do autor, quando sai da prisão e precisa se haver com as dificuldades emocionais, financeiras e políticas. É nessa toada que Silviano escreveu recentemente sobre a condição aparentemente paradoxal de prisioneiro: “A liberdade do prisioneiro político não depende apenas da vontade do homem. […] Fora do cárcere, o prisioneiro continuará prisioneiro” (Santiago, 2020b), e continua arrematando o raciocínio incluindo a liberdade nessa dimensão paradoxal: “Não terá a liberdade que julga poder usufruir na condição de interno que se julga inocente. Ser prisioneiro é consequência da condição linguística, e sociopolítica e econômica, do humano” (Santiago, 2020b).

Silviano, naquele período, horrorizado pela barbárie da ditadura com o assassinato do jornalista Herzog, precisava se manifestar politicamente. Sua intenção, porém, não se alinhava às opções estilísticas dos chamados romances de testemunho, em alta na época, como mencionado. Politicamente, Graciliano tinha algo de um engajamento pela escrita. Seu trabalho como político aparecia mediado pelo procedimento escritural, seja numa dimensão burocrática da redação de relatórios (Freitas, 2015) obrigatórios nas funções públicas, seja no engajamento explícito de sua obra, mais tomada pela dimensão social de fundo dito realista. Assim, dentro de um quadro específico da ficção brasileira, e interessado em mecanismos formais e de criação literária próprios, Silviano acaba por fazer uso do passado e presente políticos como matéria de composição artística, tal como precisa o crítico e professor Wander de Melo Miranda (2009, p. 18):

O recuo estratégico de Em liberdade ao passado funciona como um recurso eficaz e inventivo do qual o autor lança mão para ampliar a repercussão do seu testemunho da história recente do Brasil, indo além do registro imediato dos fatos concretos, mediante sua contextualização num decurso temporal mais abrangente e num espaço de configuração literária mais amplo e complexo.

O livro de Silviano parece suprir a vontade de se manifestar politicamente através de um uso abalizado da ferramenta escritural, produzindo, dessa maneira, um engajamento a partir da forma, da realização do estilo literário, do domínio da palavra e do fraseado alheio.

Em “Mestre Graça não é piedade”, texto de 2013, publicado no jornal O Globo, Silviano, ao discutir a política na obra e na biografia de Graciliano, sublinha a dimensão inseparável entre escrita e política para o alagoano, na qual o engajamento ou a força política não pode existir se não numa dimensão escritural:

Em Graciliano, a política é senhora de poucas palavras e mãe de muitos equívocos linguísticos que, lançados na folha de papel, devem ser imediatamente borrados e corrigidos pelo escritor atento e reflexivo. A política não pertence à família dos GPS, que querem direcionar a vida e a obra do cidadão. Ela é infatigável exercício das mãos e da caneta, unidas às evidências da criação literária, em que os defeitos/qualidades da vida cidadã e social, da vida histórica e econômica da nação, são postos à prova na folha de papel em branco. (Santiago, 2013c, p. 3)

Há aqui um detalhe importante a ser sublinhado. É no mesmo ano decisivo para a escrita do Em liberdade, 1975, que Silviano, já na condição de professor efetivo da PUC-Rio, oferece um curso de introdução a diversos autores franceses – identificados com o que ficou conhecido como pós-estruturalismo. Ao fim, o curso termina por se tornar uma espécie de introdução à obra de Jacques Derrida. O curso, tornado uma espécie de grupo de estudos, tem como resultado, no fim do semestre, a partir de uma proposta visionária do próprio Silviano, um glossário “conceitual” do pensamento de Derrida – obviamente, no que diz respeito à obra do filósofo publicada até meados de 1975. No ano seguinte, Glossário de Derrida (1976) é publicado pela editora Francisco Alves, um dos marcos dos estudos sobre Derrida fora da França, além de constar como um documento sobre a recepção do pensamento do filósofo na América Latina, em especial no Brasil. O primeiro livro apresentado para aquela turma de mestrandos em literatura brasileira foi La pharmacie de Platon (1968), texto que trata da relação entre fala e escrita – e entre escrita e verdade – a partir do Fedro de Platão. Em outubro de 2014, junto com uma série de outros textos que tratam da presença do pensamento de Derrida no Brasil, o jornal O Globo publicou um artigo de Anamaria Skinner, que fez parte do grupo de alunos que participou da feitura do Glossário de Derrida na década de 1970. A então jovem pesquisadora tinha bom domínio do francês – e foi fundamental na leitura e tradução dos trechos de Derrida citados no glossário. Mais tarde, ela se tornaria uma importante tradutora do pensamento francês, com um currículo que vai do próprio Derrida a autores como Roland Barthes e Jean Baudrillard. No seu artigo, Skinner conta, à luz dos acontecimentos políticos da época, a importância de Silviano para o florescimento de um público leitor do filósofo franco-argelino no Brasil, além de esquadrinhar rapidamente uma hipótese sobre a fertilidade de certas ideias derridianas em solo brasileiro:

Se tivesse de imaginar motivos para o sucesso de Derrida nos estudos literários, ressaltaria, sobretudo, esse primeiro contato com a filosofia, contada em prosa por Derrida, e o gesto preciso de Silviano diante do momento político brasileiro, em 1975: apresentar aos estudantes de Letras um texto em que é encenado o poder subversivo da escrita. Já que é disto que se trata. (Skinner, 2014, p. 3)

Assim, tanto a leitura de Derrida como a confecção de Em liberdade são mediadas pelo problema da ditadura, da exceção, da brutalidade e das formas de resistências possíveis num ambiente governado sob a égide da barbárie. Não apenas isso, mas uma resistência que estivesse intimamente ligada à escrita, às formas literárias de composição, aos desdobramentos dessas formas e às contaminações da experiência escritural. Assim como a política em Graciliano Ramos, a política em Derrida também precisaria estar mediada pelo gesto da escrita. Precisamos ter em mente que, em termos concretos, a palavra é o instrumento de luta do personagem/narrador de Em liberdade, já que, no momento da “falsa” feitura do diário, Graciliano ainda se via como um trabalhador do jornal , um operário do signo, que usa a escrita, ainda que ceticamente, como modo de sobreviver e lutar. Já na primeira entrada do diário existe uma importante discussão sobre o estatuto da palavra nos meios de comunicação tradicionais dos anos 1930 e sua relativa liberdade (Santiago, 2013b, p. 34). Graciliano via que, comprometido politicamente, não conseguia espaço para se sustentar nos meios de comunicação tradicionais. Além do mais, tudo o que fosse escrito precisaria passar pelo crivo dos patrões, que, em última instância, determinava o que seria ou não publicado. Dessa forma, a “liberdade” e o consequente combate que deriva da atividade laboral de escrita estariam fadados a girar em falso, uma vez que obedeceriam ideologicamente – não simplesmente de direito, mas de fato – aos ditames dos detentores dos meios de comunicação. Acredito que, tendo em vista o período de formação em que estamos nos demorando, não é de se ignorar a presença de um autor como Derrida no horizonte crítico de Silviano no momento de elaborar um diário apócrifo. Ou seja, se na frase de abertura, tornada célebre, de La pharmacie de Platon – “Um texto só é um texto se oculta ao primeiro olhar, ao primeiro que chega, a lei da sua composição e a regra do seu jogo” (Derrida, 1995, p. 257) – Derrida insiste na condição de todo texto cifrar sua própria lei de composição e as regras do seu jogo, um livro como Em liberdade parece realizar o programa derridiano: um livro que se propõe um diário apócrifo, de início parricida, já que falsifica a autoria, ao mesmo tempo, oculta diversos subtextos que precisam ser escavados e desvendados no nível da composição, evidenciando o tipo de expediente que Derrida parece demandar da escritura.

15 de Agosto de 1979. Prof. Silviano Santiago. Fotógrafo Antônio Albuquerque. Acervo Núcleo de Memória da PUC-Rio.
15 de Agosto de 1979. Prof. Silviano Santiago. Fotógrafo Antônio Albuquerque. Acervo Núcleo de Memória da PUC-Rio.

Todo o projeto de Em liberdade é baseado nos supostos capítulos finais de Memórias do cárcere. A chamada “Nota do Editor do Manuscrito”, assinada por Silviano Santiago – que, na economia interna do romance, “tratou” os manuscritos perdidos de Graciliano –, escrita na abertura do livro, explica justamente a origem daquilo que se apresenta na forma de diário. Graciliano, alguns anos antes de morrer, teria oferecido a um amigo aqueles originais, solicitando-lhe que só fossem revelados ao público vinte e cinco anos após a sua morte. Anos depois, em 1952, às vésperas de sua morte, quando já padecia de câncer no pulmão, Graciliano teria escrito para o mesmo amigo pedindo-lhe que queimasse os originais deixados, remontando ao gesto de Franz Kafka a Max Brod. Alinhado a Brod, o amigo ocultado de Graciliano não queima os papéis e preserva-os, tornando-se, ele mesmo, arconte. Anos mais tarde, a família do amigo teria entrado em contato com Silviano, à época professor na Rutgers University nos Estados Unidos, confiando-lhe aqueles originais. A escolha por Silviano se deve ao fato de ele já ter trabalhado com o tratamento de manuscritos. A nota, apesar de ficcional, tem um forte lastro biográfico.

Ainda quando graduando em Letras Neolatinas na Universidade Federal de Minas Gerais, Silviano é indicado pelo seu professor Damien Saunal a estudar na Maison de France, no Rio de Janeiro, no Centre d’Études Supérieures de Français, durante o biênio 1960-1961, curso organizado pela CAPES, que concedeu uma bolsa a Silviano para custear sua estada no Rio (Santiago, 2021, p. 181-182). O curso de especialização era uma espécie de preâmbulo para o doutorado no exterior, já que a pós-graduação estava ainda engatinhando em solo brasileiro. Durante esse período, aproxima-se de Alexandre Eulálio, que lhe conta da existência de um manuscrito inédito da chef-d’oeuvre do escritor francês André Gide, Les faux-monnayeurs (1925), no Rio de Janeiro. Informado por Eulálio, Silviano vai atrás dos manuscritos, seu passaporte de entrada para o mundo francófono e para a pesquisa genética em literatura. Por um período de seis meses durante o curso de especialização, Silviano irá se ater à pesquisa daquele manuscrito. Examinando de perto os inéditos, o autor toma gosto pelo estudo da gênese da obra e das formas de composição. O resultado parcial do período no Rio de Janeiro foi publicado, anos mais tarde, na Revista do Livro – criada por Alexandre Eulálio –, intitulado “Fragmento de Les faux-monnayeurs: (Edição de um manuscrito inédito)” (Santiago, 1966), no qual transcreve os documentos encontrados e ensaia algumas incursões na composição gideana. O doutorado realizado posteriormente terá esse problema como centro, intitulado La génèse des Faux-Monnayeurs d’André Gide (Santiago, 1968) e defendido em abril de 1968 na Université de Paris (Sorbonne), sob supervisão do professor Pierre Moreau. O período no Rio de Janeiro e o de doutoramento podem ser entrevistos no livro de 1981, como sugere a nota do editor, peça fundamental para sua compreensão.

Em artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo, em 2007, Silviano, ao apresentar os mecanismos escriturais de Gide, explica o conceito criado para designar a chamada “estrutura em abismo” (mise-en-abyme), usada também para descrever sua própria obra:

Do ponto de vista retórico, a estrutura de Os Moedeiros Falsos se inspira […] na composição de brasões. A peça de nobreza pode trazer no seu interior, em miniatura, o desenho global. O todo se confunde com a parte. A parte se confunde com o todo. Questão de perspectiva. Em heráldica, a técnica se chama “em abismo”. Em retórica pop, o procedimento se encontra na lata de aveia Quaker. Um religioso vestido a caráter mostra uma lata de aveia. Nesta, está estampado um religioso que mostra a mesma lata de aveia. E assim infinitamente. A estrutura em abismo é comum nas obras de arte do Ocidente. Apenas os historiadores a desconheciam até a anotação de Gide no próprio diário íntimo. Lembremos alguns exemplos. “Hamlet”, de Shakespeare, em que há uma peça dentro da peça, “As Meninas”, de Velásquez, em que a pintura retrata o ato de pintar, e ainda “O Primo Basílio”, em que o personagem Ernestinho escreve uma peça sobre adultério, em tudo semelhante à trama criada por Eça de Queirós. (Santiago, 2007)

De modo a ainda recuperar sua primeira ideia de livro, Silviano, ao estilo de Gide, planejou a segunda metade do romance em mise-en-abyme, fazendo com que o seu Graciliano escrevesse um conto narrado por Cláudio Manoel da Costa, num interessante jogo de espelhos. Dessa maneira, surge, ao longo do livro, um livro dentro de um livro, no qual Graciliano, ao sonhar ser o poeta mineiro, vê-se identificado com a figura do inconfidente perseguido que, por sua vez, ressoa ainda a imagem de Herzog nos anos 1970. A morte trágica do poeta mineiro se torna musa literária do diário íntimo – desde pelo menos a entrada de 3 de março, dentro do romance ― do narrador/personagem Graciliano Ramos que sonha ser Cláudio Manuel da Costa (Santiago, 2013b, p. 215). O projeto do diário apócrifo é repensado mantendo, ao mesmo tempo, as referências a Cláudio Manuel da Costa e Vladimir Herzog. Quer dizer, o livro sobre Cláudio Manoel da Costa aparece dentro do livro sobre Graciliano que, ao mesmo tempo, contém a morte de Herzog e sua respectiva discussão histórica e política. Um livro dentro do livro, texto duplicado, estrutura em abismo. A discussão sobre a ditadura militar, por sua vez, aparece cifrada nas querelas com o governo Vargas, espelhadas também nas tensões da Inconfidência Mineira com a Monarquia portuguesa. Escrito num sábado, dia 20 de março, lê-se em Em liberdade: “Cláudio será Graciliano. Graciliano redige, mas quem escreve é Cláudio” (Santiago, 2013b, p. 252). Os personagens são também duplicados, performando um e outro, confundindo-se na prosa. É neste ponto que a engenhoca Em liberdade ganha um estatuto político e estilístico interessantes. Numa só tacada:

[…] o projeto alegórico inicial se transforma numa espécie de grande painel da história do Brasil. Em três épocas distintas, três intelectuais brasileiros padecem nas mãos de governos paranoicos, autoritários e violentos. Final do século XVIII (Cláudio falece no dia 4 de julho de 1789); década de 1930 (Graciliano passa preso o ano de 1936); década de 1970 (Herzog é suicidado no dia 25 de outubro de 1975). (Santiago, 2020a, p. 46)

Se Silviano buscou procurar na biografia e nos escritos de Graciliano Ramos ― e Cláudio Manoel da Costa ― algo que dissesse sobre o corpo, entrevendo a forma de compor o texto, caçando as intermitências da escrita, este ensaio buscou também, na composição de Silviano, nos seus textos ficcionais, a forma pela qual investigou a composição de Graciliano e investiu na escrita alheia.

Tentamos, aqui, pensar o emaranhado de circunstâncias que estavam ao redor da composição do livro Em liberdade, encontrar os pontos essenciais na biografia do autor para a constituição deste trabalho tão singular em sua carreira. Quer dizer, retrocedendo alguns anos da publicação, indo até 1975, onde parece estar o início de tudo, e escavar os acontecimentos e textos que o circundaram no período da composição. Assim, descrever como as ideias se formaram e se transformaram no cruzamento com a história, as instituições, os textos e as pessoas, garantindo uma melhor compreensão da longevidade desse livro que já completou mais de quarenta anos e que continua atual.

Silviano Santiago em “A sociedade secreta dos biógrafos”, relembra de uma passagem de Historia Universal de La Infamia (1935) de Jorge Luis Borges, na qual o escritor argentino diz fazer parte, junto a outros escritores, de uma espécie de “sociedade secreta” de devotos de Marcel Schwob, autor de Vies imaginaires (1896). Isso porque Schwob figuraria como o primeiro a retirar o gesto biográfico de um registro simplesmente histórico, de coleção de dados e comprometido com a verdade enquanto finalidade da literatura. Schwob realizou uma série de minibiografias e as eternizou no livro de 1896, no qual não estabelece uma distinção entre grandes figuras e personagens medíocres da história, e até de criminosos. Todos são passíveis de serem biografados. Não apenas isso, mas o ponto de partida dos perfis biográficos não é calcado num universalismo que daria conta de maneira absolutizante das figuras em questão, mas são antes incitadas por pequenas curiosidades, esquisitices triviais que, combinadas ao estilo do escritor e a uma certa dose de fatos reais, conseguem compor um quadro satisfatório que faz as vezes do gênero clássico da biografia. Assim, Borges seria um autor herdeiro de Schwob, que produz genealogias bastardas, biografias inventadas, que constitui sua prosa desafiando os limites entre a ficção e o mundo. Ao final do pequeno texto, após descrever alguns mecanismos de composição biográfica e apresentar de que maneira diversos autores se colocam junto a Schwob como seus herdeiros, arremata colocando-se, ele mesmo, ao lado do autor, como seu herdeiro também: “ao publicar o romance Em liberdade, assinei ficha de inscrição na sociedade secreta a que Borges se refere” (Santiago, 2013, p. 98).

* Gabriel Martins da Silva é professor de sociologia e doutorando em Letras (PPGLCC/PUC-Rio). Mestre em Letras (PUC-Rio/CAPES) e graduado em Ciências Sociais (PUC-Rio). Foi assistente de curadoria da mostra de cinema Ecos de 1922: Modernismo no Cinema Brasileiro, realizada no primeiro semestre de 2022 pelo Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.

 
Referências bibliográficas
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MIRANDA, Wander Melo. Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

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SOUZA, Laura de Mello e. Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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Dossiê
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ANISTIA PARA QUEM?

Este artigo, baseado numa palestra, propõe fazer um comentário a respeito do meu romance Anistia, que talvez possa ser considerado como um dos ecos, na literatura brasileira contemporânea, do golpe militar de 1964 e do período sombrio que se seguiu a ele na história do nosso país. Farei uma consideração inicial sobre o tema do livro, para depois tratar da sua origem e, por fim, do nome escolhido. Com base nesse nome, proponho como título do artigo esta provocação: “Anistia para quem?”. A pergunta me parece resumir, agora, uma ambivalência no significado do termo “anistia” que se mostra decisiva nas reflexões sobre a ditadura militar e sobre o peso do legado político e cultural do golpe de 1964.

Qual a relação entre o início da Odisseia, de Homero, uma frase de Marx sobre a história mundial e a Comissão Nacional da Verdade, criada no Brasil do século XXI tanto para recuperar a memória dos mortos e desaparecidos, no período de ditadura militar, quanto para responsabilizar os agentes da repressão política? Pretendo responder a esta pergunta ao longo do comentário a seguir sobre meu romance Anistia, que foi escrito em 2020, durante o período de isolamento social decorrente da pandemia de coronavírus. Usei como base para o enredo do romance os rascunhos de um roteiro, apenas esboçado alguns anos antes, provavelmente em 2014, depois de um curso que ministrei sobre a Odisseia na faculdade de filosofia da Universidade Federal Fluminense.

A motivação para contar uma história situada na minha cidade natal, num período do qual tenho muitas lembranças, surgiu, na verdade, de inquietações ligadas ao momento em que o livro foi escrito e, portanto, ao contexto cultural e político brasileiro de 2020. Assim, quando comecei a reelaborar os rascunhos do que viria a ser o livro, embora eu tivesse decidido situar os acontecimentos no Rio de Janeiro do final da década de 1970, meu interesse não era escrever uma autoficção a partir das memórias da minha infância, nem propriamente um romance histórico. Mas, aos poucos, me vi às voltas com jornais antigos, textos de historiadores, discos, livros e imagens daquela época. Usei esses materiais e as minhas recordações à medida que se faziam necessários para a narrativa.

Acerca do período de aproximadamente um ano em que o livro foi escrito, basta mencionar a data para todos saberem que foi um momento marcado, no mundo inteiro, pelas consequências da pandemia de coronavírus, com a situação forçada que vivemos de isolamento social. Num primeiro momento, enquanto ficava fechado em casa, acompanhei obsessivamente as notícias por redes sociais, sites e canais de tevê, todos estes meios telecomunicativos que traziam para dentro do ambiente isolado as reverberações do que acontecia no mundo exterior. Depois, com o passar de algumas semanas me recuperando da Covid-19 – que peguei logo no início da pandemia, apesar do isolamento quase total, convivendo só com a família –, fiquei cansado demais para ler tanta notícia. Então resolvi reler alguns dos meus livros preferidos, entre eles a Odisseia. E, quando fiquei bom, passei a dedicar todas as manhãs a escrever. Cada pessoa lidou de uma maneira com essa situação e com as angústias provocadas por ela. Essa foi a minha.

Nos meus cadernos do início da pandemia leio a constatação de que o Brasil devia ser um dos poucos países em que as notícias alarmantes sobre a calamidade sanitária não eram a principal preocupação de quem lia os jornais e acompanhava as redes sociais. O que mais preocupava os brasileiros, ou pelo menos uma parcela significativa da população, eram as informações jornalísticas que evidenciavam o negacionismo e o reacionarismo do governo de extrema-direita, conduzido por um presidente menos preocupado com a saúde pública do que com teorias da conspiração, frases de efeito moralistas e a celebração patriótica da época da ditatura militar. Ou seja, a calamidade política era ainda pior do que a sanitária.

Na origem desta calamidade política que estava ocorrendo era evidente um movimento reacionário, ou seja, uma tentativa de resgate do passado como reação contra as mudanças culturais e sociais dos últimos anos. Não do passado como ele de fato ocorreu, evidentemente, e sim de uma versão mitificada, no sentido de uma repetição, como farsa, da tragédia do passado, para usar uma célebre formulação de Marx que parte de uma citação de Hegel (Marx, 2011, p. 25).

Pois bem, a ideia de retomar aquele roteiro que mencionei antes, baseado numa leitura anterior da Odisseia, veio desta constatação de um retrocesso político assustador. O nosso passado sombrio, não resolvido, recalcado, se fazia presente de maneira inegável. Então a ideia por trás desse livro, Anistia, era tratar de memória e esquecimento, da herança da violência da ditadura e da esperança num futuro democrático: um futuro que é o nosso presente, num momento em que estamos ainda às voltas com aquela herança.

Posso tentar explicar melhor esse projeto fazendo um resumo do romance. Ele conta a história de um filho em busca de notícias sobre seu pai, desaparecido nos anos de chumbo da ditadura. Este protagonista, Emílio, é um estudante de História que reluta em se engajar no movimento político estudantil contra o governo militar. Seu pai, Luís, tinha participado de ações da luta armada no Rio de Janeiro até 1969, quando ele ainda era criança, e Emílio não sabe como lidar com o trauma dessa perda, que permanece como uma interrogação ou uma ameaça.

A história se passa nos meses que antecederam o decreto da Lei de Anistia, um marco inicial do processo de redemocratização do país. Aos poucos, os eventos que levaram ao desaparecimento de Luís vão sendo desvendados por seu filho, mas isto traz à tona conexões insuspeitadas com a tentativa de assassinato de um amigo dele, de modo que a ameaça identificada no passado se mostra ainda presente. Destaco aqui um trecho do livro que aborda essa presença:

A sequência de palmeiras imperiais da rua Paissandu, com seus troncos compridos, dava a impressão de dividir a paisagem em faixas verticais, pequenos quadros muito diferentes uns dos outros, cada um com seus detalhes. Contra o céu nublado de fim de tarde, os vultos das folhas que se erguiam acima dos prédios em frente pareciam mãos enormes, prestes a se precipitar sobre sua presa.

Emílio se lembrou então, de repente, do que a Aline tinha dito no dia da manifestação. Não dá pra ser assim, ela repetia. Imagina, no futuro, se os reacionários de plantão forem tratar os torturadores como se eles fossem heróis. Todos grandes patriotas, e homens de bem, que acreditam em Deus e defendem a família tradicional brasileira. Mesmo se a gente voltar a viver numa democracia, o que eu ainda acho que vai demorar muito pra acontecer, ela disse, o fantasma da ditadura vai ficar assombrando o Brasil pra sempre. Não dá pra ser assim. (Süssekind, 2022, p. 174)

A ideia que serviu de base para o enredo deste romance me ocorreu a partir de uma combinação que considero bastante inusitada, sobre a qual vale a pena me demorar um pouco mais. A primeira anotação em torno dessa ideia foi feita em 2014, sob a influência da divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade, acompanhada por depoimentos de pessoas que foram presas e torturadas durante o período da ditadura militar.

Naquele momento, minha impressão era a de que, finalmente, havia uma vontade política no Brasil de lidar com essa memória traumática, tanto com a questão da identificação dos crimes cometidos pelo governo durante a ditadura quanto com o restabelecimento e com a narrativa do que realmente ocorreu com suas vítimas. Enquanto eu acompanhava histórias dos desaparecidos que estavam sendo resgatadas nesse contexto, me lembrava do curso que tinha acabado de dar na universidade sobre a Odisseia, de Homero. Uma coisa que sempre me chamou atenção no começo desta epopeia é que tudo gira em torno de uma ausência: os quatro cantos de abertura têm como tema o desaparecimento de Ulisses, o único dos heróis da Ilíada que, mesmo tendo sobrevivido à guerra, ainda não voltou para casa. Ele só aparece no início do quinto canto do poema, então toda a parte inicial constitui uma preparação, cujo tema é a ausência do protagonista.

Essa parte inicial da Odisseia costuma ser chamada de Telemaquia, porque o personagem principal é Telêmaco, o filho de Ulisses. Faço um pequeno resumo da situação narrada, porque foi dela que me apropriei. A instabilidade gerada pela ausência do rei, dez anos após o final da guerra de Tróia, motiva os eventos que ocorrem em Ítaca. Porque ainda têm esperança no retorno, a esposa fiel tenta adiar indefinidamente sua escolha de um novo marido, e Telêmaco, o filho ainda jovem, reluta em tomar alguma atitude. Porque duvidam do retorno, vários pretendentes querem forçar Penélope a escolher um deles, que deveria então assumir o governo do reino. Então Palas Atena, divindade protetora de Ulisses, incita Telêmaco a buscar a longínqua informação que algum dos heróis da guerra de Troia poderiam dar acerca do paradeiro de seu pai. Seguindo as recomendações da deusa, ele viaja para encontrar Nestor e Menelau, que já retornaram para suas casas, e é recebido pelos dois reis com gestos de hospitalidade. Tanto em Pilos quanto em Esparta, esta visita desperta recordações que exaltam a glória do herói ausente.

Portanto, em linhas gerais, Telêmaco precisa resgatar a memória do que aconteceu com Ulisses, saber se o seu pai está morto ou se tem chance de voltar. Em vista disto, ele precisa decidir se o pai é pertencente ao passado ou ao presente. E é só no quarto canto, no final da sua viagem, e por uma via muito tortuosa, que Telêmaco chega a ter a notícia de que Ulisses está vivo, na Ilha de Ogígia, retido pela Ninfa Calipso. Em seguida, a partir do canto V, começará a ser contada, propriamente, a história desse retorno, até o momento em que o herói reencontra o filho e a mulher em Ítaca, mas meu interesse estava voltado apenas para a parte inicial, em que a ausência de Ulisses parece ser o eixo de todos os acontecimentos.

Ora, o curso que dei sobre este poema da Grécia Arcaica, um dos arquétipos de toda a literatura ocidental, tinha uma conexão com o pensamento contemporâneo. Li com os alunos e comentei a releitura da Odisseia feita por Adorno e Horkheimer em seu livro Dialética do esclarecimento, de 1944, escrito quando os dois autores, intelectuais judeus vindos da Alemanha, tinham escapado da perseguição nazista e estavam exilados nos EUA, de onde acompanhavam os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. No prefácio, eles declaram que seu objetivo é “descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”, que conduz a uma calamidade triunfal. Nesse contexto, reler a Odisseia não visava a uma reconstituição histórica da Grécia Antiga e de sua situação cultural, mas a uma genealogia da racionalidade moderna feita a partir do “texto fundamental da civilização europeia” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 11, p. 55).

Voltando ao meu assunto, fiz uma primeira anotação em 2014 a respeito de um projeto, que depois serviu de base para a tentativa de escrever o tal roteiro, chamado “Telemaquia”. A anotação dizia respeito ao que me pareceu ser uma conexão entre o trabalho da Comissão Nacional da Verdade e minhas reflexões sobre a Odisseia, no curso mencionado. Afinal, para um leitor brasileiro nascido na década de 1970, como eu, o tema do pai desaparecido e do resgate da memória, elaborado no poema homérico, remete inevitavelmente ao que ocorreu no período da ditadura militar.

Comecei a escrever um roteiro que era, basicamente, uma espécie de versão contemporânea da Telemaquia, com um militante desaparecido no lugar de Ulisses, e, no lugar de Telêmaco, um estudante que relutava em se engajar nos protestos políticos pela redemocratização. No entanto, não levei adiante este projeto. As anotações que fiz para o roteiro ficaram, por muito tempo, num arquivo, entre muitos guardados na memória do computador, sob o título “rascunhos”. Só fui retomar o projeto e de fato escrever a história em 2020, vários anos depois da primeira anotação, já na forma não de um roteiro, mas de um romance.

O que me impressiona nesse processo, avaliando-o retrospectivamente, é o quanto o momento em que o livro foi escrito era diferente daquele em que a ideia tinha me ocorrido. Não só diferente, aliás, mas oposto, do ponto de vista da situação política brasileira. Em 2020, iniciativas como o relatório da Comissão Nacional da Verdade, políticas de cotas, regulamentações trabalhistas etc. tinham alimentado, durante anos, um reacionarismo raivoso no Brasil. O caos político gerado pelo golpe de 2016 tinha levado – em oposição à busca da verdade – a uma regressão à mentira. Um político que exaltou publicamente um torturador foi eleito presidente e, com a extrema-direita no poder, o governo comemorava a data de início da ditadura com desfiles e fanfarras.

Angelus Novus, do artista Paul Klee (1920), mencionado no ensaio Sobre o Conceito de História de Walter Benjamin.
Angelus Novus, do artista Paul Klee (1920), mencionado no ensaio Sobre o Conceito de História de Walter Benjamin.

Esta situação me fazia pensar no último texto escrito por Walter Benjamin, outro intelectual judeu que fugiu do nazismo, mas não teve a mesma sorte de seus colegas frankfurtianos Adorno e Horkheimer, que conseguiram sobreviver no exílio. Nas teses sobre o conceito de história, de Benjamin, há uma passagem em que ele diz: “também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. Os mortos, os desaparecidos, os torturados, os oprimidos são de novo violentados, esquecidos ou vilipendiados pelo revisionismo histórico que glorifica a violência dos vencedores. Benjamin acrescenta, em 1940: “e esse inimigo não tem cessado de vencer” (Benjamin, 2020, p. 37).

Que inimigo é esse? Podemos nomeá-lo como faz o ensaísta, já que ele estava escrevendo sobre a busca de um conceito de história que melhore nossa posição na luta contra o fascismo, que praticava uma mitificação do passado. O reacionarismo fascista, tanto na Alemanha da década de 1930 quanto no Brasil de 2020, tem um grande interesse pela História, porque sua ideologia se apropria do passado para narrar uma versão triunfante e mentirosa, cujo objetivo é justificar uma política destrutiva e repressiva.

Foi em 2020, durante o governo Bolsonaro, que resgatei aquele roteiro sobre um filho que, como Telêmaco na Odisseia, busca notícias de seu pai, um participante da luta armada desaparecido nos anos de chumbo da ditadura. Hoje penso que pude escrever a história naquele momento por dois motivos:

1) Porque se tornou urgente e necessário falar sobre memória, luto, reparação, herança, sobre a procura de um passado perdido, ou sobre a disputa acerca do sentido desse passado;

2) Porque em 2014 eu não sabia responder muito bem àquela pergunta: que inimigo é esse? Só em 2020 ficou claro para mim quem era o antagonista da história que eu estava escrevendo. Mais do que isso, entendi que o mais importante era mostrar como a grande questão do protagonista, o filho de um desaparecido, não era lidar com o passado, e sim lidar com o fato de que aquele passado continua presente.

Pois bem, o romance foi publicado em 2022, ano das eleições presidenciais que encerraram o governo da extrema-direita. Acontece que, quando eu escolhi o título, nem sonhava que ouviria o coro “sem anistia” cantado por milhares de pessoas em Brasília, na posse do presidente Lula, no final daquele ano. Este grito “sem anistia” surgiu como um slogan voltado para a condenação dos crimes cometidos pelo governo anterior, que justamente pretendia retomar as diretrizes políticas da linha dura dos governos dos generais durante a época da ditadura militar.

Ressalto, então, os deslocamentos de sentido do termo “anistia” nas maneiras como esta palavra foi usada. Basta pensar, em contraste com o coro “sem anistia”, nos cartazes que, naquele tempo, pediam “anistia ampla geral e irrestrita”, ou “anistia antes que tardia”, referindo-se à liberdade para os presos políticos e ao retorno dos exilados. Ao escolher o nome Anistia para o romance, uma das questões políticas importantes que eu pretendia trazer à tona era justamente a disputa em torno do sentido da Lei da Anistia.

Foi pela importância simbólica desta lei, como signo da reabertura política brasileira, que decidi situar a história da procura por um desaparecido em 1979. A sua aprovação foi o marco inicial do movimento de redemocratização do país, mas foi também um acordo político para livrar os torturadores e os assassinos que integravam o governo. E, anos depois, alguns deles voltaram ao poder.

Militantes com cartazes na década de 1970 com os dizeres “Anistia ampla geral e irrestrita”. Fonte: Antônio Nery, Agência O Globo (1979).
Militantes com cartazes na década de 1970 com os dizeres “Anistia ampla geral e irrestrita”. Fonte: Antônio Nery, Agência O Globo (1979).

Por isso, fiz a pergunta “anistia para quem?” no título deste artigo. O problema está no complemento. Como prova disso, recentemente, o ex-presidente, envolvido numa série de processos jurídicos ligados à tentativa de golpe que ele fomentou e à apropriação indevida de jóias presenteadas à presidência, sugeriu passar a borracha no seu passado, expressando, à sua maneira, os anseios da militância política que trabalha, atualmente, para tentar anistiá-lo (o termo é usado assim pela imprensa).

Antes de concluir, faço uma consideração pessoal, relacionada às minhas lembranças do período em que se passa o romance. Como eu era criança na década de 1970, as primeiras noções mais ou menos políticas que se formaram na minha cabeça a respeito do Brasil estavam ligadas às palavras “ditadura”, “censura”, “exílio” e “anistia”. No Primário, numa escola da Zona Sul carioca, cantávamos o hino nacional todos os dias, e a ideia que eu fazia do que era ser brasileiro, misturava o ufanismo em torno da seleção vitoriosa de Pelé, vestindo a camisa amarela com desfiles militares e presidentes fardados.

Uma palavra especialmente misteriosa para mim, naquele tempo, era justamente “anistia”. Talvez eu a tenha encontrado pela primeira vez nas histórias da Graúna, no jornal O Pasquim, que lembro de ler na casa dos meus avós. E eu não sabia o que esta palavra significava.

O grande acontecimento político que acompanhei na minha vida foi o processo de redemocratização iniciado com a campanha das Diretas Já, que começou quando eu tinha por volta de dez anos de idade. Em seguida, houve a Constituinte, liderada por Ulysses Guimarães, e depois disso pude votar, aos dezesseis anos, na primeira eleição direta realizada no Brasil depois de duas décadas de ditadura.

Considerando que a minha geração é profundamente marcada por esse processo de redemocratização, atribuo a isso, pelo menos em parte, uma certa ilusão otimista que eu tinha a respeito do processo histórico que vivemos. A formação da minha visão política girou em torno da ideia de um progresso coerente, uma luta por avanços sociais na qual era possível nomear as forças que atuavam – a oposição e a situação –, forças que pareciam anunciar a superação de conflitos e desigualdades.

Hoje sinto uma certa nostalgia desta minha crença no avanço político e no fio condutor da História, à maneira de Hegel. Pensando nas repetições históricas, na memória e no esquecimento de quem luta contra o fascismo, termino este texto citando de novo Walter Benjamin: “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como de fato foi. Significa apropriar-se de uma recordação tal como ela relampejou no instante do perigo” (Benjamin, 2020, p. 36).

Num país dividido, numa sociedade desigual e injusta, sob um governo reacionário alimentado por mitificações e mentiras, em tempos de celebrações patrióticas elitistas, de glorificação da violência e de regressão social, econômica, política, cultural, educacional – em outras palavras, no Brasil, atualmente, é preciso repensar a História. O passado corre o risco de ficar esquecido, obliterado, de ser falsificado para servir como instrumento de dominação.

* Pedro Süssekind é professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPQ. Doutorou-se em Filosofia pela UFRJ em 2005, após um estágio de pesquisa no Departamento de Literatura Comparada da Freie Universität em Berlim. É autor dos livros Anistia (Harper Collins, 2022), Litoral (7letras, 2006) e o romance Triz (Editora 34, 2011).
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar; 1ª edição, 1985.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história: Edição Crítica. São Paulo: Editorial Alameda, 1ª edição, 2020.

HOMERO. Odisseia. São Paulo: Penguin-Companhia e Companhia das Letras, 1ª edição, 2011.

MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 1ª edição, 2011.
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DA INTERDIÇÃO, UM NOVO CAMINHO

Quando passei no processo seletivo de Assessor Técnico de Literatura IV do Sesc Nacional, em 2002, estava defendendo o mestrado na PUC-Rio sobre o humor político em Millôr Fernandes e participava do movimento de saraus poéticos que estouraram no Rio de Janeiro a partir do fim dos anos 1990. A bolsa do CNPq estava no fim, de modo que a tranquilidade do emprego e a cuca fresca me davam muito gás para contribuir com o que me mandassem fazer. Minha colega de equipe, que já contava com muitas décadas de empresa e (quase sempre) demonstrava paciência para suportar minha curiosidade sobre tudo, comentou que tinha vontade de criar um prêmio literário. “Então vamos criar um prêmio!”, eu disse com uma empolgação quase adolescente.

Quase junto comigo havia chegado uma nova gerente, Marcia Costa Rodrigues, aberta a novas ideias. À época, o principal projeto da área eram as dezenas de feiras de livros infantis do Sesc realizadas país adentro, formato de evento que em breve seria alterado em todo o território por conta de uma tal Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acabava de surgir.

Ao desenhar o projeto, primeiro pensamos no que o prêmio do Sesc não poderia ser. Descartamos a ideia de dar um prêmio para livros já publicados. Para isso já existia o Jabuti, há não muitos anos tinha acabado o famoso Prêmio Nestlé, e ainda estava nascendo o Portugal Telecom (atualmente Oceanos). Considerando a política da empresa de dar acesso a artistas que não têm espaço, decidimos que deveria se voltar para aqueles que nunca publicaram.

O que dar como premiação? Dinheiro, impressão do livro na editora caseira do Senac? Apesar de ser uma solução fácil, não me parecia que era isso que escritores inéditos buscam.

Eu não havia publicado um livro ainda. Era daquela geração (depois chamada de 00) que escrevia seus textos nos blogs. A tecnologia restringia a publicação de livros com qualidade e rapidez, por isso o estalo veio ao pensar como um possível candidato: a premiação será a publicação do livro por uma editora grande. Para quem é inédito, não tem contatos ou apadrinhamentos, e com uma internet ainda incipiente que tornava o país distante de si mesmo, seria uma boa oportunidade.

Nesse meio tempo, foram feitas reuniões com a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a fim de conferir peso acadêmico ao projeto. Acreditava-se que o nome Sesc sozinho não iria chamar a atenção, e entendi depois o motivo: a empresa, entre os anos 1980 e 1990, não costumava se mostrar muito, provavelmente por medo de que Brasília quisesse se apropriar dos suntuosos recursos do Sistema S (Senai, Sesi, Senac, Sesc, Sebrae, Senar, Sest, Senat e Sescoop), ameaça que retorna a cada mudança de governo. Por alguma burocracia que me escapa, a parceria com a universidade não andou, mas a ideia era tão boa que não podia morrer na praia. Faltava achar a editora. Após um primeiro contato esquisito com uma editora média, que fez muitas exigências para colocar o seu selo no então romance vencedor, me lembrei de uma conhecida que trabalhava na Record. Logo na primeira reunião, Luciana Villas-Boas, então diretora executiva, topou a parceria, com um argumento bem sincero, mas também com aquela visão que fez dela o grande nome do meio literário brasileiro na época: “Vocês vão fazer o que eu não posso, que é vasculhar nesse país imenso quem tem uma boa literatura e merece publicação”. O projeto estava pronto.

Conversa de maluco

Para aprovação interna, foram necessárias muitas tramitações e defesas. Um projeto novo era algo que não surgia com frequência, de maneira que houve desconfiança entre os diretores. Eles passaram uns bons meses jogando o processo de um lado a outro, furando o nosso cronograma. Ainda me lembro do diálogo com um deles:

— Por que você está apresentando esse projeto, se ele não existe?

— É porque é um projeto novo – respondi.

— Mas como assim, se esse projeto nunca existiu?

— Justamente, por não ter existido que ele é novo, mas daí vai passar a existir.

O restante do diálogo desapareceu da minha mente, como costumam acontecer com traumas ou as coisas desimportantes. Mas não seria a única vez em que o Prêmio Sesc traria fatos inusitados.

Lançamos o edital, e foram recebidos mais de trezentos  livros. Administrar aqueles caixotes com quatro vias impressas e espiraladas, como eram os concursos de então, dava um baita trabalho. Criamos o modelo de subcomissões, que fazem uma triagem, cujo resultado segue para a comissão final, permitindo que os livros sejam lidos de fato. Essa primeira foi formada por Antônio Torres e Italo Moriconi, que selecionaram o romance histórico Santo Reis da Luz Divina. O autor era um professor de Engenharia Química da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), oriundo do interior do Paraná. Marco Aurélio Cremasco, de 40 anos, mostrava que o “novo autor brasileiro” poderia vir de qualquer lugar, ter qualquer idade e atuar em outras áreas. O livro foi finalista do Jabuti e recebeu uma resenha bem positiva do crítico Wilson Martins. Ao que parecia, deu certo.

O cu de deus

Na segunda edição do Prêmio, a obra As netas da Ema, da advogada paulista Eugênia Zerbini, fez os leitores revisitarem a ditadura – o que, feliz ou infelizmente, torna o livro bem atual. Logo saiu uma segunda edição, confirmando que o formato do projeto funcionava. No terceiro ano surgiram o jovem estudante goiano André de Leones (Hoje está um dia morto) e a professora carioca Lúcia Bettencourt (A secretária de Borges) em Conto, categoria que conseguimos incluir.

Tudo parecia seguir bem até que, numa sexta-feira, perto do fim do expediente, o diretor Álvaro Salmito veio até minha mesa com um exemplar de Hoje está um dia morto cheio de marcações. Meio esbaforido, ele me mostrava trechos com palavrões e cenas de sexo no romance, que trata de jovens do interior do país cercados de desprezo e tédio. O presidente da Federação do Comércio da Bahia estava reclamando porque sua mulher pegara o livro e tinha se deparado com tal conteúdo. Não consegui segurar o riso quando ele leu alto o título de um capítulo:

— Olha aqui, ó, “o cu de deus”, Henrique! O cu de deus!

A ordem era que eu fizesse um texto explicando o motivo de aquele livro ter vencido o Prêmio Sesc. E lá fui, já com um “sextou” me acenando no horizonte. Além de ter sido selecionado por Luiz Antônio de Assis Brasil e Moacyr Scliar, escrevi sobre as qualidades do livro, tomando a liberdade de inventar alguns termos teóricos para tornar o documento bem hermético. Imaginei que ninguém teria coragem de dizer que não entendeu. O diretor leu com um “humm, está ótimo”, o texto seguiu e nunca mais se ouviu falar do assunto. Posteriormente, o romance de Leones virou filme, e o autor se consolidou com uma carreira sólida.

Em 2009, saí do Sesc ao receber o convite para um cargo de chefia na Secretaria de Estado de Educação do Rio. Não durei muito por conta do caos e de imoralidades, mas isso é outra história. Depois comecei o doutorado e fui para o Oi Futuro. Por volta de 2012, a gerente do Sesc me mandou mensagem informando que havia uma vaga de Literatura aberta, e precisavam de alguém com mais experiência para tocar os projetos. Passei no processo e, mesmo com salário menor, retornei. Estar mais perto de casa (moro em Jacarepaguá, mesmo bairro do Departamento Nacional) me garantia duas horas e meia por dia: o tempo vira moeda valiosa quando ficamos mais velhos.

Uma das minhas missões era dar uma atualizada no Prêmio Sesc. Foram feitos vários ajustes administrativos, mudamos o modelo de inscrições físicas para o formato on-line e foi sistematizado o circuito dos vencedores, que passou a ser um tipo de premiação a mais, uma vez que os autores receberiam também um cachê em cada viagem, estimulando a ideia de profissionalização nesse processo. Os vencedores começaram a ter grande destaque na programação da Flip. Como resultado, a média de inscritos triplicou.

Mas havia a difícil luta contra as burocracias internas, ainda que hoje possam soar anedóticas. Uma das implementações foi a criação da fanpage do Prêmio no Facebook, o que foi aprovado, mas o acesso a essa rede social era proibido dentro da empresa. Esse paradoxo, que me fazia trabalhar de casa à noite para responder mensagens dos candidatos, me fez solicitar umas quatro vezes o acesso, mesmo porque não pagavam horas extras. Na quinta, escrevi em formato de soneto, repetindo a estratégia de quando havia feito um parecer técnico em cordel. Creio que a piada chamou a atenção, pois só aí me liberaram a rede do Zuckerberg.

Herdei um processo de gravação das obras vencedoras em audiolivros. Quando estive no Oi Futuro fui gerente de projeto do Prêmio Portugal Telecom, e um dos trabalhos legais tinha sido transpor os livros finalistas para o acesso a pessoas cegas. O problema no Sesc era que a empresa vencedora da licitação por menor preço fez um trabalho muito ruim. E o pior: internamente impediram que fosse feita a gravação do vencedor de contos Parafilias, do psicólogo Alexandre Marques Rodrigues, em função do conteúdo sexual do livro. Ninguém sabia ao certo de onde vinha a ordem. Pela época, ainda havia certo pudor em proibir livros.

Em 2018, quando o gaúcho Tobias Carvalho venceu em Conto com As coisas, que trata das vivências de um jovem homossexual numa metrópole, vivíamos um momento em que a pulsão censora começava a não ter vergonha de se mostrar. Regionais devolveram exemplares ao Departamento Nacional, e outros se recusaram a receber o autor. Conseguimos redirecionar os recursos para outros estados. Confesso que tive vergonha de dizer ao Tobias o ocorrido, revelando tudo a ele apenas recentemente.

Anatomia de uma queda

Em 2023, comemoraríamos os 20 anos do Prêmio Sesc de Literatura com dois autores belamente selecionados. Giovana Madalosso e Sérgio Rodrigues, que compuseram a comissão final de Conto, estavam entusiasmados com O ninho, livro da advogada pernambucana Bethânia Pires Amaro, que logo venceria o APCA na categoria. Em romance, pela quarta vez no projeto, foi revelado um autor do Pará, estado geralmente esquecido no mapa da literatura brasileira. Airton Souza, professor e vencedor de vários prêmios menores, realizava um sonho com o seu ótimo Outono de carne estranha, chegando a tatuar “Prêmio Sesc de Literatura 2023” no pulso.

Airton Souza (divulgação).

Nessa última edição da Flip, o Sesc passou a dar R$ 1,5 milhão para custear a programação da Flipinha/FlipZona, em vez de fazer atividades em vários lugares, o que sempre sufocava a pequena e competente equipe local. Na parceria, a única condição seria que fizéssemos uma curadoria coletiva com equipes do Sesc e da Flip. A programação para crianças e jovens se concentrou no auditório Flip + Sesc, deixando o Casarão para programações adultas.

Estava no camarim com os dois novos vencedores, os do ano anterior (Taiane Santi Martins e Pedro Augusto Baía), que contariam como havia sido o “ano de miss”, como brincávamos, além do Rodrigo Lacerda, editor da Record. Pedi que os estreantes selecionassem trechos para serem lidos na mesa. Quando Airton disse que leria o início, cheguei a sugerir que ele escolhesse outra passagem, já sabendo do conteúdo mais explícito e das nossas chefias “conservadoras” que estariam na plateia. Como o autor fez questão de ler o trecho, mesmo porque já havia lido naquela tarde na Casa Record, não seria eu a cerceá-lo, e decidi tocar a mesa naturalmente. Assim fizemos, e todos bateram palmas para a leitura, especialmente após terem ouvido a trajetória de vida tão difícil de Airton. A mesa foi um sucesso para todos, exceto na primeira fileira.

Logo em seguida, a gerente de cultura, Luciana Salles, minha então chefe imediata, me puxou para uma sala, acompanhada do coordenador do Sesc Paraty, Antônio Garcia. Estava nervosa, dizendo que o diretor-geral, João Carlos Cirilo, e a diretora de programas sociais, Janaina Cunha, estavam se sentindo ofendidos com aquela leitura, e que seríamos demitidos caso o fato chegasse aos ouvidos do presidente da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), o empresário amazonense José Roberto Tadros. A CNC está acima dos departamentos nacionais do Sesc e do Senac. Descobri, sem surpresa, que os diretores e a gerente nem sequer haviam aberto os livros vencedores do Prêmio até aquele momento. Tentei explicar que, ocasionalmente, havia esse incômodo com o conteúdo das obras por parte de diretores não habituados à literatura, e que estava à disposição para conversar com eles sobre o conteúdo e o contexto dos textos vencedores. Desesperada, a gerente não queria ouvir, argumentando que eu deveria ter evitado a leitura de qualquer jeito, até tirando o microfone do escritor. Respondi que, se fosse para ser braço de censores, eu não serviria mais para o Sesc.

Havia outra diferença naquele dia: o coquetel do Prêmio, geralmente oferecido para o público presente na sessão, não seria mais realizado. Em seu lugar, decidiram fazer outro, fechado, numa pousada chique, para onde deveríamos levar os vencedores. Fui contra esse formato porque, justamente na celebração de 20 anos do projeto, viraríamos as costas para a plateia, mas era ordem superior e ponto. Voltado para apenas 100 pessoas, das quais cerca de 80 eram funcionários do Sesc, muitos dos quais viajaram a Paraty sem trabalho, como presente de fim de ano, o coquetel nababesco (ao custo de R$ 900 por pessoa, segundo me informaram) estava com um clima estranho. Não houve uma foto, um pronunciamento das chefias do Sesc para os cerca de 10 vencedores do Prêmio, novos e de outros anos. Estavam todos atônitos com a cena entre Zuza e Manel lida por Airton. Mas o pior estava por vir.

No dia seguinte, comecei a sofrer uma perseguição. Logo no café da manhã, a gerente começou uma sequência de acusações. Segundo ela, alguns fatores teriam me levado a permitir a leitura do romance: eu estaria pensando como escritor, e não como funcionário do Sesc; não ligava de perder o emprego pois tinha x anos de empresa e um bom FGTS. E a cereja do bolo: eu permiti a leitura do livro porque tenho “uma casa própria e um carro na garagem”. Foi difícil digerir o desjejum.

Ao longo do dia, praticamente todos os colegas do Sesc se afastaram de mim. Afinal, eu havia causado um constrangimento aos pobres diretores, que até retornariam mais cedo para o Rio, coitados. Uma das poucas conversas que tive foi com o chefe do setor de Comunicação, André Valle. Para ele, eu deveria esquecer “o meu passivo” (a experiência na área) e entender que o Sesc tem um dono que não gosta daqueles assuntos. Como se me desse uma grande dica, sugeriu que a gente fizesse uma pré-seleção na inscrição para que obras “como aquela” não passassem mais.

Ao retornar para o trabalho, meu colega de setor, também devidamente insuflado e temendo perder o emprego, veio agressivamente com as mesmas pedras (eu havia agido como autor etc.). Saí de férias logo em seguida. Novamente, tive vergonha de dizer ao Airton o que havia acontecido.

Ao retornar das piores férias que tive, em que fui acometido por uma insônia que me assolou por meses, a gerente me disse que haviam vasculhado a biografia de Airton, a fim de encontrar algum descumprimento do edital que valesse retirar o prêmio dele, e que sua circulação seria restrita em 2024. Em seguida, a coordenação do projeto iria mudar para Paraty, e seria criado um grupo de trabalho para realizar as mudanças do Prêmio Sesc, sendo que as comissões apontariam uma lista de obras, cuja seleção final seria feita por esse grupo. Caso não concordasse, eu poderia não participar. Já percebendo que estavam esvaziando o meu trabalho para a iminente demissão, me recusei, lembrando que o nome correto ali seria “grupo censor”. Dei ainda dois alertas para a gerente (que, posteriormente, também seria demitida): a Record não toparia participar do projeto dessa forma, e a repercussão externa seria muito negativa. Não deu outra.

Xilindró para os escribas

Durante dois meses evitei expor publicamente a minha demissão e suas circunstâncias, a fim de não ser criada uma bola de neve, atingindo o Sesc como um todo de forma injusta. Sou um fã da instituição, tendo acompanhado como as atividades fazem diferença na vida de tantas pessoas. A rede de bibliotecas oferece um serviço incrível, ainda que o BiblioSesc, de unidades volantes, esteja sucateado em diversos estados. Criamos o Arte da Palavra, maior circuito literário do país, ajustamos a revista Palavra para uso em escolas, ajudei na criação de inúmeros projetos pelo país com uma equipe dedicada e batalhadora. Vale dizer que o Sesc São Paulo, único Regional vocacionado para a Cultura, é uma das forças mais expressivas do que a instituição deveria ser em todo o país. Não por acaso, seus representantes na Flip ficaram alheios àquela celeuma: o saudoso Danilo Santos de Miranda, que sempre foi fã do Prêmio Sesc, devia estar se revirando no túmulo.

As inscrições do Prêmio 2024, previstas para início de janeiro, estavam suspensas até que o diretor-geral decidisse sobre as mudanças no projeto. Com o silêncio do Departamento Nacional sobre a edição 2024 do Prêmio (cujo edital estava pronto desde novembro/2023, já com a nova categoria Poesia), a Record soube do ocorrido e fez questionamentos que culminariam no fim da parceria. Conforme Rodrigo Lacerda já tornou público, em reunião para esclarecimentos a diretora Janaina Cunha disse que, por ela, “Airton e Henrique teriam saído presos da Flip”, causando espanto no editor. Ao que parece, a diretora não se dava conta do quão grave é, sobretudo hoje, explicitar a um parceiro externo de duas décadas o desejo de encarcerar artistas.

Houve repercussão grande em muitas mídias, e o caso se juntou à censura que o escritor Jeferson Tenório estava sofrendo por conta do seu romance O avesso da pele. Airton Souza, que jamais recebeu uma ligação do Sesc para pedido de desculpas ou esclarecimentos, viu seu sonho virar pesadelo. Conforme me relatou, ainda vem sendo boicotado pela instituição, que oficialmente nega o inegável, argumentando que o caso foi a preocupação com crianças e adolescentes da plateia – de uma programação adulta à noite na Flip. Todo censor está sempre protegendo as criancinhas.

O meio literário, em geral, se manifestou em solidariedade ao ocorrido, com a natural exceção de produtores e curadores temerosos de “se queimar com o Sesc”, uma vez que há relações de todo tipo atrás das verbas suntuosas da instituição. Mas o fato é que, após 20 anos consolidado como um dos mais importantes prêmios literários do país, e até com articulações internacionais que conseguimos fazer, o projeto foi manchado irreversivelmente pela visão míope e falta de escuta técnica de gestores para quem, como é prática em diversos Regionais, basta demitir o responsável. Aliás, se fôssemos falar em censura e demissões injustas do Sesc pelo país, precisaríamos de um outro texto.

Alteraram o Prêmio Sesc. Segundo o edital, o novo prêmio oferece R$ 30 mil aos vencedores – algo que, na prática, já existia, uma vez que eles recebiam cachês perfazendo mais ou menos esse valor ao longo do circuito. E a publicação será pela editora… Senac Rio, cujo único livro que pode ser chamado de literatura é um livro de crônicas de Gabriel Chalita.

Dar dinheiro para atrair inscrições e publicar numa edição da casa. As duas opções descartadas, há duas décadas, são a grande inovação. Para espanto de quem sabe ler, ainda fizeram uma alteração meio escondida no edital: as obras inscritas devem “ser para todos os públicos”, algo difícil de definir, mas cujo objetivo é simples de entender. Com isso, é possível eliminar oficialmente, em alguma etapa da seleção, livros cujo conteúdo possa agredir a família tradicional brasileira, mesmo ao custo da credibilidade do prêmio.

Novos caminhos

Ação do youtuber Felipe Neto contra censura na Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2019. (Fonte: Omelete.)
Ação do youtuber Felipe Neto contra censura na Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2019. (Fonte: Omelete.)

O caso do Prêmio Sesc, infelizmente, está longe de ser isolado. Quando vemos nomes como Ziraldo, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e tantos outros aparecendo na mídia por casos de tentativa de censura, precisamos acender um alerta. Sempre pensei que deve haver inúmeros casos não divulgados. Instituições, escolas públicas e privadas, e mesmo o ambiente familiar se tornaram arenas de uma difícil luta, onde o pouco (ou torto) entendimento sobre leitura vem definindo o que pode e o que não pode ser aceito como literatura.

Se esse problema afeta escritores e profissionais estabelecidos, pensei numa consequência desastrosa: uma geração de novos autores que, temendo a desclassificação em concursos literários, iriam evitar cenas, estéticas e técnicas literárias que causassem “polêmicas” nos seus livros. Por essas e outras que decidi, mesmo sem patrocínio, criar o Prêmio Caminhos de Literatura, em parceria com a editora Dublinense. A primeira característica está bem clara, ainda que estejamos falando do que deveria ser óbvio: os candidatos são totalmente livres para escrever e inscrever seus livros.

* Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É doutor em Letras pela PUC-Rio e curador de programações literárias. Foi um dos idealizadores do Prêmio Sesc de Literatura, do circuito nacional Arte da Palavra e outros projetos. Publicou 24 livros, entre poesia, crônica, romance, infantil e juvenil, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. Seu romance O próximo da fila (Record) foi adotado em escolas de todo o país e publicado na França. É curador do Prêmio Pallas e idealizador do Prêmio Caminhos de Literatura, além de colunista do portal PublishNews, onde escreve sobre a vida literária.
Dossiê
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SIAMESES OPOSTOS: CINEMA PORNÔ/ERÓTICO E DITADURA

Pornô? Erótico? Pornô/erótico?

Desejo, erotismo, obscenidade, pornografia e seus correlatos: dimensão humana fundamental – e também assunto (lucro) dos produtos na indústria cultural, seja pelo escracho ou pelo silêncio, enfrentando ou reforçando a moral. O Cinema não fica de fora desse panorama paradoxal e oferece um cenário extremamente particular nos anos 1970, convidando-nos a assistir ao flerte ambíguo entre alguns regimes autoritários e o cinema pornô/erótico. Traz uma faca de dois gumes: o campo permeia ideais regulatórios em meio à exploração da sexualidade e o transgredir acaba por se interligar à moral.

De início, vale comentar a velha dicotomia entre pornografia e erotismo, discussão sempre efervescente. Maria Filomena Gregori faz uma brilhante passagem por algumas dessas discussões no início de seu livro Prazeres Perigosos: Erotismo, gênero e limites da sexualidade (2004), na qual explica sua opção pelo uso das nomenclaturas de maneira indistinta, “seguindo a orientação dos estudiosos da tradição de escritos e imagens eróticas desde o Renascimento” (p. 30), apesar do senso comum fazer essa distinção. Gregori se refere ao uso corrente que relaciona o erotismo à literatura libertina do século XVIII, insinuando reflexões da filosofia e das artes e remetendo ao erudito, enquanto a pornografia seria a “contraparte empobrecida”, ligada à produção mercadológica e vulgar.

Segundo Freire (2000, p. 70), estaria em pauta também a questão da explicitude: o erotismo seria onde “o verbo nunca se faz carne”, se deixa e não se deixa ver, enquanto a pornografia pode mostrar… tudo. Ou tudo que o âmbito público comporta, chamando a atenção para outra dualidade, com a esfera privada: há autores que caracterizam a pornografia como permanentemente marginal, legitimando-se justamente em não se pretender artística. Menos sobre como e mais sobre onde, seu aspecto transgressor se daria justamente por cruzar os limites do doméstico, sem jamais superar o tabu (Ayla, 2013). Por outro lado, os grandes mestres do erotismo, como lembra Eliane Robert Moraes, eram também muito explícitos (A parte maldita brasileira: Literatura, excesso e erotismo, 2024). Onde e por que se traça o corte?

De maneira geral, essas categorias discursivas dependem de onde se faz o discurso, por quem e sob quais motivações, especialmente em se tratando da produção de cultura material e das estratégias mercadológicas aí imbricadas. Um mesmo cartaz ou filme poderia receber diferentes alcunhas se visto no Cine Íris[1] ou mencionado em um trabalho acadêmico, por exemplo. A teia de sentidos é densa e tensa, e muitos pesquisadores evitam a distinção entre pornografia e erotismo, a fim de desviar da legitimação os gostos e espaços da classe dominante, se tomamos uma visão bourdiana. Em vez de relegar a pornografia e seu público ao banal e sem crítica, buscam “tomá-la como o resultado de um longo percurso histórico, [o que] significa inseri-la na trama das representações do erotismo e da sensualidade no Ocidente sem deixar de reconhecer as especificidades que a particularizam e diferenciam de seus antecessores” (Maçaranduba, 2017, p.9). “A pornografia é o erotismo dos outros”, diz a famosa frase de autoria insegura, atribuída em suas variações a André Breton, Georges Bataille, Millôr Fernandes, entre outros.

Aqui, elegemos a denominação “pornô/erótico”, marcada pela barra, como maneira de sustentar a problematização e evitar reduzir as produções cinematográficas a uma ou outra classificação. Mais vale uma mirada ampla sobre as produções que tatearam a sexualidade – comercialmente ou não, explicitamente ou não – para pensar a relação dessas com a censura vigente então (e atualmente, com novas facetas) na América do Sul e no restante do globo.

Antes e durante a pornochanchada brasileira

A década de 1970 é marcada por dicotomias. Enquanto uma onda de liberação dos costumes se mostrava na militância organizada e nos movimentos artísticos e culturais, ditaduras violentas se consolidavam em vários países. No Brasil, o milagre econômico, a televisão e uma vitória na Copa do Mundo disfarçavam as atrocidades do regime instaurado em 1964 e suas censuras, mas grupos de teatro, música e cinema não deixavam o moralismo passar totalmente impune. É justamente aí que a exploração do pornô/erótico nas telas ganha vigor, amparada por uma tendência internacional e pelo interesse do próprio Estado em lucrar com esse tipo de produção.

O cinema latino-americano passa a retratar suas contradições nacionais com mais força nessa época: contradições individuais, daqueles atormentados pelos regimes militares, em meio à juventude transgressora; contradições políticas dos próprios regimes em suas permissões e proibições; contrastes nas famílias latino-americanas em seu encontro com o número crescente de produções e produtos importados – o paradoxo, tônica do erotismo, é também a tônica do período. Por alto, podemos dizer que persistem filmes questionadores e guiados por temáticas sociais, muitos com tom mais intimista, em relação à pegada épica da década anterior. Mas, humor, paródia e ironia também tomam papéis fundamentais, na tentativa de aproximar o universo popular das telonas.

Na Europa, esses elementos são observados no cinema pornô/erótico desde meados dos anos 1950, quando despontam as commedias all’italiana, com seus personagens típicos como o “malandro” e o “cornud” (Couto, 2023). Essas comédias populares, que viriam a ser sucesso mundial até meados dos anos 1970, consistiam em “lidar com os termos cômicos, engraçados, irônicos e bem-humorados em relação a assuntos que são bastante dramáticos”. Foi como explicou Mario Monicelli, um dos diretores-chave do gênero, completando: “é isso que distingue a comédia italiana de todas as outras comédias” (Monicelli, 1999, tradução nossa). E claro, em meio ao riso e ao drama, circulavam as muitas cenas eróticas all’italiana.

A Espanha não ficou de fora desse tipo de produção nem durante a ditadura franquista (1936-1975), mas foi nos anos de abertura, em meados da década de 1970 que o cine de destape espanhol inundou o país com filmes de humor grosseiro e absurdo, referências a personagens populares e paródias sociais. Eram trabalhos permeados por nudez, conteúdos sexuais e eróticos, baratos para produzir e lucrativos, que tiveram sua circulação permitida sob a classificação “S”[2], a partir da aprovação do então presidente Adolfo Suárez.

As pornochanchadas brasileiras são diretamente influenciadas por essas produções italianas e espanholas, tanto nos conteúdos quanto nos tratamentos gráficos dos cartazes, escolhas de cenário, figurinos etc. Inegável também que os três países de língua latina em algum momento banharam-se do Golden Age of Porn (1969-1984), época em que a pornografia comercial estadunidense alcança níveis de distribuição assombrosos. Com as primeiras exibições de sexo explícito nas telas, os filmes pornô/eróticos norte-americanos se espalharam pelo mundo e atraíram a atenção positiva da mídia, do público e até de críticos em geral. A circulação dos filmes tornou-se mais fácil depois de uma decisão da Suprema Corte dos EUA relaxando a definição de “obscenidade”, dando espaço não só para produções consideradas “intelectualizadas”, como de Andy Warhol e Bernardo Bertolucci, mas para filmes bastante comerciais.

Garganta Profunda (1973), dirigido por Gerard Damiano e estrelado pela atriz Linda Lovelace, foi um desses sucessos de bilheteria e tornou-se símbolo da “era dourada” sob o rótulo de “pornô chic” (Paasonen; Saarenmaa, 2017). Anos depois, Lovelace revelou que tinha sido obrigada pelo então namorado a participar do filme e a submeter-se a atos sexuais indesejados. O relato brutal de Linda traz à tona a faceta mais perversa do mercado pornográfico, não raro escondida sob o “entretenimento” exibido nas telas (Ribeiro, 2022).

Cartaz original de autoria desconhecida para o filme Garganta Profunda (1973), dirigido por Gerard Damiano. Fonte: Wikipedia.
Cartaz original de autoria desconhecida para o filme Garganta Profunda (1973), dirigido por Gerard Damiano. Fonte: Wikipedia.

A nomenclatura “pornochanchada” surge fazendo referência às tradicionais chanchadas brasileiras dos anos 1940 e 1950, nas quais problemas do cotidiano popular eram tratados com comédia e ironia. Esse tipo de filme teve forte influência das comédias italianas em episódios, fonte da qual também beberia o sucessor mais “ousado” – ainda que “pornô” tenha sido adicionado como mero chamariz, prometendo algo que, para os menos conservadores, quiçá nem se cumprisse nas telas. O rótulo “pornochanchada” foi uma mera “expressão da liberação dos costumes da época. Uma tematização da ‘revolução sexual à brasileira’” (Abreu, 1996, p. 75). Também à brasileira, ficou escrachado o falso moralismo: se a pornochanchada fez sucesso, não foi por corromper o respeitável público, mas por dar rosto e corpo ao que já pairava no imaginário predominantemente normativo do público.

Um olhar cuidadoso nota que a tal “pornochanchada” se caracteriza menos como gênero cinematográfico, estanque em sua definição, e mais como movimento. As pornochanchadas se aproximam não necessariamente pela comédia ou pela pornografia, mas por uma maneira particular de fazer cinema. Com a censura baforando no cangote de um lado e as produções estrangeiras de outro, surgiram os “roteiristas de suvaco”, andando com suas ideias em busca de um produtor que os financiaria do próprio bolso. Essas produções artesanais e comunitárias tiveram seu principal reduto na Boca do Lixo, em São Paulo, onde trabalhadores da indústria do cinema consolidaram uma espécie de Bollywood pornô/erótica.

O baixo orçamento, os títulos chamativos e a provocação com a obscenidade para atrair bilheteria, tudo contribuiu para uma homogeneização das produções em questão. Foi a legitimação do gosto dominante, no entanto, que determinou quais filmes teriam cravado o rótulo em geral pejorativo de “pornochanchada”. Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), celebração do livro de Jorge Amado ao som de Chico Buarque, por exemplo, ocupa um lugar mais “ao sol”, considerado o clássico do cinema brasileiro que de fato é. Poderia, entretanto, ser lido também à luz de seu tempo: mescla de comédia e erotismo, bem explorada no cartaz também clássico que remete a outros títulos da pornochanchada. Na série Boca do Lixo: A Bollywood Brasileira (2011), o ator Adriano Stuart menciona o filme de Bruno Barreto seguido de algo como “me perdoem, mas aquilo é pornochanchada!”. Não se trata de qualificar e classificar um ou outro filme, mas justamente de refletir sobre o reducionismo que assola certas nomenclaturas e restringe novas leituras.

Cartaz de Benício para o filme Dona Flor e seus Dois Maridos (1973), dirigido por Bruno Barreto. Fonte: Cinemateca Brasileira.
Cartaz de Benício para o filme Dona Flor e seus Dois Maridos (1973), dirigido por Bruno Barreto. Fonte: Cinemateca Brasileira.

Benício, nome artístico de José Luiz Benício da Fonseca, foi o responsável por esse e muitos outros pôsteres de divulgação cinematográfica na época, consagrando-se como principal criador dos cartazes da pornochanchada – muitas vezes mais “bem-trabalhados” que os próprios filmes. Utilizando guache, fotografias e desenhos, sua linguagem visual, sempre atravessada de erotismo, serviu muito bem à divulgação intensa das películas e acabou por sintetizar e reunir o “gênero” graficamente. Benício é um dos poucos artistas gráficos do período que recebem crédito pela autoria dos cartazes fílmicos.

Outro cartaz que se tornou símbolo internacional e marcou o início da carreira da protagonista, Vera Fischer, foi o de A Super Fêmea (1973), filme de Aníbal Massaini Neto. Os cabelos esvoaçantes e o olhar penetrante da atriz miram o espectador e fazem a pin-up à brasileira quase saltar do fundo branco. Elementos reduzidos contrastam com a ilustração entre realista e kitsch, carregada em sombra abaixo do título colorido e irregular, no estilo de histórias em quadrinhos. No título mesmo se vê a busca pela insinuação e pelas curvas, ingredientes que também valiam para a figura feminina desse e de outros cartazes. Benício foi “direto ao ponto”, fazendo de Vera, em sua caricata feminilidade, objeto inevitável do olhar.

Cartaz de Benício para o filme A Super Fêmea (1973), dirigido por Aníbal Massaini Neto. Fonte: Cinemateca Brasileira.
Cartaz de Benício para o filme A Super Fêmea (1973), dirigido por Aníbal Massaini Neto. Fonte: Cinemateca Brasileira.

Outro cartaz interessante, de um filme bem menos aclamado e até “malvisto”, é o de As Taradas Atacam (1978), dirigido por Carlos Mossy. Mulheres nuas, com poses insinuantes e novamente como objeto do olhar, enquanto a direção dos filmes é majoritariamente assinada por homens. Aqui, o personagem masculino aparece de maneira central, servindo de espelho para o espectador, em clássico retrato da orgia de um homem só (a julgar por sua expressão, a fantasia é, no mínimo, inquietante).

Cartaz de Benício para o filme As Taradas Atacam (1973), dirigido por Carlos Mossy. Fonte: Cinemateca Brasileira.
Cartaz de Benício para o filme As Taradas Atacam (1973), dirigido por Carlos Mossy. Fonte: Cinemateca Brasileira.

A Embrafilme, principal órgão de regulação e financiamento do cinema brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, nasceu em 1969 e tangibilizou ainda mais a dualidade das produções pornô/eróticas com o Estado, além de sedimentar essa legitimação ambígua. Havia uma docilização para com o órgão: era preciso driblar possíveis censuras, sem deixar de oferecer o “segredo do sucesso” da pornochanchada – leia-se, o sexo. Sacanagem condenada, mas financiada. Ainda assim, a Embrafilme reservou seus recursos principalmente a filmes com polêmicas apaziguadas, seja pela legitimidade conferida pela literatura, convocando atrizes respeitadas pelo grande público ou vislumbrando a possibilidade de destaque internacional. Dessa maneira, a pornochanchada acabou não perdendo seu caráter marginal de todo, circulando pelas beiradas do regime, ainda que não o combatesse diretamente.

O crivo da Embrafilme, tanto para censura quanto para a distribuição de financiamentos, é parte do retrato das “irmãs gêmeas de comportamentos opostos”, na expressão do crítico brasileiro José Carlos Avellar, que nos demos ao luxo de adaptar para o título, a partir da leitura de Katharine Trajano. A relação de “siameses opostos” é cerne das produções eróticas paródicas em meio a ditaduras: “repetição em termos grosseiros dos ideais do poder, e também (…) forma de oposição ao apelo para os bons modos contidos nas mensagens produzidas pelo governo” (Avellar, 1980, p. 70 citado por Trajano, 2019, p.8).

As sexi comedias argentinas

Partindo para a Argentina, as sexi comedias marcaram a última ditadura do país (1976-1983) com seus roteiros eróticos, cômicos e esteriotipados. Atrizes sedutoras no papel de amantes, esposas traídas ou infiéis, contracenavam com garanhões “malandros” e irresistíveis. Os cartazes não deixam mentir: com influências hollywoodianas e do teatro de revista, como no caso brasileiro, são geralmente dominados por uma mulher seminua a ser observada por outros personagens e pelo próprio espectador. No cartaz de Los Hombres Piensan Solo En Eso (1976), a dupla cômica Alberto Almedo e Jorge Porcel segura as mãos da atriz Susana Gimenez, em uma versão mais perturbadora do cartaz de seu contemporâneo brasileiro já mencionado, Dona Flor e seus Dois Maridos. A figura feminina no centro, cores vibrantes, tipografia brincalhona e chamativa são alguns dos elementos que se repetem nos cartazes satíricos e populares das sexi comedias – “amador” também é adjetivo comum.

Cartaz de autoria desconhecida para Los Hombres Piensan Solo En Eso (1976), dirigido por Enrique Cahen Salaberry. Fonte: Cine Nacional.
Cartaz de autoria desconhecida para Los Hombres Piensan Solo En Eso (1976), dirigido por Enrique Cahen Salaberry. Fonte: Cine Nacional.

A legislação também se alinhava ao caso brasileiro e delineava a duplicidade do regime em relação a essas produções: ao passo que fomentava o Cinema nacional e financiava extensivamente as sexi comedias, mantinha um discurso agressivo de repressão ao sexo e à “imoralidade”. Em 1971, o Decreto-Lei n° 20.170 traça cortes orçamentários a películas que abordassem sexo e drogas experimentais; em 1978, um Decreto-Lei da Comisión Asesora Legislativa (CAL) reforça o desenvolvimento da cinematografia como “um meio positivo de educação para a comunidade e de difusão da cultura nacional no país e no estrangeiro” (D’Antonio, 2015, p. 915-918). No mesmo período, as sexi comedias representavam 17% da produção cinematográfica argentina durante o Proceso de Reorganización Nacional (PRN) – como era chamada por seus líderes essa última fase da ditadura – e apenas três foram censuradas, ainda que houvessem órgãos específicos criando listas de atores ou diretores considerados perigosos e obscenos.

As sexi comedias não se caracterizavam propriamente como propaganda governamental, no estilo da Alemanha Nazista, mas ensaiavam uma relação cortês com o Estado (Avellar, 1980). Por vezes um sorriso amarelo e um engolir seco, quando desafiavam a censura com temas homoeróticos, por exemplo, mas jamais o cuspir da bebida no anfitrião – aquele que “gentilmente” financiava a festa e acabava por justificar a existência mesma das sexi comedias na época. Sem deixar de brindar o público com uma ansiada quebra de tensão cotidiana (“pão e circo”), esses filmes eram também “forma de mascarar a brutalidade do regime – servindo, então, a um suporte ideológico” (Avellar, 1980, p. 7). Quer em Buenos Aires ou na Boca do Lixo, lembremos que as obras desse período apresentam, em diversas manifestações culturais, “contradições internas às próprias concepções estéticas engendradas pela Censura” (Novaes, 1980, p. 3) e refletem, embora nem sempre claramente, o pensamento desafiador, mas também o pensamento dominante.

Não se pode negar os efeitos dos filmes pornô/eróticos em nossos vecinos: assim como no Brasil, foi aquecida a discussão sobre os vínculos entre sexo e política. No final dos anos 1970, o nome destape, trazido da Espanha, se populariza na Argentina e ganha sentido para além das sexi comedias: contamina revistas, televisão e outros meios de comunicação que acendem os questionamentos sobre as relações entre censura, cinema, erotismo e Estado. Como dizia a revista porteña Somos, a única diferença entre o destape latino-americano e o espanhol era a tarja, que ainda cobria as mulheres argentinas – timidez quiçá compensada pelo tom mais grosseiro nas terras do Sul. As afinidades entre “os destapes” eram facilmente reconhecíveis, temáticas e formais, apesar das produções espanholas jamais haverem circulado nos cinemas da Argentina (Manzano, 2019).

Novamente caminhando em passo similar às coletâneas brasileiras, as sexi comedias são progressivamente divulgadas no exterior, na tentativa de distorcer ou distrair o olhar internacional. Como poderiam as cenas hilárias e coloridas, tão libertárias, serem filmadas sobre os porões de tortura? Se havia denúncia, essa costumava ser menos explícita do que as cenas picantes.

Permanece, então, a crítica de que o destape, num geral, seria uma forma de meramente “tapar” problemas sociais, através de retratos sexistas e moralistas. Continuam a sobrar dualidades: se a nudez das mulheres foi parcialmente permitida pelos censores durante a década de 1970 e principalmente nos filmes de 1980, não foi assim nos cartazes. A mulher manteve-se objeto chamariz do fetiche normativo enquanto o falo era “protegido” dos espectadores, um dos motivos pelos quais muitas teóricas feministas não inserem a maioria das sexi comedias e das pornochanchadas no âmbito dos filmes pornô “libertários”. A estética “amadora” foi outro alvo de comentários duais, sendo assim chamada ora de maneira pejorativa, ora para ressaltar a qualidade proposital dessas representações “toscas”:

Quando a câmera estica o olho para ver os seios de uma secretária por trás de um decote amplo, (…) não é a possível excitação provocada pela imagem do peito meio coberto, ou da calcinha entrevista. O que importa é a grosseria da construção da cena. O sexo de dimensões imensas. (…) E a visão ruim mesmo, o plano mal construído, a imagem indefinida por um erro de exposição ou por um defeito na lente. (Avellar, 1980, p. 77)

Sem necessariamente julgar as qualidades éticas ou estéticas das sexi comedias, antes é preciso assumir seu valor de testemunho histórico. São registros tangíveis de um período conturbado e fértil, atualizados no cinema pornô/erótico de outros países latinos até hoje e nas inúmeras pesquisas acadêmicas que vêm sendo desenvolvidas sobre o assunto. Se são “hipócritas” de essência, são também reflexo da hipocrisia inerente ao período de seu nascimento.

O apagão chileno

Com Brasil e Argentina já mergulhados em autoritarismo, em um contexto de Guerra Fria e Revolução Cubana, militares chilenos decidem abandonar sua neutralidade e intervir diretamente nas instituições democráticas do país andino. O Palácio Presidencial La Moneda é bombardeado no dia 11 de setembro de 1973, culminando na saída do então presidente Salvador Allende e na tomada de poder do general Augusto Pinochet.

Nos anos que se seguem, as políticas dos Chicago Boys, grupo de economistas chilenos adeptos das ideias do professor Milton Friedman, da Universidade de Chicago, se instauram no país e transformam-no em um “grande experimento do neoliberalismo econômico no século XX” (Memória e Resistência/USP, 2017). A tática da “terra arrasada” foi sanguinária ao ponto de solapar um sentido de identidade cultural e coletiva para a população chilena. A perseguição e tortura aos opositores do regime e o forte autoritarismo se consolidaram juntamente ao “reforçamento da ordem tradicional no que tange ao gênero e à sexualidade, expressado na difusão e defesa do modelo heterossexual, da família nucelar e dos valores conservadores e católicos” (D’Antonio; Eidelman, 2017, p.3).

O Chile, porém, não se eximiu totalmente da liberação dos costumes, ainda que muitas vezes normativa, característica dos anos 1970: pipocaram nos centros urbanos vários estabelecimentos na linha dos cafés con piernas, lugares que até hoje atraem homens em Santiago ou Valparaíso para tomar drinks caros servidos por mulheres de mini saia. Também não eram poucos os clubes de striptease, saunas gays e cabarés. O país hospeda convívio e confronto comuns a vários países latino-americanos, onde um cenário “subversivo” ao mesmo tempo choca e se mescla ao rígido controle da moral e dos costumes.

No caso do Chile, esse controle foi especialmente rigoroso com as temáticas ligadas à sexualidade e ao sexo, já duramente reguladas no âmbito cinematográfico desde o início do século XX, quando a Liga das Damas Chilenas avaliava filmes e opinava nas proibições. As formas de vigilância e censura foram se modificando e persistindo ao longo do século: no âmbito estatal, através do Código Penal e das normas e instituições regulamentadoras (eram muitas para fiscalizar o Cinema), bem como por meio de estratégias agressivas de normatização mascaradas como conquista de direitos. É o caso das cirurgias de redesignação sexual realizadas nos anos 1970 em hospitais públicos de algumas capitais, sob a vista grossa do Estado. Mais do que a liberação dos costumes, esse “deslize de permissividade” ilustra a preocupação do regime em “normalizar as sexualidades ambíguas e ressituar essas pessoas no marco de um dos gêneros aceitos socialmente” (D’Antonio; Eidelman, 2017, p. 22). Os siameses se embrenham.

Um parêntese para esse “deslize de permissividade” é o caso de Marcia Alejandra: a legislação chilena deixava um “vazio legal” no tema das intervenções cirúrgicas, o que acabou por viabilizar a realização, caso a caso, de cirurgias de redesignação sexual nos anos 1970. Marcia Alejandra foi a primeira. Não era apenas uma brecha: além de extensas coberturas midiáticas sensacionalistas, a Sociedad Chilena de Sexología Antropológica endossou as cirurgias (jamais falando em transsexualidade, mas em “mudança de sexo”) como via para resolver a “indefinição sexual” e os conflitos legais “causados” por pessoas que não se enquadrassem no esquema binário de gênero (Edwards, 2016). Como explicar que um regime ditatorial dos mais violentos da América Latina, em uma época em que coletivos heterodesviantes eram praticamente inexistentes no país, tenha apoiado estas cirurgias? A indefinição, mais do que qualquer inversão, perturba a ordem. Se o Estado se valeu das cirurgias para reforçar sua lógica normativa, Marcia resistiu “(…) com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes” (Derrida, Roudinesco; 2004, p. 9). Virou vedette, foi ao Egito, se apaixonou pelas canções de Maria Bethânia, abriu um então raríssimo espaço de inteligibilidade para pessoas trans, ainda que pela via medicalizante do regime. Como escreveu Pedro Lemebel sobre a amiga: “Para mis verdes abriles de mariquilla poblador, la Marcia Alejandra era casi Marilyn Monroe, casi Liz Taylor, casi Eva Perón, casi la Venus marica del norte, casi la virgen cola de las arenas que ocupaba las portadas de los diarios, después de que la ciencia médica de un hachazo le había cortado el sobrante masculino, pero le dejó el casi” (Lemebel, 2003, p. 152).

A julgar pelos exemplos argentino e brasileiro, poderia se imaginar que o momento de liberação sexual teria ressonância na tela dos cinemas chilenos, fazendo frente ao passo que baila com a censura. Os filmes nacionais teriam sido também cabos de guerra entre polos de uma mesma corda? A discussão sequer pôde tomar forma no contexto do Chile: o “apagão cultural” foi implementado com tamanha violência no país que basicamente minou a produção cinematográfica local na década de 1970 e o “Novo Cinema Chileno” dos anos anteriores ao golpe, quando estava no poder a Unidade Popular. Com a ditadura de Segurança Nacional instaurada, produzir filmes no Chile tornou-se tarefa extremamente árdua de maneira geral, que dirá no caso de filmes eróticos ou pornográficos. Diferindo dos vizinhos do Cone Sul, o cinema pornô/erótico chileno não foi ferramenta para distrair do cotidiano opressivo ou instrumento para promover os interesses morais do governo – autores como Jacqueline Mouesca (1992) e a já citada historiadora D’Antonio (2017) sugerem que houve um movimento radical e bastante eficaz de eliminação do Cinema.

Vale comentar que durante o governo da Unidade Popular (1969-1973) houve grande fomento à produção cinematográfica nacional, de cunho altamente político-social, em concomitância à censura de filmes estrangeiros que promoviam ideais capitalistas e burgueses. No entanto, conteúdos homoeróticos ou considerados demasiado obscenos eram também motivações explícitas para a censura das películas importadas. Vê-se que os temas sexuais no Cinema foram alvo da censura sob diferentes governos – sem relativizar as atrocidades da ditadura militar, podemos pensar que a década de 1970 ilustra bem como vertentes políticas radicalmente diferentes podem acabar se aproximando em alguns de seus discursos proibitivos.

O efeito do reforçamento das políticas sexuais do regime militar se fez profundo na sociedade chilena. O Cinema resistiu com o pouquíssimo que se alcançava, ao produzir localmente e através do “cinema chileno de exílio”, feito fora do país por chilenos exilados, como o nome entrega. Já o cinema pornô/erótico essencialmente se extingue e só vem a desabrochar nos anos 2000. Nos anos 1970, de produção local com algum cunho erótico restam apenas programas como Jappening con Ja (1978), exibido inicialmente pela Televisão Nacional, mostrando cenas de flerte entre um chefe bonitão e sua secretária sedutora.

Devido ao “atraso” de décadas, o cinema pornô/erótico chileno tem sua “era de ouro” apenas no início do século XXI e acaba por resgatar estética e temáticas das sexi comedias e pornochanchadas dos anos 1970. Valendo-se do humor e “escracho” típicos das produções latino-americanas, o pioneiro Leonardo Barrera filma em 2000 Historias de una Adolescente Ninfomaníaca e Hanito, el Genio del Placer. São considerados os primeiros filmes pornô/eróticos chilenos, ou ao menos os primeiros filmes do gênero a serem aprovados pelos órgãos de regulamentação e vendidos em sex shops ou locadoras (o primeiro cinema a exibir pornô, Cine Apolo, só chegaria em Santiago em 2001).

O cartaz de Hanito, el Genio del Placer é um ótimo exemplo do resgate da época-não-vivida pelo país do Pacífico: a figura central feminina “sendo vista”, título chamativo e certo exagero de elementos gráficos (destaque para o “selo” da bandeira do Chile e a palavra “CHILENO”, ressaltando a produção nacional). Outros cartazes exibiam ilustrações, títulos com grafismos exagerados e, de uma maneira geral, a estética improvisada ou “amadora” inconfundível das sexi comedias argentinas e pornochanchadas brasileiras – agora ainda mais improvisada, como se verifica pela dificuldade de encontrar uma imagem do cartaz em alta resolução. A maioria desses filmes chilenos foi feita com baixo financiamento e ajuda de amigos, não contando com o apoio do Estado como seus antecessores. Já o retrato cômico das mudanças sociais de seu tempo (propositalmente ou não) permanece visível como nas produções de trinta anos antes. Mesmo que muitos considerem “alienada” toda sorte de produções do gênero, o distanciamento histórico evidencia a possibilidade de ler alguma carga de reflexão sobre o período histórico e político da época.

Cartaz de autoria desconhecida para Hanito, El Genio Del Placer, dirigido por Leonardo Barrera. Fonte: Escáner Cultural.
Cartaz de autoria desconhecida para Hanito, El Genio Del Placer, dirigido por Leonardo Barrera. Fonte: Escáner Cultural.

As “irmãs gêmeas de comportamentos opostos” afagam e enforcam: se por um lado a última década trouxe importantes conquistas no campo dos direitos civis para algumas vivências não hegemônicas, foi marcada também por um avassalador avanço do conservadorismo em nível nacional e global, institucionalizado pela eleição de governantes de extrema-direita e marcado por tentativas de apagão cultural e implementação de medidas autoritárias e de censura que remetem às ditaduras militares do último século.

O cinema pornô/erótico dos anos 1970, bem como seus cartazes, conserva algo de resistência ao autoritarismo, sem perder seu status de ferramenta poderosa de controle de massa a serviço dos mesmos regimes autoritários que critica. A pornochanchada sintetiza muitas dicotomias que marcaram o período e até hoje se fazem sentir no nosso país tropical: quente, bem-humorado, permissivo; assolado pelo autoritarismo e pela busca incessante de agradar ao público internacional. Não se trata de crucificar os filmes, tampouco de relevar seus aspectos normativos, machistas e propagandistas, mas de tomar o paradoxo como modo de pensamento e construção do mundo. Lançar um olhar cuidadoso (crítico e atento) sob e sobre o emaranhado que envolve e move o cinema pornô/erótico dos anos 1970 até hoje é tentativa de refletir sobre os “siameses opostos” do presente e questionar a herança maldita e sorrateira das ditaduras, sessenta anos após o golpe militar – como a resistência, a herança pode ser encontrada nos lugares mais insuspeitados. A ponderação sempre arrisca resvalar para a covardia, mas aqui buscamos apenas traçar um primeiro panorama: “essa aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras” (Rodrigues, 1992, p. 223).

* Catarina Lara Resende é graduada em Artes & Design pela PUC-Rio e mestranda em Teoria da Literatura na Universidade do Estado Rio de Janeiro (UERJ). É professora, tradutora, escritora e já colaborou em veículos como Revista Prumo, Ruído Manifesto e Editora Ficticia.
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Notas
[1] “O Cine-Theatro Íris é o cinema mais antigo do Rio em atividade. Inaugurado em 1909, o edifício centenário que fica na Rua da Carioca, 49, no Centro, sediava espetáculos de teatro de revista. Em 1985, decidiu mesclar a exibição de filmes pornográficos explícitos e obras de ação e no ano seguinte adotou de vez a veiculação de conteúdo adulto e inseriu shows de striptease” (Verissimo, 2018).

[2] “Se adverte ao público que este filme por sua temática ou conteúdo pode ferir a sensibilidade do espectador”, segundo a Junta de Clasificación da Espanha. A letra S se referia primeiramente à Sensibilidade, porém rapidamente ficou associada à palavra sexo pelo público, e permitiu que filmes pornô entrassem no circuito mainstream de cinemas (Barker, 2018).
Dossiê
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IMPRENSA ALTERNATIVA NA DITADURA BRASILEIRA: O CASO CHANACOMCHANA

Em 1980, José Wilson Richetti assumiu a delegacia da polícia do centro da cidade de São Paulo. O policial civil, que ganhou, posteriormente, a fama de ser um dos mais cruéis agentes do regime ditatorial brasileiro, foi classificado pelo colunista da Folha de S. Paulo, Vicente Vilardaga, em texto publicado em 20 de junho de 2024, como “um preconceituoso empedernido que posava de paladino antiaids, que tentou limpar a cidade de tudo que fosse considerado por ele como ‘ofensivo à família brasileira’ e atentasse contra os ‘bons costumes’”. No mesmo ano em que toma posse do cargo, em 15 de novembro, instaura uma ação que ficou conhecida como “Operação Sapatão”. O objetivo era prender o maior número de mulheres lésbicas possível, agindo principalmente nos bares que costumavam frequentar, cujos nomes eram Cachação, Bexiguinha e Ferro’s Bar. Os grupos Terra Maria, Ação Lésbico Feminista e Eros divulgaram e distribuíram um panfleto datilografado, registrando a perseguição da ditadura contra as lésbicas de São Paulo:

Sábado, dia 15 de novembro de 1980, por volta das 23 horas, entrou novamente em ação o aparato repressivo comandado pelo delegado Richetti.

Dessa vez o alvo das incursões noturnas de nossa polícia foram os bares Cachação, Ferro’s Bar e Bexiguinha. As mulheres que lá se encontravam, munidas de todos os documentos, inclusive de carteira profissional, foram levadas indiscriminadamente sob o seguinte argumento:

“VOCÊ É SAPATÃO”.

Na 2ª delegacia de polícia foi constatado que os policiais recebiam dinheiro para libertarem as pessoas, sendo que aquelas que não o possuíam lá permaneceram. Estamos novamente às voltas com a ação violenta da polícia, ação essa que outra vez ficará impune no que diz respeito às autoridades.

Denunciamos neste documento esta impunidade e repudiamos tais atos. Neste sentido, conclamamos a população a se solidarizar conosco;

“PELA LIVRE OPÇÃO SEXUAL”
“PELO LIVRE DIREITO DE IR E VIR”
“CONTRA A REPRESSÃO SEXUAL”
“CONTRA A REPRESSÃO POLICIAL”GRUPOS
Terra Maria
AÇÃO LF
EROS
Panfleto datilografado dos grupos Terra Maria, Ação LF e Eros. Fonte: Acervo Lésbico Brasileiro.
Panfleto datilografado dos grupos Terra Maria, Ação LF e Eros. Fonte: Acervo Lésbico Brasileiro.
“Operação Sapatão”, matéria assinada por Osmar Cupini Júnior no jornal Repórter, número 37, em janeiro de 1981.
“Operação Sapatão”, matéria assinada por Osmar Cupini Júnior no jornal Repórter, número 37, em janeiro de 1981.

O “Ação Lésbico Feminista”, que assina o panfleto de denúncia, era uma célula do grupo SOMOS-SP (Grupo de Afirmação Homossexual de São Paulo), que foi fundado, inicialmente, a partir da criação do jornal Lampião da Esquina (1978 – 1981). O Lampião nasceu em meio ao cenário da imprensa alternativa no final dos anos 1970, no contexto do processo de abertura política e do enfraquecimento da censura imposta, durante a ditadura militar, no Brasil. Entre seus editores e colaboradores estavam jornalistas como Adão Acosta, Aguinaldo Silva, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt, Gasparino da Matta, João Antônio Mascarenhas, o escritor João Silvério Trevisan e o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet. O ano de criação do Somos e do Lampião da Esquina, 1978, é considerado, na historiografia do movimento LGBTQIAPN+ no Brasil, o marco canônico do início dos movimentos políticos pela liberação sexual no nosso país. O Lampião foi lançado mais precisamente em abril daquele ano e, de acordo com Carlos Eduardo Figari, no texto intitulado “Somos, grupo”, do Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe:

Concomitantemente, no mesmo mês de abril, realizava-se em São Paulo a Semana do Movimento da Convergência Socialista, organizada pela revista Versus. Com a pretensão de assentar as bases para a fundação de um partido socialista, realizavam-se discussões que iam desde a anistia e uma futura Constituinte até a imprensa alternativa. Um setor da organização não via com bons olhos a inclusão da questão homossexual na agenda, pois achava que de alguma maneira isso afastaria a classe operária. Por essa razão, foi descartado o convite ao jornal Lampião. Isso gerou uma moção de protesto e um vivo debate sobre a questão. Um grupo mais organizado de homossexuais participou da discussão, chegando-se afinal a um acordo sobre o apoio às “minorias”, então enumeradas como: mulheres, negros, índios e homossexuais. Essa participação em uma discussão sobre a posição da homossexualidade no contexto da “luta maior” colocou a questão homossexual na arena do debate político e motivou o grupo a prosseguir com a discussão.

A resistência da militância de esquerda, conhecida como ‘luta maior’, que defendia a prioridade dos temas relacionados ao proletariado e via as questões minoritárias como potenciais divisoras da luta central contra o regime autoritário, despertou um alerta entre os homossexuais presentes. O escritor João Silvério Trevisan, um dos colaboradores do Lampião da Esquina, era um dos homens gays que estavam na Semana do Movimento da Convergência Socialista. Ele relata, no mini documentário produzido pelo canal do YouTube da USP sobre LGBTs na ditadura, que, durante o debate, ao se deparar com os preconceitos da esquerda, que temia dividir a causa operária, subiu em uma cadeira e, revoltado, gritou que não estava ali para converter ninguém, mas para resolver problemas que precisavam ser discutidos. Em seguida, pediu que, se houvesse homossexuais na sala, eles se manifestassem. Gays e lésbicas levantaram aos poucos, se assumindo publicamente, além de fazerem denúncias sobre professores e colegas de esquerda que não aceitavam bem a homossexualidade. Naquele momento, o SOMOS estava se formando. Uma dessas estudantes era Marisa Fernandes, uma mulher lésbica que se juntou ao grupo e que, mais tarde, faria parte do GALF e do boletim ChanaComChana.

A partir de 1978, muitas mulheres começaram a participar das reuniões do SOMOS, e logo surgiu a necessidade de organizar suas próprias pautas, o que levou à criação de uma célula interna do grupo. Marisa Fernandes relata que as discussões nas reuniões eram, em sua maioria, focadas nos homens homossexuais e, para ela, o mais inadmissível era o uso de termos misóginos, como ‘rachas’ ou ‘rachadas’, ao se referirem às mulheres lésbicas cisgêneras.

As lésbicas do SOMOS foram convocadas pelo Lampião da Esquina a ocuparem o número 12 do jornal, de maio de 1979. Elas reuniram vinte e cinco integrantes do SOMOS que antes estavam dispersas e produziram alguns textos para a publicação. Ao se darem conta, de forma conjunta, dos frequentes problemas com homens gays que compunham a militância homossexual, decidiram construir um subgrupo que chamaram de Lésbico Feminista, ou LF, como era conhecido.

Lampião da Esquina, Ano 1 - Número 12, em maio de 1979. Fonte: CEDOC – Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott.
Lampião da Esquina, Ano 1 – Número 12, em maio de 1979. Fonte: CEDOC – Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott.

O texto assinado pelo coletivo de lésbicas foi intitulado “Nós <também> estamos aí”. Com o “também” adicionado na tipografia do jornal com letra escrita à mão, em cima de uma seta curvada, utilizada para conectar visualmente a adição manuscrita (“também”) ao resto da frase (“Nós estamos aí”), indicavam estrategicamente uma continuidade ou uma expansão do significado original. O primeiro texto assinado pelo coletivo de lésbicas do SOMOS parece expressar a chegada tardia das sapatões ao espaço de visibilidade e discussão produzido por homens gays. O artigo parece tomar uma forma de resistência e luta por reconhecimento, em contraste com o silenciamento histórico.

Como você sabe, depois de um ano de existência do jornal, é a primeira vez que viemos dar nossa contribuição. Adiantamos que é brincadeira do seu vizinho, do seu primo ou daquela amiga, dizer que aparecemos porque nós, mulheres, adoramos festinhas de aniversário. Quer dizer, de festa nós gostamos e muito, mas garantimos que não foi por isso. Vamos nos conhecer e você verá.

Nós estamos chegando atrasadas e não é apenas porque o Lampião já tem um ano, já anda, fala muita coisa, balbucia outro tanto. Nós estamos atrasadas porque existimos, mas sempre abdicamos de existir.

Existimos nos cochichos, nos bochichos, em algum barzinho, em algumas boates, n’alguma cama com algum corpo, nas fantasias e sonhos que, na maioria das vezes, arquivamos desde sempre.

Ao chegarem atrasadas, as autoras ainda afirmam que “ninguém melhor do que nós para lutarmos contra a opressão a que estamos submetidas”, afirmando, finalmente, através de um dos principais veículos da imprensa alternativa brasileira, que é necessário trilhar um caminho próprio, ao invés de se contentar com atrasadas migalhas.

Lampião da Esquina, Ano 1 - Número 12, em maio de 1979. Fonte: CEDOC – Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott.
Lampião da Esquina, Ano 1 – Número 12, em maio de 1979. Fonte: CEDOC – Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott.

A insurgência das mulheres lésbicas contra as opressões que sofriam na sociedade – sobretudo a invisibilidade, o apagamento – motivou o grupo do LF a se desvincular do SOMOS e a fundar um grupo próprio, GALF – Grupo de Ação Lésbico-Feminista, que mais tarde viria a fundar o seu próprio jornal que chamaram, de forma humorada e transgressiva, de ChanaComChana.

Imprensa alternativa e o surgimento do primeiro jornal lésbico no Brasil

A imprensa alternativa desempenhou um papel crucial durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), funcionando como um importante canal de resistência à censura e à repressão imposta pelo regime. Enquanto os veículos de comunicação tradicionais estavam sujeitos ao controle direto do governo, a imprensa marginal – ou nanica, como era chamada por vezes – produzida por coletivos, movimentos sociais e grupos minoritários, oferecia espaço para a disseminação de ideias críticas, denúncias de violações de direitos humanos e a promoção de discursos contrários à narrativa oficial. No caso das mulheres lésbicas, publicações como o jornal ChanaComChana, criado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), serviram como ferramentas de visibilidade e articulação política, enfrentando tanto o machismo e o heterossexismo da sociedade quanto o autoritarismo do Estado. Esses veículos não apenas documentaram as lutas de seus tempos, mas também contribuíram para a formação de redes de solidariedade e resistência, tornando-se fundamentais para a preservação da memória de movimentos de resistência e das vozes marginalizadas.

A ditadura civil-militar no Brasil, instaurada em 1964, foi marcada por intensas violações de direitos humanos, censura e repressão a qualquer forma de dissidência política. Durante mais de duas décadas, o regime silenciou opositores por meio de prisões arbitrárias, tortura e assassinatos, ao mesmo tempo em que controlava rigidamente os meios de comunicação de massa. Nesse cenário, movimentos sociais e minorias, como mulheres, negros, trabalhadores e a população LGBTQIA+, encontraram nas formas alternativas de expressão um espaço vital para a articulação de suas lutas.

O Lampião da Esquina, fundado em 1978, foi um dos jornais alternativos mais expressivos do movimento LGBTQIA+ no Brasil durante a ditadura, reunindo intelectuais, jornalistas e ativistas gays que buscavam enfrentar o preconceito e dar visibilidade às questões da população homossexual. Relacionado ao grupo SOMOS, uma das primeiras organizações do movimento homossexual brasileiro, o jornal tinha como objetivo combater a homofobia e discutir temas como política, cultura e sexualidade. No entanto, tanto o Lampião da Esquina quanto o SOMOS enfrentaram críticas por sua exclusão e marginalização das mulheres lésbicas. A única e supracitada edição do Lampião da Esquina dedicada inteiramente à questão lésbica foi a edição número 12, de 1979. Além dessa exceção, a organização do jornal era amplamente dominada por homens gays, e as pautas lésbicas, quando presentes, eram muitas vezes tratadas de forma secundária ou estereotipada.

Sendo assim, para as mulheres lésbicas, especificamente, a repressão se manifestava em várias camadas: além da perseguição política, enfrentavam o machismo dentro das organizações de esquerda, dentro dos grupos homossexuais, a lesbofobia dentro dos grupos feministas, além do heterossexismo na sociedade em geral. Esse apagamento motivou a criação de iniciativas próprias, como o GALF e o ChanaComChana, que procuravam dar voz às demandas específicas das lésbicas feministas, oferecendo um espaço de resistência autônomo e voltado à sua realidade.

Em seu texto “Breve resenha de algumas teorias lésbicas” (2014), Jules Falquet nos ajuda a entender um pouco sobre o contexto do surgimento do movimento social lésbico nas metrópoles ocidentais e sua relação estreita e ambivalente com o movimento homossexual, mas também com o movimento feminista:

O lesbianismo, como movimento social, aparece em finais dos anos 60, no mundo ocidental e em muitas metrópoles do Sul. Nasce em uma atmosfera de prosperidade econômica e de profundas mudanças sociais e políticas que incluem tanto o desenvolvimento da sociedade de consumo e a “modernidade” triunfante, como a descolonização e um auge das mais variadas perspectivas revolucionárias. Embora haja sido bastante menos estudado que o movimento dos direitos civis, negro, indígena, estudantil ou de mulheres, é um dos chamados “novos movimentos sociais” que surgem na época, desbordando as organizações de corte classista que dominavam até aquele momento. O movimento lésbico se desenvolve em estreita vinculação ideológica e organizativa com outros dois movimentos muito fortes: por um lado, o movimento feminista chamado de “Segunda Onda” e, por outro, com o movimento homossexual, que se vai construindo rapidamente depois da “insurreição urbana” de 1969 em Stonewall (“insurreição” que responde a uma provocação policial em bares homossexuais de Nova Iorque, e que hoje é celebrada a cada ano ao redor do mundo com as manifestações do “orgulho lésbico e gay”). (Falquet, 2014, p. 6)

Marisa Fernandes, mestre em História Social e uma das integrantes do GALF, diz em entrevista ao documentário LGBTs no Regime Militar – As Lésbicas Feministas (2018), do Canal USP no YouTube, que três meses “atuando junto com os gays” do SOMOS foram suficientes para que percebesse as atitudes machistas e discriminatórias dos companheiros de militância. Ela diz que esses dois componentes, ser mulher e ser homossexual, a levava a sofrer uma dupla discriminação. Nesse contexto, as mulheres lésbicas do GALF sentiram a necessidade de trilharem um caminho próprio tanto no que diz respeito à militância, como no que diz respeito à produção de uma mídia própria, com o boletim ChanaComChana, que se insere no contexto da imprensa alternativa lésbica e feminista dos anos 1980. Segundo Elizabeth Cardoso, em seu artigo “Imprensa Feminista Brasileira Pós-1974” (2004):

Tradicionalmente, a imprensa feminista é localizada entre os cerca de 150 jornais alternativos da década de 70. A existência concomitante com os alternativos e seu engajamento social e político nas questões da época fizeram com que a imprensa feminista fosse classificada como uma expressão da imprensa alternativa. Assim como existiram os alternativos voltados para a ecologia, para o humor, para o prazer, para a política, para a economia, haviam os jornais voltados para a questão feminista. Porém uma pesquisa específica sobre a imprensa feminista, desvendou a continuidade do gênero durante as décadas de 80, de 90 e até os nossos dias, enquanto a imprensa alternativa perdeu força, segundo o mesmo autor. (Cardoso, 2004, p. 37)

Ao examinar o conjunto desses periódicos de expressão feminista que emergem no contexto da ditadura pós-1974, Cardoso chega a uma classificação em dois grupos: “a primeira geração, contemporânea dos jornais alternativos e, de forma geral, voltada para a questão de classe, e a segunda geração, grupo de periódicos feministas editados a partir de 1981, de forma geral, voltada para a questão de gênero” (Idem, p. 37 e 38). Cardoso afirma que é importante considerar que a divisão proposta é apenas estratégica e com fins analíticos, e que não pretende encerrar os periódicos nessas duas linhagens. No entanto, é importante observar as características que ela encontra nos marcos temporais que propõe:

Em linhas gerais, porém, foi possível traçar características das publicações da primeira geração e características das publicações da segunda geração. Nota-se que, enquanto a primeira está marcada pelo debate entre “questão da mulher” versus “questão geral”, feminismo liberal versus feminismo marxista ortodoxo, por reivindicações de ações públicas que coloquem as mulheres em igualdade com homens, pela questão da autonomia partidária e pelo combate à ditadura, já a segunda geração da imprensa feminista incorpora o conceito de gênero, assume os temas relacionados direta e exclusivamente às mulheres (como sexualidade, planejamento familiar e violência contra a mulher); tende para a especialização por temas; luta pelo direito à diferença e opera em parceria com um novo ator social, a sociedade civil organizada, na forma de ONGs e associações voltadas para a questão de gênero. (Cardoso, 2004, p. 38)

Quanto ao contexto do regime político em vigor, ela ressalta que a primeira geração se dedica com mais vigor à denúncia da repressão, ao pedido por anistia, autonomia partidária; enquanto a segundo aborda temas como abertura democrática, constituinte, maior participação da mulher no sistema partidário etc. (Idem, p. 39).

Já o marco histórico para a divisão em duas gerações é tido como o II Congresso da Mulher Paulista, que ocorreu em 1980 e foi marcado por embates entre as demandas das mulheres e as da esquerda tradicional que vinham há algum tempo lutando contra a ditadura.

Para Cardoso, o ChanaComChana possui as principais características da segunda geração dos periódicos feministas pós-1974 por focar exclusivamente na questão da mulher e sua diferença (a lesbianidade), e ao se contrapor ao tema da busca por igualdade entre homens e mulheres. O conteúdo do ChanaComChana se dedica a relatar eventos lésbico-feministas no Brasil e no mundo, a debater questões e enfrentamentos próprios de lésbicas – como sexualidade, relacionamentos, afeto –, além de tirinhas que questionavam com humor as relações tensionadas entre lésbicas e feministas tradicionais, entre lésbicas e instituições de atendimento à mulher, entre lésbicas e o aparato policial.

É importante ressaltar ainda que o nome ChanaComChana pode ser interpretado como uma provocação linguística e política que reflete o espírito subversivo do movimento lésbico em tempos de repressão e invisibilização. “Chana” é uma gíria popular e vulgar para a genitália feminina, e seu uso duplo, reforçado pela preposição “com”, subverte a linguagem normativa ao afirmar explicitamente a união entre vulvas. Esse título transgride os padrões morais e sociais da época, ao mesmo tempo em que assume uma postura de empoderamento e visibilidade lésbica. Ao utilizar uma palavra carregada de conotações populares e sexuais, o boletim reposiciona o desejo e a identidade lésbica em um espaço de resistência cultural e política, rompendo com a invisibilização imposta às sapatões.

O ChanaComChana é muito bacana

O jornal paulistano ChanaComChana, de edição única, publicado em 1981, precedeu o boletim que foi produzido um ano depois, a partir de 1982 até 1987. Na edição 0 do jornal, temos na lateral esquerda da capa uma faixa preta com o título em branco e, após o título, um desenho de uma maçã partida, com sua polpa exposta, e uma mordida. O desenho do interior da maçã sugere a forma de uma vagina, a “chana”, que dá título ao periódico. No centro da capa a chamada para a entrevista exclusiva com Angela Ro Ro com as aspas da própria: “Não me envolvam, eu me envolvo”. Logo abaixo há uma fotografia P&B da artista cantando com intensidade na frente de um microfone.

Ro Ro era lésbica assumida e sofreu quatro vezes agressões das polícias civil e militar. Em uma dessas agressões, em 1984, perdeu a visão de um olho e a metade da audição. Em 1979, a cantora e compositora havia lançado seu primeiro LP, Angela Ro Ro, com a canção “Cheirando a amor”, que fala abertamente do preconceito sofrido por lésbicas: “Amor apertado, sou sua / Trancada com medo da rua / Se isso é pecado me puna / A culpa de amar livre e nua / Que preconceito barato / Que o cão caça o gato / Me morde e me desafia / Só meu olhar lhe arrepia”.

Na entrevista, um grupo de seis lésbicas do GALF e do jornal entrevistam Ro Ro: Marisa, Maria Serrath, Silvana, Miriam, Cris e Conceição. A primeira pergunta expõe a naturalidade com que a cantora expunha o tema de sua sexualidade em seus shows, e como foi que começou essa relação entre artista e público:

GRUPO — Angela, nos seus shows observamos uma alternativa na relação artista-público. Há toda uma práxis contra a repressão. Todos se manifestam, existe um espaço aberto. Há inclusive muitas colocações suas literalmente lésbicas…

ANGELA — Eu, honestamente, não falo aquelas loucuras no show intencionalmente (rindo) sai porque sai. Quando em maio de 79, frente a 350 pessoas, a maioria amigos, eu subi ao palco do Teatro Ipanema para dar início a um trabalho, meus pés, minhas mãos, meu corpo todo tremia. Eu estava tomada de emoção, muito comovida. O coração aqui (na boca). Não dava mais. Aí eu gritei — SOCORRO! — e descobri que conversar ajudava a descontrair. Quando dei por mim estava no meio de uma história – da minha. Uma certa hora, eu ia usar o termo “a pessoa que eu amo”, mas lembrei que era um termo tão entendido, tão gay. Curti com a brincadeira dizendo no lugar “a mulher que eu amo”. (Jornal ChanaComChana, São Paulo, LF, n. 0, 1981)

A segunda página, onde continua a entrevista com a cantora, mostra um pouco da estética de zine e colagem do jornal. Nesta parte da conversa, as militantes do GALF perguntam a Ro Ro se ela se coloca como lésbica publicamente, ao que ela recusa o título, e diz que não se diz lésbica “hora nenhuma” e que todos somos dúbios e anfíbios, mas que ela não quer usar um nome que lhe foi dado, e que ela não escolheu. Existe então uma disputa de ideias entre um movimento identitário (as seis entrevistadoras), por um lado, que afirma a identidade emergente “lésbica” publicamente e defende essa afirmação política, e a cantora do outro lado, que pouco se importa com o termo e diz que é “até muito bonita e a ilha [de Lesbos] mais ainda”, mas prefere expressar sua sexualidade sem amarras e classificações.

Há mais dois textos na primeira edição do jornal, um intitulado “Quem tem medo de Virginia Woolf”, escrito por Maria Carneiro da Cunha, uma advogada feminista e heterossexual. Com tom de conversa, o texto é uma resposta a uma carta de uma amiga de Maria, que ficou horrorizada com um grupo de mulheres intitulado Lésbico Feminista. O outro é de Miriam Martinho, uma das integrantes do GALF e editoras do jornal, que escreve um relato sobre o grupo militante com o título de “Exercício de Liberdade”. Em uma espécie de balanço, ela narra como o GALF já havia alterado a vida de suas integrantes, além de ter conseguido um espaço para as lésbicas no movimento feminista brasileiro – trazendo à pauta a questão da sexualidade que, segundo ela, era “sempre tão esquecida.” Além disso, conta que também conseguiram levar a pauta do feminismo para o Movimento Homossexual, “demostrando estar a opressão do homossexual inteiramente ligada à opressão da mulher pelo homem” (Martinho, 1981, p. 4).

Marisa Fernandes, uma das integrantes do GALF e do ChanaComChana, relata que o movimento lésbico brasileiro teve um papel muito importante diante do movimento feminista brasileiro, porque trouxe ao debate a questão da sexualidade e tirou a pílula anticoncepcional do centro das pautas. As pautas da “luta maior”, das esquerdas, não eram a única questão que interessava às mulheres das classes populares. Questões sobre corpo, sexualidade e liberdade sexual também interessava a elas (Canal USP, 2018 – [LGBTs no Regime Militar] – As Lésbicas Feministas).

O movimento lésbico brasileiro ecoou, em suas reuniões e periódicos, reflexões que estavam sendo empreendidas por duas teóricas importantes para o pensamento lésbico internacional: a estadunidense Adrienne Rich em seu texto “Heterossexualidade compulsória e a existência lésbica” originalmente escrito para o dossiê “Sexualidade” da revista Signs (1980), e a francesa Monique Wittig que escreveu “O pensamento hétero”, lido pela primeira vez em Nova Iorque, em 1978, na Modern Language Association Convention e dedicado às lésbicas estadunidenses.

Wittig e Rich fazem parte do movimento de teóricas lésbicas que vão se multiplicando nos Estados Unidos e França no final dos anos 1970. Em sua produção teórica, passam a enxergar a heterossexualidade não só como uma mera sexualidade, mas como um sistema de poder. Nas palavras de Rich, a heterossexualidade é “[u]m feixe difuso de forças que abarcam desde a brutalidade física até o controle de consciência”. A heterossexualidade, pra Rich, deixa invisível a possibilidade lésbica. Esse é um dos muitos meios de reforço da heterossexualidade, que funciona como uma força de assegurar o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional das mulheres. A heteronormatividade faz com que a nossa sociedade suponha que mulheres são heterossexuais de modo inato e isso acaba se tornando um obstáculo teórico e político para o feminismo (Rich, 1980, p. 35). Dentro deste sistema, a existência lésbica tem sido apagada, ou catalogada como doença, ou tratada como algo excepcional. Então, para as mulheres, a heterossexualidade acaba sendo algo imposto, administrado, propagandeado e mantido por força.

Wittig pronunciou, na leitura de seu texto “O pensamento hétero”, uma das frases mais conhecidas da teoria feminista: “As lésbicas não são mulheres”. Em seu texto, a autora propõe que o pensamento hétero é uma ideologia da diferença sexual, dando importância particular ao discurso como prática social, e às categorias discursivas que importam para a sua reflexão: “mulher”, “homem”, “sexo” e diferença. Ela deseja fugir da classe das mulheres, como parte do projeto de abolição do sexo como categoria de organização dos corpos.

No primeiro número do boletim ChanaComChana, publicado em dezembro de 1982, dando continuidade ao jornal de 1981, mas com um formato mais informal e econômico, temos uma tirinha de Miriam Martinho que exemplifica esse lugar social da lésbica, fora da categoria social “mulher”, conforme sugerido por Wittig. Na cena do quadrinho, três lésbicas entram em uma sala de atendimento do SOS Mulher. Uma senhora está sentada em uma escrivaninha e pergunta: “Como posso ajudá-las?”. Ao fundo, há um cartaz colado na parede onde está escrito: “Não sofra calada. Denuncie aqui o seu caso de discriminação”. As três mulheres alegam que uma foi demitida do emprego, outra expulsa de casa e a terceira expulsa da escola. A atendente questiona o motivo alegado, ao que elas, em uníssono, gritam: “SOMOS LÉSBICAS!”. Espantada e ruborizada, a funcionária pede para que elas voltem no dia seguinte, sob o argumento de que “À tarde só atendemos mulheres”. As três personagens terminam a tirinha confusas e frustradas: as lésbicas não são mulheres?

O ChanaComChana, em formato de boletim, era composto por uma capa feita de colagens, a logo escrito CHANACOMCHANA, tudo junto no topo, abaixo a inscrição “Grupo de Ação Lésbico Feminista” e, ao lado esquerdo, dois símbolos do feminino entrelaçados. Eram publicados textos ensaísticos, artigos, poemas, contos, resenhas, notícias, entrevistas, tirinhas, anúncios, informes e cartas das leitoras. Na seção de poesias, era comum ver poemas de Vange Leonel, de Miriam Martinho e na edição número 5, de maio de 1984, há até mesmo um poema de Ana Cristina César.

Jornal ChanaComChana, publicado em São Paulo pelo Grupo Lésbico-Feminista (LF), número 0, em 1981 e Boletim ChanaComChana, publicado em São Paulo, pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), número 1 em 1982.
Jornal ChanaComChana, publicado em São Paulo pelo Grupo Lésbico-Feminista (LF), número 0, em 1981 e Boletim ChanaComChana, publicado em São Paulo, pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), número 1 em 1982.

A Revolta do Ferro’s Bar

O boletim passa a ser distribuído por correios, através de assinaturas ou no boca-a-boca, nos guetos lésbicos do centro de São Paulo – sobretudo nos bares que foram alvos da “Operação Sapatão” de Richetti. Um dos principais bares era o Ferro’s Bar. O dono do Ferro’s passa a proibir a distribuição do ChanaComChana e também que as lésbicas frequentem o local. Rosely Roth, uma das integrantes do GALF e do Chana, encabeça então um levante, que ficou conhecido como “Revolta do Ferro’s Bar”, chamado também de Stonewall Brasileiro – em menção à revolta LGBTQIAPN+ contra a violência policial nos Estados Unidos, um marco histórico do movimento internacional. Na edição número 4 do boletim, com a capa dedicada ao ocorrido, há um longo relato do episódio. Em um trecho, Vanda, como assina a autora, descreve as violências que as integrantes do GALF e editoras do boletim vinham sofrendo no recinto:

O que Rosely denuncia começara há quase dois meses. Todos os sábados, quando íamos vender o boletim ChanaComChana no Ferro’s éramos agredidas pelo porteiro — com ameaças ou com puxões de braço para que nos retirássemos. Até que no dia 23 de julho último, a barra pesou mais: um dos donos do bar, seu segurança e seu porteiro tentaram concretizar a expulsão, através de agressões físicas. Mas não foram felizes nesse primeiro intento. Enquanto nos puxavam para o lado de fora, parte das lésbicas — que compram o boletim e conversam com as moçoilas do GALF — nos seguravam lá dentro. Belo corpo-a-corpo: dos que têm a força da ordem e da lei contra os que ganharam no dia-a-dia uma força física e interior para poder ‘viver’ numa sociedade onde a regra é ser heterossexual. Quem foge desse padrão, é pervertida (o), louca (o), imatura (o) sexualmente. E, definitivamente, não merece compartilhar das benesses desse paraíso terrestre.

Alegando que nós estávamos fazendo “arruaça” dentro de tão comportado ambiente, o dono chamou a polícia. Os policiais chegaram, ouviram as argumentações do dono, as nossas, as das lésbicas não militantes que nos apoiam. E, estranhamente, um deles respondeu que, como deviam ser imparciais, pois ‘os direitos são para todos os brasileiros’ não tomariam qualquer atitude contra nós. Puxaram o carro e pudemos jantar em meio às outras lésbicas, como sempre fazemos. Há também dias – ainda raríssimos, que são os da caça e não do caçador…

Foi uma vitória. Depois dela, muitas discussões no GALF. Já estávamos cheias de sermos agredidas ‘injustamente’ e pensávamos que o incidente podia se repetir mais vezes, talvez com mais apoio da polícia. Não queríamos ficar na defensiva. Precisávamos reconquistar nosso direito de vender o ChanaComChana no Ferro’s. Não só vendê-lo. Mas conversar com as lésbicas dos mais distintos estratos sociais e vivências pessoais. Não somos e não queremos ser elite ou vanguarda. (Boletim ChanaComChana, São Paulo, GALF, n. 4, 1983)

Depois desse ocorrido, elas prepararam um protesto, que chamaram de “happening”, por um mês. Distribuíram panfletos na porta do Ferro’s denunciando as violências que sofriam no local por serem lésbicas. Militantes de esquerda frequentavam o local e não sofriam as mesmas represálias ou constrangimentos. O evento ficou agendado para o dia 19 de agosto daquele mesmo ano. Elas convidaram integrantes de variados partidos comprometidos com causas democráticas: a deputada Ruth Escobar (PMDB), a vereadora Irene Cardoso (PT), o deputado Eduardo Suplicy (PT) e o líder da bancada do PT na Assembleia Legislativa, Marco Aurélio Ribeiro. Além disso, convidaram também a advogada Zulaiê Cobra Ribeiro, representante da OAB e da Comissão de Direitos Humanos.

Rosely Roth dentro do Ferro’s Bar, com demais manifestantes e frequentadoras do estabelecimento. Fonte: Acervo – Folha de São Paulo.
Rosely Roth dentro do Ferro’s Bar, com demais manifestantes e frequentadoras do estabelecimento. Fonte: Acervo – Folha de São Paulo.

Marisa Fernandes descreveu aquele dia como uma grande aglomeração na frente do bar. Junto ao GALF também estavam homens gays integrantes do Grupo Outra Coisa – Ação Homossexualista. O porteiro do Ferro’s Bar usava um quepe, símbolo de sua autoridade. Um dos amigos gays das militantes, em um momento de descuido do porteiro, tomou seu chapéu e o arremessou longe. Ele foi correndo buscar. Nesse momento, com as portas livres de seu cuidado, todas as pessoas que se aglomeravam do lado de fora adentraram o espaço interno do bar. Rosely Roth subiu em uma cadeira e discursou. Com imprensa e convidados de diversos partidos políticos, o dono do bar é convencido, publicamente, a permitir a presença das militantes e a distribuição do jornal no bar.

A repercussão do happening político do Ferro’s abriu espaços sociais para o GALF em dois sentidos. Entre as lésbicas, muitas vieram participar do grupo. As que ainda não querem militar já leem nosso boletim com outros olhos e discutem mais conosco. Sabemos que a libertação individual é um processo a longo prazo. Sabemos, também, que na História a militância sempre foi um gesto de muito poucos e dentro de espaços delimitados – por exemplo, os partidos políticos. (Boletim ChanaComChana, São Paulo, GALF, n.4, 1983)

O dia da Revolta do Ferro’s Bar ficou marcado na história do movimento LGBTQIAPN+ brasileiro. Em 2003, na esteira de suas conquistas e lutas, essa data foi oficializada e passou a ser comemorada como o Dia Nacional do Orgulho Lésbico, um momento de celebração, mas também de reflexão sobre as lutas e conquistas das mulheres lésbicas no Brasil. É um dia para reforçar a visibilidade lésbica, lembrar os desafios históricos enfrentados, como a violência e discriminação, e para continuar lutando por igualdade de direitos e inclusão. Além disso, o 29 de agosto também é uma data importante: o Dia da Visibilidade Lésbica, que marca a fundação do primeiro Encontro Nacional de Lésbicas, ocorrido em 1996. Assim, agosto passou a ser considerado o “Mês da Visibilidade Lésbica”, com diversas ações e atividades de conscientização e resistência.

Por fim, GALF e seu boletim tinham um comprometimento muito grande com a produção de rede, conscientização e acolhimento para mulheres lésbicas. Fazê-las sentir que possuíam um meio de comunicação que pudesse produzir um sentimento de coletivização era fundamental. Em um tempo anterior à internet, a circulação da materialidade do jornal, os guetos, as assinaturas, a possibilidade de escreverem cartas que eram publicadas no boletim, dava às lésbicas de todo o país a possibilidade de pertencimento e de que podiam ser ouvidas. Em meio a tanta invisibilização, à esquerda, no feminismo, no movimento homossexual, o ChanaComChana trouxe visibilidade e afeto.

* Dri Azevedo foi prof. substitute de Teoria Literária na UFRJ e atualmente é pesquisadore de pós-doutorado pelo departamento de Ciência da Literatura na mesma instituição, além de fazer parte da equipe de coordenação do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC-UFRJ.
Referências bibliográficas
BOLETIM CHANACOMCHANA, São Paulo, GALF, n. 1, 1982.

BOLETIM CHANACOMCHANA, São Paulo, GALF, n. 4, 1983.

CARDOSO, Elizabeth da P. “Imprensa feminista brasileira pós-1974”. 2004 Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 12 (N.E.): 264, setembro-dezembro/2004.

COLAÇO, Rita. Operação Sapatão – Richetti 15 nov 1980. Disponível em: <https://memoriamhb.blogspot.com/2009/04/operacao-sapatao-richetti-15-nov-1980.html> Acessado em 11 de outubro de 2024.

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NA CONTRAMÃO, NOSSO AMOR É POLÍTICO: CONVERSA COM JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

João Silvério Trevisan, nascido em Ribeirão Bonito (São Paulo), no dia 23 de junho de 1944, mergulha com sua sensibilidade artística por diferentes campos da escrita: ficção, ensaio, roteiro, jornal. Ativista dos Direitos Humanos/LGBTQIA+, carrega em sua experiência de vida uma trajetória extensa de luta e resistência, sendo um dos fundadores do Somos (1978), primeiro grupo de liberação homossexual no Brasil, e, ainda na mesma década, um dos editores fundadores do jornal que deu início a uma imprensa voltada para e sobre a comunidade homossexual brasileira, o Lampião da Esquina (1978-1981).

A primeira vez que tive contato com a sua obra foi em 2017, quando ainda estava na graduação. Nesse período, comecei a dar os primeiros passos para o que posteriormente se tornaria o meu interesse de pesquisa: literaturas LGBTQIA+ no Brasil. Nesse ano, conheci um de seus trabalhos ensaísticos mais famosos, o Devassos no paraíso (1986), mas só iniciei a leitura após um acontecimento que atravessou o meu existir: descobri que estava convivendo com HIV. Assim como os que recebem esse diagnóstico ainda hoje, me vi diante da morte e da impossibilidade de conexão com os outros. Foi um período de grande solidão e, na busca por algum auxílio, os ensaios de Trevisan serviram como apoio duplo: contribuíram com minhas leituras acadêmicas, mas, sobretudo, em minhas reflexões internas sobre o “eu” e o “outro” em um período de crise.

Conversei por e-mail com Trevisan para pensar como há, ainda hoje, reflexos das violências praticadas durante o golpe militar de 1964 na repressão à comunidade LGBTQIA+, principalmente após a ascensão da extrema direita e com os desafios políticos e sociais que surgiram desde então. Na conversa, buscamos traçar um paralelo entre o ontem e o hoje, com temas que perpassam, enquanto ferramenta política, os movimentos sociais, a imprensa, o corpo e o amor.

João Silvério Trevisan (divulgação)
João Silvério Trevisan (divulgação)

Sandro Aragão: Você identifica ainda hoje resquícios de uma coerção/repressão às nossas existências LGBTQIA+, similares às praticadas durante o regime de ditadura em nosso país?

João Silvério Trevisan: Sim, há uma clara continuidade. Para mim, não existe um paraíso onde chegamos e seremos felizes para sempre. Como qualquer outra atividade política tirânica, a ditadura militar brasileira de 1964 aprofundou as raízes da repressão sexual já presentes no DNA de toda cultura normativa. Mesmo que os períodos ditatoriais passem, a capacidade repressiva dessas culturas continuará e sempre irá encontrar novos pretextos para garantir sua paranoia sexual e restringir as fronteiras do gozo. Uma das perversidades maiores da repressão institucional é que o próprio gozo a ser combatido se transfere para a repressão, através do sadismo. Sejam ditaduras explícitas ou quaisquer organizações repressivas (inclusive religiosas), todas praticam o prazer sádico de oprimir nossos corpos. Reprimir se torna, então, uma forma de sequestrar o nosso gozo e usufrui-lo contra nossos corpos. Daí porque nossa resistência amorosa não se restringe aos períodos mais duros. Como se pode constatar nas democracias atuais, sempre que houver normas amorosas restritivas e impositivas, dissidentes como nós estarão sendo visados e oprimidos. Como eu disse: o paraíso é uma quimera, daí a resistência como parte do nosso amor.

SA: O Lampião da Esquina foi precursor de uma imprensa LGBTQIA+ no Brasil. Não se destinava apenas a dialogar com pessoas homossexuais, propunha-se como uma ferramenta para pôr em visibilidade questões que se referiam às nossas experiências dentro da sociedade a partir de perspectivas individuais/coletivas postas à margem. Pensando o período e o contexto político em que o Lampião foi criado e a forma como a imprensa LGBTQIA+ ― ou que se destina à comunidade ― está hoje, o que você percebe de mudança? Levando em consideração todo o caminho já feito até aqui, o que você vê como avanço e o que ainda precisa ser repensado?

JST: Acho que parte da minha resposta já está dada na anterior. Os avanços que tivemos são reais, mas também os recuos. A sólida bancada evangélica que integra a direita política brasileira é uma comprovação disso nos dias atuais. Ela tem um claro projeto de poder. Não há como fazer-de-conta. Pablo Marçal está aí e deve ser mais um de uma longa lista de influencers de direita insanos e vorazes pelo poder falocrático, na linha bolsonarista. A conquista mais preciosa que a comunidade LGBTQ+ ostenta hoje encontra-se nela mesma. Nas muitas décadas da minha trajetória, nunca vi entre LGBTs um nível de consciência política tão alto como na atualidade. Isso é o que mais assusta a direita extremista. Isso é também nossa maior força de resistência. Sim, ainda existem muitos problemas afetando a comunidade quanto à sua inserção política, inclusive por seu baixo amor próprio e seu narcisismo exacerbado, que é uma arma de defesa equivocada. Mas conseguimos uma representatividade razoável no Congresso Nacional, que é das mais corajosas em nossa democracia, e tem muita gente inteligente levando adiante o debate político dentro da comunidade, sem depender das parcas lideranças, partidárias ou não. Acho muito animadora a grande quantidade de LGBTQs anônimos pensando criticamente e debatendo ideias nas redes sociais, sem esquecer de bloggers, podcasters e influencers de todas as regiões e categorias. Essa consciência crítica em ebulição é nosso maior trunfo.

SA: As reflexões teóricas e sociais que surgiram, e estão surgindo, a partir da comunidade trans propõem perspectivas que desestruturam a nossa percepção sobre o corpo, o gênero, o comportamento, a cultura, entre outros aspectos. Nesse sentido, como você percebe esse movimento? Você consegue criar um paralelo entre o surgimento dos estudos gays e lésbicos durante as décadas de 60-70 e o que vem sendo feito hoje por teóricos como Paul B. Preciado?

JST: Sim, claro. Mais do que paralelo, vejo um desdobramento. Historicamente, por mais sutil que seja, há uma corrente de resistência dos oprimidos. Tente imaginar como era a sexualidade entre os gregos ou entre os tupinambás. Não sabemos com exatidão absoluta, pois sempre existe a sombra do apagamento. Se esse cuidado extremo em nos tirar do mapa do amor universal perdura até hoje, também devemos puxar o fio da meada das resistências, que sempre existiram e existirão. Sim, o nazismo varreu da Alemanha a intensa atividade LGBT do período e tentou apagar uma história longínqua que pessoas como o médico e ativista Magnus Hirschfeld vinham resgatando. Até a biblioteca especializada do seu Instituto de Estudos Sexuais foi queimada em praça pública. Mas nem por isso a história dos amores e gêneros dissidentes desapareceu. Sim, Paul Preciado continuou o que fazíamos desde os anos 60-70, com a eclosão das lutas de Stonewall, e nós demos continuidade a tudo aquilo que as multidões LGBTs vinham conquistando por séculos, em meio a inúmeros percalços, obscuros ou mais claros, como a condenação de Oscar Wilde. Era essa mesma convicção que, ainda no século XIX, levava o poeta Walt Whitman a exortar as multidões de amantes dissidentes do futuro, da qual fazemos parte. Nós o ouvimos e espero que sejamos ouvidos pelas multidões do futuro. Quero dizer que, se há um fio condutor dessas culturas repressivas, também existe um fio condutor em nossa capacidade de resistência. Com certeza, nós somos a Fênix do amor.

SA: Em seu livro Devassos no paraíso, você fala sobre como a Parada LGBT+ celebra o amor. Muito da luta LGBTQIA+ parte de um lugar que se refere ao direito de “ser” e de “amar”. Esse aspecto faz com que o amor seja levado para um campo político, de modo que nos faça refletir sobre quem ou quais corpos têm o direito de vivenciá-lo livremente. A partir disso, qual o papel do amor ou de uma ética amorosa dentro da comunidade atualmente? É possível dizer que o nosso amor continua obsceno/pornográfico aos olhos daqueles para quem a única possibilidade de existência é a norma?

JST: Se o nosso amor vem na contramão de uma cultura secular, então ele contesta essa cultura e, portanto, será obrigatoriamente político. Ocorre uma grave omissão quando a sociedade normatizada não se dá conta de que nossa luta não é um passatempo, nem algo de importância exclusiva de LGBTQs. Por uma série de fatores, nós estamos mexendo num dos pilares dessa cultura, que é justamente a capilaridade do amor nas vidas humanas, em qualquer momento da história e em qualquer parte do planeta. Ao reivindicarmos nosso direito ao amor e ao desejo, reivindicamos automaticamente a singularidade da nossa forma de existir. Nós somos reservatórios de resistência dos vulnerabilizados, em vários sentidos, por se tratar de uma luta em várias frentes. Um dos resultados menos notados da nossa batalha política é que gente como Jair Bolsonaro sabe que nós sabemos quem eles são. O raio X do nosso olhar os aterroriza porque nós os desnudamos de suas dissimulações ideológicas: nós aprendemos a olhar com o filtro do desejo. E podemos perceber que chegamos onde eles tanto cobiçam chegar, caso não se autossabotassem. Ou seja, politicamente nós temos nas mãos a criptonita capaz de revelar as fadinhas que existem no interior dos Bolsonaros de todos os padrões – e Pablo Marçal é o mais recente, ainda que não o último da cepa mais resistente desses “armários ambulantes”. Gostemos ou não, pela nossa condição de marginalidade, nós temos a capacidade profética de revelar. Somos o grupo secularmente jogado na cova dos leões, como os profetas bíblicos, e sobrevivemos para escancarar a natureza do amor humano e comprová-la com nossa diversidade. Esse é o nosso campo de batalha prioritário, no qual revelamos como o amor e o desejo se atualizam em múltiplas formas – o que para essa gente é aterrorizante. Lembro de dois parâmetros recentes que podem ilustrar esse meu raciocínio. Pouco depois da eleição de Jair Bolsonaro, no carnaval de 2019, houve o escândalo da exibição pública de um golden shower praticado entre dois homens, no centro de São Paulo. A mídia registrou o assombro do presidente eleito ao tomar conhecimento dessa prática erótica para ele inusitada. Aquele início de desgoverno vivenciou um rito de iniciação erótica no coração mesmo da direita radical, que se desconcertou ante nossa liberdade sexual, algo que seus corpos desconhecem. O segundo parâmetro da nossa capacidade profética ocorreu em 2024, como uma espécie de encerramento de ciclo. Foi quando a Parada LGBT–SP promoveu uma campanha para incentivar o uso do verde-amarelo, como forma de resgatar algo que nos tinha sido sequestrado pela direita extremista. O efeito gozoso, que eu vivenciei presencialmente, é que havia um mar de verde-amarelo, usado desde as roupas e fantasias até as bandeiras brasileiras que ostentavam na parte traseira as cores do arco-íris.  E isso veio acompanhado de uma onda de bate-leque trans praticado pela multidão presente. Do alto de um trio elétrico, eu pude testemunhar a orquestração de leques batendo furiosamente, como uma admoestação. Ali, inclusive, aprendi a bater meu próprio leque. A campanha de resgate foi um sucesso tal que os extremistas de direita passaram a temer o verde-amarelo patriótico, receando serem confundidos com “gente anormal”, quer dizer, nós.  Tanto que nas eleições deste ano juro que não vi uma única fantasia “patriótica” de verde-amarelo, tal como acontecia com a direita fanática. Esses dois momentos me parecem exemplos da capacidade profética, quer dizer, reveladora, que nós, agentes da dissidência, temos condição de praticar.

SA: “Que país é esse?” foi uma das perguntas que o moveu durante a criação do seu filme Orgia ou o homem que deu cria. Em que lugar essa pergunta se encontra em você hoje?

Cena de Orgia ou o homem que deu cria, de 1970 (divulgação)
Cena de Orgia ou o homem que deu cria, de 1970 (divulgação)

JST: Devo dizer que essa pergunta nunca deixou de ser feita por mim, nem mudou de lugar. A cada dia descubro novos nichos repressivos que me levam a renovar a minha perplexidade. Ela tem a ver com outra pergunta: onde fica o nosso país? É uma pergunta que faz sentido enquanto nos sentirmos exilados em nosso próprio país. A sensação de exílio, que mais experimento quanto mais vivo, é também o que me leva incansavelmente adiante. Porque vivemos em permanente estado de diáspora amorosa, esse exílio amoroso é que nos move adiante. Eu quero pertencer àquele país que me tem sido vetado. Se ele não existir, então eu vou inventar. Há uma comunidade inteira inventando diariamente esse país do nosso amor. Você acha possível existir alguma força capaz de nos conter? Claro que não. Essa mesma busca que não parece ter um final feliz é, na verdade, aquela que impulsiona nossa capacidade de inventar um mundo. Então, essa nossa capacidade de criar permanentemente não é algo secundário. Tratar-nos como gente de segunda classe é um grave equívoco das culturas repressivas – e um grave desperdício de energia que poderia mover adiante sociedades sem esperança como as que nos excluem e sequestraram a nossa pátria. Daí porque conquistar aquele verde-amarelo durante a Parada de 2024 é mais do que emblemático. É uma metáfora que aponta para o caminho do futuro, num mundo que parece em estado de agonia. Quando o filósofo grego Arquimedes propunha “Dê-me uma alavanca e moverei o mundo”, eu não tenho dúvida em identificar essa alavanca como sendo o amor. Porque, na voz visionária de Walt Whitman: “Uma vasta similitude entrelaça tudo”. Se o universo está em permanente estado de ebulição, ele é movido por uma força da agregação. E essa força que agrega tem um nome: amor universal. Entenda-se: em diferente escala, assim acontece com o nosso pequeno planeta Terra. Quando estamos falando da sobrevivência do nosso amor, falamos também da sobrevivência do planeta e do próprio gênero humano. Não se trata de triunfalismo, mas de alternativas para evitar a catástrofe. Retornar ao princípio do amor universal é o que nos resta.

* João Silvério Trevisan é roteirista, ensaísta e ficcionista. Autor do fundamental Devassos no paraíso (1986) e de Ana em Veneza (1994), publicou recentemente A Idade de Ouro do Brasil (romance, 2019) e Meu irmão, eu mesmo (romance, 2023, finalista do Prêmio Oceanos). Sandro Aragão é mestre em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Vinculado ao Programa de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atua em pesquisas voltadas para o campo dos afetos e da literatura LGBTQIA+.
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DISSIDÊNCIA, MASCULINIDADE E PELES NEGRAS: RECONSTRUÇÕES VISUAIS DE FANON

Em meio à tragédia pandêmica que já assolava nossas vidas, o Brasil assistiu, entre 11 e 12 de maio de 2020, à exibição do doc-filme Frantz Fanon: Black Skin, White Mask (1996), do cineasta afro-britânico Isaac Julien (1960-). O filme compôs o arranjo de películas, instalações audiovisuais, combinações entre cartoon e street art, apresentações musicais, teatrais e de coletivos inteiros da Mostra Perspectivas Vila Sul (2020). Organizada pelo Goethe-Institut, com sede em Salvador, a Mostra reuniu 22 ex-residentes de diversas nacionalidades do Programa de Residência Vila Sul, que visa agregar artistas, escritores e cientistas de vários campos do saber que acolhem como tema gerador de sua produção intelectual o Sul global. O isolamento social provocado pelo coronavírus obrigou os volumes I e II da Mostra a assumirem um formato virtual[1].

O filme e a radicalidade do pensamento de Frantz Fanon (1925-1961) voltaram a assombrar e sacolejar os acadêmicos brasileiros, que estão despertando novamente para a insurreição que Peau Noire, Masques Blancs [Black Skin, White Masks] (1952) e Les Damnés de la Terre [The Wretched of the Earth] (1961) produziram no Movimento Negro brasileiro dos anos 1960, bem como nas obras de Lélia González, Paulo Freire, Florestan Fernandes e tantos outros pensadores daqui.

Nascido na Martinica, Frantz Fanon foi discípulo do poeta maior da Négritude, Aimé Césaire. Numa França pós-Segunda Guerra, marcada pela emancipação das colônias europeias, Fanon terminou seus estudos em psiquiatria na Universidade de Lyon e, tempos depois de exercer o ofício na metrópole, assumiu, na Argélia colonial, a direção do hospital psiquiátrico Blida-Joinville. Isso foi o bastante para que ele percebesse o quanto as instituições coloniais afetavam a psiquê daqueles que viviam sob seu regime, o que o incentivou a alistar-se na Front de Libération Nationale (FLN) [Frente de Libertação Nacional da Argélia] e integrar, em 1956, a luta contra o colonialismo.

Por consequência de sua expulsão da Argélia pelo governo francês, Fanon decide viver na Tunísia, local onde sua obra e atuação política se lançam definitivamente da clínica para a mobilização da luta armada em prol da superação do regime colonial, tendo a escrita de The Wretched of the Earth como símbolo maior de tal transição. Fanon pode ter falecido antes da publicação deste livro e da independência da Argélia, mas sua atuação cosmopolita e panafricanista fez com que seus escritos continuassem a repercutir em todo o projeto teórico-crítico pós-colonial, encabeçado pelos estudos culturais, subalternos, visuais, de teoria literária, psicanalítica e psiquiátrica, de raça e diáspora ainda hoje.

Quando o Goethe-Institut hospedou a película para apreciação gratuita na plataforma Vimeo por 24 horas, a sensação era de que a paralisia causada pelo coronavírus e pela escancarada desigualdade social que se intensificou no Brasil em 2020 foi colocada em suspensão no plano das redes sociais: rapidamente, iniciou-se uma profusão de compartilhamentos pelo Facebook, grupos de WhatsApp e e-mails do link onde o filme estava disponível para a audiência brasileira. Isso revelou não só o ineditismo daquela produção cinematográfica para a academia situada aos trópicos, mas também o completo desconhecimento sobre quem o produziu e o significado de Fanon para todo o ativismo e produção teórico-artística anticolonial e antirracista que se desvincula de abordagens falocêntricas e hetero-cis-normativas em espaços anglófonos, sobretudo aqueles retalhados pela máquina colonial do império britânico.

Consagrado por seus filmes Looking for Langston (1989), Young Soul Rebels (1991), The Attendant (1993) e The Darker Side of Black (1993), Isaac Julien (Figura 1) desenvolve em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask uma intensa pesquisa arquivística que mescla identidade, história e estrutura narrativa (Fusco, 1997). Embora este seja seu trabalho mais próximo e direto relacionado ao legado de Fanon, seu projeto enquanto cineasta é totalmente perpassado por questões levantadas pelo pensador martinicano em se tratando da racialidade, da violência contra a corporalidade negra e de suas representações no discurso colonial (Julien; Nash, 2000). Tal como o fotógrafo Rotimi Fani-Kayode (1955-1989), ele pertence à geração de artistas afro-britânicos queer, oriundos dos anos 1960, que encontraram em Frantz Fanon suporte teórico de criação artística.

Figura 1: Isaac Julien. Fonte: Isaac Julien Studio. (Disponível em: https://www.isaacjulien.com/about/.)

Com a tradução para o inglês de Les Damnés de la Terre, seguida de Peau Noire, Masques Blancs, entre 1965 e 1967, respectivamente, nos Estados Unidos e Reino Unido, as obras mais difundidas de Frantz Fanon alcançaram não somente o público estadunidense e britânico, como também intelectuais da África Oriental que estudavam nos Estados Unidos nos anos 1960, imprimindo ao movimento e à intelectualidade negros destes espaços um impulso análogo àquele produzido no Brasil na mesma época (Batchelor, 2017). Ao estabelecerem contato com obras de escritores e pensadores afro-americanos e com o movimento Black Power, esses estudantes africanos conheceram, por consequência, a obra fanoniana e a disseminaram no retorno à África anglófona num momento em que as lutas pela independência das colônias africanas emergiram. O capítulo “Concerning Violence”, de The Wretched of the Earth, conferiu, por exemplo, um enorme impulso aos movimentos anticoloniais em prol da independência do Quênia e maior compreensão dos danos psíquicos sofridos pelos sujeitos colonizados na condição de combatentes da guerra (Mazrui, 2017).

Artistas estadunidenses, ingleses e africanos de territórios anglófonos, negros e queer, se utilizam das principais ideias de Black Skin, White Masks para compor investimentos artísticos que rompem com aspectos hegemônicos em torno da homossexualidade, masculinidade e feminilidade negras (Furtado, 2018). O livro destaca

[…] o colonialismo e seu impacto como sendo amplamente compostos por experiências visuais. Esse olhar colonial, segundo [Fanon], se apropria e despersonaliza seus sujeitos, ignorando seu modo de ver. Por sua vez, os teóricos [e artistas] queer, especialmente do cinema, têm se apropriado e aplicado esses termos às questões de gênero (Furtado, 2018, sem paginação)[2].

A curadoria e direção do filme feita por um dos cineastas afro-britânicos mais aclamados da cena gay inglesa, bem como sua respectiva dedicatória à memória do escritor afro-americano Essex Hemphill (1957-1995), também assumidamente gay, dão a tônica metodológica e temática que Julien empregaria em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask. O cineasta se aproxima do procedimento utilizado em Looking for Langston, no qual lhe interessava “complementar” a obra do poeta afro-americano Langston Hughes (1902-1967) e suas ressonâncias no Renascimento do Harlem, sem se apegar às especulações críticas sobre a sexualidade do escritor. Esta é a razão pela qual ambos os filmes se tornam textos visuais, experimentais e poéticos.

Ao tentar capturar o espírito de Fanon enquanto “a experiência vivida do negro” (Fanon, 2008, p.103-126) através de sua retórica teórico-pessoal, Frantz Fanon: Black Skin, White Mask exibe, em 70 minutos, uma montagem de arquivos fotográficos, fílmicos (encenados pelo elenco do filme ou resgatados de outras produções ficcionais), depoimentos de personalidades acadêmicas que tiveram Fanon como seu precursor, além de entrevistas com entes familiares e amigos próximos do martinicano.

A ausência de arquivos fílmicos sobre Fanon foi a força-motriz para que o diretor pusesse em prática o que chamou de “reconstrução visual” [visual reconstruction] (Julien; Nash, 2000, p. 14): o preenchimento da falta da imagem pela ficção encenada. A reconstrução foi uma estratégia visual encontrada pelo diretor para dar corpo à vida e à teoria fanoniana através do ator Colin Salmon (Figura 2), bem como ao embate entre a presença de Fanon no hospital psiquiátrico colonial e o olhar ocidental racializado frente aos nativos das colônias. A tentativa de conferir visualidade ao corpo e à teoria de Fanon pela encenação revelam que

o ato de visualização pode ser encarado como uma forma de produção teórica, aquela que faz do corpo em particular um local privilegiado de poder imagético e mediação. Ou seja, não é uma questão de simplesmente encontrar uma maneira de representar Fanon no cinema, mas de usar o cinema para se envolver com as ideias fanonianas e talvez, de alguma forma, transformá-las (Julien; Nash, 2000, p. 14).[3]

Figura 2: Colin Salmon, intérprete de Fanon. Fonte: Isaac Julien Studio. (Disponível em: https://www.isaacjulien.com/projects/frantz-fanon-black-skin-white-mask.)

Todo o material ficcional utilizado por Julien foi tratado como material arquivístico no doc-filme, pois as encenações e os trechos de outros filmes auxiliaram não só na construção de “um documentário poético com uma abordagem ficcional” (Julien citado em Fusco, 1997, p. 57)[4], como também no desmantelamento do arquivo colonial (Julien; Nash, 2000, p. 15). Assim, a abordagem visual de Julien se torna, de certa forma, queer: não se trata de uma filmografia que revela a “verdade” sobre Frantz Fanon no plano pessoal e teórico-crítico, mas que constrói um Fanon cuja identidade é multifacetada, personagem e atuante, que entra e sai do plano da ficção, que não se restringe simplesmente à psicopatologia do colonizado e à descolonização dos povos argelinos, mas se dispersa em múltiplos “eus” que se confrontam, inclusive, na conjunção entre vida e obra. Tornar Fanon “queer” seria, portanto, tomá-lo fora da simples dimensão de herói da revolução ou da primazia de um enfoque masculinizado sobre sua vida e obra crítica. Seria, ainda, torná-lo passivo de contestação, de trazê-lo para o debate contemporâneo através da reconstrução visual proposta por Julien.

As cenas tiveram como suporte textual excertos de Black Skin, White Masks, The Wretched of the Earth, L’An V de la révolution algérienne [A Dying Colonialism] (1959) e Pour la Revolution Africaine [Toward the African Revolution] (1964), sendo dramatizadas na Argélia, Martinica, França e Tunísia. De modo não linear, elas se mesclam a depoimentos de familiares e amigos próximos de Fanon; às cartas que ele escreveu ao irmão Joby, pouco antes de falecer; aos depoimentos de mulheres da região do Magrebe, que atuaram na guerra anticolonial; às fotografias do arquivo pessoal do filho de Fanon, Olivier (Figura 3), e às do Musée Régional d’Histoire et d’Ethnographie de la Martinique; se entrecruzam a extratos das películas Algérie em Flammes (Les Films du Village), Battle of Algiers (BFI Distribution) e J’ai Huit Ans (les Films Grains du Sable).

Figura 3: Olivier Fanon e seu filho. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Tais cenas reconstituem o hospital Blida-Joinville e abrem o filme com relatos pessoais de Fanon e de sua atuação enquanto psiquiatra (Figura 4). Elas também aproximam o espectador de seus pacientes, cujos traumas foram relatados em The Wretched of the Earth. Na sequência, as cenas se apoiam no depoimento do pai dos Estudos Culturais, Stuart Hall (1932-2014), no qual ele expõe a relação colonizador-colonizado, fruto da dialética hegeliana senhor-escravo, como o pilar do pensamento fanoniano (Figura 5). Em desdobramento à fala de Hall, a teórica decolonial Françoise Vergès (1952-) traz à tona aspectos relevantes na formação pessoal e acadêmica de Fanon (Figura 6).

Figura 4: Frantz Fanon (Colin Salmon) no Hospital Psiquiátrico Blida-Joinville. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

As aparições em sequência de Homi Bhabha (1949-), outro grande nome dos Estudos Culturais e Subalternos, surgem como intervenções à parte, tendo em vista que a fala de Bhabha se assemelha a um ensaio, onde o crítico se coloca à procura do espectro de Fanon nas ruas (Figura 7), na simulação do velório do martinicano, entre fotografias e flashes de cenas do evento All Africa’s People Conference (1961) em Acra, Gana, onde Fanon foi participante e representante da FLN (Figura 8). Através de reflexões acadêmicas, contornadas por concordâncias e críticas, ficção e arquivo, Julien resgata as ferramentas que estes teóricos herdaram de Frantz Fanon para pensarem o mundo pós-colonial e a força contracultural que suas reflexões promoveriam logo após a morte daquele que os inspirou.

Além da descoberta da psiquiatria enquanto instrumento posterior de libertação dos combatentes em guerra, é através dela que Fanon descobre o racismo. Em carta a seu irmão, o psiquiatra relata um incidente com um paciente francês, que se negou a ser atendido por ele devido à cor de sua pele. O olhar da metrópole francesa sobre ele causava verdadeira despossessão de si, e o fez descobrir-se como um outsider dentro do plano genealógico da “cultura europeia” (a “máscara branca”), mesmo tendo sido educado à imagem e semelhança do Ocidente. A rasura na imagem da “máscara branca”, que é o verdadeiro nó do livro que nomeia o doc-filme de Julien, se reflete na cena clássica narrada por Fanon em Black Skin e reproduzida no filme, na qual ele é surpreendido pela exclamação de uma criança que o vê (“Mamãe, olha um preto, estou com medo!”). O episódio se caracteriza como metáfora maior do racismo sofrido por ele no período em que viveu na França (Figura 9).

Figura 5: Stuart Hal. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O preenchimento ficcional desta cena e o caráter outsider do corpo negro na ocidentalidade se aliam aos comentários de Stuart Hall no filme, à medida que a experimentação do racismo, caracterizada no plano do olhar e do visível, fez com que Fanon lesse a dialética senhor-escravo como “uma espécie de releitura histórico-hegeliana do complexo de Édipo”, pois “Fanon também está profundamente preocupado com a luta com o pai. Esse é o cerne do texto: a luta entre o filho negro e o pai colonizador. É essa relação filho negro/pai branco que concede profunda masculinidade a seu modo de ver o mundo” (Hall citado em Frantz Fanon…, 1996)[5].

A menção do complexo de Édipo evocada por Hall no documentário, revestida de uma masculinidade patriarcal e sexista, é reflexo das imagens, comentários e trechos que aparecem na sequência do filme em torno das controvérsias e do lugar ambíguo das mulheres, da relação entre homens e da homossexualidade na obra de Fanon. É nesse momento que o filme contesta Frantz Fanon e dele se apropria ainda mais em sua forma “queer”, ao convocá-lo novamente para um debate iniciado antes do lançamento da película.

Figura 6: Françoise Vergès. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Apesar de dispormos de estudos que abordam a evasão epistemológica de Frantz Fanon sobre os impactos do peso colonial em se tratando das questões de gênero e sexualidade (Fuss, 1994), parece-nos pertinente retomar o assunto a partir do doc-filme em evidência, uma vez que a entrada de Fanon no Brasil e nos espaços anglófonos mencionados, bem como sua abordagem na academia brasileira, ainda se limitam fundamentalmente ao contingente da raça, deixando escapar a ambiguidade que a dimensão de gênero e a corporalidade dissidente assumem em sua obra. Este é um momento em que nós, pesquisadores brasileiros, estamos nos aproximando cada vez mais de discussões que entrelaçam corpo, raça, gênero e sexualidade, iniciadas com maior intensidade na ambiência anglófona do final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Esse mesmo debate tem nos proporcionado entrar em contato com outras figurações possíveis do aparato teórico fanoniano em espaços anglófonos, que promovem meios de vê-lo para além do caráter heroico da revolução argelina. Não pretendemos revisar as críticas já apontadas, muito menos promover uma petição em defesa de Fanon sobre elas. O que está em pauta é a forma que a curadoria de Julien e sua conversão em película foram capazes, a partir de seus preenchimentos ficcionais, de evidenciar tais traços como diálogos inacabados, tomando os escritos de Fanon como ponto de vista teórico inesgotável, múltiplo, capaz de ser lido/visto para além da superfície.

Figura 7: Homi Bhabha. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Em se tratando das mulheres, há dois pontos em que Julien entrecruza o debate teórico com a ficção. Françoise Vergès enfatiza a leitura hostil que Fanon realiza em Black Skins, White Masks da narrativa semiautobiográfica Je suis Martiniquaise (1948), da escritora Mayotte Capécia (1916-1955). Fanon considera autora e obra frutos de uma alienação e rendição da mulher negra ao homem branco e colonizador: “Je suis Martiniquaise é uma obra barata, que preconiza um comportamento doentio” (Fanon, 2008, p. 54). A leitura feita por Fanon se restringe aos aspectos biográficos do romance, tornando-o uma representação totalizante da mulher antilhana, de seu desejo pelo colonizador e pelo ideal de “brancura” que ele representa. De modo análogo a Vergès, a escritora antilhana Maryse Condé (1937-) ressalta no documentário que “o amor às vezes nos coloca em uma posição de contradição com [nossas] opiniões ideológicas ou filosóficas” (Condé citado em Frantz Fanon…, 1996)[6] (Figura 10).

Figura 8: Frantz Fanon na All Africa’s People Conference (1961). (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Do plano teórico para o pessoal, ambas defendem o amor da escritora pelo homem branco como uma escolha individual ou possível estratégia para escapar da brutalidade colonial, o que a afasta da alienação. A maior contradição seria, de acordo com Vergès, a posição de Fanon em julgar Capécia através do romance sem que ele levasse em consideração sua própria união matrimonial com uma mulher branca e sua autopercepção enquanto não alienado diante do fato.

Figura 9: A criança vê Fanon. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Como desdobramento dessas análises, Julien promove encontros imaginados entre o martinicano e Simone de Beauvoir, narradas a partir de trechos de La Force des choses (1963), embora saibamos da influência notoriamente pública de Jean Paul-Sartre na obra de Fanon, a partir dos prefácios com que o existencialista francês condecorou seus livros mais conhecidos (Figura 11). A presença de Beauvoir, ao invés de Sartre, indicia a influência feminina na vida e obra de Fanon e oferece margem para o diretor não só explorar a experiência de Fanon ao “descobrir-se” negro na França, mas também a posição das mulheres tunisianas frente ao seu papel na revolução argelina, assim como a violência vivenciada por elas a partir do regime colonial e no próprio movimento que tentava se impor contra ele. Isso nos remete ao prefácio, elaborado por Gayatri Spivak, do doc-filme Concernig Violence (2014), cuja base reside no capítulo homônimo de The Wretched of the Earth. Por mais incômodo que seja, a teórica afirma que

é no resultado do colonialismo, algo que Fanon não pode presenciar, que se deve considerar cuidadosamente a tragédia do que se vê [em Concerning Violence, no que se refere às mulheres]. Este é um texto didático. Faço um acréscimo sobre as questões de gênero. Concerning Violence nos lembra que, apesar de as lutas de libertação forçarem as mulheres a uma aparente igualdade, iniciada no século XIX ou até mais cedo, quando a poeira assenta, a chamada nação pós-colonial regressa às invisíveis e longevas estruturas de gênero (Spivak, 2014, p. 62)[7].

Ambos os filmes se conectam nesta fala, na medida em que Frantz Fanon: Black Skin, White Mask reconstitui a participação feminina na luta armada, em cenas com mulheres portando ou não véus para cobrirem o rosto e transportarem armas fora do alcance visual dos franceses. Intercaladas com entrevistas de ex-combatentes, as cenas revelam uma violência flagrante da mulher nas lutas anticoloniais, tanto pelos seus próprios companheiros de luta, como pelo exército francês.

Figura 10: Maryse Condé. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O filme também nos instiga ao retorno à nota de rodapé 38 (da edição que citamos em língua portuguesa do Brasil) ou 44 (edição em língua inglesa) de Peau Noire, Masques Blancs, que se dirige ao corpo dissidente. Ao articular o olhar de Fanon (Colin Salmon) e o beijo trocado por dois homens negros (Figura 12), sobrepostos por fotografias de uma travesti (Figura 13), Julien põe em xeque, ao som da leitura da nota de rodapé, outro ponto bastante controverso das reflexões de Fanon: os afetos homossexuais e a masculinidade hegemônica. Esta nota, já bastante comentada por Diana Fuss (1994), coloca em evidência a declaração de Fanon de que “[…] não nos foi dado constatar a presença manifesta da pederastia na Martinica. Isto é devido, sem dúvida, à ausência do complexo de Édipo nas Antilhas” (Fanon, 2008, p. 154). Para o martinicano, “[…] a negrófoba é uma suposta parceira sexual – como o negrófobo é um homossexual recalcado” (Fanon, 2008, p. 138).

Figura 11: Simone de Beauvoir, La Force des chose. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O confronto entre as declarações de Fanon e a fotografia da travesti antilhana desperta-nos para duas conclusões: por um lado, o corpo dissidente não possui espaço na teoria fanoniana, pois a ele é negada sua própria existência nas Antilhas; por outro, a homossexualidade é racializada, uma vez que, para Fanon, ela é “culturalmente branca” [culturally white] (Fuss, 1994, p. 30). A racialização da homossexualidade em Fanon ([1952] 2008), isto é, a homossexualidade enquanto um “comportamento branco”, surtiu enorme efeito no Black Arts Movement estadunidense dos anos 1970, o que também possivelmente contribuiu para a intersecção tardia dos estudos queer com os Black Studies naquele país.

Ao invés de serem tomadas apenas como lacunas no livro de Fanon, tais fragilidades têm se convertido em pontos cruciais nos debates de gênero e raça promovidos por artistas e intelectuais negros dos eixos anglo-americano e africano, como demonstra Furtado (2018), e como apontamos em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask. Isso demonstra a capacidade que a obra de Fanon tem de ser tratada como um diálogo em contínua construção. Embora seja um desafio para a crítica atual, Isaac Julien enxerga nisso uma vantagem, pois pode reinterpretar e reconstruir Fanon em sua complexidade, de maneira ininterrupta.

Figura 12: Afetos masculinos. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Frantz Fanon: Black Skin, White Mask desloca a potência crítica fanoniana de uma perspectiva identitária fundada no signo da masculinidade hegemônica e da heteronormatividade. Desta forma, tal curadoria imagética supera com seus esquemas visuais o debate centrado na violência epistêmica contra as mulheres, de um modo geral, e contra pessoas LGBTQIAPN+, ao recuperar um “Fanon queer”, que se constitui como um intervalo, estranhando seu tempo e sem se adequar a ele, questionando-o, percebendo seus impasses. Com base na apropriação queer e na reconstrução visual, Julien demonstra que seu encontro com Fanon marca, de modo mais latente, um possível reencaixe das ideias do martinicano na espacialidade anglo-queer.

Figura 13: Travestilidade.
Figura 13: Travestilidade. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Graças à Mostra Perspectivas Vila Sul, o filme chegou ao Brasil de 2020 em boa hora e, por um momento, foi capaz de nos tirar do transe coletivo que assolou o país, frente ao quadro pandêmico-político e aos dilemas impostos pelos conflitos bélico-raciais e neocoloniais ao redor do mundo, pelas mortes diárias de caráter homofóbico e pelo feminicídio que ainda ameaça milhares de mulheres ao redor do globo. A película nos mostra que ainda há espaço para o Homem SIM de Fanon (2008, p. 184), que, envolto nessa zona de não-ser contemporânea, encontrará meios de ampliar sua compreensão de mundo, de amor ao outro e de libertar-se do olhar etnocêntrico, sem desconsiderar as dimensões de gênero e sexualidade.

* Jânderson Albino Coswosk é professor e pesquisador de produtividade do Instituto Federal do Espírito Santo – Ifes, campus de Alegre. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral no Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo.
Referências bibliográficas
BATCHELOR, Kathryn. Introduction: Histoire Croisée, Microhistory and Translation History. In: BATCHELOR, Kathryn; HARDING, Sue-Ann (org.). Translating Frantz Fanon Across Continents and Languages. Nova York; Londres: Routledge, 2017, p. 1-16.

COSWOSK, Jânderson Albino. Queering Fanon: representação fílmica e impactos dos escritos fanonianos na espacialidade anglo-queer. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade; HARRIS, Leila Assumpção (org.). Escritos Discentes em Literaturas de Língua Inglesa, vol. XIII. Rio de Janeiro: Letra Capital/PPGL/UERJ, 2020, p. 99-108.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EdUfba, 2008.

FANON FRANTZ: Black Skin, White Mask. Direção de Isaac Julien, produção de Mark Nash. Londres: The BBC and the Arts Council of England, 1996. 1 DVD (70 min.).

FURTADO, Will. How Frantz Fanon Has Influenced Generations of Queer Artists, C&, 2018. Disponível em: https://www.contemporaryand.com/magazines/how-frantz-fanon-has-influenced-generations-of-queer-artists/. Acesso em: 20 dez. 2023.

FUSCO, Coco. Visualizing Theory: An Interview with Isaac Julien, Nka: Journal of Contemporary African Art, n. 6-7, 1997, p. 54-57.

FUSS, Diana. Interior Colonies: Frantz Fanon and the Politics of Identification, Diacritics, v. 24, n. 2/3, 1994, p. 20-42.

JULIEN, Isaac; NASH, Mark. Fanon as Film, Nka: Journal of Contemporary African Art, n. 11/12, 2000, p. 12-17.

MAZRUI, Alamin. Fanon in the East African Experience: Between English and Swahili Translations. In: BATCHELOR, Kathryn; HARDING, Sue-Ann (org.). Translating Frantz Fanon Across Continents and Languages. Nova York; Londres: Routledge, 2017, p. 76-97.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Preface to Concerning Violence: Nine Scenes From the Anti-Imperialistic Self-Defense, Film Quarterly, v. 68, n. 1, 2014, p. 61-62.
Notas
[1] O presente artigo é uma versão revisada e ampliada de Coswosk (2020).

[2] “[…] colonialism and its impact as being largely made up of visual experiences. This colonial gaze, according to [Fanon], appropriates and depersonalizes its subjects while ignoring their way of seeing. In turn, queer theorists [and artists], especially in film, have appropriated these terms and applied them to gender.” Tradução nossa de todas as citações em inglês.

[3] “[…] the act of visualisation can be seen as a form of theoretical production, one which makes the body in particular a privileged site of imagistic power and mediation. That is to say, it is not a question of simply finding a way to represent Fanon in film but to use film to engage with Fanon’s ideas and perhaps in some way transform them”.

[4] “a poetic documentary with a fictional approach”.

[5] “[…] a kind of historical Hegelian re-reading of the Oedipus”; “[…] Fanon himself is also deeply concerned with the struggle with the father. And this is what is at the center of his text: the struggle between the black son and the colonizing father. It is that black son/white father relationship which gives him deeply inscribed masculinity to the way in which he sees the world”.

[6] “Love sometimes puts [us] in a position of contradiction with [our] ideological or philosophical opinions”.

[7] “It is within the context of the aftermath of colonialism—that Fanon could not know—that the tragedy of what we watch [in Concerning Violence, when it comes to women,] must be carefully considered. This is a teaching text. I add a word on gender. This film reminds us that, although liberation struggles force women into an apparent equality—starting with the 19th century or even earlier—when the dust settles, the so-called post-colonial nation goes back to the invisible longterm structures of gendering”.
Dossiê
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CRÍTICA E CURADORIA NA ESCRITA DE SEGUNDA MÃO E NA EXPERIÊNCIA DO PAGINÁRIO CPLP

Em 2023, como parte das comemorações do Dia Mundial da Língua Portuguesa[1], fui convidado a elaborar um mural da série Paginário em Lisboa. O projeto havia sido criado por mim em 2013, no seio de um momento de crise política materializado de maneira dramática nas manifestações nacionais desencadeadas em junho daquele ano, e desde então tivera em torno de 70 realizações de norte a sul do Brasil, a maior parte instalada no espaço público, além de encarnações em Porto, Coimbra, Oeiras e Madri. Em comum entre esses vários Paginários, o conceito básico de montagem de murais compostos de fotocópias de páginas de diferentes livros a partir de uma curadoria coletiva, às vezes seguindo um tema específico, outras vezes trabalhando com o gosto pessoal dos participantes; além da noção de percurso de leitura como criação, e da proposta de uma obra visual se vista de longe e convidativa à leitura se vista de perto.

Pós-moderno em sua valorização das apropriações, descontinuidades, deslocamentos e agrupamentos de diferenças, o Paginário guarda também resquícios de uma visada utópica, por ser uma forma de arte na qual uma noção de educação das sensibilidades se relaciona intimamente com uma proposta de mudança na cidade ou na nação. No horizonte utópico do projeto, estão a inserção da leitura de literatura como possibilidade aberta no circuito das ruas, o circuito urbano; a exposição da leitura (o que toca um outro durante a leitura, e que ele seleciona e sublinha) como meio de contato com o desconhecido; e por último, a expressão de uma relação desabusada com livros, ou seja, menos preenchida por um respeito receoso e distanciador, e mais próxima, física, manual, concreta, cotidiana e simbólica – dado que o espaço da rua não anuncia distinções ou hierarquias em suas paredes e muros.

A principal referência para o projeto encontra-se em espaço público, a céu aberto: a Escadaria Selarón, situada entre o bairro da Lapa e o de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Assim como o Paginário, a Escadaria pode ser pensada como uma instalação, que de acordo com o pensamento de Boris Groys, seria uma obra feita de curadoria, uma obra feita de diversas outras obras. A reunião dessas foi concebida pelo pintor chileno Jorge Selarón, que recebia azulejos enviados por pessoas de todo canto do planeta. Essa relação de parentesco com uma obra composta de azulejos animou o projeto Paginário CPLP no sentido de especularmos uma conversa com toda uma tradição, dado o lugar central que o azulejo ocupa na cultura portuguesa desde o século XIV e a sua anterior utilização por povos árabes no Antigo Egito e na Mesopotâmia, na Antiguidade.

Em conversas com o Departamento Cultural da Missão Brasil junto à Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), setor que havia feito a mim o convite para realizar o Paginário em Lisboa, decidimos, após algumas trocas de fotografias e medições de espaços, que o lugar a hospedar o mural seria o paredão do Largo do Correio-Mór, imediatamente em frente à sede da CPLP, entre os bairros de Alfama e Castelo. Definido o local – que terá sua relevância, geográfica e histórica para o projeto, comentada mais adiante neste artigo –, o processo de elaboração do novo Paginário CPLP se tornou também, para mim, um momento de revisão das bases conceituais do projeto, concebido uma década antes.

Nesse artigo, vou buscar precedentes e referências a partir do modernismo brasileiro (seção 3) e faço uma recapitulação de como o projeto veio articulando arte, literatura e política enquanto trabalhava determinados modelos de curadoria, crítica e criação (seção 4). Na sequência, escrevo mais concentradamente sobre o mural realizado em Lisboa (seção 5), dando foco a como curadoria, crítica e criação se modularam em nosso processo coletivo de seleção de textos, na proposta de trabalhar o pluricentrismo da língua portuguesa – discuto desafios e forças deste tema –, nos motivos para o projeto de formas, imagens e cores do mural, e na maneira como o trabalho dialoga com características do local onde foi instalado. Mas antes desenvolvo uma revisão (seção 2) de alguns conceitos muito utilizados, por mim e outros pesquisadores, em artigos e livros que recentemente trabalharam o tema da escrita e da textualidade produzidas por meio da reciclagem e rearranjo de escritos pré-existentes.

Contexto e revisão de termos: a escrita de segunda mão

Tradicionalmente, a curadoria é o trabalho de pensar, selecionar e colocar obras de arte dentro do espaço da exposição. Essa atividade se difere da atividade do artista no seguinte sentido: ao contrário do curador, o artista pode trabalhar para expor objetos que não são considerados objetos de arte. Ou seja, ao artista é reservado o direito de propor que objetos que não são arte se tornem arte, enquanto o curador seleciona, desses objetos então propostos como arte, quais deles farão parte de um determinado espaço e tempo. Naturalmente, é claro, a curadoria atua assim como quem confere força institucional à afirmação questionadora proposta pelo artista. A rigor, no entanto, dessa maneira, a criação seria considerada primária e a seleção, secundária, tendo cada uma dessas atividades um determinado potencial crítico.

O que estamos vendo acontecer nas últimas décadas é uma crescente flexibilização das fronteiras entre curador e artista, a qual vem se dando por um movimento de mão dupla: pelo lado do curador, a liberdade para disposição espacial das obras, agindo na dimensão relacional delas entre si, ou com o tempo, ou com o espaço, e a força de proposição de temas e narrativas, bem como a de orientar a produção de artistas (especialmente aqueles mais voltados para galerias e museus), alargaram o espectro de ação do curador até um ponto em que nos perguntamos sobre o estatuto do seu gesto, e se não seria ele mesmo um produtor de efeitos potencialmente artísticos. Pelo lado do artista, na verdade, desde Marcel Duchamp, desde o início do século XX, o ato de selecionar pôde se tornar artístico – obviamente, a depender do que é selecionado e do contexto em que é apresentado. Esta proposta foi adquirindo mais espaço na segunda metade do século XX, devido à institucionalização (por parte de museus, universidades, e novas gerações de artistas) das vanguardas como verdadeiras escolas de arte. Este borrar de fronteiras se intensificou ainda mais com a ascensão da arte da instalação. Para Boris Groys,

Pelo menos desde os anos 1960, os artistas têm criado instalações para demonstrar suas práticas pessoais de seleção. As instalações, no entanto, não são nada mais que exposições curadas pelos artistas, nas quais objetos feitos por outros podem ser – e são – representados tão bem quanto aqueles feitos pelo artista. Assim, os curadores também estão livres da obrigação de exibir somente os projetos pré-selecionados pelos artistas. Os curadores, hoje, sentem-se livres para combinar objetos de arte selecionados e assinados por artistas com objetos retirados diretamente da “vida”. Resumindo, uma vez que a identidade entre criação e seleção estiver estabelecida, os papéis do artista e do curador também se tornam idênticos. Uma distinção entre a exposição (curada) e a instalação (artística) ainda é comumente feita, mas é essencialmente obsoleta. (Groys, 2015, p.120)

Assim, observamos uma identificação entre criação e seleção. Quando falamos em arte verbal, poesia, literatura, e o assunto é a relação entre o uso de textos pré-existentes e a proposição de texto novo, nas últimas décadas ganhou espaço a expressão “escrita não-criativa”. Surgida entre fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 nos Estados Unidos como uncreative writing para apontar o fenômeno do aparecimento de uma boa quantidade de obras textuais produzidas por meio de deslocamento (seleção e edição) de textos pré-existentes, ou áudios pré-existentes que seriam transcritos, a maioria dessas obras apresenta propostas de leitura desafiadoras. É um fenômeno ligado intrinsecamente a um tempo histórico de aprofundamento do capitalismo tardio, e é por isso que ele tem seu nome próprio. Fora as vantagens de disseminação advindas da língua inglesa e de um mercado editorial mais robusto, se os vetores que engendram o fenômeno com suas marcas contemporâneas são produzidos anteriormente, em termos materiais, nos EUA (computador, digital, consumo, oferta), é natural que pesquisadores daquele país tenham realizados diagnósticos e debates que logo chegassem a acordos entre conceitos ou nomenclaturas.[2] Este tempo produzido é um tempo marcado, no âmbito da circulação de bens, pela digitalização e a quantidade assombrosa de ofertas de tudo que for possível, as quais nos alcançam sem pedir licença – como se, sufocados, já fosse difícil encontrarmos o que se convencionou chamar de “voz própria”. No mercado editorial, as oficinas de escrita criativa floresceram e geraram certos padrões de escrita, que ocupam as prateleiras e lojas online – produzindo também uma atmosfera de avanço e profissionalização que, pelo retrovisor, anunciava certo esgotamento. No campo artístico, ganhou mais proeminência um contexto de troca intensa das outras artes com a literatura, como as instalações, vídeos de montagem e a música eletrônica, tudo isso dentro de um ambiente cultural em que as máquinas eletrônicas pessoais e o ambiente digital produziram uma situação de fácil manipulação dos objetos verbais, além de uma valorização da “interação” – marcada, no conceito de Marjorie Perloff, pela ideia de moving information.[3]

Como nos Estados Unidos a própria categoria de escrita criativa está enraizada nas instituições, tanto de cursos livres quanto universitárias, pareceu aos poetas e pesquisadores Craig Dworkin e Kenneth Goldsmith que seria necessário cunhar um termo que se mostrasse radicalmente oposto a esse estado de coisas. A radicalidade de boa parte das obras praticadas e estudadas pelos dois, majoritariamente estadunidenses, advém de publicarem intervenções ou deslocamentos em/de apenas uma fonte, por vezes gratuitos ou obtusos, encarando processos de proposição de ready-mades textuais mais do que a artesania de misturas, colagens e montagens que na América do Sul marcaram a obra de Valêncio Xavier e Juan Luís Martinez a partir dos anos 1970, e depois, especificamente no Brasil, Ana Cristina Cesar, Waly Salomão, Paulo Leminski, Sebastião Nunes, e contemporaneamente Leonardo Gandolfi, Alberto Pucheu, Angélica Freitas, Nuno Ramos, Veronica Stigger, e, para usar três casos em outra variante de língua portuguesa, Rui Pires Cabral, Adília Lopes e Pedro Eiras, em Portugal.

Em 2014, o pesquisador e poeta Alberto Pucheu chegou a usar a nomenclatura “escrita não-criativa” para se endereçar à poesia de caráter citacional feita por Leonardo Gandolfi. Mas este é apenas um dos modos que o pesquisador e poeta usou na ocasião, e cada uma das expressões ressalta um aspecto da prática gandolfiana. Pucheu também a descreve como “pós-poesia”, devido à utilização de matérias de fora da literatura, trazendo para a poesia o que não seria específico dela, como trechos de letras de Roberto Carlos e diálogos de filmes de espião. O termo proposto por Pucheu ainda é útil para descrever uma espécie de humor da poesia gandolfiana, de poucos acentos, sem grandes arroubos, uma poesia em tom menor que não teria no espanto – para Pucheu, o afeto-fonte da tradição poética ocidental – o seu disparador ou motivo, o que leva o poeta e pesquisador a caracterizar tal produção tanto como pós-poesia como “poesia do pós-espanto”, marca de uma época em que as sensibilidades foram tão estressadas que ela virou o seu avesso, a insensibilidade, a falta de espanto. A respeito da poesia de Gandolfi, Pucheu diz que o procedimento da “descriação”, ou do gesto “não original”, faz com que o poético e o não poético convivam:

retirando, conjuntamente, ao máximo, a força de criação autoral, que, paradoxalmente, retorna de um novo jeito, já que em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita, ainda que desejosamente fragilizada. (Pucheu, 2014, p. 43- 44)

Essa seria uma das chaves para pensarmos tais autorias que são tecidas por meio de autorias anteriores – ou de materiais sem autoria, ao qual darão caráter artístico, como que por um segundo uso. De maneira que o descriativo é retirar-se do ato tradicional de criação, fazendo “a menos”, e não fazendo “a mais” – mas obviamente resulta em obras criativas. Assim com a escrita não-criativa, como já vimos, nomenclatura oriunda de ambiente institucional, também, quando bem feita, resulta em obras criativas. De maneira que, talvez, para privilegiar menos a oposição ou a diferença, possamos dar destaque à relação, à posição, à diferença dentro da reprodução, e à fisicalidade do gesto: uma escrita de segunda mão. Recordemos que aqui não falamos de um jogo de signos em constante atuação na sociedade, ou de artigos que são escritos como respostas a ideias anteriores, mas sim da própria materialidade da escrita, ou seja, falamos de intervenções e jogos de duplicações, reproduções e deslocamentos textuais materialmente detectáveis. Não é um leitor ideal ou abstrato que de maneira metafórica reúne as leituras em si, mas a encarnação dessa figura como quem se retira da origem de uma escrita para lançar-se a um gesto que produz, para fora da consciência do leitor-autor, um rastro do outro em um objeto visível.

Heranças da potência crítica da paródia modernista antropofágica

Dos anos 2000 para cá vimos propostas de escritas de segunda mão ganharem voz em diversos lugares. No México, com as necroescrituras de Cristina Rivera-Garza, na Argentina, com a obra El Aleph engordado, de Pablo Katchadjian, a qual podemos compreender a partir do artigo “A nova escritura”, de Cesar Aira, no Uruguai, com o neoconceitualismo de Carlos Almonte e Alan Meller, na Espanha com parte da obra de Agustin Fernandez-Mallo, entre outros.

Do ponto de vista brasileiro, e a partir de um recorte temporal do moderno, as recentes escritas de reciclagem de Veronica Stigger, Angélica Freitas, Roy David Frankel, Nuno Ramos, Giselle Beiguelman, Luiz Ruffato, Daniel Arelli, Leonardo Gandolfi, e até Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa, derivam como possibilidade de projeto, da devoração antropofágica proposta pelos modernistas nos anos 1920. Diferente das iniciativas europeias que lhe serviram de impulso, como o dadaísmo e o futurismo, as quais formando uma imagem de futuro praticaram uma crítica de negação, avessa aos critérios então tradicionais da arte, os modernistas brasileiros, ao mesmo tempo em que propunham novas sintaxes, assim como o reconhecimento de um novo ritmo das artes e da vida e uma valorização da oralidade, recorreram ao passado nacional em busca de referências temáticas. Mesmo que inevitavelmente banhados pelo ponto de vista de uma origem burguesa, então em decadência, seus membros promoveram uma escavação renovadora do passado brasileiro e, por consequência, da presença indígena, europeia e africana em nosso território.[4]

O desejo de renovação artística guardava uma vontade não de abandono ou recomeço do zero, mas de reinterpretação ou releitura dos discursos historicamente estabelecidos para colocá-los em seus então supostos devidos lugares. Uma espécie de gesto que, na nomenclatura atual, poderia ser pensado como anticolonial, e que modulou o Brasil para um movimento de tomar posse de si mesmo – uma espécie de segunda mão que seria ela mesma uma tentativa de investigar e plasmar a verdadeira cultura nacional, apagada pela primeira mão do colonizador.

Se há um primeiro autor na literatura brasileira que se propôs a produzir uma fricção entre a literatura então pensada como universal e a literatura periférica (em termos globais), usando textos pré-existentes, reescrevendo ou reelaborando a literatura em seu corpo textual, e assim praticando uma curadoria com finalidade crítica, é Oswald de Andrade. Um dos recursos mais praticados pelo escritor paulista foi a paródia como releitura histórica, o que vemos no poema “As meninas da gare”, publicado no livro Pau-Brasil, de 1925:

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
(Andrade, 1925, p. 26)

Oswald se vale de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro documento textual de que se tem notícia no Brasil. O poema de Oswald justapõe, em nossa imaginação, o texto de Caminha que versa sobre a chegada dos navegadores portugueses ao Brasil à visão de alguém que se aproxima de prostitutas, que costumavam trabalhar na gare (em francês, uma estação de estrada de ferro) na São Paulo do início do século XX. Na carta original, enviada para Dom Manuel I em Portugal no dia 1º de maio de 1500, diz Pero Vaz de Caminha:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (Caminha, sem data, p. 4-5)

Enquanto o escrivão português trata de como os navegadores não sentem vergonha de olhar para as vergonhas das indígenas porque elas mesmas seriam muito inocentes, no texto de Oswald os homens não sentem vergonha de olhar para as vergonhas daquelas mulheres porque elas são prostitutas tentando conquistar clientes. O poema associa – com finalidade crítica – a imagem das indígenas à de prostitutas e a imagem dos navegadores a homens em busca de sexo. Por meio da paródia, Oswald questiona o primeiro olhar que os navegadores portugueses lançaram sobre a população nativa, e os primeiros contatos. Assim, de certa forma ele desnuda o ar civilizador do colonizador e pergunta, por meio do texto do “civilizado”: afinal, quem são os verdadeiros selvagens?

A estratégia resulta na criação de uma dialética. O gesto de Oswald dá à Carta de Pero Vaz de Caminha um novo ente com o qual conversar. A paródia, vista como sobreposição, faz com que o texto original sofra uma fricção: há um ruído entre a visão expressa na carta de Caminha e a sua crítica expressa em “As meninas da gare”. Assim, a função crítica é colocada em funcionamento a partir do gesto da seleção e da reescrita. Tal devoração crítica envolveria, nos termos de Haroldo de Campos, uma “transvaloração”, ao inserir novos valores, critérios e olhares por dentro da tradição, como um invasor que ao mesmo tempo a abraça, mas para lhe dar uma complexidade desagradável, dura de engolir pelos olhos da tradição. Para o poeta e tradutor brasileiro, com a antropofagia oswaldiana, “tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal” (Campos, 1992, p. 234). Por isso, podemos pensar o movimento antropofágico como a primeira iniciativa a elaborar, como programa estético, político e ideológico, no Brasil, uma revisão das relações entre centro e periferia, metrópole e colônia, original e derivado, e uso paródico de texto pré-existente como recurso crítico-dialético.

Se essa condição de território secundário, onde se cultiva uma cultura derivada, sofreu alterações em sua dimensão e projeção pelo mundo ao longo do século XX e do XXI, com o Brasil superando Portugal em matéria de capacidade de influência externa, ao mesmo tempo tal condição se manteve internamente, em razão da força dos fundamentos históricos na nação e sua inquebrantável permanência, mesmo que atacada, perfurada, inquirida, matizada. É esta a condição – alargada para todo um continente, o qual, seja onde se fala a língua portuguesa ou a espanhola, tem na Europa o seu referencial primevo – que levou o escritor e teórico brasileiro Silviano Santiago a caracterizar, em 1971, o que chamou de “o entre-lugar do discurso latino-americano”:

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana. (Santiago, 200, p.26)

A proposta de releitura da cultura brasileira, para Oswald de Andrade, passava pelo reconhecimento de que estávamos aprisionados na Carta de Pero Vaz de Caminha, que para ele se torna assim alvo de agressão – não se trata de celebração ou irmandade, mas de crítica e oposição. É devoração, não é diluição.

A posição, descrita por Santiago, requer do latino-americano a ocupação de um espaço que de origem, é do outro (a língua, a escrita, os símbolos), em um misto de tomar o que há de possibilidade no outro para si, enquanto ao mesmo tempo, produz um cruzamento, propondo a sua diferença ao habitar desordeiramente (para o olhar dos outros) o terreno consagrado (por outros). Isto não é tanto uma ação específica, calculada, que certo escritor pode operar ou não. É mais uma condição da qual se parte.

Identificação entre seleção e criação: curadoria ampliada ou criação reduzida

No processo de cada encarnação do Paginário, a curadoria realizada por mim e pelos colaboradores é tão afetiva ou celebratória quanto desrespeitosa. Não escolhemos uma obra de arte para exibir. Nós seccionamos obras de arte, reconhecendo o valor de sua parte, para experimentá-la em diálogo com outros seccionamentos. Este fragmento criado é de suma importância para quem o escolhe, sendo assim um gesto de reconhecimento e de mutilação – que será ofertado ao passante na rua. Mas aqui cabe ressaltar uma diferença para a intervenção, o seccionamento, a destruição de símbolos evocada nas vanguardas do início do século XX. Enquanto nas vanguardas a destruição ou intervenção era um gesto de abandono do conteúdo ou imagem original, para que fosse produzida a imagem de sua rasura e proposta uma outra imagem sobreposta àquela, aqui o que motiva a intervenção ou a secção do original é o reconhecimento de seu valor. O livro sofre intervenção, simbolicamente (pois na prática é fotocopiado), em nome do valor que pode haver mesmo em uma pequena parte dele, e de seu poder de atrito ou ressonância ao lado de outras pequenas partes que podem ter também seu próprio valor – umas atritando ou ressoando as outras. Existe uma valorização da herança literária. Uma valorização do gesto do leitor como afirmação de um eu. E existe o reconhecimento do espaço público como a afirmação do coletivo social. É a criação de uma triangulação entre o texto do autor, o texto do leitor e o texto da rua. O projeto opera, assim, a partir de uma ideia de arte não autônoma, tanto socialmente quanto materialmente e esteticamente. Portanto, o que ocorre não é um esvaziamento oriundo das práticas de celebração da diferença e do pluralismo, mas sim uma procura da inserção da diferença por um conjunto de efeitos estéticos, mas também, principalmente nos murais a céu aberto, sociais.

Exceção feita o desenho (formas e cores) do trabalho, que não se encontra nos textos originais usados, sendo portanto um “acréscimo de criação” – é quando seccionamos obras de arte para nos servir de uma pequena parte de cada uma, que a ideia de exercer uma curadoria se problematiza, pois aí agimos “demais” sobre a obra para que o ato seja pensado como uma curadoria típica. Não fazemos nem como o curador, que protege as obras inteiras, levando-as para o museu ou galeria que julgar interessante, nem como o artista, que recolhe objetos mundanos ou estranhos, que não são obras de arte, e, em seu ateliê, cria alguma diferença neles ou com eles, a qual se aceita por um curador como arte, arte se tornará. Um fragmento de uma obra de arte é o quê? Não é nem a obra de arte nem um objeto fora da arte. É mais que um objeto fora da arte e é menos que uma obra de arte. Curadoria ampliada, criação reduzida.

Figura 1: Foto de Líbia Florentino do mural Paginário em Lisboa.

Instalação de um mural “lusófono” da série Paginário em Lisboa

Nessa penúltima parte do artigo pensarei mais diretamente a relação entre curadoria, crítica e criação a partir da experiência do Paginário CPLP, principalmente por meio de quatro elementos. 1. O tema e a pesquisa para seleção de textos. 2. Efeitos da forma mural. 3. Função crítica nas cores e imagens. 4. O lugar como parte da obra e o potencial crítico de seu uso. É necessário dizer que, do ponto de vista em que me encontro, como quem esteve imerso em sua criação e desenvolvimento, embora depois de 10 anos consiga alguma distância de observação, o projeto se trata justamente de diferentes meios trocando saberes entre si – a poesia, a ficção, a escrita, a arte visual, a arte urbana, o artesanato, a performance, a colagem, a escadaria de azulejos, o remix, a história, a arquitetura e a geografia, o urbanismo… – mas, para pensar o projeto, facilitará quebrá-lo em diferentes camadas ou características (e haveria outras a pensar ainda, como o processo de montagem e aquilo que pudemos observar da recepção do público).

Figura 2: foto ampliada das fotocópias de páginas de livros no mural do Paginário.

O tema e a pesquisa para seleção de textos

Decidi junto ao Departamento Cultural da Missão Brasil que o tema do mural seria a variação linguística da língua portuguesa em cada um dos países que falam oficialmente o idioma. A literatura – principalmente ficção, poesia e ensaios – seria, obviamente, o canal a expressar esta variação. A afirmação dessa variação, sendo realizada em Portugal, de imediato ganha contornos críticos, pois coloca a variação de origem não acima das outras, mas lado a lado dela, expondo tanto o que ela é quanto (em maior quantidade, somando todas as outras) o que ela não é. Atualmente, há um debate sobre a possibilidade de chamarmos a variação linguística do português no Brasil de “pretuguês”, para marcar as diferenças locais para a variação de Portugal, principalmente aquelas advindas das línguas africanas que chegaram em território brasileiro por meio do sequestro de africanos que foram escravizados, e que hoje estariam nas origens de mais de metade da população brasileira. É uma ideia interessante e que merece maior estudo da minha parte. No entanto, até o momento, parece-me ainda mais interessante, politicamente, não se isolar em uma língua oficialmente apenas sua e de nenhum outro país, e sim disputar a categoria “língua portuguesa”, impondo a variação brasileira como tão valorosa e legítima como qualquer outra. Provavelmente, pela sua diversidade de absorções, ainda mais rica do que a variação praticada na ex-metrópole.

Para que esta variação fosse mais bem expressa, propus que fosse formada uma equipe de colaboradores. Assim, a curadoria seria dividida entre quem conhece melhor cada variação local. O mural ao todo recebeu 900 páginas feitas de entre 400 e 450 fragmentos de textos duplicados. Essas foram selecionadas por 31 pessoas, contando comigo. A equipe formou-se com pessoas de oito países: professores, escritores, pesquisadores, poetas, diplomatas, artistas, jornalistas, slammers e membros de algumas unidades do Instituto Guimarães Rosa sediadas em países membros da CPLP.[5]

A premissa para a decisão temática é a de que a língua portuguesa é uma língua pluricêntrica – a noção de que a língua portuguesa é praticada em diversos centros, cada um com suas características e nenhum com prevalência sobre o outro. Esta premissa, após o início das pesquisas, foi desafiada pela realidade. Se temos o conceito de um mural formado por fotocópias de páginas de livros, já tomamos uma decisão que é tanto estética quanto política – trabalhar a partir da palavra escrita, e perturbando a sua forma tradicional de veiculação, o livro. Se no início do projeto Paginário, em 2013, este critério era visto em função de trazer à rua um tipo de texto que lá não estava, nem pela oralidade das batalhas de slam, nem pelos traços do grafite ou do pixo, nem pelo texto escrito em si, disputando o espaço com publicidade e informação de direção ou lugar, neste Paginário CPLP ficou mais aparente não só o que acrescentamos à rua, mas também aquilo que ficaria de fora do mural. Ao operarmos a partir do lugar latino-americano entre a submissão ao código e a transgressão ao mesmo, acabamos por conhecer outros lugares, de língua portuguesa, que vivem situação semelhante como povo colonizado, mas nos quais as relações com o código da palavra escrita, e em português, encontram-se em outras situações. O mercado editorial é incomparavelmente mais pujante no Brasil e em Portugal, em relação a como funciona em Angola, Cabo Verde, Moçambique, e onde ainda é mais incipiente, Timor Leste, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe. Se o trabalho tivesse como meio oralidades gravadas, nada impediria uma igualdade de participação na obra final, mas como nosso recorte é a literatura escrita, é inevitável que as diferenças se façam materialmente presentes na obra. Tal diferença de presença política e cultural, a favor de Brasil e Portugal, nas ações de promoção da língua portuguesa, leva alguns linguistas a questionarem a ideia desta língua como pluricêntrica, afirmando que, na realidade, seria uma língua bicêntrica, com a população brasileira a praticando sob determinadas normas e todas as outras populações a praticando sob normas cuja ingerência é de Portugal – o que, ao mesmo tempo, como reação a uma “ameaça” mais clara e impositiva e oficialmente mais duradoura, produziu uma sólida resistência à língua portuguesa e um cultivo das línguas crioulas nos países africanos que não encontra paralelo no Brasil.

Aliás, a partir do contato direto por telefone ou mensagem com os 31 colaboradores, tornou-se mais notável a necessidade de mais iniciativas de intercâmbio cultural direto entre Brasil e os países africanos ou asiáticos de língua portuguesa, sem passar por Portugal. É claro que a situação está melhorando, como podemos perceber pelos departamentos de literaturas africanas ou lusófonas. Mas, em geral, nossa ignorância em relação a tais países é imensa e causa até embaraço ver a defesa de línguas crioulas em países como Cabo Verde, por exemplo, ante a falta de circulação das línguas autóctones no Brasil. Conversando com o pesquisador, e colaborador neste Paginário, Dênis Rubra, brasileiro que realiza doutorado na Universidade de Lisboa, onde é orientado por Ana Paula Tavares, professora e escritora angolana, soube que de todos os autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, apenas um não foi publicado (ou seja, mercadologicamente testado) antes em Portugal. E todos os outros, publicados em Portugal depois no Brasil, foram em Portugal publicados por um concentrado de apenas três ou quatro editoras). De maneira que, apesar das melhoras, ainda mantemos a ex-metrópole como um farol para orientar nossas trocas culturais.

Se limitamos o escopo do trabalho para literatura publicada em livros, inevitavelmente privilegiamos a participação das variantes brasileiras e portuguesas no mural. Não houve como contornar essa questão. Criamos gradações. Do mural que foi finalizado com aproximadamente 900 páginas de texto (fotocopiadas em folhas A4) e 25 metros de comprimento por quase 3 metros de altura, ficaram em torno de 20% destas medidas para a literatura do Brasil, 20% para de Portugal, 12,5% para Angola, 12,5% para Cabo Verde, 10% para Moçambique, 10% para São Tomé e Príncipe, 10% para Guiné Bissau e 5% para Timor Leste. Deparamo-nos com o fato de que, embora presente na CPLP, Guiné Equatorial tem o espanhol como língua majoritária, e não encontramos literatura nativa deste país publicada em língua portuguesa, de maneira que sua presença no mural ocorreu – como uma gambiarra – com o texto do seu hino nacional em uma versão traduzida por nós mesmos para português. Por isso, cabe dizer que seria necessário pesquisa mais longa do que a feita para este artigo para dizermos se a ideia de bicentrismo é a mais acertada. O que podemos dizer, no momento, é que o fato desta desigualdade se refletir em nosso trabalho devido à escolha por uma determinada materialidade não indica, em absoluto, que a ideia de pluricentrismo estaria incorreta.

Figura 3: foto ampliada das fotocópias de páginas de livros no mural do Paginário.
Figura 4: Língua Lengua, poesia retirada do livro Pesado demais para a ventania, de Ricardo Aleixo.

Efeitos da forma mural

É notável que, quando Flora Süssekind formula, em 2013, seu pensamento sobre objetos verbais não-identificados, que seriam distinguidos por uma literatura-coral, a pesquisadora mencione não somente textos, mas também instalações e performances textuais. Estas se apresentariam como um coro, um aglomerado de vozes que se avolumam, se pronunciam, somem, retornam, como um registro de emissões de diferentes origens.

Coralidades nas quais se observa, igualmente, um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário, fazendo dessas encruzilhadas meio desfocadas de falas e ruídos uma forma de interrogação simultânea tanto da hora histórica, quanto do campo mesmo da literatura. E que não à toa conectam este campo a outras áreas da produção cultural. (Süssekind, 2013, p. 2)

O risco de todo projeto que pretender trabalhar a noção de agrupamento e simultaneísmo, ainda mais quando o trabalho envolve texto – por ser um meio que exige mais tempo do que uma imagem para ser decodificado –, é o bloqueio da profundidade em favor de uma sequencialidade formada por descontinuidades, ou seja, a dispersão. Aqui, lembro da crítica de Antonio Candido a Marco Zero, obra em dois volumes de Oswald de Andrade, apresentada pelo autor como romance-mural. O crítico considerou o tema do livro o melhor possível, qual seja, resumidamente, diversos membros de diferentes classes sociais, às vésperas da revolta de 1932, comportando-se de maneira cada vez mais extremada e, portanto, de maneira a impedir qualquer compatibilidade ou convivência harmonizada entre si. Porém, quanto à forma, Candido escreveu:

Quantas vezes não paramos no meio da leitura d’A revolução melancólica para tomar fôlego, cansados de esperar uma solução literária para as perspectivas que o romancista vai abrindo a pequenos golpes. A impressão é de rodada em falso, movimento que não progride. Na poeira das pinceladinhas, Oswald de Andrade vai largando tintas de muitas cores, e não parece que elas consigam dispor-se conforme o afresco que ele intentou. Mesmo porque (palpite de leigo) não creio que o pontilhismo seja a técnica mais indicada para os murais. (Candido, 2017, p.24).

Esta é uma crítica que podemos usar para pensar o formato mural em diálogo com texto. No caso do mural, estas descontinuidades e novos começos são assumidos – e caberá ao visitante leitor estabelecer continuidades ou não. Saímos de uma organização pela sequencialidade para uma organização pela constelação. A dispersão, no entanto, pode ser combatida, ou suavizada, pelos temas dos murais, como curadores determinam temas de exposições. Assim, as ligações entre os fragmentos são facilitadas e se tornam mais consequentes. Isto certamente se deu no Paginário CPLP.

A colocação lado a lado de textos nos mais diferentes portugueses historiciza a língua portuguesa. Distribui-a em seus variados sotaques. Amplia a visão do que é a língua portuguesa. Isto, ao ser realizado no coração da capital do centro irradiador da língua portuguesa, parece-me ter uma força crítica. Espacializa a língua portuguesa, como uma dobra da sua dimensão territorial, sendo caracterizada, diferente do espanhol ou do inglês, por exemplo, por uma quantidade considerável de países sem que nenhum deles guarde fronteira terrena com o outro. Nessa maneira de se apropriar, não é um texto que é justaposto a outro simbolicamente, como fazia Oswald. O texto é colocado lado a lado com outro, e um texto não foi feito diretamente como resposta ao outro. A dialética, neste caso, não se dá entre o original e o derivado (e por isto não se trata de paródia crítica ao estilo modernista), mas entre diversos textos, nenhum mais original do que o outro, implicando assim, visual e metaforicamente, em igualdade de condições. Materialmente, todos os textos são fotocópias, de modo que o texto da ex-metrópole e os textos das ex-colônias não se diferenciam de imediato. Não há nada em suas aparências que os tornem distintos dos outros. Só com a leitura será indicada a procedência – até porque inscrevemos nome de autor, título de livro e país de origem em cada uma das folhas (operando com a multiplicidade característica do ímpeto democrático e a fluidez característica do digital, mas sem a perda de referência geográfica e histórica). A fotocópia é uma tecnologia vista como suja, precária, barata, sem duração – é a gambiarra puxando pra baixo, ao nível do chão, o que preferia ficar acomodado em uma prateleira alta. É uma espécie de grande conversa ao mesmo tempo que é uma grande conversa muda – a troca de palavras entre os elementos só acontece a partir da ativação do visitante que, ao percorrer a leitura espacialmente, também as conjuga uma à outra no tempo.

Figura 5: poema Os livros, retirado do livro Como se desenha uma casa, de Manuel António Pina Portugal.
Figura 6: poema Em que língua escrever, retirado do livro Entre o ser e o amar, de Odete da Costa Semedo.
Figura 7: fragmento retirado do livro A estética do oprimido, de Augusto Boal.
Figura 8: fragmento retirado do livro Owé/Provérbios, de Mãe Stella de Oxóssi.
Figura 9: fragmento retirado do livro Poesia para encher a laje, de Renan Inquérito.
Figura 10: poema Expresso-me, retirado do livro Menino da Tabanca, de Seco Silá.

Função crítica e simbolismo nas cores e imagens

Em relação às cores do Paginário CPLP, elas decorrem de um cálculo em torno de quais são as cores mais frequentes nas bandeiras dos países membros da CPLP, e suas vivacidades funcionam como uma espécie de positividade a atrair para a negatividade tanto das imagens que formam quanto da releitura histórica. As cores são vivas, alegres, e formam uma embarcação. Até que, ao final, há uma cruz pegando fogo. Com esta imagem, pretendi, criticamente, sugerir o legado das navegações: a colonização mental e corporal pelo cristianismo. Tal é a herança deixada para trás, ao fim do barco, que já se dirige a outro ponto, para, possivelmente, fazer o mesmo com outro povo. Em uma segunda camada, pretendi deixar ambivalente a imagem da cruz em fogo. Ela é tanto a “batata quente” que os portugueses deixam nas mãos das ex-colônias, que com ela precisam se virar, uma espécie de cavalo de Tróia sem a necessidade de guerreiros, e assim é muito mais eficaz, e ao mesmo tempo ela é a cruz atacada, a cruz incendiada pelos povos que a recebem em sua terra. Ou seja, é tanto opressão quanto reação, recusa, negação, contra-ataque. Este complexo de imagens – assim como a convivência entre textos que naturalizam a escrita em português e outros que não o fazem – poderia ser pensado como herdeiro do barroco, ao trazer em um complexo a afirmação e a negação, uma determinada alteridade (as navegações, a embarcação) e a sua condição alterada (a chaga, a violência implicada na imposição de um sistema de crenças e sagrados). Ao comentar a prática de transcriação de Haroldo de Campos, o pesquisador e professor Álvaro Faleiros diz que, para o poeta concreto,

a manipulação irônica está no centro da “razão antropofágica” que perpassa o Barroco e que implica numa “desconstrução do logocentrismo”. Os procedimentos utilizados para esse fim seriam a “malandragem” e a “carnavalização”, compreendidos como “espaço lúdico da polifonia e da linguagem convulsionada”. (Faleiros, 2019, p. 30-31)

No caso do Paginário, não se trata de criar um duplo que resulte em dialética, não se trata de penetrar no discurso do outro para transfigurá-lo, mas sim de seccioná-lo para que ele deixe de ser um ente isolado em si mesmo (não abstratamente, mas materialmente) e passe a conviver com novas proximidades – ou seja, trabalhar com esta carnavalização compreendida como espaço lúdico de polifonia. Conectar bordas, como dizia Hélio Oiticica. Ou melhor, rasgar bordas onde elas não existem, para que assim passem a existir, para desnaturalizar a unidade romântica de um todo homogêneo – no caso, a língua portuguesa. De maneira que, especialmente neste Paginário CPLP, haja conflitos, como aquele que pretendemos ao colocar em fogo a cruz, instrumento simbólico de poder para exercer influência orientada para a conversão.

Figura 11: foto do mural do Paginário em Lisboa, o qual reproduz a função crítica por meio de suas cores e imagens.
Figura 12: foto do Largo do Correio-Mor, o qual contém o mural do Paginário em Lisboa.

O uso do lugar como parte do potencial crítico da obra

Quando tratamos de arte pública, o trabalho começa pela escolha do lugar. Precisamos considerar textura da parede, sua cor e sua altura; a sua localização, se ele será visto por mais ou menos pessoas, quem são as pessoas que por lá passam e como se relacionam com aquele espaço; e a história do local, que colocará o trabalho em relação com o tempo. De certa forma, a escolha do espaço já nos coloca numa posição crítica em relação a pré-determinações e expectativas. Um trabalho em um museu ou galeria é imediatamente reconhecido como arte. Um trabalho na rua – e ainda mais feito de material perecível – é algo indistinto demais para proporcionar uma categorização tão imediata. Isto, em si, parte de uma crítica em relação à facilidade com que algo pode ser alvo de um olhar que o considere artístico, bastando para isso o encontramos dentro de uma galeria ou museu. A intenção de fazer um trabalho de arte público é também uma crítica à noção moderna da total autonomia da arte. A histórica do local não foi criada pelo Paginário. O critério de escolha para o local é que, sim, propôs-se como algo que favoreça o desdobramento de sentidos do trabalho. A curadoria da rua, por assim dizer, pode resultar em gestos iconoclastas – caso o local seja um ambiente de memória, um ambiente celebrado. Foi o caso aqui. Missão Brasil junto à CPLP e eu escolhemos nos inserir dentro de uma teia de relações históricas.

O Largo do Correio-Mór é espaçoso, arejado, arborizado, com bancos para sentar – perfeito para um mural, exceto pela sua parede curva. Mas o mais interessante é que este largo tem este nome porque ele fica de frente para o Palácio do Correio-Mór, na freguesia de Santa Maria Maior. Nas suas estruturas de base, que datam de antes do século XVI, foi instalado o Correio Superior, oficial responsável pelas comunicações (inclusive escritas, como cartas) dentro do reino. Na sequência, em 1520, a função passou a ser chamada de Correio-Geral do Reino (ou Correio-Mór), por meio de proposta de Dom Manuel I, confirmada por Dom João III. Na primeira metade do século XVII foi construído, sobre as estruturas de base da construção anterior, o palácio de fato, o qual ganhou o nome de Palácio do Correio-Mór. Nele funcionou esta função até o ano de 1797, pois, durante o reinado de Dona Maria I, a função foi incorporada pela Coroa. Como compensação pela perda de sua função, Manuel José da Maternidade da Mata Sousa Coutinho, o último homem a exercer o cargo, recebeu o título de Conde de Penafiel e o palácio passou a ser sua propriedade sendo transmitido, na sua morte, em 1859, para a filha Maria da Assunção da Mata de Sousa Coutinho, a 1ª Marquesa de Penafiel – motivo pelo qual atualmente ele é mais conhecido como Palácio de Penafiel. Ao longo dos anos a família arrendou partes do Palácio para novos moradores, como ministros e embaixadores, até que em 1919 o Palácio foi adquirido pelo Estado Português, tendo servido ao longo do século XX, como sede da Direção-Geral dos Caminhos de Ferro e o Conselho Superior de Obras Públicas. Dessa maneira, notamos que o local é marcado historicamente por atividades de correspondência, comunicação, transporte e planejamento urbano. É bem possível que nos arredores do largo tenham passado cartas e outros tipos de comunicações oficiais que orientaram e definiram, por séculos, o destino de oito países além-mar. E do próprio Portugal. São esses países que, simbolicamente, por meio de sua literatura, por meio das escolhas de seus pesquisadores, habitantes ou nativos, fazem o movimento oposto: ao invés de serem lidos e comunicados, leem e comunicam-se. Como se a cidade fosse um texto e uma outra leitura a invadisse. Como se a cidade fosse um texto escrito que pede ajustes de uma segunda mão.

Figura 13: foto de Joana Ruth do mural do Paginário em Lisboa.
Figura 14: foto de Joana Ruth de participantes do projeto confeccionando a arte do mural Paginário.

Conclusão

Em. Los muertos indóciles: Necroescrituras y desapropiación, a pesquisadora e escritora mexicana Cristina Rivera-Garza, após trabalhar o tema da apropriação de textos em obras literárias contemporâneas, propõe que olhemos o gesto também pela via da desapropriação: “O que aconteceria se, ao invés do nome de um poeta, ou de um autor, aparecessem nas capas destes livros dialógicos, destes livros escritos, de fato, na mais estrita das coautorias, os nomes de todos os envolvidos? Que tal se não aparecesse nenhum?”[6] (Rivera Garza, 2013, p. 91). Aqui, ela sugere que o deslocamento de texto também o desloque para fora de um sistema de nomenclatura que serve ao mercado, à propriedade, ou seja, um sistema que torna as coisas próprias de cada um. Rivera Garza imagina como poderiam ser se as coisas fossem de todos ou de ninguém. Deixo isto para a imaginação do leitor enquanto me aproprio do termo proposto por Rivera Garza para sugerir uma noção semelhante de desapropriação: aquela que acontece quando, ao nos inserirmos em determinado discurso, invadindo um espaço, retrabalhando, editando, recontextualizando sua materialidade, estamos desapropriando esse objeto (na falta de palavra melhor) de seu lugar único, instaurando uma conversa aonde antes havia um monólogo – e assim ele deixa de ser o único em posição apropriada para versar sobre determinado assunto.

Atuar no Largo do Correio-Mór, região central de Lisboa, é conferir ainda mais historicidade tanto ao local quanto ao projeto. Afirma-se, assim, uma outra forma de curadoria, dado que a curadoria não é somente aquela que coloca as obras dentro do museu ou galeria, mas também dentro da história, não permitindo que cada ação soe pairando isolada, como uma criação isolada de contexto.

Figura 15: foto de visitantes no Largo do Correio-Mór, onde se encontram as obras expostas a céu aberto.
* Leonardo Villa-Forte é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e doutor em Letras pela PUC-Rio.
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Notas
[1] A partir de uma resolução do Conselho de Ministros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a Unesco oficializou o 5 de maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Segundo a Ata da Conferência, a escolha de um dia para celebração mundial desta que se tornou a língua mais falada do hemisfério sul, justifica-se, entre outros motivos, devido à “contribuição da língua portuguesa na preservação e difusão da civilização e da cultura humanas”, assim também como devido às “garantias oferecidas pelos Estados que têm o português como língua oficial, em relação à salvaguarda, à conservação e à celebração desse idioma, assim como seu compromisso ativo em favor da promoção de um dia mundial da língua portuguesa e da participação nele”. Tradução livre de documento da 207ª sessão da UNESCO, item 43 da agenda de 13 de setembro de 2019. Acessado em 16 de fevereiro de 2024: https://en.unesco.org/sites/default/files/accord_unesco_langue_portuguaise_conference_generale_eng.pdf

[2] No Uruguai, esta situação começou a ser apontada, não apenas teoricamente, mas por meio de publicações de poemas de segunda mão, em 2001. Mas nada disso foi traduzido para o Brasil, as tiragens foram muito baixas já no Uruguai, não chegaram a livrarias brasileiras, não ganharam resenhas ou postagens, e a produção de pensamento não ganhou o volume de comentários e artigos que ganhou nos EUA.

[3] Necessário é lembrarmos que a noção de moving information tem dupla função: apontar tanto a característica de facilitação da manipulação dos conteúdos, na era digital, quanto sugerir que a informação que selecionamos e da qual nos servimos é algo que nos toca, que nos move, que nos mobiliza.

[4] Vale lembrar que a crise financeira que eclode mundialmente em 1929, e a migração em massa, no Brasil, do campo para as cidades durante os anos 1920, fizeram com que as diferenças e contradições sociais ficassem mais aparentes, e os escritores, de certa forma, fossem empurrados a reconhecer realidades antes pouco visadas pelos membros de uma classe social de posses.

[5] São estes, seguidos do país sobre cuja literatura o convidado se debruçou: Dênis Rubra, Joice Zau, Kaio Carmona (Angola). Ana Paula Barbosa, Cida Pedrosa, Felipe Marcondes, Isadora Xavier, João Marcelo Costa Melo, Leonardo Villa-Forte, Lucas Litrento, Luciany Aparecida (Brasil). Edyoung Lennon, Maria do Céu Baptista, Naduska Mário Palmeira, Simone Caputo Gomes (Cabo Verde). Dany Wambire, José dos Remédios, Virgília Ferrão (Moçambique). Janaína Vianna da Conceição, Jéssica Lima, Ivanick Lopandza, Lauro Cardoso (São Tomé e Príncipe). Afonso Cruz, Alice Neto Sousa, Bruno Ministro, Fernando Aguiar, Mafalda Lalanda (Portugal) Eliseu Banori, Ticiana Souza Santos (Guiné-Bissau) Hérica Jorge Pinheiro, Suillan Miguez Gonzalez (Timor Leste).

[6] Tradução livre.
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A crise da crítica, por Flora Süssekind [vídeo]

Nesta fala, recorte de sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty de 2023, a professora, pesquisadora e crítica Flora Süssekind comenta a crise contemporânea da crítica. A intervenção se deu na mesa “Um teatro, um precipício”, que contou ainda com a dramaturga francesa Marion Aubert e a mediação da professora Natalia Brizuela. Para ter acesso a íntegra do evento, acesse: https://youtu.be/nuSrydkI0PQ

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CURADORIAS CONTEXTUAIS DE (DES)OCUPAÇÃO NA TERRA EM EROSÃO

Na proposta de refletir sobre as práticas curatoriais e as metodologias que ensaiamos nos últimos anos com o projeto de arte e pesquisa ambiental “Casaduna: Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona”, decidimos elaborar uma reflexão em torno da noção de (des)ocupação, a partir de alguns exemplos de moradores de Atafona que lidam de maneira inventiva com o processo de perda de suas casas, e de um evento produzido no ano de 2022. Vamos nos referir a experiências de ribeirinhos como Dona Belita e o pescador Fernando, mas também a experiências de moradores oriundos da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes, que construíram casas de veraneio em Atafona. É o caso da Sônia Ferreira, empresária aposentada, filha do falecido Alair Ferreira, influente político da região.

Na antiga casa da moradora Sônia Ferreira, semanas antes da demolição do imóvel construído por seu pai nos anos 1960, onde ela habitava, realizamos o evento (DES)OCUPAÇÃO. Na ocasião, coincidentemente, realizávamos uma residência artística[1] quando Sônia nos disse que planejava pôr abaixo sua moradia pois o mar já havia derrubado o muro e começava a erodir o solo que sustentava sua casa. Anos antes, Sônia havia compartilhado conosco um álbum com fotos feitas por ela em 2008. Foram meses fotografando a queda do prédio do Julinho. Espectadora privilegiada, Sônia viu o prédio ruir pela força da erosão da varanda de seu quarto. Ela tirou fotos diárias e conseguiu flagrar o momento exato da queda, material com o qual realizamos o filme Mar Concreto, finalizado em 2021.

Para construirmos nossa reflexão, vamos retomar alguns momentos anteriores, fundamentais para a elaboração de uma reflexão ética, estética e política em nossas práticas no território, desde a proposta inicial do projeto, iniciado em maio de 2017. Nesta reflexão, vamos abordar temas ligados ao campo da teoria estética, das políticas culturais e patrimônio, operando em campo transdisciplinar e trans-histórico. Nesse sentido, propomos a noção de (des)ocupação como um gesto ao mesmo tempo sociológico (táticas de adaptação ao processo de erosão costeira), artístico (estéticas da existência) e político (porque ele indica uma mudança necessária nas formas de pensar as políticas culturais e uma rearticulação da noção de patrimônio histórico).

O gesto curatorial que criamos através do projeto CasaDuna: Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona inicia-se justamente com a nossa mudança da capital do Rio de Janeiro para o município de São João da Barra, no extremo norte do estado. Esse gesto se efetiva a partir do momento em que alugamos uma casa de veraneio na praia de Atafona, cujo terreno havia sido invadido por uma duna. Um dos muros que protegiam os limites do terreno da propriedade havia sido derrubado por uma enorme duna, fenômeno que era parte do processo de erosão marinha que atinge a praia desde os anos de 1950. Portanto, esse gesto curatorial é também um gesto de habitar um território instável, conviver com um ambiente em franco processo de erosão, enfim, habitar o que passamos a chamar de ruínas vivas, isto é, casas que, apesar de ainda estarem preservadas e em condições razoáveis para habitar, apesar das goteiras persistentes, já estão afetadas pelo processo erosivo. Isso significa assumir uma habitação temporária que necessariamente vai exigir, mais cedo ou mais tarde, a (des)ocupação da moradia. Portanto, não se trata aqui de ruínas de uma cidade ou civilização que desapareceu, mas de uma cidade que está em processo de desaparição e, ao mesmo tempo, a cidade não para de se reconstruir e se adaptar, ocupando e desocupando os espaços. Portanto, este primeiro gesto implica em uma alteração consciente no nosso modo de vida, uma escolha que foi pensada também de um ponto de vista crítico, a partir da compreensão da crise política que se instalava no país a partir do golpe jurídico-parlamentar que destituiu a então presidenta Dilma Rousseff em 2016. Compreendemos naquele momento que viveríamos uma erosão política e social no Brasil, a erosão ecológica já estava em curso no mundo. Atafona nos parecia assim uma metonímia poderosa do momento histórico, uma parte isolada que oferecia a imagem do todo. Nas mansões em ruínas na orla da praia de Atafona víamos o solo das instituições políticas e do modelo civilizatório colonial sendo revirado pelo avesso.

A partir desse gesto de habitar, passamos ao gesto de co-habitar, abrindo nossa casa para artistas interessados em vivenciar o território de Atafona, contemplando nessas vivências outras camadas além da visualidade. Camadas históricas, políticas, geopolíticas, etnográficas, afetivas, estéticas que pudessem abrir novos caminhos de reflexão sobre o contexto local. Esse era um importante objetivo das residências artísticas, nas quais criamos roteiros que incluíam caminhadas pelas ruínas e dunas da orla, visitas a estaleiros de barcos artesanais, conversas com moradores, passeios de barco pelo rio Paraíba do Sul, entre outras atividades. Neste sentido, a ideia de arte contextual foi um dos conceitos orientadores da metodologia do trabalho. Estipulamos parâmetros éticos do trabalho e frentes de ação no território além das residências, que incluíam pesquisa acadêmica, organização de cineclubes e produção audiovisual, a criação de um grupo de teatro, o Grupo Erosão,[2] a realização de uma exposição coletiva inaugural de nosso projeto: Atafona: Museu em Processo (2017).

Outro gesto importante em nossa prática curatorial foi a constituição de um acervo de fotos, vídeos e livros sobre a região. Hoje possuímos um acervo com mais de 300 fotos históricas e cerca de 2 terabytes de fotos e vídeos produzidos por nós desde que nos mudamos para Atafona em maio de 2017. Além disso, constituímos uma hemeroteca digital com reportagens de jornal sobre Atafona recortadas e reunidas por Dona Marilda Soares. Esse trabalho de digitalização foi realizado em parceria com a professora Lilian Sagio Cezar, com a Unidade Experimental de Som e Imagem (UESI) e o Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA), com a professora Simonne Teixeira e o GT Officina do Patrimônio Cultural, ambos do Programa de Políticas Sociais – UENF.

Pesquisamos a viabilidade de práticas curatoriais a partir de metodologias de pesquisa-ação e arte contextual que possam ser idealizadas e produzidas em relação com as demandas, as possibilidades e os interesses locais. Uma vez que esta metodologia se exerce, percebemos que se coloca em xeque a própria ideia de “comum” e outras noções tradicionalmente caras, como a do “artista”, da “originalidade”, em prol da produção de múltiplas vozes em modos de criar sentido e resistência com a destruição.

Apresentaremos brevemente a pequena praia de Atafona, no litoral norte do estado do Rio de Janeiro, margem sul da foz do rio Paraíba do Sul, ponto extremo de uma grande planície formada ao longo de cinco milênios por sedimentos do rio. Outrora habitada pelos bravos guerreiros goitacás, exímios nadadores, caçadores de tubarão, os donos da restinga, dos brejos e manguezais. Povo que foi cruelmente massacrado em guerras desleais promovidas pela invasão colonial europeia. Até o final do século XIX, a praia tinha poucos habitantes. A maior parte da comunidade de pescadores vivia nas ilhas da Convivência e do Pessanha. Com a chegada da estrada de ferro e depois da rodovia, o local passou a ser de interesse de veranistas vindos principalmente da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes. Esses construíram, ao longo do século XX, centenas de casas sobre restingas, brejos e mangues da região. Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento do modelo de ocupação urbana, a maior parte da mata ciliar do rio Paraíba do Sul foi eliminada, indústrias foram construídas em suas margens e, na década de 1950, foi feito um desvio brutal de dois terços de suas águas para o rio Guandu abastecer a região metropolitana do Rio de Janeiro. Em decorrência, a erosão iniciada na década de 1960 já destruiu mais de quinhentas construções na região e segue em curso, ameaçando as casas de pescadores e veranistas.

Atafona não é um caso isolado, outros balneários no Brasil e no mundo também sofrem com o avanço do mar. No entanto, a perspectiva das mudanças climáticas e do colapso ambiental promovido pelo avanço industrial dos últimos dois séculos alerta para o fato de que a erosão costeira poderá se tornar um fenômeno comum no mundo inteiro, obrigando centenas de milhares de pessoas ao abandono de suas casas. Portanto, nos parece que essa reflexão sobre a ação de (des)ocupação é urgente e de interesse global.

Neste texto, não debateremos as causas da erosão local, nem possíveis soluções ou prognósticos futuros. Interessa refletir sobre essa experiência singular de habitar as ruínas de Atafona e especialmente sobre os modos de (des)ocupação. Esses processos de ocupação e (des)ocupação implicam em deslocamento de escombros da praia e composições com agenciamentos marinhos que fazem dançar as estruturas e revirar os fundamentos das casas, mas também os dos conceitos nas práticas curatoriais, nas políticas culturais e em demais produções artísticas e acadêmicas. Interessa pensar as possibilidades da arte como instrumento neste contexto, bem como os alcances da universidade e as micropolíticas que operam nestas estruturas, podendo, eventualmente, promover infiltrações.

Curadoria do patrimônio erodido

A referida realidade no plano macropolítico faz da experiência de viver em Atafona paradoxal: a paisagem real, concreta, se dobra no plano metafórico. Além disso, esse cenário de ruínas está cercado por paisagens belas e aprazíveis, o vento nordeste, a foz do rio Paraíba, as casuarinas, as dunas e o céu da planície litorânea criam uma cama que amortece o caos visual provocado pela imagem das ruínas das casas, com seus destroços, escombros e vergalhões ameaçadores. O resultado é uma paisagem ao mesmo tempo bela, melancólica e selvagem.

Habitar Atafona é uma forma de habitar ruínas, não porque a cidade esteja em ruínas, mas pela intensidade de seu processo – tanto o de arruinamento como o de adaptação. Este não é um fenômeno restrito a Atafona, mas o modo como ele se dá aqui é inteiramente singular. Um espelho quebrado de toda cidade em processo de urbanização no atual regime capitalista global. Uma espécie de cidade semimítica do novo milênio, ou ainda a cidade vanguarda na fronteira da transgressão marinha que apenas se inicia na era do chamado Antropoceno. Uma das primeiras cidades náufragas do segundo milênio da era cristã. “Jesus está voltando”, anunciam os crentes em escritos nas ruínas. “Praia do apocalipse”, “tsunami homeopático”, “terceiro melhor clima do mundo”, “portal para o universo”, “região de contato com óvnis”, multiplicam-se os epítetos e as lendas sobre esta paisagem complexa, cruzamento de rio, mangue, restinga, mar, vento e seres humanos e não humanos. Estranha configuração rústica e aprazível da imaginação apocalíptica de futuro. Nem futuro, nem passado, nem distopia, nem utopia, mas “heterotopia”. Lugares heterotópicos são aqueles que, existindo, fazem que contestemos todos os outros em suas disposições espaciais e funcionais.

[…] as heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham […]. Eis por que as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias […] dissecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática. (Foucault, 2007, p. XVIII)

Lugares que abalam o sentido de nossa organização semântica do habitual. Acreditamos que a heterotopia de Atafona possui um diferencial ontológico pois ela se constitui como tal justamente deixando de existir, pelo descontrole de todo propósito e planejamento humano. Um espaço que, sendo habitado, existe enquanto processo de (des)ocupação.

No processo acelerado de esgotamentos de biomas, mangues mortos, rio seco, poluído, sem força, salinização de lençóis freáticos e avanço do mar, surgem brechas para a invenção de modos de vida resistentes, adaptativos e inventivos em meio às ruínas. Neste aspecto é importante determo-nos, pois ele participa da concepção de nosso modo de trabalho ao optar por habitar o território para compreender as dinâmicas de adaptação e agenciamento nos modos de vida, convivendo com o arruinamento e a recriação cotidiana.

Pudemos perceber isso na própria vivência dos últimos anos e também ouvindo relatos de antigos moradores. Conviver com a erosão não se resume a uma vida penosa e precária, ainda que o seja em grande medida, ainda assim há inventividade, alegria, dignidade, coragem e perseverança. Temos exemplos de pessoas que convivem com a erosão em Atafona e fazem dessa vida uma vida plena, íntegra e bela. É o caso, como veremos, de Dona Belita, que resistiu, vivendo na Ilha da Convivência até o fim de sua longa vida, permanecendo lá mesmo depois de perder sete casas para o mar. Mas também de Nenel, Fernando, Seu Paulo, Miri Carla, Gilson, Neno, Benilda, Nelite, o Ronaldo Não Me Viu, Almir Largado, Nico e tantas outras pessoas, pescadores, caranguejeiras, marisqueiras, sobreviventes que tivemos a oportunidade de conhecer e que continuam habitando a região próxima à foz. São vidas ancoradas em embarcações e não em terra firme. Parte destas histórias pudemos registrar em uma atividade de museologia social produzida em 2020, na qual levamos nosso acervo de imagens antigas para lugares específicos da comunidade, montando um museu itinerante, o Museu Ambulante, no qual a comunidade narra histórias dos territórios onde habitavam, décadas atrás, e que já foram levados pelo mar. Vemos vidas habituadas a naufrágios, a adaptações climáticas e, por isso mesmo, vidas que podem ser consideradas vidas filosóficas. Modos de vida que instauram espaços heterotópicos, vidas outras.

O que significa habitar ruínas e desocupá-las, como um gesto ao mesmo tempo estético e filosófico? Para responder esta pergunta, partimos de um breve depoimento da última moradora da Ilha da Convivência, Dona Belita, que viveu até o fim de sua longa vida centenária nessa ilha. Mesmo depois de perder sete casas para o mar e ver toda a sua comunidade migrar para o continente, seguiu convivendo com a presença ameaçadora do oceano que avançava ano a ano sobre seu território. Ela nos descreve com tranquilidade a ação devoradora do mar de Atafona.

“Eu me conformo com tudo. Nunca disse uma má palavra. O mar comeu as casinhas minhas numa situação feroz, feroz, só Deus!”

As habitações na zona limite da erosão nos ensinam sobre modos de vida adaptativos, pois são vidas que se constituem em constante diálogo com forças ambientais. Ao mesmo tempo se utilizam obrigatoriamente das sobras geradas pelo avanço civilizacional. Não se trata aqui de romantizar essa situação, há certamente ausências graves por parte do poder público e faltam políticas sociais que sejam capazes de compreender as necessidades dessas pessoas que moram em áreas de risco ambiental. No entanto, quando nos aproximamos de algumas dessas pessoas, notamos que elas não se sentem pobres, nem frágeis ou vulneráveis. Elas dificilmente trocariam suas casas na beira da erosão por outras no meio da cidade e longe do mar. Assimilam em seus cotidianos a experiência sublime do mar que “ameaça a tudo engolir”, mas que também oferece o sustento. Eis aí uma forma de teimosia na inconstância, na impermanência.

Entendemos a importância de uma prática engajada, preocupada em contribuir com uma reflexão mais ampla, que incorpore a crítica não apenas no discurso, mas no modo de produção, abrindo brechas e criando problemas para os circuitos institucionais das artes e as políticas culturais governamentais. Nesse sentido é que propomos esta reflexão sobre a noção de (des)ocupação como uma forma de imaginação para curadorias, criações artísticas e políticas culturais e patrimoniais em contextos de crise ambiental. Política cultural, segundo a definição de Canclini (apud Rocha e Brizuela, 2019, p. 14), é o conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, pelas instituições civis e pelos grupos comunitários organizados, a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social. A pesquisadora Isaura Botelho observa a importância de notar diferentes dimensões da cultura e quando se trata da elaboração de políticas públicas, distinguindo “a cultura do plano cotidiano daquela pertencente ao circuito institucionalizado” (Botelho, 2016, p. 19).

Nas definições das políticas culturais, para além dos instrumentos legais e das decisões técnicas, no caso do patrimônio, deve-se ter em mente que esse é um campo de disputas envolvendo identidades, memórias e territórios. A palavra patrimônio é de origem latina, derivado de pater, pai. Segundo Chauí (2004:15), não se trata do genitor (do latim genitor), senão de uma figura jurídica, onde pater, o pai, é o dono e senhor da terra e de tudo que nela há. Deste modo, originalmente o patrimônio é aquilo que pertence ao pai e se configura como herança paterna, ou seja, os bens transmitidos de pai para filho. O termo também é usado como herança familiar, mas tem seu sentido ampliado para patrimônio cultural, referindo-se à herança sociocultural.

A noção de patrimônio histórico e artístico resulta de um longo debate até seu sentido atual, mais amplo, de patrimônio cultural, que inclui o aspecto relacionado à natureza e ao meio-ambiente nela inerente. Este é o sentido que nos interessa para pensar a noção: “o conjunto dos elementos arquitetônicos, urbanísticos, arqueológicos, paleontológicos, ambientais, ecológicos e científicos que indiquem e referenciem a identidade social de um grupo e de um meio geográfico específico” (Assunção, 2003:87). Ou ainda:

O Patrimônio Cultural é composto por monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico. Incluem obras de arquitetura, escultura e pintura monumentais ou de caráter arqueológico, e, ainda, obras isoladas ou conjugadas do homem e da natureza. São denominadas Patrimônio Natural as formações físicas, biológicas e geológicas excepcionais, habitats de espécies animais e vegetais ameaçadas e áreas que tenham valor científico, de conservação ou estético excepcional e universal. (Iphan)

Acreditamos que a situação de Atafona apresenta grandes desafios ao campo do patrimônio, em uma esfera para além da recuperação, manutenção e educação dos centros históricos e áreas de proteção ambiental. Essa praia traz em sua imagem uma dinâmica ambiental que, como vimos, tende a se ampliar, levando a uma necessária ressignificação da relação entre memória e território, erodindo a materialidade do patrimônio.

No Brasil, a valorização do patrimônio imaterial foi uma significativa conquista como estímulo e instrumento para que possam ser revividas ou atualizadas antigas tradições em uma comunidade. Comunidade entendida enquanto um acordo, historicamente situado por um território, entre humanos e não humanos. Neste sentido, desde o século XX, agências internacionais vêm incentivando o trabalho de projetos voltados ao turismo cultural, “experiências” e ao desenvolvimento sustentável. Não raro tais iniciativas acabam promovendo a exclusão das populações residentes nessas áreas. O desafio consiste justamente em incorporar este imaginário que se cria na convivência com as realidades ambientais, sem reproduzir metodologias de trabalho, seja nas práticas artísticas seja nas políticas de preservação, que sejam alienadas do território e das forças vitais que nele se produzem. Algumas regiões e grupos podem reinventar suas performatividades tradicionais e modos diferenciados de ocupar um espaço que confira sentido em uma comunidade imaginada.

Estéticas e práticas de si: Atafona e o sublime no cotidiano

É curioso que Kant, quando se refere à experiência estética, use fenômenos naturais para indicar o evento. Inclusive a imagem do mar revoltoso que ameaça nos engolir. É pouco provável, no entanto, que o prussiano tivesse imaginado, ainda que com sua incrível imaginação, conceber algo parecido com a visualidade do cotidiano de Atafona. A curiosidade está em ouvir o discurso de Dona Belita, que, relatando sua vida na Ilha da Convivência, descreve igualmente o mar como um ser feroz que não só ameaça, como de fato engole as suas casas. No entanto, estas duas experiências com o mar revolto referem-se a contextos muito distintos.

Para compreender esta diferença, propomos uma reflexão a partir da noção de “exercícios espirituais”, noção da filosofia antiga retomada por Pierre Hadot e que Michel Foucault utilizou em suas reflexões sobre “técnicas de si” e “estética da existência”. Esses dois filósofos franceses se interessam pela filosofia prática da antiguidade greco-romana, como um conjunto de técnicas com as quais os indivíduos alteravam a sua própria percepção do mundo, e com isso buscavam se preparar para os acontecimentos adversos da vida. Segundo Hadot, os exercícios espirituais “correspondem a uma transformação da visão de mundo e uma metamorfose da personalidade” (Hadot, 2002, p. 21). Mais interessado na postura estoica e epicurista, Hadot observa os textos antigos de Sêneca e Marco Aurélio, entre outros, e propõe uma associação entre estas práticas filosóficas antigas e a teoria da percepção estética na filosofia moderna e contemporânea, passando por Kant e Merleau-Ponty. Segundo ele, esses pensadores entendiam a experiência estética como uma forma de ampliação da percepção do mundo e uma ruptura com a percepção comum, em nossa experiência cotidiana e utilitária.

Ocorre que, entre os gregos, havia uma escola filosófica que propunha um reviramento desta concepção da filosofia como “suspensão” de um estado de consciência cotidiana. Tratava-se justamente da filosofia cínica de Diógenes de Sinope, uma escola que, segundo Foucault, era o “espelho quebrado” da filosofia grega, onde todas as principais correntes filosóficas da época se viam ao mesmo tempo afirmadas e invertidas. Com Diógenes, vemos a filosofia não só como uma arte de viver, mas como um meio de sobrevivência. As práticas de Diógenes não visam a uma “suspensão” da percepção cotidiana. Mas, ao contrário, trata-se de uma prática que intensifica a atenção ao cotidiano, com intuito de eliminar dos hábitos tudo aquilo que seja desnecessário e artificial e não crucial para a sobrevivência e a satisfação das necessidades.

Uma filosofia que vai para o campo da prática gestual, performativa, cênica. Como vemos com Goulet-Cazé e Branham (2007):

De fato, a expressão mais poderosa da vitalidade do cinismo no início e no apogeu do mundo moderno provavelmente não está no domínio da filosofia per se, mas numa tradição literária de fantasia e diálogos satíricos.

É por isso que Diógenes quebra a sua própria caneca ao ver uma criança bebendo água da fonte com as mãos entrelaçadas em forma de concha. Aqui também há uma alteração na percepção do mundo, mas essa alteração não está dissociada da vida utilitária. Pelo contrário, Diógenes parece indicar que a percepção só muda realmente quando mudamos os hábitos mais elementares de nossa existência.

Mas o que seria o sublime no cotidiano? O sublime em gestos simples de beber água, se alimentar, defecar ou de se masturbar? Todos estes gestos vinculados às necessidades mais básicas do corpo fazem parte do repertório gestual da filosofia cínica. Nas histórias que se contam de Diógenes, ele é visto realizando cada um desses atos em público. Nesse caso, o sublime não pode ser concebido como um sentimento metafísico. O sublime aqui é gerado pelo impacto com a natureza em sua nudez. Não se trata do confronto com uma natureza grandiosa que nos ultrapassa e com a qual nos reconectamos em sentido cósmico, trata-se da percepção mais crua da natureza irredutível de nosso próprio corpo.

Para o cínico, não se trata de pensar o cosmos como compreensão da verdade última do universo, mas sim de percebê-lo no corpo, nas necessidades mais básicas, e buscar não as dissimular, não criar artifícios, desvios, ou subterfúgios para assumi-las na sua nudez e crueza. E é essa natureza do cinismo enquanto a banalidade do sublime que espanta e é escandalosa. O sublime não está apenas na visão extasiante de um mar revolto, está também nas ações que realizamos cotidianamente e que são justamente passagens de substâncias diversas do exterior para o interior de nosso corpo e vice-versa.

Cabe aqui retomar brevemente a questão do sublime em Kant, a fim de contrastar com a experiência do sublime escandaloso do cínico, que pode também ser pensado enquanto um antisublime. Hadot refere-se ao sublime de Kant como uma entre outras teorias que se referem à experiência estética como uma forma de alteração da percepção capaz de nos retirar da percepção cotidiana utilitária da vida. Na abordagem de Hadot, Kant aparece ao lado de outros pensadores e artistas tais como Merleau-Ponty, Bergson, Paul Klee, Cézanne. Hadot observa que as abordagens sobre o fenômeno estético de cada um desses autores são muito distintas, mas todas indicam a ruptura com a percepção cotidiana. Ele nos indica que a percepção estética do mundo é uma espécie de modelo da percepção filosófica, e esta parece ser também a visão do próprio Hadot.

Vejamos então a passagem sobre o sublime em Kant:

Em 1790, na Crítica da faculdade de julgar, Kant opõe, ele também, percepção estética e conhecimento científico. Para perceber o oceano como sublime, não é necessário analisá-lo por meio de associações a conhecimentos geográficos e meteorológicos, mas “é preciso aceder a visão do oceano, somente – como fazem os poetas, unicamente segundo aquilo que se mostra ao olhar, logo que ele é contemplado, seja em repouso, tal um claro espelho d’água, que não é limitado pelo céu, seja quando ele está agitado como um abismo que ameaça a tudo engolir”. (Hadot, 2002, p. 349)

Para Kant, a experiência estética pressupunha uma postura desinteressada do mundo, isto é, livre de qualquer pulsão de interesse ou apetite. Uma experiência, portanto, inútil para a vida ordinária, mas fundamental para experiência da alma. E, pelo menos nesta passagem citada por Hadot, tratava-sede uma percepção ligada principalmente à contemplação visual. Nessa passagem, o elemento escolhido por Kant para descrever o sublime é o mar, e o mar representado ora como calmaria na placidez de um espelho d’água infinito, ora como um ser abismal e devorador, que ameaça nos engolir. Como vimos, esta segunda imagem é muito semelhante à descrição do mar de Atafona feita por Dona Belita.

O sublime de Dona Belita é o cotidiano, não é uma experiência de arrebatamento contemplativo com o mar, mas uma relação cotidiana com o mar que, se, por um lado, a ameaçava, por outro, lhe dava o sustento. O sublime nesta relação é a experiência cotidiana, a vida simples, mas não menos filosófica, isto é, não menos sábia. Dona Belita é um exemplo de uma vida desvinculada do valor monetário, da influência política, ou da produtividade. O valor desta vida está justamente em sua autonomia com relação ao capital, isto é, uma vida que escapa quase completamente ao circuito econômico do capital, uma vida de valor outro.

Haveria assim uma experiência do sublime como um fenômeno perceptivo ou sensorial que nos arrebata completamente os sentidos, indicando a existência de forças cósmicas que nos ultrapassam, isto é, a existência de um outro mundo ao qual podemos apenas acessar por intuições. E, por outro lado, haveria também esta experiência do sublime no cotidiano, algo que nos indicaria uma passagem para uma existência radicalmente outra, isto é, uma vida outra (Naidin, 2021) resultante de uma mudança de percepção. Aqui, nos permitam essa imaginação conceitual, podemos pensar em uma (des)ocupação existencial, isto é, para criarmos e habitarmos novos mundos, precisamos desocupar os modos normativos de existir.

A arte ambiental do pescador Fernando

Quando um pescador diz que o mar é vivo, ele abre uma dimensão da existência que é inconcebível para a nossa consciência particular enquanto sujeitos racionais e que escapa à consciência individual do sujeito, mas que é comum a todo ser vivente. É ela que permite que o pescador Fernando afirme que o mar é vivo, mesmo sem saber explicar por quê. É verdade que em geral esses pescadores acabam por resumir estas forças numa única entidade, isto é, no final tudo “é coisa de Deus”. Mas na prática observamos uma percepção aguda das forças ambientais por parte dessa população que convive diariamente com o processo erosivo. Antes de resumir tudo a Deus, eles caracterizam e diferenciam cada entidade da paisagem e são capazes de perceber os humores e as intenções do ambiente em que vivem.

Barreira construída pelo pescador Fernando, foto de Fernando Codeço, 2021

O modo como o pescador Fernando lida com o com o processo de (des)ocupação de suas residências atingidas pelo processo erosivo poderia ser descrito como uma espécie de obra ambiental processual. Fernando vive na localidade conhecida como Baixada, área urbana extrema do delta do rio Paraíba do Sul, uma pequena vila construída sobre um antigo mangue que hoje está morto. Terreno mais vulnerável à erosão, enchentes e alagamentos em Atafona. Constrói cotidianamente uma barreira com troncos, cordas, sacos de areia, redes de pesca, colchões, tábuas e outros materiais que ele coleta na praia e na cidade, uma barreira que tem o objetivo de retardar a erosão que ameaça a sua casa, mas, segundo ele mesmo diz, “o mar pode vir e destruir tudo em menos de meia hora”. Essa construção do pescador Fernando pode ser lida também como uma carta, escrita com os materiais da erosão. Ele sabe que a barreira não vai impedir que o mar avance sobre sua casa, talvez no máximo retardar um pouco, mas ele a constrói com toda a sua arte, inventando uma arquitetura improvável. Uma obra de arte ambiental naïf? Uma arte ambiental canibal. Uma arte que surge do agenciamento erosão-pescador. Fernando constrói sua barreira como quem instala um mastro em um barco furado. Ele cria, com a linguagem da navegação, os nós, as madeiras, as lonas de um veleiro, tudo construído sobre a terra firme que afunda lentamente. Quando perguntamos a ele se ele considerava a sua construção uma arte, a resposta foi afirmativa. Ele também disse que era uma forma de se comunicar com o mar, ou com Deus. Uma arquitetura espiritual, uma carta sobre o destino naufrágio de seu território. Sua obra é resultado de um esforço físico cotidiano, ele trabalha sozinho deslocando dezenas de toras de madeira que são lançadas pelo mar na praia; trabalha com ajuda de alavancas e do próprio mar nas marés cheias; movimenta ao longo dos meses toneladas de madeira e areia. Todo este trabalho produz uma barreira frágil, quase simbólica. A sua potência não está na capacidade de impedir o avanço do mar, mas sim em seu agenciamento com o processo erosivo, é a maneira que ele encontrou de dar sentido a esse processo que cedo ou tarde vai destruir a sua casa. A barreira é também uma forma de comunicação com as forças ambientais, mensagem escultural que se direciona simultaneamente a seres humanos e não humanos. Uma obra de arte que não se separa da vida, da convivência cotidiana com o mar revoltoso, uma obra efêmera que se constitui na vivência do sublime no cotidiano.

(DES)OCUPAÇÃO – curadoria e pedagogia do agenciamento

Desde 2017, quando começamos a trabalhar em Atafona, tínhamos a ideia de arte contextual como conceito orientador de trabalho em que cada ação proposta seria definida e elaborada a partir do contexto no qual se dava, das condições ambientais e humanas disponíveis em cada caso. Em 2018, Sônia nos apresenta um material de arquivo particular no qual ela acompanhava, fotografando, a queda do único prédio que chegou a ser construído na praia. O “prédio do Julinho”, que se localizava na frente de sua residência e que, antes mesmo de ficar plenamente pronto, já começou a receber os impactos da erosão e não chegou a ser finalizado. Ainda assim, concentrava parte do comércio e do lazer da comunidade em torno de um pequeno centro comercial que formou. Dona Sônia acompanhou o processo de erosão no prédio com uma máquina fotográfica e conseguiu capturar com as fotografias o momento final da queda do prédio. Esse momento foi um marco para Sônia. Sua casa seria a próxima a ser destruída pela erosão. As fotos da queda datam de 2008. Dez anos depois, recebemos como contribuição para nossos arquivos o álbum fotográfico de Sônia, e com ele produzimos um curta metragem documental Mar Concreto (finalizado em 2020) como um modo de trabalharmos com esse arquivo improvável. O filme foi exibido em diversos festivais nacionais e internacionais, recebeu prêmios e é utilizado nas atividades acadêmicas, pedagógicas e artísticas que promovemos.

Quando Sônia, em 2022, nos avisa que vai antecipar-se ao mar que já tinha derrubado parte do muro de sua residência e, por questões de segurança, ia demolir a própria casa, sabíamos do impacto material e simbólico desse gesto em sua vida e na vida da comunidade. Uma casa grande, com belas escadas de madeira, muito vidro e pedras, que impressionava os passantes, a casa foi construída por seu pai, antigo político influente na região, no início dos anos 1980. Na ocasião, estávamos realizando uma residência artística com um grupo de oito artistas em nossa casa, seguindo uma agenda de atividades previamente planejada. No entanto, a iminência da destruição planejada por Sônia apontava para um outro tipo de agenciamento e de produção de sentido. Abrimos um diálogo sobre a situação com as/os artistas residentes e propusemos para Sônia a realização de um evento de despedida de sua casa, que poderíamos produzir juntas, no qual seriam realizadas projeções de filmes, intervenções contextuais, exibição de imagens históricas, venda de seus objetos antigos, encontros inusuais. Decidimos montar uma ocupação artística na casa que já estava esvaziada.

Optamos por realizar a projeção do filme Mar Concreto no muro da casa de Sônia, que aparece no filme por meio das imagens feitas da varanda da casa, prestes a ser demolida. Optamos também por exibir na sequência o curta do Museu Ambulante, um documentário feito a partir de uma atividade de museologia social homônima na qual levamos às ruas de Atafona um museu manipulável e itinerante, cuja expografia participativa ativa o campo das memórias dos cotidianos, dos afetos e da contação de histórias sobre um lugar que não existe mais, mas que existe para aquelas pessoas que viveram e perderam em comum.

Montamos uma estrutura de projeção em seu jardim, iluminação na praia, e registramos o evento. Percebemos que foi uma oportunidade de encontro em torno de um elemento comum, uma experiência em comum, da iminência da perda em meio a todo dissenso entre uma comunidade imaginada. Muitos tinham curiosidade de ver como era aquela casa por dentro, outros foram para se solidarizar, outros para ver os filmes, outros para ouvir histórias, levar lembranças para casa, muitos amigos, alguns melancólicos apaixonados.

Ao longo dos últimos anos, realizamos diversas produções e curadorias que se deram pelo crivo do agenciamento contextual possível ou necessário. Assim como as atividades mencionadas, como o Museu Ambulante, a realização do filme Mar Concreto, a produção constante de arquivo em seus diferentes suportes, o grupo de teatro de rua, entendo o evento (DES)OCUPAÇÃO exemplar por alguns motivos, principalmente: a urgência com a qual teríamos que realizar; o uso heterotópico do espaço, criando uma dobra na própria heterotopia; projetar o antigo Prédio do Julinho na parede da frente de sua ruína iluminada que, em poucos dias, também viria a se tornar ruína. Exibi-lo junto com o Museu Ambulante, um trabalho de memória idealizado como material que pudesse também ser absorvido em atividades com escolas na comunidade; o convite aos artistas para que participassem, tanto da ocupação com obras quanto do evento da (DES)OCUPAÇÃO, conforme cada vontade e possibilidade de cada um; a percepção de que em nossas atividades e propostas curatoriais o foco principal não é a exibição de obras visando a uma eventual absorção pelo mercado de arte, mas a produção de trabalhos, ou situações, co-criados a partir dos agenciamentos imprevisíveis que o contexto de Atafona nos apresenta, em um trabalho delicado de escuta, cuidado e adaptação.

Curadoria não somente como seleção de artistas e obras, mas como produção de agenciamentos e de polifonias, refletindo também sobre o modo de levar a arte para o mundo. Não trabalhamos em condições ideais, trabalhamos em processos adaptativos tanto no sentido conceitual quanto performativo. Não se trata de pôr-se em algum dos polos, “o gênio do artista”, ou “a materialidade da obra” , ou pelo menos não só isso. Mas no caso deste projeto específico, essencialmente territorial e geosituado, trata-se de pensar também em uma perspectiva crítica de seus modos de produção e de circulação. Que, antes, propõe, por uma metodologia relacional e ambiental, um tratamento das imagens que não se restrinja ao campo de um slogan que garantiria aceitação em um determinado nicho cultural e econômico. Como reproduzir imagens de destruição? Como trabalhar sobre traumas alheios?

Ou seja, não estamos no terreno do idealismo ou da representação individual, e sim na tentativa de infiltração na ordem das coisas concretas e dos acontecimentos possíveis. Contexto designa “o conjunto de circunstâncias em situação de interação. O ‘contexto’, etimologicamente, vem da base latina contextus de contextere, tecer com” (Ardenne, 2002, p.17). A atenção se volta para o mundo tal qual ele se apresenta, buscando criar a emergência de práticas artísticas que questionem um habitual, alterando significados e imaginários. Ou seja, criar experiências contextuais, pedagogias inesperadas, que sejam capazes de confrontar os paradigmas habituais nos modos de produzir imagens no mundo.

Esta posição é tomada a partir de situações concretas nas quais pudemos perceber reprodução de usurpação no sentido material e simbólico, nas produções artísticas que reencenam performatividades que se pretendem salvadoras ao mesmo tempo que desvinculadas de qualquer preocupação com a escuta socioambiental, que produzem um esvaziamento tanto de inventividade na linguagem como de intervenção na materialidade em função do ego do artista (assim como do curador/produtor/acadêmico, etc.).

Vemos que existe um componente agregador associado à noção que incorpora conteúdos de memória, identidade e território partilhados, vivências que definem solidariedades e compartilhamento. Ao mesmo tempo, contra qualquer romantismo, sabemos que a inteligibilidade das relações de um povo com seu território depende da posição de onde estamos para abordá-la. As metodologias de pesquisa tradicionais, ou a “avaliação social” dos impactos ambientais, muitas vezes representam uma perspectiva profundamente distanciada e desconectada da realidade local, promovendo efeitos devastadores, especialmente, ao que nos dedicamos neste momento, o desalojamento da memória que está ancorada na paisagem. Acreditamos em abordagens poéticas e corporificadas que conectam a erosão ao princípio transformador do humano e do mais-que-humano. Diante da perda inevitável, interessa como podemos usar a poesia e a imaginação como espaço de luto, mas também de reinvenção e produção de memória coletiva. Com a ideia de (des)ocupação, trazida nestes diferentes modos de relação com o espaço, mantemos algumas perguntas que sempre são recolocadas: como podemos repensar nossa maneira de viver e modos de agenciamento a partir de uma paisagem em constante mudança? E qual o lugar do cidadão e do fazer artístico nesse processo de renegociação?

Registro do evento (DES)OCUPAÇÃO, foto de Manu Campos, 2022
* Fernando Codeço faz pesquisa de pós-doutorado pela Parceria de Encontros Hemisféricos, organizada pela York University, Laboratório de Crítica e pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e apoiado pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá (SSHRC). Julia Naidin faz parte do Programa de Pós-Doutorado em Políticas Sociais, do GT do Observatório do Patrimônio Cultural da Universidade Estadual do Norte Fluminense, com Bolsa FAPERJ/CNPQ.
Referências bibliográficas
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GOULET-CAZE, Marie-Odile; BRANHAM, Robert B. (Orgs.). Os cínicos: o movimento cínico na antiguidade e seu legado. Tr. Cecilia Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola, 2007.

HADOT, Pierre. Exercices spirituels et philosophie antique. Paris: Albin Michel, 2002.

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NAIDIN, Julia. (PDF) Vidas Heterotópicas, Vidas Infames, Vidas Outras: um percurso antropológico no pensamento de Foucault (researchgate.net), 2016.

NAIDIN, Julia. Vida outra: personagens infames da obra de Foucault. Rio de Janeiro: Ape’Ku Editora, 2021.

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Sites pesquisados:

Iphan: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218.>

CasaDuna | Arte – Pesquisa – Memória | Museu Ambulante: https://www.casaduna.org.
Notas
[1] Tratava-se da residência artística “Caos Cais Cosmos” realizada em parceria com o artista e curador Daniel Toledo onde participaram as/os artistas Isabela Roriz, Pamela Jean Croitorou, Clóvis Levi e Manu Campos.

[2] O grupo foi fundado em 2017 pelo diretor Fernando Codeço, as atrizes Julia Naidin, Lucia Talabi, Jailza Mota e o cenógrafo Rafaela Sánchez. Também integram o grupo hoje as atrizes Rachell Rosa, Mariana Moraes e o bailarino e diretor de movimento Guilherme Mattos. Mais informações no site: https://www.casaduna.org/duna-em-cena.
Dossiê
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TECER REDES: ARANHAS E MULHERES, CURADORIAS NO CONTEXTO AFRICANO

O livro A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, foi lançado em 2021 e, em meio a uma longa homenagem à literatura, à criação e aos criadores, há uma série de personagens ligados, de forma diferente, ao continente africano. Aranha-mãe, principal personagem feminina, inspirada em Ken Bugul, escritora senegalesa que hoje mora no Benim, é também escritora e tem entre seus escritos romances semiautobiográficos que falam de sexo e poder. A personagem é amedrontadora, exótica, sexualizada, mas também maternal e tradicional, cantando em serer, idioma falado na região do Sahel. Apesar das semelhanças entre as duas existe uma diferença marcante, a Aranha-mãe do livro não volta para o continente africano, permanecendo solteira e na Europa, enquanto Ken Bugul retorna, se casa com um marabout – espécie de iman tradicional senegalês – e chega a trabalhar no governo.

A aranha entra nesse texto, nessa visão ampliada da curadoria e de suas práticas de tecer relações entre criadores e espaços de criação, e entre os diversos espaços do continente. Visão ampliada porque a profissão de curador se inicia com os primeiros museus no Ocidente, sendo, inicialmente, um guardador, um cuidador de acervos, em grande parte antropológicos. A partir dos anos 1960, há uma virada nesse processo e o curador deixa de ser apenas um guardador de acervos para se tornar também um contador de histórias, alguém que, a partir de um acervo, é capaz de mostrar um lado, algo que se extrai desse acervo. Essa virada se coloca, em parte, a partir dos processos de independência no continente africano e pedidos de restituição das obras aos museus arqueológicos europeus.

A partir desse momento e da construção de teorias pós-coloniais, de estudos culturais e decoloniais, o museu se vê face a uma necessidade de mudança na forma como exibe e trata o material de seu acervo. Ao colocar em questão certezas patriarcais, raciais e coloniais, o papel do arconte, como fala Jacques Derrida em seu Mal de arquivo (2001), é colocado em xeque. O curador passa, então, a ter sua função de consignar valorizada, mas valorizada no que ela possui de recriar e retransformar os signos. No século XXI, ele assume papéis que lhe eram vedados anteriormente, ao mesmo tempo que, fora do espaço das artes, o curador se torna sinônimo de selecionador. Nas redes sociais, por exemplo, vemos multiplicar perfis de “curadoria de conteúdo”, que abordam informações sobre assuntos mil, de engenharia a restaurantes, passando, é claro, pelas artes e pela literatura.

Esse processo, ainda nos anos 1960, em seu começo, abre caminho para a existência de exposições, festivais e curadores dentro do continente africano. Quando a Europa e o Ocidente, como únicos centros de produção de arte e saber, são desafiados, a emergência de festivais de arte e cultura negra faz parte desse processo, acontecendo nos anos de 1966 e 1973 em Dakar e Lagos, respectivamente, para onde afluíram africanos e diaspóricos de todo o mundo. Os dois primeiros abrem as portas para uma série de festivais, focando em uma ou mais artes, ao longo do continente. A Bienal de Dacar é um exemplo, assim como o Festival au Désert, a Bienal de Bamako e tantos outros. A força dos festivais vem de sua intenção política e da pluralidade de grupos e povos por eles acolhidos, tudo isso ocorre nessa virada dos anos 1960, em que outros atores passam a participar dos sistemas de artes e literatura ao redor do mundo. A descentralização do poder e as independências das colônias são, dessa forma, parte da entrada de novos saberes e atores no sistema arte.

Esse processo, em sua continuação, legitima outras formas de inserção no mercado artístico e leva, no fim do século XX, o nome de Okwui Enwezor, curador nigeriano, falecido em 2019, como curador da Documenta 11 e da Bienal de Veneza, nos anos 2000. Enwezor, que tinha uma carreira construída nos Estados Unidos e na Europa, abre o caminho para uma história da arte não europeia, que inclui artistas do mundo inteiro, não apenas do Ocidente, na curadoria que apresenta em suas duas grandes mostras. Seu trabalho também é importante para abrir espaço para novos curadores do continente africano, que se fortalecem e começam a aparecer no circuito internacional. Nomes de mulheres, especificamente, começam a surgir e ganhar importância por seu trabalho, no continente e fora dele, com a construção não apenas de trabalhos curatoriais, mas também de ensino, crítica e criação de memória.

Uma dessas mulheres é Koyo Kouoh, marfinense, curadora, responsável pela criação da Raw Material Company, em Dacar. Sua trajetória começa ainda na faculdade, na Europa, quando passa de uma formação em economia para trabalhar em espaços artísticos. Decide retornar ao continente, mas não para a Costa do Marfim e sim para o Senegal, segundo ela por ser mais cosmopolita e por se interessar pelo Islã – o Senegal é país de maioria sunita. Em 1995, começa a trabalhar no Instituto Gorée, e em 2001, como co-curadora dos Encontros de Fotografia de Bamako, no Mali, importante festival de fotografia mundial, com frequência bienal. Em 2008, Kouoh funda a Raw Material Company, espaço em Dacar voltado para a curadoria e a formação em artes. Esse local compreende biblioteca, sala de exposição e espaço para as formações, que ocorrem uma vez por ano. Nas formações, pensadores e artistas do continente se encontram para discutir o tema do ano. Kouoh exerce a função, que acredita ser importante, de criar novos espaços institucionais de arte, não governamentais, e permanece nesse papel ao se afastar de Raw em 2019, passando a ser a primeira curadora chefe do Zeitz Mocaa, na Cidade do Cabo, museu de arte contemporânea africana.

No espaço Raw são organizados seminários de pesquisa também, e há memória desses seminários, em livros e publicações, dessa forma o espaço cumpre uma função de arquivo e geradora de redes da aranha. Raw Material Company é parte da Arts Collaboratory, grupo de 25 espaços de arte do Sul Global, interessados em criar solidariedades Sul-Sul e redes de criação e colaboração. O trabalho de Koyo Kouoh, assim, se coloca em diálogo com o trabalho de outros curadores e artistas em espaços não ocidentais, e Kouoh trabalha também na importância de construção dessas redes, com as palavras dela em artigo originado de um dos seminários da Raw Academy:

A Raw Material Company surgiu da necessidade de se criar um espaço de compartilhamento de conhecimento. Sua motivação principal foi estabelecer um espaço de educação e aprendizado alternativos. Um local que permita o acesso à teoria artística contemporânea e, em retorno, gere discurso, ideias e práticas com ênfase primária em África e questões relacionadas à África, ao mesmo tempo incluindo uma gama mais ampla de origens e escolas intelectuais. O nome Raw Material Company se refere à África como uma fornecedora tradicional de matérias primas (raw material) para a indústria global. Também se refere à arte e intelectualidade como uma matéria prima para o desenvolvimento humano. Company representa uma abordagem empreendedora para a produção artística e também para um sentido colaborativo de estar junto (Kouoh, 2013).[1]

Em uma das coletivas que curou, Body Talk: Feminism, Sexuality & The Body, Kouoh cita Okwui Enwezor e Chika Okeke-Agulu para falar de corpo, sexo e arte feita por mulheres no continente africano. A centralidade do corpo, como espaço de batalha, é trazida por esses curadores a partir de um evento de resistência de mulheres igbo, etnia nigeriana, contra o colonialismo. As mulheres da região que trabalham em um mercado, após a cobrança de um imposto em tal mercado, se manifestaram indo ao mercado despidas. O corpo nu da mulher tem força, ele é tabu e aparece causa de desconforto e mudança. A centralidade desse corpo na arte feita por mulheres é apresentada por Kouoh como também parte de uma resistência a um modo colonial, machista e racista de dominação, presente em todo o continente.

A artista Zoulikha Bouabdellah, argelina, apresenta seus quadros, com imagens de quadros renascentistas ocidentais, como que partidos em motivos de grafismos árabes, superpostos com outras imagens. A aranha, que aparece na obra, é uma homenagem à obra de Louise Bourgeois e cada perna representa um estilo arquitetônico diferente não ocidental. A aranha aqui também é corpo, é a presença e união dos estilos, a manutenção em pé de uma mulher. Ela acolhe e nos mostra que as mulheres ao redor são objetos transformados pelas possibilidades de corpo.

Figura 1: Obras de Zoulikha Boabdellah. Fonte: Contemporary Art Archive.

Como a Aranha-mãe mencionada, Kouoh faz de sua curadoria espaço de criar elos entre pessoas, histórias, espaços, possibilitando o acolhimento de diferentes pessoas nas exposições que organiza, como no Zeitz Mocaa, onde assumiu a curadoria e a responsabilidade de organizar o acervo de um museu dedicado à arte contemporânea africana. Koyo Kouoh nos mostra uma faceta dessa curadoria ampliada, promove a criação de redes e acervos, a curadoria que conta uma história além de mostrar uma obra. Estabelece uma questão e a analisa por meio das obras dos artistas.

Outra faceta dessa curadoria ampliada pode ser percebida nas curadorias dos diferentes festivais literários do continente, como Aké, na Nigéria. A criadora e uma das primeiras curadoras do Aké Festival, o maior festival literário da África Ocidental, Lola Shoneyin, hoje faz parte do seu Conselho Curador. Aké é um festival que aborda variados tipos de artes, não só a literatura, inclusive projetou escritores premiados e reconhecidos que hoje são publicados dentro e fora do continente. Ano passado, Wole Soyinka e Abdulrazak Gurnah, os dois prêmios Nobel de literatura africanos, estiveram presentes no festival, falando sobre seus novos livros.

Lola criou o Aké a partir da constatação da falta de festivais interessados na literatura produzida no continente em sua região, apesar de haver outros festivais literários de menor porte. Organizado a partir da elite literária local, Aké se destaca ao longo de seus onze anos de história por ter colocado junto diversos pontos de vista literários do continente, mantendo as edições online durante a pandemia, com discussões sobre feminismo africano e religião, comandadas por Mona Eltahawy, feminista egípcia, e Chris Abani, escritor e professor nigeriano. Na edição de 2023, o festival destaca uma questão central desde sua criação: o mercado literário na África e suas dificuldades, apesar de alguns nomes furarem essa bolha, chegando à Europa ou aos EUA, e em geral a tradução dos livros não é bem feita. Por isso, foi criado o TARF, espaço dentro do festival para facilitar a venda de direitos autorais de autores do continente, que tem sua primeira edição em 2023.

Lola mantém, assim, a ideia e a força do começo do festival, quando pretendia criar espaço para africanos discutirem o continente em seu próprio solo. Ao longo dos anos, vozes dissonantes se apresentaram, falaram, discutiram. Aké se tornou um espaço de criação de redes e compartilhamento de experiências. A curadoria aqui se faz também como o espaço de saber no intuito de construção desses diálogos. E Lola Shoneyin criou espaço onde o diálogo é desejado e bem-vindo, onde o acolhimento acontece desde a preocupação com a explicação sobre o visto nigeriano em sua página da internet. Com Lola, vemos outra curadoria, a dos festivais, que acredita na diversidade e multiplicidade também de formas de arte – cineastas, artistas visuais e músicos têm participado de forma constante do festival – e apesar do espaço ampliado, ele também é focado nas redes e na ampliação da comunicação dentro do continente, além de compreender as questões inerentes a essa África geográfica e expandida – eventualmente, autores diaspóricos também são chamados a participar.

O evento participa também de redes de festivais literários pelo mundo e mantém fellowships com eles, ampliando a sua inserção em outros espaços literários, e o interesse pelo espaço africano que outros espaços podem vir a ter. As fellowships também contribuem para a construção de um sistema literário internacional, com a inserção de autores e editoras africanos.

Quando Aké começa a se fortalecer, Lola cria a iniciativa Book the Buzz Foundation, que tem o objetivo de promover a leitura na Nigéria, se tornando, assim, uma parte de um sistema maior. Book the Buzz promove outros eventos durante o ano, sobretudo com crianças em idade escolar, com o intuito de ampliar a população leitora do país. Cria bibliotecas e espaços de leitura, tendo como intuito, também, o arquivo. A curadoria exemplificada aqui reforça a necessidade da memória e da leitura – em suas diversas acepções – como formas necessárias de compreensão do mundo. A aranha tece sua teia com o acolhimento e fortalecimento de novos autores e editores, a criação de conversas, a discussão de tabus e diferenças culturais em espaços africanos. Lola, como Koyo Kouoh, apesar de nascer na Nigéria, teve sua educação básica no Reino Unido, retornando para seu país após a prisão de seu pai pela junta militar no poder. A visão de um retornado aqui é importante pela percepção do que deseja e quer construir. E como pretende fazê-lo.

Figura 2: Página inicial do website de Aké Festival

O terceiro exemplo que coloco é o do coletivo Le 18, no Marrocos. Misto de galeria e espaço de criação coletivo, o espaço Le 18 foi fundado em 2013, por Laila Hida, fotógrafa local. A proposta do espaço é ser uma residência artística e espaço de cursos, biblioteca, um espaço de trocas. A partir de seu segundo ano, a ideia do coletivo e da participação voluntária se impõe, ampliando a organização para um grupo de seis pessoas. Os múltiplos interesses tornam a programação do local variada, indo de cursos de fotografia a performances, de sessões de cinema a residências.

Em 2022, fazem uma “Documenta paralela”, indo a Kassel para promover a discussão com artistas e coletivos por fora das mostras oficiais, um espaço de acolhimento, conversa e construção de redes. O espaço funciona, ampliando para fora de Marrakech práticas de conversas e exposição que já aconteciam dentro da galeria.

Laila decide ampliar o grupo também por entender que o coletivo estaria mais próximo de alcançar o que pretendia com a galeria, de criação de redes e acolhimento de outras formas de se fazer arte, dentro de um espaço em que há censura estatal e em que a influência europeia é perceptível no dia a dia. O trabalho de Laila como fotógrafa também busca o caminho do coletivo, partindo de diferentes visões de espaços e cidades, e trabalhando na criação e seleção de imagens em suas exposições – seu trabalho se aproxima de uma curadoria mais tradicional.

O coletivo tem, entre seus participantes, Soumeya Ait Ahmed e Nadir Bouhmouch, que criaram o ciclo Awal – palavra no idioma amazigh, povo minorizado do Marrocos – e que tive a oportunidade de entrevistar quando vieram para a inauguração da 35ª Bienal de São Paulo, em 2023. Dentro do ciclo Awal, iniciado em 2020, há um fortalecimento da história e poesia oral do povo amazigh, minorizado desde a colonização, ficando à margem dos processos decisórios do país. O povo amazigh tradicionalmente é ligado a territórios nas montanhas e a um modo de vida nômade. Com a colonização, foram forçados a se urbanizarem, muitas vezes ficando as mulheres como mantenedoras das tradições e histórias orais nos espaços urbanos. Com o projeto Awal, o objetivo é a retomada, recuperação e retrabalho da história e literatura oral do povo amazigh, bem como de outros povos minorizados, convidando para o centro da galeria artistas e autores que trabalham com essas expressões.

Nadir e Soumeya trouxeram à Bienal de São Paulo em 2023 um trabalho que tem inspiração nesse começo de ciclo Awal. A inquietude deles é, sobretudo, a possibilidade de registrar e manter viva uma série de manifestações culturais que se tornam marginalizadas e expulsas do corpo da cidade. Assim, trazem para o pavilhão da Bienal uma instalação composta de dois espaços separados. Em um, atrás de uma cortina de tela preta em forma circular, com dois bancos dentro, uma tela de televisão passa um filme que acompanha os agricultores no plantio e manejo de maçãs no monte Atlas. As músicas de trabalho são legendadas em inglês e português, enquanto vemos todo o processo de plantio, colheita e beneficiamento dos frutos. O espaço ao lado consiste em bancos dispostos de forma circular com tapetes e almofadas em tons de bege. Em mesas intercaladas com os bancos, pequenos livretos, parecidos com cordéis, com as poesias amazigh. Na parede, trechos de textos criados pelos dois artistas, que falam sobre monocultura e apagamento cultural.

Figura 3: Detalhes da instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.
Figura 4: Detalhes da instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.

Com o trabalho, a ideia de Awal permanece. Uma recuperação e manutenção de um passado que também é presente dos dois artistas, que são amazigh, os primeiros da família a cursarem ensino superior. As músicas de trabalho, imperativo cultural do grupo, se reduzem ao se reduzir o número de culturas existentes no espaço do monte Atlas. Se não há variedade de plantação, não há variedade de trabalhos ou de músicas. O fim de uma cultura é o fim de todo um ecossistema cultural ao seu redor. Quando vemos o vídeo, a monotonia da maçã como única cultura se torna real. Os minutos passam e o mesmo som e as mesmas imagens se sucedem. O frio, a neve, o degelo, as maçãs, o rio, o caminho se sucedem como que sem fim. A música segue sempre a mesma. No lado de fora, no espaço, um convite a sentar, ler e descansar. Ao diálogo com outros que passam, para que se torne uma verdadeira “Assays”, a praça central da cidade no idioma amazigh, local de trocas e possibilidades.

Figura 5, 6 e 7: Detalhes da Instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.

Na abertura, foi feita uma ativação com os artistas do espaço, que infelizmente não puderam estar na segunda ativação, pois voltaram ao seu país com as notícias do terremoto no Atlas. Na ativação, os artistas reforçam a necessidade do diálogo e nos convidaram a falar dessa oralidade tão desprezada pelo Ocidente, diálogo esse que podemos perceber até no formato de cordel escolhido por eles para apresentar os textos orais de sua região, decidido após passarem uma temporada no Brasil em 2022, interessados também por uma imigração forçada amazigh para o norte/nordeste do país, realizada pelos portugueses. O trabalho deles na Le 18, no entanto, como falaram na entrevista, talvez tenha chegado a um fim. Estão buscando novos espaços e novas possibilidades de realizar residências e formações, privilegiando pessoas que, como eles, são da primeira geração que chega ao ensino superior, pessoas de espaços minorizados em sua região.

Três diferentes curadorias, três diferentes propostas e formas de encarar a curadoria ampliada. Mas os três exemplos trazem em comum uma possibilidade de acolhimento e uma vontade de ampliação e criação de redes. Como a Aranha-mãe de Mohamed Mbougar Sarr, fazem o caminho de buscar os que pertencem a esse espaço de criação e unir a um propósito em comum. Siga D, o nome da personagem da Aranha-mãe, é uma mulher que se perde e se encontra diversas vezes, sem conseguir voltar ao continente africano. Nisso os exemplos diferem da personagem. Se permanecem sendo o elo e usando a memória como parte da construção da criação, não tiveram a necessidade de se isolar do local de produção de suas memórias para isso. Voltam e permanecem em solo africano, produzindo novas memórias e combatendo a monocultura.

Assim, a curadoria, que começa com o objetivo de guarda, de cuidado com um acervo, passa a ser um trabalho de seleção e contação de histórias e termina tendo um sentido ampliado, de trabalho com artes. O cuidado, que era com um acervo, passa a ser também a criação desse acervo, a criação de redes que permitam o cuidado e a ampliação do acervo e da história do fazer artístico. Como uma Aranha-mãe, o curador ocupa esse espaço de acolhimento e de aterrorizar, o medo da seleção e o medo da memória estão presentes nele. E os três exemplos aqui demonstram facetas dessa nova forma de lidar com esse espaço. O curador, em sua práxis diária em espaços não estatais de cultura, cria condições para a discussão maior dentro da sociedade a respeito de questões ligadas ao universo artístico e ao mundo literário.

* Antonia Costa de Thuin é doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Atualmente faz pós-doutorado na UFABC, ligado ao projeto “Do coração das guerras a poéticas da plasticidade: criação e engajamento no pensamento artístico em contextos africanos dos anos 1980 a nossos dias”, 2022/05923-9, com o projeto “A produção artística e a curadoria em espaços não ocidentais, formas de lidar – CCA Lagos, RAW, Le 18, Inema Arts Center”, 2023/08981-2, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
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SARR, Mohamed Mbougar. La plus Sécrète Mémoire des Hommes. Paris: Philippe Rey, 2021.
Notas
[1] Raw Material Company was born out of the necessity to create a space for the sharing of knowledge. Its core motivation was to establish a space for alternative education and learning. A place that provides access to contemporary artistic theory, and in return generates discourse, ideas and practices with a primary emphasis on Africa and African related matters, all the while including a broader range of origins and intellectual schools.
Dossiê
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CURADORIA DE ARTE EM MUSEUS: UMA HISTÓRIA DE REPRESENTAÇÃO E LEGITIMIDADE

A relevância e a legitimidade da curadoria estão vinculadas ao papel dos museus e das galerias como plataformas culturais que constroem narrativas por meio da seleção, apresentação e interpretação de obras de arte. É o cânone da história da arte que avalia a relevância e a distinção das obras com base em sua qualidade estética, sua influência histórica ou cultural, ou seu impacto duradouro sobre a sociedade. No entanto, ainda que obedeça ao cânone, a curadoria de exposições também reflete mudanças sociais, culturais e políticas exercendo um papel de autoridade sobre o que deve ou não ser exposto em meio a disputas no campo das artes.

Este artigo propõe-se a analisar o papel do curador em contextos históricos específicos e o resultado da correlação de forças que sustenta o status quo no mundo das artes. As narrativas modernas operadas pelo Museu do Louvre em Paris no século XVIII e o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) no século XX são observados como exemplo. Em contraste, é visto como, a partir da década de 1970, os curadores de exposições temporárias desafiaram as estruturas ocultas de legitimação do mundo das artes, buscando expandir os formatos expositivos para incluir novas possibilidades e questões propostas por novas formas de arte.

No século XXI, alguns curadores de exposições temporárias têm respondido às vanguardas artísticas conceituais e às questões sociais de seu tempo trazendo artistas de países do sul global, negros, indígenas e mulheres, que disputam narrativas estéticas e representações sociais. No entanto, esses esforços não têm alcançado a legitimidade canônica necessária e os artistas em questão muitas vezes permanecem à margem das grandes exposições de museus. Assumindo muitas vezes o papel da crítica, torna-se fundamental que os curadores continuem a desafiar as normas e a ampliar as fronteiras da arte, garantindo que as exposições sejam representativas e inclusivas a uma variedade de perspectivas e experiências.

Arte, patrimônio e narrativas civilizatórias em Salões, Gabinetes e Museus

O entendimento contemporâneo do conceito de curadoria está relacionado ao cuidado de artefatos da cultura material e tem suas bases nas experiências do mecenato renascentista entre séculos XIV e XVII, quando a Igreja, a nobreza e a aristocracia se mantinham como importantes patrocinadores das artes. Objetos considerados “artísticos” desempenhavam um papel crucial na expressão da fé e na educação religiosa, meios de expressão do gosto pessoal e educação refinada do seu proprietário que reforçavam sua elevada posição nas relações sociais; no caso da nobreza, competindo com outras cortes (Magalhães e Costa, 2021). No contexto francês, a distinção social era identificada por meio de hábitos de “etiqueta” e o privilégio do acesso à arte exercia a função simbólica de prestígio de classe (Bourdieu, 1996). Como observa Norbert Elias (2001), os gestos produzidos por meio do campo das artes teriam mais significado do que os indivíduos eles mesmos.

Figura 1: Quatro horas no encerramento do Salão da exposição anual de pintura na Grande Galeria do Louvre. Pintura de François Auguste Biard (1798-1882), 1847.

Ao lado dos Salões, outra prática de coleção, organização e exibição fundamental na história das exposições acontece entre os séculos XV e XVII nos “gabinetes de curiosidades”, onde se mantinham itens exóticos, principalmente aqueles estranhamente “curiosos”, trazidos em expedições exploratórias e guerras de “descobrimento” no Novo Mundo. Nestes espaços, os visitantes endossavam uma cultura aristocrática, e o conhecimento das “curiosidades” e “maravilhas” servia para a identificação de homens bem sucedidos e cultos; isto porque, “no caso específico dos gabinetes, as instruções ao público davam conta da importância social de admirar objetos ‘realmente’ curiosos, maravilhosos e, portanto, raros” (Amorim & Gonçalves, 2012, p. 226).

Figura 2: Gabinete de curiosidades do Museum Wormianum (1655). Fonte: Richards, Sabrina (2012). The World in a Cabinet, 1600s, The Scientist. Disponível em https://www.the-scientist.com/foundations/the-world-in-a-cabinet-1600s-41184.

No avançar dos ideais iluministas, os gabinetes configuravam-se como espaços de reunião de pessoas eruditas interessadas em abstrair o valor de uso dos objetos em sua função original a favor da ciência, da economia ou da sua própria cultura.

Enquanto apresentavam os itens de seus gabinetes a seu grupo de amigos visitantes, os colecionadores exerciam o papel que exercem ainda hoje: pesquisador, curador a educador (Cintrão, 2010, p. 20). Como cientistas em laboratórios, experimentavam critérios de seleção e catalogação baseados em diferenças e semelhanças entre os seres (indivíduos) e a natureza (macrocosmo)[1]. A raridade, associada à perspectiva infinita da coleção (universalizante), oferecia motivos pelo qual determinados itens deveriam ser preservados e mantidos.

Os gabinetes, assim como os Salões Reais refletiam mais do que erudição, refinamento cultural e posição social na nobreza e da aristocracia. Acima de tudo eram guardiões da ideologia destes grupos privilegiados. Como ambiente de produção de conhecimento, na busca pelo domínio da maior extensão possível do que estava ao seu redor, das maravilhas terrenas às impressões artísticas, o gabinete expressava a cultura e poder dos colecionadores que “se tornavam os guardiões da memória, aqueles que estavam em condições especiais e favoráveis para que o entendimento do processo da criação fosse entendido e, consequentemente, dominado” (Possas, 2005, p. 156).

Se nos gabinetes preocupava-se mais com a produção de conhecimento sobre os itens, nos Salões Reais foram buscadas medidas de segurança, preservação e conservação para controlar o acesso  de um público cada vez mais interessado nas obras-primas dos maiores mestres da arte europeia, riquezas de preço infinito, desconhecidas ou indiferentes à curiosidade dos estrangeiros pela impossibilidade de ver (Alain Roy, 1977) quando restritas aos palácios da monarquia. Técnicas de conservação, organização e exibição foram desenvolvidas por mestre e artistas da Academia que assumiram a função de décorateur dos Salões. As obras recebiam molduras douradas, eram fixadas nas paredes do chão ao teto a uma distância muito próxima entre si, ainda sem a pretensão de chamar a atenção do espectador para características particulares de cada uma delas. Preocupavam-se em padronizar a prática de instalar as obras da melhor maneira de modo que garantisse sua segurança, no entanto, buscavam apresentar desenvolvimentos históricos e similaridades temáticas (Obrist, 2014).

A ideologia que orientava o que deveria ou não ser exposto não deixava de estar em disputa, e a emergência de uma elite burguesa e de novos artistas colocava os Salões como importante meio de conquistar e valorizar a obra de um “gênio criativo” da época (Hauser, 1951). Nos Salões eram abertos espaços a discussões sobre o desenvolvimento de correntes artísticas e a formação do gosto que influenciariam a opinião pública e o mercado das artes. Era evidenciada uma mudança de rota no entendimento do campo artístico com influência do pensamento iluminista representado na crítica de arte. Tal qual a prática crítica empreendida nos gabinetes, nos Salões também é desenvolvida a capacidade e habilidade de examinar, avaliar minuciosamente e finalmente julgar e categorizar. Portanto, a forma como as obras eram dispostas nos Salões indicava a emergência de um sistema de fundamentos construídos para legitimar o que é ou não relevante.

Ainda que a Academia e os ditames da História da Arte mantivessem a reputação dos Salões, as informações sobre as obras de um colecionador deveriam circular pelo mercado das artes e os especialistas, artistas, jornalistas e críticos de arte deveriam preocupar-se com a aprovação pública. Denis Diderot (1713-1784), graduado mestre em Artes pela Universidade de Paris, frequentava os Salões e produzia cartas e ensaios criticando os métodos da Academia em uma escrita que narrava a experiência dos Salões in situ, muito próxima ao espectador que descobre, observa, descreve, analisa e julga as obras de arte expostas (Petitdemange, 2021).

Quando os Salões do Louvre se abrem ao público como Museu Central das Artes da República, após a Revolução Francesa em 1793, o caráter “circulante” das informações sobre as obras de arte operado pelos críticos passa a operar no sentido da educação do público. Buscou-se democratizar o acesso à arte cumprindo o “interesse público” de preservar o patrimônio e orientar a compreensão histórica da sociedade a partir do referencial nacionalista francês. A história narrada ao longo de suas galerias reunia as coleções de obras de Arte antes restritas aos Salões a artefatos retirados de territórios dominados em guerras napoleônicas. As obras e artefatos em exposição serviam de estandarte da soberania francesa, fornecendo os modelos normativos de cidadania, gosto, educação, progresso, etc. (Bennett, 2013; Preziosi & Lamoureux, 1997).

Além da preservação do patrimônio contra a deterioração causada pelo tempo, manuseio do público e o risco de violência ou roubo sob responsabilidade do conservateur de musée, as obras e artefatos eram submetidos a processos técnicos e científicos no que se denominava “cura” (Bruno, 2008). Isso envolvia a seleção, coleta, registro, análise, organização, armazenamento e divulgação desses objetos com o propósito de identificá-los, interpretá-los e prepará-los para exposição. Tais processos envolvem, ainda nos dias atuais, procedimentos presentes na curadoria.

A diversidade de objetos, a necessidade de ordenamento e a exibição levaria a especialização do Museu em disciplinas, inclusive artísticas, e a construção de narrativa histórica a partir da exposição. A organização do acervo do Louvre, no final do século XVIII, buscava responder a categorias universalizantes, separando os elementos a partir do que os diferencia e os reunindo a partir de semelhanças, conforme prescrito nos gabinetes de curiosidades. Os artefatos eram apresentados conforme alinhamento à uma perspectiva de história singular e linear (tempo darwiniano), apresentando as obras em sua totalidade, em caráter enciclopédico e permanente, o que lhe atribuiria o status de “patrimônio” e reforçaria a função pedagógica em direção ao progresso.

Ao analisar o modo de funcionamento dos Museus Nacionais no século XVIII, os historiadores de arte Preziosi & Lamoureux (1997) identificam o desejo de compartilhar certas características comuns e propriedades únicas  quanto à forma ou princípios de formação no que se refere ao indivíduo, nação, grupo étnico, classe, gênero ou raça tal qual as ideologias do nacionalismo romântico. Os autores compreendem que as exposições em museus podem ser vistas como histórias fictícias, artefatos para a criação da narrativa moderna. Os artefatos e obras de arte, utilizados pela história da arte e museologia como objetos de estudo, delineiam aspectos significativos do personagem, nível de civilização, ou grau de conhecimento social, cognitivo ou ético eles representam as histórias de pessoas, mentalidades e povos a partir de evidências convincentes das relações causais do passado com o presente, certos tipos de relacionamentos desejáveis entre nós e outros, encenam narrativas para demonstrar avanço ou declínio de um indivíduo ou nação.

Os Museus de História não são repositórios passivos de artefatos; em vez disso, moldam ativamente a forma como entendemos e interpretamos o mundo. São, portanto, instrumentos sociais – dispositivos orientados à fabricação e à manutenção da modernidade por meio da produção de conhecimento: tecnologias epistêmicas, tal como qualquer outra ferramenta ou aparelho utilizados para compreender e navegar no mundo (Preziosi, 2012). São constituídos, no entanto, por uma rede de elementos em um jogo de poderes e de saberes que, por vezes, incorporam sentidos variados, construindo gêneros de uma ficção imaginativa moderna.

Ainda que os museus tenham empreendido esforços de acessibilidade ao conhecimento erudito produzido e exibido em suas exposições, no século XX as suas narrativas ainda obedeceriam a estereótipos e hierarquias linguísticas. Enquanto tecnologia epistêmica, são operadas por determinados agentes que lutam pela manutenção de suas narrativas e de seus privilégios.

A pesquisa sobre os públicos de museus europeus empreendida por Bourdieu & Darbel (2007) nos anos 1960 indicam que diferentes públicos orientam sua experiência nos museus a partir linguagem simbólica (relativa) traduzida a partir de “um arsenal de palavras que permitem dar nome às diferenças e constituí-las ao nomeá-las (…) Com certeza, é possível amar de paixão, à primeira vista; mas, isso só acontece depois de ter lido muito, sobretudo, em relação à pintura moderna” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 82).

Os discursos expositivos tradicionalmente reproduzem os códigos mantidos pelos conservadores, pessoas provenientes de camadas privilegiadas da sociedade, “escolhidos por cooptação, segundo o jogo das relações pessoais e das tradições familiares (…) Eram, quase sempre, amadores de arte afortunados aos quais o museu não garantia carreira, nem retribuição (ou, então, somente no plano simbólico)” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 145). Não atuavam como administradores ou como pesquisadores, tampouco assumiam o papel de pedagogos, voltando sua prática ao “público que lhe parece digno de sua vocação”. Como uma  ‘sociedade’ (no sentido restrito do termo), reuniam personalidades em relações de interconhecimento bastante estreitas e intensas. “Eles satisfaziam-se com um status global, ambíguo e, por conseguinte, prestigioso, que lhes permitia aparecer, diante dos criadores, como guardiães da Arte e depositários da Tradição; diante dos universitários, como homens de ação e técnicos da Arte; e diante dos marchands, como estetas desinteressados” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 143). Ou seja, a fruição do público não dependeria da decodificação da obra de arte em si, enquanto autônoma e regido pela estética, mas da posse de determinado capital econômico, cultural, social ou simbólico, como Bourdieu (1996; 2011) viria a afirmar posteriormente.

Arte Moderna e contemporânea em perspectiva

Se deixarmos o cenário europeu e migrarmos nosso olhar para o norte-americano, onde foram criados os primeiros museus voltados à arte moderna no início do século XX, observamos que a reprodução epistêmica de determinados códigos de organização do conhecimento se mantém sob domínio de determinadas classes sociais privilegiadas, embora o próprio conteúdo estético se altere.

O Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA foi fundado em 1929 a partir da iniciativa de três colecionadoras de arte moderna: Abby Aldrich Rockefeller, Lillie P. Bliss e Mary Quinn Sullivan. Seus nomes já as identificam como pertencentes à elite aristocrática norte-americana. O modelo de acervo e exposição construído para o MoMA foi dirigido pelo historiador e crítico de arte Alfred Barr (1902- 1981), que ocupou o cargo até 1943. Formado em Harvard, Barr foi aluno de Paul Sachs, ex-diretor do Fogg Art Museum e considerado o fundador da museologia moderna nos Estados Unidos, primeiro doador de obras ao MoMA. Barr esteve na Europa entre 1922 e 1937, quando conheceu as técnicas expositivas menos acumulativas e, com a preocupação de seguir uma narrativa realizadas por Alexander Dorner[2] no Landesmuseum em Hanover, frequentou a escola de arte e design Bauhaus, onde conheceu a teoria do campo de visão de Herbert Bayer (1946)[3], assim como apreendeu as técnicas de vocabulário visual de Willem Sandberg no Museu Stedelijk, na Holanda (1937-1945). Suas referências pessoais no campo das artes indicam a influencia da Academia em seus conhecimentos adquiridos e a possibilidade de viagens ao exterior, o que o destacam em posições de privilégio e oferecem reconhecimento às suas decisões enquanto diretor artístico do MoMA. Entre elas, Barr implementou o modelo arquitetônico do “Cubo Branco”, que, em contraste com a arquitetura e decoração de interiores de museus históricos, oferecia a ilusão de neutralidade e de autonomia das obras (O’Doherty, 2002). A incorporação e integração de elementos arquitetônicos e requisitos estruturais consideravam as habilidades de percepção dos visitantes e os elementos de comunicação e exibição seriam organizados em uma sequência estrategicamente planejada. Além disso, fez uso de suportes de comunicação visual com textos de parede, catálogos expositivos e anúncios das exposições. Este método ainda é utilizado, nos dias atuais, por museus de arte moderna e contemporânea em diversos países.

Figura 3: Cubismo e Arte Abstrata [MoMA Exh. #46, March 2–April 19, 1936]. Fonte: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/2748?installation_image_index=20.
Segundo Thomas McEvilley (1999), a desejada fruição da arte pretendida pela neutralidade do espaço expositivo do “cubo branco” no MoMA ainda ressaltava o status do museu como local elitista e sagrado para o mundo das artes, que espera uma sensibilidade específica do público, uma atitude do espectador, diferenciado em termos de classe e percurso cultural. A resistência das estruturas de poder inerentes ao cubo branco centra-se em condição “[…] de beleza imorredoura, da obra-prima. Mas na verdade é uma sensibilidade específica, com limitações e condições especiais que é tão glorificada. Ao sugerir a eterna ratificação de uma certa sensibilidade, o cubo branco sugere a eterna ratificação das reivindicações da casta ou grupo que compartilha de sua sensibilidade.” (McEvilley, 1999, p. 9). O museu elevava o objeto artístico a uma obra-prima glorificada interferindo, portanto, nas relações de poder entre a arte e o público.

Além da organização do espaço expositivo em “cubo branco”, Alfred Barr organizava as exposições a partir de correntes artísticas como o “impressionismo”, “cubismo”, entre outras, em ordem lógica e cronológica: “diagrama-torpedo”, que começava em 1875 e seguiria em movimento contínuo através do tempo. O diagrama orientava a compra de obras de artistas vivos e as vendas de obras com mais de cinquenta anos (política atualmente extinta). Apontava assim para um ideal de arte moderna como aquela produzida nos últimos 50 anos, enquanto influenciava também no valor das obras, não deixando de lado os critérios historiográficos aplicados à Arte, a quem respondia a seu grupo social de privilégios. Enquanto as vanguardas artísticas buscavam provocar o cânone da história da arte, Barr implementava uma metodologia de apresentação das correntes artísticas que trouxeram para a história da arte e da curadoria o sentimento modernista de ordem, hierarquia e clareza – visão linear eurocêntrica, em um momento histórico de ascensão do totalitarismo na Europa, que ameaçava a própria noção do modernismo emergente que ele mapeava. Mais uma vez, assim como na França napoleônica, os museus (agora dedicados à Arte Moderna de vanguarda) representavam uma narrativa hegemônica específica.

A partir da década de 1960, após a Segunda Guerra Mundial, embora os museus europeus estivessem debilitados e impossibilitados de receber acervos internacionais de arte moderna, a arte contemporânea ou arte pós-moderna despontava com artistas da vanguarda que traziam outras formas, conteúdos e funções. A desmaterialização que marca a Arte Conceitual provocava o afastamento dos objetos físicos em direção a processos, conceitos e experiências como formas válidas de expressão artística (Lippard, 1973)[1] – pop art, arte conceitual, arte minimalista, arte performativa, arte de rua – que não cabiam em narrativas lineares e progressões históricas previstas nos espaços arquitetonicamente programados de museus (Danto, 2006). Na busca por explorar sensações e compartilhar a crítica ao tempo presente, mais do que criar obras, os diretores artísticos passaram a trabalhar muito próximos desmistificando os museus e as galerias como espaços de legitimação das Artes.

Segundo Seth Siegelaub (1969), enquanto projeto político empreendido na época, os curadores, através de formatos expositivos expandidos e receptivos a novas possibilidades e questões propostas por novas formas de arte, seriam potencialmente capazes de desmistificar as estruturas ocultas  do mundo das artes: o papel dos museus, do colecionador e da produção da obra de arte. Em entrevista a Paul O’Nell, Siegelaub (2006) afirmou que os museus e galerias da década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos não atendiam, necessariamente, os desejos e ideias impostas pela própria natureza dos trabalhos artísticos em termos físicos e espirituais. Não se tratava apenas de espaço em termos físicos, mas quanto a ideia de um tipo de espaço sagrado, “semi-religioso” que as pessoas conhecem e visitam regularmente, “espaço de arte”. Afinal, o caráter mitológico do ambiente dedicado à “inspiração” construído como museu na antiguidade transformara-se em espaço canônico exclusivo para ter a existência artística conceitual assegurada. Ainda que alterasse o conteúdo, o público e mesmo as estruturas arquitetônicas ao longo da história, os museus e galerias mantinham essa aura sagrada.

Em um período em que os diretores artísticos de exposições temporárias assumiam uma assinatura criativa – e mesmo artística, autoral – dos eventos artísticos, e seu protagonismo era alvo de críticas pela interferência no efeito das obras de arte sobre o público, não apenas a função dos museus estava em disputa, mas dos artistas, do curador, dos colecionares e críticos.

Desde os Museus Modernos e Bienais de Arte Contemporânea, os sistemas de arte pretendem oferecer uma maior aproximação com os interesses dos artistas e do público oferecendo espaços para a manifestação de novos conceitos e novas narrativas de representatividade com menos códigos elitistas de linguagem.

A crítica de arte também se reposiciona no contexto da arte contemporânea. O filósofo e crítico Luiz Camillo Osório acredita que a crítica deva adaptar-se a novos espaços de produção e circulação para a arte, estar mais próxima do fazer artístico e do tempo da experiência artística nas exposições. Como “testemunha, que deve estar atenta aos fatos para poder trazê-los a público”, deve se deslocar do papel tradicional de um juiz do gosto sobre o objeto artístico. A escrita de um texto crítico não seria “sobre a obra”, a fim de “representar um sentido da obra analisada” –, mas uma “escrita com as obras” – que envolveria uma parcela de criatividade, “para [a crítica] se assumir de modo mais exploratório, participando do processo aberto de criação de sentido” (Osório, 2005, p.15-16).

Segundo o historiador e crítico de arte Terry Smith (2012), menos óbvios no discurso até o momento, mas igualmente importantes para o futuro, são as questões sobre como repensar a plateia, envolver os espectadores como co-curadores e o desafio de curar a própria contemporaneidade – em suas formas presentes, passadas e futuras (Smith, 2012, p.19).

À guisa de conclusão

Até que ponto o sujeito moderno, chamado a participar das experiências conceituais das exposições contemporâneas, como das transformações de design expositivo de Museus Modernos ou mesmo nas orientações pedagógicas de Museus Históricos esteve representado nas estruturas que legitimam as obras de arte?

A produção de narrativas artísticas e históricas existem, mas a direção da sua exposição e, principalmente, seu alcance, são determinadas pelo acúmulo de capital simbólico de grupos sociais em posições de poder dentro e fora das suas instituições. A história ocidental vem sendo contada a partir de narrativas expositivas em museus e exposições que orientaram um ideal de modernidade e procuraram manter determinada forma de compreender a pluralidade de vozes produzidas em diversas partes do mundo. No contemporâneo, no entanto, a direção destas narrativas em museus e exposições são pressionadas pela vanguarda artística, pela crítica e por ativistas sociais que reivindicam uma nova estética, novas categorias críticas e uma nova ética, colocando as remanescentes simbólicas do “sistema das artes” em confronto com o momento histórico.

Na contemporaneidade, a curadoria de exposições de arte tem se mostrado como um campo progressista de entendimento dessas novas experiências de mundo como visto principalmente em eventos “globais”, como as Documentas de Kassel, que abrem caminho a vozes dissidentes, saberes dos povos originários e afrodiaspóricos, além de levarem em conta questões de gênero e sexualidade. Uma disrupção que exige criatividade inovadora, fabulação, novas formas de interpretação do mundo, imaginação e valorização do sonho. A curadoria, assim como a crítica, tem se mostrado muito mais um trabalho coletivo do que uma ação individual.

A figura do curador está associada à intelectualidade e seus múltiplos campos de saberes, isso o capacita a nomear, classificar, validar e também criticar dentro de um arranjo curatorial. Se a curadoria ocupou o espaço da crítica produzindo conhecimento dentro do campo das artes, podemos destacar que, de fato, no contemporâneo algumas exposições são explicitamente críticas e podem aparecer como questionamentos aos produtos artísticos, a criatividade, a fatos históricos e até a injustiças sociais.

Os entendimentos tradicionais acerca da curadoria, de forma geral, podem compreender o espaço expositivo enquanto desenho arquitetônico que prestigia, eleva e mitifica determinadas representações. No entanto, ao assumir o cenário de disputa contemporâneo, os museus, ainda enquanto tecnologia epistêmica, podem se tornar laboratórios de produção de conhecimentos novos, novas narrativas e novas representações cênicas.

* Cristine Carvalho é doutoranda no Programa de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ com bolsa CAPES e foi pesquisadora visitante da Universidade de Miami com bolsa CAPES PRInt em 2022. Atua em projetos de pesquisa voltados à economia criativa e inovação social.
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SMITH, Terry. Thinking Contemporary Curation. Nova York: Independent Curators Internacional, 2012.
Notas
[1] Categorizados em Artificialia – objetos criados ou modificados por humanos, Naturalia – criaturas e objetos naturais (com um interesse particular para monstros), Exoticas – plantas e animais exóticos; e Scientifica – instrumentos científicos.

[2] Dorner promove mudanças no pensamento expositivo através da reorganização de quadros, de um modo menos acumulativo e com a preocupação de seguir uma narrativa. Cria, também, material impresso com dados das obras e das exposições e, ainda, etiquetas fixadas ao lado das produções artísticas com informações pertinentes à autoria, por exemplo (Cintrão, 2010).

[3] Bayer (1946) desenvolve a Teoria do Campo de Visão por onde se compreende a exposição como design/desenhos no espaço.
Dossiê
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ERA UMA VEZ UM CRÍTICO QUE FILMAVA: QUENTIN TARANTINO E A ARTE DE ANALISAR FILME

Empenhado em finalizar sua carreira como realizador com a marca de dez longas-metragens, numa carreira iniciada em 1992, com Cães de Aluguel, Quentin Jerome Tarantino abriu 2024 compondo o elenco de um projeto chamado The Movie Critic. Brad Pitt foi o astro escalado para assumir um papel central na trama sobre um crítico cinematográfico, de verve mordaz, que, na Califórnia da década de 1970, assinava uma coluna de resenhas numa revista pornô. “Ele fez carreira escrevendo sobre produções mainstream”, anunciou o cineasta, em depoimento colhido pelo site Indiewire.com, referindo-se ao fato de que o objeto da análise de seu protagonista são produções de grande orçamento e de larga penetração em circuito. “Ele é cínico como o inferno e seus textos são uma combinação do que o jovem Howard Stern (radialista americano famoso por polêmicas) e Travis Bickle (papel de Robert De Niro em Taxi Driver, de 1976) fariam se criticassem longas-metragens”. A declaração ilustra uma perspectiva desmistificadora sobre a arte de criticar obras fílmicas na mirada do diretor laureado com a Palma de Ouro de 1994, dada a Pulp Fiction, um thriller que mudou a forma de se escrever roteiros, desafiando linearidades e usando falas e fatos da cultura de massa em seus diálogos. Para o realizador que fez o sistema métrico dos sanduíches do McDonald’s ser assunto de uma conversa entre matadores de aluguel (o famoso Royale With Cheese, dito por John Travolta, no supracitado longa de 94), a persona do crítico carrega um simbolismo pop, e sua produção intelectual é capaz de transgredir padrões do que é obra-prima e do que é descartável.

Figura 1: Cena do filme Pulp Fiction
(Fonte: Pulp Fiction, 1994).

Após uma série de ataques sofridos pela imprensa europeia durante a exibição de Jackie Brown na competição pelo Urso de Ouro na Berlinale de 1998, Tarantino destilou ódio contra resenhas que reduziam seu cinema à violência e demonstrou repúdio em relação a críticas que se recusam a “conversar” com a proposta estética trazida por um filme:

“No dia em que um cineasta chamar um crítico pelo nome, seja de que forma for, por uma crítica negativa que escreveram contra seu trabalho, esse será o dia mais feliz da merda da vida desse resenhista. E eu nunca darei a um crítico que me tenha atacado o dia mais feliz da sua maldita vida”, disse o diretor ao site Deadline em entrevista de 21 de novembro de 2022, concedida ao repórter Mike Fleming Jr. Nessa conversa, ao admitir que “rouba” referências de tudo o que viu e vê, o realizador de Os Oito Odiados (2015) explica que, ao revistar clássicos e cults, em suas paráfrases e homenagens, ele se comporta como um crítico. Um crítico que filma. Faz crítica na ótica da dimensão genealógica que a crítica tem, como apontou José Carlos Avellar (1936-2016) em seu O Chão da Palavra, editado pela Rocco, em 2007:

A crítica que influi e contagia uma geração – e as gerações seguintes – é feita não só por profissionais, que escreviam com regularidade em jornais e revistas, como também pelo espectador. De certo modo, desenvolvemos nas Américas uma espécie de crítica de espectador, aquele que conseguia ver mais filmes e organizava qualquer forma de registro, arquivo ou fichário. Ler a crítica era parte do ritual cinematográfico. Os anos 60 foram o momento em que os filmes eram reflexão e reflexo, debate direto e vivo da realidade e vontade de nos definirmos diante dela. Alguns se bastavam nisso. Outros partiram dessa nutrição trazida pelos filmes para filmar e construir universos. (p.106)

Avellar costumava citar uma frase de Glauber Rocha (1939-1981), diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964): “Diretor é quem dirige filmes; cineasta é quem cria seu universo particular ao dirigir”. Depurava essa sentença do cineasta baiano dizendo: “Crítico é quem desbrava esses universos dos cineastas, rejeitando o lugar comum da epifania demiúrgica da criação, para construir uma semiótica daquele universo particular em busca de traços identitários (ou seja, marcas de autoralidade, registros de uma expressão poética própria, que gere um paradigma) (2007; p.205).

No exercício cotidiano de ver e rever e filmes que adquiriu ainda na infância, Tarantino tenta cartografar esses potenciais caminhos paradigmáticos de que fala Avellar a cada novo longa ou curta a que assiste, mesmo quando se trata de uma produção ignorada pela fortuna crítica. Entende que certos filmes são ignorados ou caem no esquecimento por uma desconexão com os anseios de uma época. “Filmes não podem ser reduzidos à carreira que fazem no fim de semana em que são lançados, pois, no estado de coisas da arte, esse é o período que menos importa em sua vida útil na memória dos cinéfilos”, disse Tarantino, na entrevista ao Deadline, enfatizando o fato de que “alguns longas são soterrados por não se encaixarem em códigos prévios de quem escreve sobre eles”.

Parte do que seriam esses “códigos”, por vezes determinados por sensos impressionistas e, mais tarde, depurados a partir de estudos capazes de dissecar planos fílmicos como linguagem e como narrativa, começaram a ser estabelecidos a partir de 1895, data encarada como marco zero da invenção do cinema como manifestação cultural (e tecnológica). Os códigos para se analisar filmes nascem em artigos publicados em jornais (em especial, no New York Times), em dezembro daquele mesmo ano, em reação à primeira projeção pública do cinematógrafo dos irmãos Louis e Auguste Lumière, na França. Mas eram textos descritivos, que almejavam refletir sobre a sinestesia gerada por filmes como A Saída dos Operários da Fábrica Lumière ou A Chegada de um Trem à Estação, pela fricção gerada por imagens em movimento vistas, pela primeira vez, em preto e branco numa tela. Nos EUA, só em 1908 o escritor Frank E. Woods (1860-1939) viria a se tornar o primeiro crítico a ter um espaço fixo para falar exclusivamente sobre a arte cinematográfica na imprensa americana, publicando no New York Dramatic Mirror, antes de se lançar como roteirista. Woods faz descrições detalhadas dos elementos cênicos e dos acontecimentos retratados nos primeiros filmes feitos em solo americano e inglês, mas consegue, em paralelo, abrir discussões sobre os dilemas morais de seus personagens. É um trabalho pioneiro, assim como o do editor italiano Ricciotto Canudo (1877-1923), fundador da revista Montjoie!, em 1913 (um dos periódicos que mais e melhor promoveram a pintura cubista). Em artigos de 1911, ele foi uma voz pioneira, na intelectualidade europeia dos anos 1910, a enxergar dimensão estética na produção cinematográfica, defendendo que filmes deveriam ser analisados não sob critérios de apreciação de gosto, mas, sim, a partir de uma teoria capaz de dissecar os meandros simbólicos da física por trás de corpos em deslocamento na tela.

O interesse de Tarantino, em seu The Movie Critic, não se detém sobre a cinemática, ou seja, o efeito que um corpo em movimento gera numa tela. Um de seus filmes de maior sucesso, Era Uma Vez… Em Hollywood (ganhador do Globo de Ouro de Melhor Filme de Comédia em 2020), aborda os bastidores da feitura de um longa e sua recepção pelo público mais interessado numa cultura de recepção de bases históricas. Para o diretor de Django Livre (2012):

“Eu gosto da História porque ela parece um filme. Um filme no qual eu posso entender comportamentos a partir de um determinado período e seu ethos. O trabalho de um narrador não é apenas escrever sobre si próprio, mas olhar para o resto da Humanidade e explorar a forma de falar das outras pessoas em seu tempo, de modo a entender as frases que utilizam. Minha cabeça é uma esponja. Ouço o que toda a gente diz, observo pequenos comportamentos idiossincráticos. Quando as pessoas me contam uma piada e eu me lembro dela, essa anedota passa a fazer parte do meu modo de olhar. Quando alguma pessoa me conta um causo interessante da sua vida e eu consigo me lembrar dele, encontro ali matéria de dramaturgia” (declaração do diretor dada ao site The Talk, em 2022).

Em declarações concedidas à imprensa em sua passagem pelo Festival de Cannes de 2023, Tarantino explicou que não concebeu The Movie Critic para fazer um balanço histórico da atividade jornalística ou acadêmica que se debruça sobre filmes em busca de um senso estético. Seu objetivo é dissecar um tempo no qual a opinião de um profissional de mídia poderia redirecionar as atenções do público leitor para um filme.

Não por acaso, o fetiche desse personagem idealizado como eixo dramatúrgico em The Movie Critic é um longa-metragem (real), outrora encarado como um título classe B na produção cinematográfica americana dos anos 1970, e hoje cultuado: A Outra Face da Violência (Rolling Thunder, 1977), de John Flynn (1932-2007). “É a melhor combinação já feita entre estudo de personagem e filme de ação”, escreve Tarantino nas páginas de seu livro Especulações Cinematográficas (2023, p.259), explicando que descobriu esse thriller em 1977, aos 14 anos, numa sessão dupla com Operação Dragão (1973), com Bruce Lee (1940-1973), que prestigiou na companhia de sua mãe.

Figura 2: Capa do livro Especulações Cinematográficas (2023)
(Fonte: Editora ‎Intrínseca, 1ª edição, 11 dezembro 2023).

Na trama escrita por Paul Schrader (roteirista de Taxi Driver e diretor de A Marca da Pantera) e por Heywood Gould (romancista e repórter), o Major Charles Rane (William Devane) regressa da guerra do Vietnã com status de herói, sendo coroado com uma série de condecorações em sua cidade natal. Preso por sete anos numa prisão militar vietcongue em Hanói, ele retorna alquebrado do front. Luta para estabelecer uma nova relação com sua mulher e com seu filho até que sua casa é invadida por criminosos que matam os dois e dilaceram sua mão. Sedento de revanche, Rane substitui seu punho decepado por um gancho e recorre à ajuda de um colega de farda, Johnny Vohden (Tommy Lee Jones), para se vingar dos bandidos, num banho de sangue.

Rodado em San Antonio, no Texas, ao custo de US$ 2 milhões, O Outro Lado da Violência fez carreira em circuito no mesmo ano de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg, e avançou até 1978, quando a Guerra do Vietnã passou a ser abordada, nas telas, como tragédia social, de forma nada romantizada, por dramas de sucesso como Amargo Regresso, de Hal Ashby (1929-1988), e O Franco-Atirador, de Michael Cimino (1939-2016). Perto desses dois longas, ganhadores de Oscar, o filme de Flynn era apenas um exercício comercial de exploração dos traumas dos combatentes estadunidenses, estilizado a partir da figura de um anti-herói com mão de ganho para atrair uma plateia das chamadas grindhouses.

O termo – traduzido no jargão industrial do audiovisual brasileiro como “cinema poeira” – se refere a salas de exibição das periferias das metrópoles onde era possível assistir a dois longas por sessão, com um único ingresso, mais barato do que a média do circuito. A saga do major Rane estava destinada a se notabilizar na plateia dessas salas e, posteriormente, em exibições na TV em horários destinados a filmes-pipoca de apelo violento, como é o caso brasileiro da sessão Domingo Maior, da TV Globo. Porém, algo mudou no lugar histórico desse filme no imaginário cinéfilo.

Essa mudança foi provocada por Tarantino, num devircrítico, não apenas nos artigos do livro Especulações Cinematográficas, mas em palestras que passou a ministrar. A mais importante delas, e mais significativa para o legado de Flynn, aconteceu durante o Festival de Cannes de 2023, quando foi convocado para ministrar uma palestra na mostra paralela Quinzena de Cineastas, antecedida por uma exibição (escolhida e comentada por ele) de A Outra Face da Violência.

Figura 3: Quentin Tarantino como convidado da palestra Quinzena de Cineastas
(Fonte: Divulgação/ Julian Ungano).

Quando concorreu à Palma de Ouro com À Prova de Morte (2007), Tarantino foi visitar a Quinzena a fim de acompanhar uma projeção, na Croisette, da cópia restaurada do outrora maldito Parceiros na Noite (1980), de William Friedkin. Ria de se acabar na poltrona, ao ver a versão estereotipada que o longa (com fama de maldito) trazia da cartilha dos longas de psicopata. Cerca de 17 anos depois, ele voltou lá para ministrar informalmente uma espécie de aula sobre a história do audiovisual. No balneário da Côte d’Azur, pessoas se estapeavam por um ingresso para ouvi-lo sobre sua própria cinefilia – uma história bonita.

Por um soldo de US$ 200 semanais, Tarantino passou o ano de 1985 batendo ponto na Video Archives, uma locadora de Manhattan Beach, Califórnia, onde fez amigos, reais e imaginários, devorando o acervo local, sobretudo o faroeste Rio Bravo (no Brasil o título é Onde Começa o Inferno), de 1959. É do VHS que vem a depuração de sua cultura cinematográfica, reforçada com o DVD, que chega ao convívio dos cinéfilos num momento em que ele já é um diretor de respeito, com o díptico Kill Bill – Vol. 1 (2003) e Vol. 2 (2004) em seu currículo. Mas o universo das fitas rebobinadas do Video Home System foi essencial para ele. A partir do início da década de 1980 quando a tecnologia informática permitiu o advento dos retângulos analógicos do VHS, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919. O VHS alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade – do Presente e do Passado, sobretudo – é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsters não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em Os Intocáveis, um filme de 1987. Ou seja… verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, ou seja, uma meta-vida, onde imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si.

Figura 4: Cena do filme Kill Bill Vol. II
(Fonte: Kill Bill Vol II, 2004)

É isso que ele foi explicar à Quinzena e é disso que se trata seu The Movie Critic, um filme que chega às telas num momento de mudança nas práticas de recepção do cinema, quando o VHS é um suporte defunto, suplantado (na atualidade) pelas plataformas de streaming. Entre o fim dos anos 1990 e meados de 2010, a tecnologia do DVD e do Blu-Ray ainda oferecia a cultura informativa dos extras. Hoje, o saber está diluído, e, na maioria das vezes, sem foco curatorial numa Babel de podcasts e blogs, como aponta Rodrigo Carreiro no artigo História De Uma Crise: A Crítica De Cinema Na Esfera Pública Virtual:

De certo modo, a crítica de cinema contemporânea parece estar migrando de um território (a imprensa clássica) para outro (o ciberespaço), onde reúne condições mais favoráveis para voltar a exercer o papel original que lhe cabia: incentivar um debate estético amplo e horizontal, sem opiniões impostas de cima para baixo, o que por si só já constitui uma atitude de resistência cultural.

Mudaram os suportes, sim, o que leva os Tarantinos do presente a se formarem de outra forma. Porém, a crítica de hoje – inclusive aquela que cineastas como o diretor de Pulp Fiction fazem parafraseando narrativas de colegas mitificados – segue reverente ao Evangelho da Autoria. É um credo que já soma sete décadas, iniciado a partir de 1951, em textos da revista Cahiers du Cinéma, em especial as pesquisas do crítico André Bazin (1918-1958), nas quais nasce o termo “autoralidade” em relação a filmografias que são marcadas por recorrências de engramas estéticos, ou seja, pela reiteração de um tema, ou de uma mesma abordagem formal, ou de um mesmo coletivo de atrizes e atores, ou da mesma investigação filosófica. Exemplo: 1) o recorrente e reiterado investimento da belga Agnès Varda (1928-2019) em devassar a semiótica do feminino na mídia e expor lugares-comuns sexistas; 2) a aposta de Spike Lee em tramas que exponham as vísceras racistas da sociedade americana; 3) a conexão de Luchino Visconti (1906-1976) com pilares da literatura europeia de diferentes fases (Lampedusa, Stendhal, Camus) para extrair da palavra literária o conceito estético de Belo.

Desde o início dos anos 1990, carregando consigo o saber que trouxe de suas fitas VHS, Tarantino se fez autor com sua forma particular de incluir conversas sobre práticas de consumo da cultura de massa em situações inusitadas de tensão, como a sequência de Cães de Aluguel discutem sobre sexualidade num videoclipe de Madonna ou como o clímax de Kill Bil: Vol. 2, no qual o chefão do crime (David Carradine) fala sobre os óculos do Superman. Mais do que isso, Tarantino levou a violência nas telas a um extremo onde ela se fratura como signo. Como diz Jean Baudrillard (1929-2007), “nenhum valor cultural desaparece pela escassez, mas, sim, pelo excesso”.

Na excessiva reação do ator Rick Dalton aos hippies assassinos que invadem sua casa em Era Uma Vez… Em Hollywood – usando um lança-chamas para dizimá-los -, Tarantino espatifa a brutalidade e nos expõe o âmago ridículo de sua prática a cada filme. The Movie Critic deve ter violência também. Sempre tem. Mas o que mais se espera dele é a reinvenção de filmes que seremos capazes de rever… e amar.

Figura 5: Diretor de cinema e roteirista, Quentin Tarantino
(Disponível em: https://mubi.com/pt/cast/quentin-tarantino).
* Rodrigo Fonseca é formado em Produção Editorial pela ECO/UFRJ, com especialização em Literatura Infantojuvenil pela UCAM, crítico de cinema, dramaturgo e roteirista, tendo assinado reportagens no Globo, no Estado de S. Paulo e no Jornal do Brasil, onde ainda é colaborador. Autor do romance “Como Era Triste a Chinesa de Godard” e da biografia de Renato Aragão (“Do Ceará Para O Coração Do Brasil”). Escreveu peças teatrais como Chico Xavier em Pessoa e François Truffaut: O Cinema É Minha Vida. É correspondente do site luso C7nema e repórter e crítico do Correio da Manhã.
Referências bibliográficas
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BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal. São Paulo, Papirus, 1992.

CARREIRO, Rodrigo. História de uma crise: a crítica de cinema na esfera pública virtual.In: Revista Contemporânea, Salvador, BA, v. 7, n. 2, 2009. Disponível em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/viewArticle/362. Acesso em 20.09.2015.

TARANTINO, Quentin. Especulações Cinematográficas. Rio, Intrínseca, 2023.
Dossiê
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DOS BRASIS: A CURADORIA COMO CRÍTICA E A CRÍTICA DA CURADORIA

Curadoria pode ser
– entre outras coisas –
uma vastidão de intenções
Ana Lira

Neste artigo buscarei traçar algumas considerações sobre a relação entre crítica e curadoria a partir da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, em cartaz no Sesc Belenzinho (São Paulo) de 3 de agosto de 2023 a 31 de março de 2024. A exposição tem curadoria geral de Igor Simões, que, além de curador, é professor de História da Arte na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), juntamente com Marcelo Campos, curador-chefe do Museu de Arte do Rio e professor no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Lorraine Mendes, curadora da Pinacoteca de São Paulo. O projeto teve origem em 2018, com a pesquisa desenvolvida por Simões e Hélio Menezes, antropólogo e curador de exposições como Histórias Afro-Atlânticas (MASP, 2018) e da 35ª Bienal de Arte de São Paulo (2023).

É certo que muitas exposições de artes (áudio)visuais hoje têm colocado o foco sobre as temáticas etnicorracial, de gênero e sexualidade – aquilo que poderia ser chamado de “minorias”, o que no sentido usual pode soar um tanto pejorativo e acuado, mas que, no sentido que lhe emprestaram Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997; 2002), é justamente o que, por não ser a maioria, por diferir do Mesmo, das configurações que aprisionam as possibilidades de ser e de existir, têm como imanência a possibilidade de criação de outros modos de vida. No entanto, diante da própria concepção histórica de arte e do cenário social, político e econômico em que vivemos, todos os empreendimentos são necessários para que se promova a arte produzida por artistas negros, negras, indígenas e LGBTQIAPN+ etc. e se dê visibilidade a ela.

Um dos aspectos que mais chamam a atenção em exposições como Dos Brasis é a miríade de suportes que compõem os trabalhos apresentados – entre tapeçarias, pinturas, fotografias, vídeos, instalações e esculturas. A diversidade de suportes dá a ver a riqueza da arte contemporânea produzida no Brasil e como o próprio fazer artístico se relaciona com a produção de conhecimento, dialogando, respondendo ou tensionando a história instituída, branca e hegemônica, que buscou recalcar o racismo histórico e cotidiano no país. Cria-se também uma contrafação à ideia de nacionalidade que se constituiu como uma “‘etnicidade fictícia’ e homogênea que no Brasil firmou-se através do recalque das profundas tensões, separações e violências étnicas e sociais” (Cunha, Bacelar, Alves, 2004).

Daí também a força – que remete à perspectiva curatorial – do título evocando Brasis no plural. Nesse sentido, não se trata de uma crítica em relação à curadoria apenas, como dois âmbitos – crítica e curadoria – que entrassem em oposição, mas da própria curadoria como crítica e como modo de produzir conhecimento e pensamento. Ou, ainda, para usar os termos propostos por Michel Foucault (1990) ao dissertar sobre o que é a crítica, trata-se de perceber um movimento que dá a ver as relações entre saber e poder na manutenção do significado de arte.

O texto de Foucault é evocado aqui na medida em que ele propõe uma genealogia da emergência do que ele vem a chamar de “atitude crítica”. Essa atitude, que se configura como um modo de se colocar diante do mundo e das questões políticas e sociais em uma determinada sociedade, Foucault a localiza na formação do que viriam a ser os Estados-nação, como tensionamento ao fato de ser governado de uma determinada forma e por um determinado grupo social hegemônico. Isso teria, segundo ele, desencadeado o que denominou como uma atitude crítica em resposta a uma atitude coercitiva do poder, e, mais ainda, ao vínculo entre saber e poder: “Justamente no momento em que se põe o problema: como ser governado, vai-se aceitar ser governado desse modo?” (Foucault, 1990). Na ocasião, ele trata desse tema da crítica em uma conferência proferida na Sociedade Francesa de Filosofia em 1978, posteriormente publicada em 1990. O que interessa aqui destacar é justamente o modo como ele articula a emergência de uma atitude crítica à governabilidade e ao exercício de um poder de Estado.

Ler a atitude crítica por essa chave permite ressaltar o modo como a composição de muitas das obras presentes na exposição Dos Brasis, como veremos adiante mais detalhadamente, está imbuída desse gesto crítico, visto que tratam justamente do desacordo em relação a um modo de governabilidade baseado no racismo e na formulação de uma nacionalidade cuja hegemonia política é branca, ainda que fundada sob um ideal de mestiçagem cultural que foi usado como fomento para uma política de embranquecimento social do país. Dessa forma, a produção artística que se apresenta na exposição reencena, na contemporaneidade, algo do que provocou essa atitude crítica: a que se destina o exercício do poder sobre determinados setores da sociedade? Como lidar com o vínculo entre poder e saber quando estes incidem de forma violenta sobre corpos e existências consideradas à margem da humanidade ou, na perspectiva mais recente, à margem de uma cidadania plena? Como lidar com o vínculo entre poder e saber quando estes foram usados para justificar atrocidades como o tráfico escravista, a política de branqueamento e a consequente situação de indigência cognitiva produzida pela precarização das condições de vida da população negra brasileira?

Isso fica evidente, por exemplo, na segmentação da exposição em diferentes núcleos, intitulados, a saber: Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá, como também no aporte teórico-crítico que fundamenta a linha curatorial, amparado em autores e autoras tais como Beatriz Nascimento, Emanoel Araújo, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez e Luiz Gama.

Luiz Gama foi um proeminente advogado baiano que na segunda metade do século XIX liderou o movimento abolicionista, assumindo a defesa jurídica de pessoas escravizadas que se achavam em situação ilegal e em processos de alforria. Foi crítico do regime monarquista e do racismo (na época, preconceito de cor) no Brasil. Também atuou como escritor, tendo publicado em vida o livro Primeiras trovas burlescas, em 1859. É conhecida a sua frase, proferida durante um júri, de que o escravo que mata o seu senhor, seja em que circunstância for, o faz sempre em legítima defesa, o que certamente inspirou o título de um dos núcleos da exposição Dos Brasis.

Alberto Guerreiro Ramos, por sua vez, foi um sociólogo, baiano de Santo Amaro da Purificação, pioneiro na formulação do racismo enquanto uma patologia do branco brasileiro, em livro publicado em 1957 (Sovik, 2009, p. 52). Guerreiro Ramos criticou os estudos do que designou como “negro-tema”, ou seja, estudos realizados por pesquisadores brancos que tomam a população negra como objeto, percebendo sua “contribuição” à nação (mestiça) na forma de música e culinária, mas que ignoravam o “negro-vida”, isto é, não como um objeto estanque e com uma referência ancorada no passado, mas como agente em constante movimento, fundamental para a construção do país. Foi, nesse sentido, um dos pioneiros na formulação do que hoje se constitui como os estudos da branquitude no Brasil.

Beatriz Nascimento foi uma historiadora sergipana, radicada no Rio de Janeiro, que, nos anos 1970 e 1980, propôs desenvolver uma história dos quilombos no Brasil, ou mesmo uma história do Brasil a partir dos quilombos, principalmente através da importância da cultura bantu na formação quilombola e na constituição do próprio país. Em seu projeto, Beatriz Nascimento buscava conceituar a noção de quilombo para além da historiografia, como explicita ao falar sobre as dificuldades e pretensões de sua pesquisa, dentre as quais a demanda por especialistas de outras áreas das ciências humanas, como geografia, antropologia e linguística, bem como de áreas tecnológicas (Nascimento, 2021, p. 148). Dentre as contribuições de Beatriz Nascimento, destaca-se a conceituação do racismo como ideologia e a defesa da formulação de uma história da população negra e do Brasil protagonizada pela população negra, que, segundo ela, ainda estaria por ser feita (Nascimento, 2021, p. 45).

Lélia Gonzalez, historiadora e filósofa mineira radicada no Rio de Janeiro, também teve importante atuação política e intelectual nos anos 1970 e 1980. Dentre suas inúmeras contribuições, destaca-se o modo como articulava a discussão sobre racismo no Brasil às questões de gênero e ao sexismo, percebendo tanto no movimento feminista uma lacuna em relação ao debate racial quanto no movimento negro uma necessidade de se articular ao debate feminista e de desigualdade de gênero. Lélia formulou a ideia da categoria político-cultural de amefricanidade, destacando a relevância do aspecto cultural enquanto força que perpassaria o debate racial e de gênero em diferentes países da América Latina, ou, como ela gostava de chamar, a Améfrica Ladina (Gonzalez, 2020, p. 127). Esta noção cunhada por Lélia Gonzalez inspirou o título do núcleo Amefricanas na exposição Dos Brasis.

Por fim, Emanoel Araújo, artista plástico e curador, baiano de Santo Amaro da Purificação, foi diretor do Museu de Arte da Bahia nos anos 1980 e diretor curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo, até o ano de sua morte, em 2022. Teve uma carreira proeminente no Brasil e no mundo. Em seus trabalhos escultóricos, tinha como referência fundamental a cultura negra, em especial o candomblé. Uma de suas esculturas mais conhecidas chama-se justamente Baobá, nome de uma árvore sagrada de origem africana, que esteve exposta no núcleo de mesmo nome da exposição Dos Brasis, ocupando o lugar central no salão das esculturas (Figura 12).

Nota-se, desse modo, que não só as obras, mas sobretudo o ato curatorial esteve bastante atento às temáticas apontadas acima, ao propor núcleos que respondem e dialogam de formas distintas com questões também distintas entre si acerca do debate racial e da cultura negra nos Brasis, em detrimento de divisões que priorizassem cronologia, estilo ou linguagem. É importante destacar ainda que, além da pesquisa curatorial, houve uma residência artística on-line intitulada “Pemba: Residência Preta”, com mais de 450 inscrições e 150 residentes selecionados, reunindo artistas, educadores, curadores e críticos.[1]

Em um texto sobre a 35ª Bienal de São Paulo, que ocorreu em grande parte paralela à Dos Brasis, Bernardo Carvalho (2023) afirma que, de um modo geral, as obras expostas na Bienal que buscam reparação histórica recusam contradições, salvo o vídeo Uma mulher pensando, de Aida Harika Yanomami.

Muitas na Bienal são obras da vontade (e não da contradição), são asserções, expressão da cultura (e não da dúvida). Não há ruído nem problema entre o que querem dizer e o que dizem; estão do lado do que é justo, do que é consenso entre quem as busca como confirmação. E nesse sentido são moralmente inquestionáveis. (Carvalho, 2023)

Segundo ele, essa “adequação moral” das obras apresentadas estaria de acordo com o “pacto garantido pela cultura” de quem vai à Bienal. Sendo assim, a curadoria da Bienal estaria se afastando de um dos pilares da tradição moderna da ruptura, das elipses e da valorização das contradições, estabelecendo mesmo uma guerra contra as descontinuidades entre arte e vida, o que representa, para ele, uma reciclagem da lógica da moral e dos costumes, ainda que constituam propostas de outra moral e de outros – e novos, mas talvez nem tão novos assim – valores. Esse distanciamento do valor da contradição na arte, e a adequação a um pacto moral, acaba ferindo, para o autor, o princípio crítico de que uma obra não pode ser, ao mesmo tempo, artística e inquestionável, ou seja, de que a função da arte é justamente pôr em dúvida as certezas, por mais idônea que seja a moral de que a obra está imbuída.

No entanto, o que Carvalho parece não levar em consideração é todo um “estado de coisas” em relação ao qual certas obras se constituem. É evidente que o questionamento de uma mulher yanomami sobre a cultura yanomami coloca em xeque a romantização que se faz do outro como ser uno e coerente em relação à sua própria cultura, como uma concepção estanque ideal e desprovida de movimento – problema este levantado por Gayatri Spivak em relação ao pensamento dos “filósofos da diferença” Foucault, Deleuze e Guattari em Pode o subalterno falar?

Essa postura de tomar o “outro” como um sujeito uno, ao passo que se critica a unidade da noção de sujeito erigida na modernidade ocidental, não deixa de guardar um ranço colonial segundo o qual os indígenas não teriam direito à dúvida quanto à sua própria identidade que aparece muitas vezes como boia de salvação para um modelo de sociedade em decadência – e que elege, nessa alteridade idealizada, novas certezas e paradigmas capazes de salvar a humanidade.[2]

Ainda assim, esse questionamento não diminui a força com a qual as obras que recusam expor e explorar as contradições, no que ele chama de uma “moral inquestionável”, interpelam o estado de coisas de um país profundamente conservador e excludente, e cuja realidade social e política ancora-se em princípios racistas, misóginos e fóbicos em relação às expressões dissidentes de gênero e sexualidade. Ao relacionar nacionalidade e cisgeneridade enquanto prática de gênero colonial, a artista e professora Dodi Leal chama a atenção para o modo como os “fluidos corporais são controlados pelo Estado, e o poder de decisão sobre o corpo também. Todas essas formulações do Estado que vão reger nossas corporalidades têm um caráter de definir quem é verdadeiramente da nação” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 15).

Se, na concepção de Carvalho, o público da Bienal de 2023 – e poderíamos igualmente estender à exposição Dos Brasis – é um público que aceita o pacto garantidor da moral apresentada pelas obras – e pela curadoria –, o que por si só já é uma assertiva questionável, isso não diminui a contundência da escolha curatorial – e da crítica empreendida através da curadoria.

Nesse sentido, é importante perceber o papel da curadoria, para além das obras tomadas “individualmente”, e sua maior ou menor adequação ao pacto garantidor da moral. Castiel Vitorino Brasileiro, uma das artistas presentes em Dos Brasis, ressalta, em diálogo com Dodi Leal, a necessidade de “ter mais pessoas negras, trans e indígenas fazendo curadoria, fazendo crítica” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 16). Nesse sentido, o que Dos Brasis apresenta, por exemplo, ao reunir obras de artistas negros e negras que vão do século XVIII ao século XXI, pode ser lido como uma reescrita de boa parte da história da arte no Brasil, uma história que precisa ser revista e refeita continuamente, como destacou Beatriz Nascimento. Uma história da arte que já se faz ao mesmo tempo no presente e no porvir.

O fato de se coadunar com a proeminência e a projeção que vozes e discursos dissidentes da hegemonia branca vêm ganhando nos últimos anos, a despeito de um recrudescimento avassalador do conservadorismo, não significa que a curadoria ou as obras apresentadas estejam isentas de contradições ou, mesmo que estejam, que isso se configure como um aspecto negativo. Assumir essa perspectiva significa reconhecer a importância de uma assertividade que possa abandonar o paradigma das contradições para que se constitua como força de uma história a ser (re)escrita, sobretudo quando se tem em vista o que precisa ser feito em termos de reparação e reconstrução. Retomando mais uma vez os dizeres de Castiel Brasileiro,

A contradição é um encontro de caminhos, e nesse encontro existe a decisão por qual caminho tomaremos, um dos caminhos pode ser a eliminação da contradição, mas também nessa encruzilhada, nesse encontro de caminhos é possível cultuar justamente esse momento onde tudo se desfaz. (Brasileiro; Leal, 2021, p. 11)

Quando pensamos no cenário cultural e político atuais, esse problema surge diante do imenso desafio ético, estético, social e civilizacional que se coloca contemporaneamente.

A primazia que a curadoria ou a figura do/a curador/a assumem a partir dos anos 1970, o que no Brasil se firma a partir dos anos 1980, em detrimento da figura do crítico, conforme aponta Francisco Alambert (2014), parece sugerir uma oposição, estampada no termo que intitula a chamada para o texto de Alambert publicado no portal Sesc SP: Curadoria versus crítica de arte. Segundo ele, o curador, em vez de se limitar ao espaço de “conservador” de obras de arte e de seu acervo, passa a atuar e a ser compreendido como um autor e produtor na medida em que cria um discurso ou um sentido em uma exposição, num processo de mediação entre o mercado da arte e o público.

Essa criação de conexões entre a arte e o público através de um discurso ou de uma curadoria que produz uma exposição com um nexo de significação e valor – ou seja, com um sentido e uma direção captáveis pelo público – parece bastante evidente em Dos Brasis, sobretudo na segmentação em núcleos nos quais diferentes aspectos das relações raciais são trabalhados: Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá. Aspectos como a crítica à percepção da população e da cultura negras como objetos de estudo estanques e solidificados no tempo, o tensionamento com a perspectiva de uma convivência racial harmônica através da asserção e exposição do conflito racial, as organizações político-sociais de combate ao racismo, a valorização de elementos das culturas e religiões negras e afro-diaspóricas como valores civilizacionais e modos de organização social.

No entanto, o que se busca ressaltar aqui é que, a despeito de uma crítica enquanto percepção externa à curadoria, essa atitude curatorial já é por si só uma atitude crítica frente a um discurso – ou a discursos – hegemônicos provenientes da historiografia oficial, ou mesmo de uma história da arte. No caso, em Dos Brasis, a crítica a essa historiografia e à percepção de Brasil se dá já no título da exposição, que opta por tratar um país no modo plural, fazendo emergir no espaço expositivo os embates, as contradições, os tensionamentos.

Nesse sentido, a curadoria e as obras não parecem se adequar a uma nova conformação moral, mas justamente evocam uma inquietação com um estado de coisas, inclusive do próprio modo de funcionamento do mercado da arte. Na exposição, tais provocações se iniciam ainda na parte externa do Sesc Belenzinho, na instalação Sinalização Profética, de Augusto Leal, com placas nas quais se leem os avisos “Curador simpático a 200m”, “Patrocinador imparcial a 600m”, “Produção cultural sensível a 300m” (Figuras 1, 2 e 3). Ou, ainda, no trabalho de Paula Duarte intitulado Nem o sabão é neutro (Figuras 4 e 5), que evoca, para quem leu Stuart Hall (2016) em “O espetáculo do ‘outro’”, os usos e abusos do racismo nas propagandas de sabão que trabalham subjacentemente com o binômio limpo/sujo – e que não se limitam ao sabão Pears e ao período colonial inglês analisado por Hall, conforme demonstram casos recentes na publicidade (Santahelena, 2017; BBC Brasil, 2016).

Castiel Brasileiro, por sua vez, relaciona a questão da limpeza e da sujeira à construção do sujeito moderno como sujeito límpido, segundo a formulação proposta por Denise Ferreira da Silva em A dívida impagável, destacando, ainda, que no contexto brasileiro a busca da limpidez e da higienização se relaciona também com “a eliminação de um passado contraditório” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 23), diante do qual a neutralidade é no mínimo constrangedora, para usar o termo cunhado no sabão por Paula Duarte.

Figuras 1, 2 e 3: Augusto Leal, Sinalização Profética, 2023. Fonte: Arquivo pessoal.

Figuras 4 e 5: Nem o sabão é neutro. Paula Duarte, 2023. Fonte: Arquivo pessoal.

Os livros de Manuel Querino, as esculturas de Mestre Valentim (Figura 6) e o Autorretrato de Wilson Tibério (Figura 7) compõem, junto às intervenções sobre os desenhos de Johann Moritz Rugendas e Jean-Baptiste Debret realizadas por Marcus Deusdedit (Figuras 8 e 9), uma historiografia de arte brasileira a partir da perspectiva negro-africana e diaspórica. Mas não se trata apenas de revisionismo histórico, trata-se da rearticulação de elementos de significação para uma historiografia e para uma configuração de Brasil que demonstram a passagem do negro-tema destacado por Guerreiro Ramos para o “Branco tema” e para o “Negro vida”, como o ferro que remete aos assentamentos de pomba-gira sobre veludo vermelho, que ocupam o espaço inicial da exposição, na obra de Jade Maria Zimbra, Xica Maria, Teu Amor para mim não é Fantasia (Figura 10), e emprestam outro sentido às joias de crioula ao lado das quais a obra se encontra (Figura 11).

Figura 6: Mestre Valentim, Conjunto de três continentes: África, América e Ásia, século XVIII.
Figura 7: Autorretrato de Wilson Tibério, 1941. Fonte: Arquivo pessoal

Figuras 8 e 9: Marcus Deusdedit: Intervenção sobre Moinho de Açúcar, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (2022), Intervenção sobre Mercado de Escravos, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (2022) e Intervenção sobre Retorno de um Proprietário, de Jean Baptiste Debret, 1816 (2022). Fonte: Arquivo Pessoal.
Figura 10: Jade Maria Zimbra, Xica Maria, Teu Amor para mim não é Fantasia, 2021.
Figura 11: Joias de crioula. Fonte: Arquivo pessoal.

Os elementos ligados ao candomblé e à umbanda, bem como o uso de línguas como o iorubá, contribuem também para a percepção de Brasis que coexistem e que tensionam, porque agenciam outras forças capazes de dar sentido e valor ao que seja uma política da verdade no jogo entre poder e saber e na busca por legitimação de sensibilidades que existem à margem da ordem vigente. Modos de vida, por exemplo, que se colocam Entre o obé e o livro (2023), segundo o título de uma instalação de Pandro Nobã, composta por gamelas pintadas em tinta acrílica e uma tela pintada a óleo.

Destaca-se, ainda, como o espaço expositivo contribui para o impacto da exposição e o próprio fazer curatorial, como fica evidente no salão de esculturas, onde se encontra uma réplica da estrutura de madeira feita por Mestre Didi para o Ilê Asipá, terreiro de culto a Egungun no qual ele era sacerdote, debaixo da qual figura o Baobá de Emanoel Araújo (Figura 12).

Figura 12: Espaço expositivo do Sesc Belenzinho na exposição Dos Brasis. Fonte: Arquivo pessoal.

A epígrafe deste artigo é de um texto-poema-comentário acerca do projeto Conversas Críticas sobre Curadoria promovido pelo Instituo Moreira Salles, em que a curadora e artista Ana Lira traz algumas questões e impasses acerca da curadoria, do mercado de arte e da missão cada vez mais desafiadora de descentralizar a circulação da produção artística do eixo Rio-São Paulo. Missão que requer ir a fundo em Brasis nem sempre tão visíveis às curadorias que se encontram nos circuitos hegemônicos de arte. O presente artigo buscou, portanto, contribuir para o debate em torno das relações férteis entre crítica e curadoria tomando como tema a curadoria da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, que se afirma como uma alternativa contundente e compartilhável com o público de crítica tanto à história instituída na hegemonia branca e nacional das artes brasileiras quanto ao racismo histórico e cotidiano no país.

* Felipe Wircker Machado, doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, é bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (PPRER-CEFET/RJ), onde leciona, e desenvolve pesquisa pós-doutoral também no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), através do projeto intitulado “Candomblé, Verger, Bastide e o confronto com o racismo no Brasil”.
Referências bibliográficas
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Audiovisual

Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro [exposição]. Pesquisa de Hélio Menezes e Igor Simões. Curadoria geral de Igor Simões. Curadoria adjunta de Lorraine Mendes e Marcelo Campos. Sesc Belenzinho (São Paulo), 2 de agosto de 2023 a 28 de janeiro de 2024.
Notas
[1] As aulas públicas que fizeram parte do programa da residência estão disponíveis no canal do Sesc Brasil no YouTube: https://www.youtube.com/@SescBrasil.

[2] Castiel Vitorino Brasileiro fala sobre o tema da salvação em diálogo com Dodi Tavares Borges Leal, cf. Brasileiro; Leal, 2021.