Lenin e a Microsoft | de Marco Schneider

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é investigar alguns aspectos da articulação hegemônica entre economia, tecnologia e ideologia no universo atual das comunicações, bem como a possibilidade de articulações alternativas.
Empregamos o termo “comunicações” no plural, seguindo a distinção proposta por Lima (2004, passim), para definir um objeto de estudo que engloba as indústrias culturais, a informática e as telecomunicações, setores cada vez mais convergentes tecnológica e empresarialmente, em decorrência da revolução digital.

As comunicações são, hoje, simultaneamente agente econômico por si só destacado, base tecnológica imprescindível para a economia em geral e aparelho ideológico, não necessariamente “do Estado”, mas certamente das corporações midiáticas e do bloco de poder, mais ou menos coeso, que elas constituem com seus parceiros econômicos.

O emprego da noção “aparelho ideológico” pode sugerir que pretendemos requentar teorias supostamente obsoletas sobre o poder manipulatório da mídia. Como essa não é nossa intenção, cabe esclarecer desde já que não compartilhamos com as chamadas “teorias conspiratórias”, segundo as quais grupos de capitalistas sórdidos maquinariam, de modo consciente e organizado, a manipulação das mentes; tampouco com a crença em uma onipotência da mídia sobre as consciências. Por outro lado, é igualmente importante adiantar, acreditamos que a manipulação ideológica existe, pois é estruturalmente necessária à manutenção da sociedade de classes, ainda que seus agentes não “conspirem” de modo plenamente deliberado ou planejado, do mesmo modo como milhões de pessoas não “planejam” a cada dia, de modo coordenado, ir ao trabalho na mesma hora, lotando ônibus, trens, ruas e avenidas; não planejam, mas o fazem; e embora o efeito ideológico das ações das mídias sobre as consciências não possa rigorosamente ser identificado como absoluto ou unívoco, é suficientemente intenso e tendencialmente homogêneo a ponto de merecer alguma atenção.

2 QUADRO CONCEITUAL DE REFERÊNCIA

O quadro conceitual de referência dessa investigação é composto por algumas categorias marxianas um tanto ausentes do debate contemporâneo no campo da comunicação, mas cuja atualidade, propriedade heurística em relação ao nosso objeto e pertinência epistemológica ao campo pretendemos demonstrar.

Essas categorias são as seguintes: consciência de classe; ideologia; luta de classes; base e superestrutura; forças produtivas e relações de produção; modo de produção; trabalho. Como contribuição original ao debate, incluímos nesse rol o problema do gosto, que temos pesquisado nos últimos anos.

Iniciaremos a exposição com um esclarecimento desse quadro, que carrega em seu bojo, assim esperamos, a justificativa de sua escolha.

2.1 CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Partindo da hipótese de que a substituição do capitalismo por formas superiores de socialização é desejável e não é inviável, mas ao mesmo tempo sabendo que uma operação de tal magnitude traz consigo a exigência da ação consciente de um sujeito coletivo, cuja identidade corresponde à posição que este ocupa em meio às relações de produção, portanto em meio à luta de classes, a consciência de classe permanece uma categoria necessária para o desenvolvimento de qualquer perspectiva de superação das sociedades de classe atuais. Ora, como não faria sentido hoje desconsiderar o papel das comunicações na formação das consciências e identidades em geral, é importante reinserir o debate teórico a respeito da consciência de classe em nosso campo.

A “consciência de classe” já foi um tópico muito debatido no legado marxiano, junto à problemática da ideologia, da “falsa consciência” etc. Embora tenha sido marginalizado por um século de descentramentos e mortes do “sujeito”, o fato de a subordinação estrutural do trabalho ao capital sequer ter sido arranhada, mesmo no chamado “socialismo real”, justifica nossa posição, cuja defesa se inicia desfazendo mal entendidos.

1º mal entendido: “a consciência de classe brotará espontânea e fatalmente das contradições entre forças produtivas e relações de produção”. Não é bem assim, embora, em mais de um momento, Marx e Engels possam ter dado margem a essa leitura, como na seguinte passagem de “A sagrada família”: “Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode ‘imaginar’ de quando em vez como sua meta. Trata-se ‘do que’ o proletariado ‘é’ e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ‘ser’.” (Marx; Engels, 2003a, p. 49)

Uma leitura apressada desta passagem pode justificar as velhas críticas ao caráter fatalista da “missão histórica” atribuída ao proletariado pelo marxismo, que teria sido desmentida pela história. Tal leitura, porém, pode ser evitada, considerando-se, por exemplo, que aquilo que o proletariado “será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ‘ser’” ainda não pôde ser feito, ou talvez não dê certo.

Diversas passagens de Marx e Engels desmentem a leitura fatalista vulgar, deixando menos margens a dúvidas sobre sua posição a respeito dessas questões, ao apresentarem uma concepção da ação revolucionária do proletariado como possibilidade real, como uma tendência histórica necessária, como uma potência concreta do seu ser, não como uma determinação absoluta, garantida, irrevogável e cuja vitória esteja assegurada de antemão. Sem entrarmos em minúcias exegéticas, basta conferir os primeiros parágrafos do “Manifesto comunista” (MARX; ENGELS, 2003 b), onde, numa bem conhecida panorâmica analítica macro-histórica da luta de classes, é apontado, como um dos seus desdobramentos possíveis, o risco do “aniquilamento das classes em confronto”.

2º mal entendido: “as diversas formas de consciência seriam mecanicamente redutíveis às determinações econômicas”. Mészáros (1993, p. 75-119), em um texto intitulado “Consciência de classe necessária e consciência de classe contingente”, nos ajuda a refutar essa crítica, com uma reflexão que parte precisamente da passagem acima citada de “A sagrada família”, confrontando-a com uma outra, de Gramsci. Para Mészáros, ambas “ilustram, melhor que qualquer outra coisa, o dilema central da teoria marxista das classes e da consciência de classe.” (idem ibidem, p. 75) Por esta razão, é pertinente conhecermos também o texto de Gramsci:

Pode-se excluir a ideia de que, por si só, as ‘crises econômicas’ produzem diretamente eventos fundamentais; elas podem apenas criar ‘circunstâncias mais favoráveis’ para a propagação de certas maneiras de pensar, de colocar e resolver questões que envolvem todo o desenvolvimento futuro da vida e do estado. O elemento decisivo em toda a situação é a força, permanentemente organizada e pré-ordenada por um longo período, que pode ser utilizada quando se julgar que a situação é favorável (e ela é ‘favorável apenas até o ponto em que esta força exista’ e seja plena de ardor combatente); portanto, a tarefa essencial é a de atentar, paciente e sistematicamente, para a formação e o desenvolvimento dessa força, tornando-a até mesmo mais homogênea, compacta, ‘consciente de si mesma’. (GRAMSCI, apud MÉSZÁROS, op. cit. p. 76)1

Na sequência, Mészáros esclarece que a contradição entre a ideia de Marx de que o proletariado será “‘forçado’ a realizar sua tarefa histórica”, (MÉSZÁROS, op. cit., p. 76) e a de Gramsci, que “insiste em que a própria situação histórica é favorável somente na medida em que o proletariado já tiver conseguido desenvolver uma força organizada completamente consciente de si mesma” (idem ibidem, p. 76), é só aparente. Porque Marx e Gramsci estão tratando de coisas diferentes: o primeiro refere-se ao ‘ser social’ do proletariado, isto é, aos “determinantes complexos de uma ontologia social” 2, não a “crises econômicas’ – termos da polêmica de Gramsci contra o ‘economicismo vulgar’.” (idem ibidem, p. 76) Ou seja, não são posições antagônicas, mas complementares, pois as crises econômicas são apenas um entre outros fatores que podem favorecer a ação revolucionária das massas, embora não um dos menos importantes. Para Gramsci, porém, ainda mais importante é a pré-existência, em relação às crises econômicas, de “uma força organizada completamente consciente de si mesma”, condição para que essas crises se tornem, efetivamente, um elemento desencadeador da ação revolucionária. Esta ação, por sua vez, também faz parte do ser social do proletariado, enquanto potência, cuja atualização depende em grande parte não só de crises econômicas em termos genéricos, mas mais especificamente do desenvolvimento das forças produtivas entrar em contradição com as relações de produção e da emergência da consciência de classe. Essa contradição, contudo, embora constitua condição necessária para a emergência da consciência de classes em escala massiva, não é uma garantia de sua emergência, nem do resultado final da luta.

3º mal entendido: “a ‘consciência de classe’ verdadeira se oporia à ‘falsa consciência’ assim como a verdade se opõe à falsidade, ou a ciência à ideologia.” Na verdade, a noção marxista de consciência de classe “verdadeira” ou “falsa” é bem mais simples. Nos termos de Mészáros: “a consciência de classe, de acordo com Marx, é inseparável do reconhecimento – sob forma de consciência ‘verdadeira’ ou ‘falsa’ – do interesse de classe, baseado na posição social objetiva das diferentes classes na estrutura vigente da sociedade.” (MÉSZÁROS, op. cit., p. 88-9)
O que há de efetivamente decisivo na relação entre “posição social objetiva” e consciência de classe “verdadeira” ou “falsa”? A “subordinação estrutural necessária do trabalho ao capital na sociedade de mercadorias. […] O interesse de classe do proletariado é definido em termos de mudança dessa subordinação estrutural.” (idem ibidem, p. 92) Mas, afinal, por que o proletariado não se dá logo conta de seus “verdadeiros” interesses? A responsabilidade não cabe integralmente à indústria cultural, como queriam Adorno e Horkheimer, antes deriva do fato de que

os interesses a ‘curto prazo’ dos indivíduos particulares, e mesmo da classe como um todo, em um momento dado, podem estar em oposição radical ao interesse de mudança estrutural ‘a longo prazo’. (É por isso que Marx pode e tem que apontar a diferença fundamental entre a consciência de classe contingente ou “psicológica” e a consciência de classe necessária). (idem ibidem, p. 94)

Marx denominou esta “contradição entre a contingência sociológica da classe […] em um momento determinado […] e de seu ser como constituinte do antagonismo estrutural do capitalismo […] de contradição entre o ‘ser’ e a ‘existência’ do trabalho”, considerando que “o fator crucial na resolução dessa contradição é […] o desenvolvimento de uma consciência de classe adequada ao ser social do trabalho.” (idem ibidem, p. 95) 3

4º mal entendido: “o intelectual marxista se julgaria possuidor dA ciência e dA verdade sobre passado, presente e futuro da humanidade, cabendo-lhe ‘conscientizar’ o proletariado, isto é, iluminá-lo e doutriná-lo nas complexas sutilezas do materialismo dialético.” A posição marxista é bem menos pretensiosa. Diante do problema de como a consciência “falsa” pode ser superada pela “verdadeira”, ou como a “consciência contingente”, imediata, pode elevar-se à “consciência necessária”, que parte da posição econômica de classe do proletariado, mas é mediada pelo conhecimento acerca da subordinação estrutural do trabalho ao capital e do interesse (ainda predominantemente inconsciente) do trabalho de suprasumir essa subordinação estrutural, a contribuição do intelectual, embora necessária, é ao mesmo tempo mais modesta e mais abrangente, envolvendo, além da educação (conscientizar é simplesmente educar, não “iluminar”), análise, crítica e planejamento econômico, político e cultural, conjunto que abrange a questão da tecnologia. Se o intelectual não serve para isso, serve para quê?
Esperamos ter demonstrado que a consciência de classe “necessária” não brota espontaneamente do solo econômico, ao mesmo tempo em que certas condições econômicas são indispensáveis para o seu florescimento. Contudo, diante da hipótese bastante verossímil de essas condições já terem sido ao menos em parte atingidas, o desafio presente é descobrir (ou inventar) o que pode ser feito para estimular a emergência da consciência de classe necessária, articulada com um ‘pathos’ que lhe corresponda, em uma escala que torne efetivamente viável a perspectiva de superação das sociedades de classe subordinadas ao capital, em um horizonte de tempo calculável em algumas décadas – dizemos “em algumas décadas” porque “não temos um cronograma tão folgado para a necessária transformação da potencialidade em realidade. Isto deve acontecer com a agravante de uma enorme urgência.” (MÉSZÁROS, 2002, p. 267)

Enfrentar este desafio requer pensar o papel das comunicações no sentido de bloquear ou contribuir para a emergência da consciência de classe necessária. É um papel parcial, mas nem por isso negligenciável. Requer também, metodologicamente, o exame atento de certos conceitos que nos permitam pensar adequadamente a questão, bem como uma revisão dos esforços anteriores empreendidos no mesmo sentido, ao menos de alguns dos mais relevantes, de modo a podermos identificar sua eventual atualidade. Assim, após nos debruçarmos sobre a consciência de classe, tratemos agora de uma categoria vizinha, que traz consigo o complicador de ser um dos termos mais polissêmicos das ciências sociais: ideologia.

2.2 IDEOLOGIA

O termo “ideologia” foi cunhado na passagem do século XVIII para o XIX, por Cabnis e Destutt de Tracy, para denominar seu projeto de uma teoria das ideias4. Algumas décadas depois, adquiriu, com Marx e Engels, um novo sentido, claramente negativo. Ideologia, então, passou a designar especificamente as ideias que, de um modo ou de outro, legitimam a dominação de classe, estejam essas ideias situadas no discurso religioso, filosófico, jurídico ou econômico. A noção marxiana de ideologia, porém, não deve ser grosseiramente confundida com a de superestrutura, pois esta última envolve também a ciência e as artes, as quais, para Marx e Engels, não eram necessariamente ideologias.

Um sentido mais genérico do termo ideologia, popularizado por Engels, é expresso na noção de “falsa consciência”5. Aqui, é importante fazer alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, “falsa consciência” não é necessariamente o mesmo que “consciência contingente”, dado que esta última pode, em um determinado momento, corresponder à “consciência necessária” – no momento em que “ser” e “existência” do proletariado consigam suprasumir seu estado de contradição. Assim, a “falsa consciência” é a “consciência contingente” somente quando esta não corresponde à “consciência necessária”. Em segundo lugar, a noção de “falsa consciência” pressupõe, de fato, uma consciência verdadeira, mas esta, como vimos, não está na ciência, em termos genéricos, como pensa o positivismo, mas especificamente na compreensão científica da subordinação estrutural do trabalho ao capital. Assim, “falsa consciência” não é sinônimo de uma ilusão qualquer, mas de uma forma específica de ilusão, necessária a perpetuação do sistema e por ele mesmo possibilitada.
A seguinte passagem de Marx nos ajuda a entender melhor como a “falsa consciência” não consiste propriamente em uma irracionalidade qualquer, mas numa irracionalidade aparentemente racional, que é funcional ao sistema e que deriva da própria irracionalidade deste último:
A relação entre uma porção de mais-valia, de renda monetária […] com a terra é em si ‘absurda e irracional’; pois as magnitudes que aqui são aferidas, uma em relação à outra, são ‘incomensuráveis’ – por um lado, um ‘valor de uso particular’, um pedaço de terra de tantos metros quadrados, e, por outro, o ‘valor’, especialmente a mais-valia. Isso na verdade expressa apenas que, sob determinadas condições, a propriedade de tantos metros quadrados de terra permite ao proprietário conseguir à força uma certa quantidade de trabalho não-remunerado, que o capital conseguiu chafurdando nestes metros quadrados, como um porco em batatas. Mas, ao que parece, a expressão é a mesma se alguém desejasse falar da relação entre uma nota de cinco libras e o diâmetro da Terra.
Entretanto, a ‘reconciliação das formas irracionais’ sob as quais certas relações econômicas aparecem e se ‘afirmam na prática’ não diz respeito aos agentes ativos destas relações em sua ‘vida cotidiana’. E, como estão ‘acostumados’ a se movimentar em meio a tais relações, não acham nada estranho ali. Uma ‘absoluta contradição’ não lhes parece ‘nem um pouco misteriosa’. Sentem-se tão à vontade quanto um peixe dentro d´água, entre manifestações que estão separadas de suas conexões internas e são ‘absurdas’ quando isoladas. O que Hegel diz em relação a certas fórmulas matemáticas se aplica aqui: o que ‘parece irracional’ ao senso comum é racional, e o que lhe ‘parece racional’ é irracional.
(MARX, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 478)

Isto ocorre porque, com o advento do capitalismo, radicaliza-se o processo mediante o qual a consciência imediata, contingente, dos sujeitos objetificados, passa a constituir-se em função da posição que ocupam enquanto forças produtivas (ou improdutivas) no circuito de produção e troca de mercadorias, ou seja, a partir de sua posição de classe6. Para o marxismo, esta consciência é “consciência necessária” quando compreende o caráter fetichista do processo e orienta a ação dos sujeitos objetificados no sentido de sua superação; é “falsa consciência” quando se rende à realidade “invertida”, quando não compreende este caráter e não se empenha em superá-lo na prática. Contudo, essa inversão não é uma espécie de “falha” fortuita do pensamento, mas uma forma coerente de pensamento derivada de uma realidade invertida: “A inversão não está no pensamento acerca dos ‘objetos’ (mercadorias), mas nos próprios ‘objetos’ (mercadorias), de modo que as representações ideológicas são reflexos corretos de uma realidade por assim dizer ‘falsa’, e não espelhamentos falsos ou invertidos da realidade.” (MAAR, 1996, p. 45)

Nessa mesma linha de raciocínio, Mészáros pensa a “falsa consciência” como um momento subordinado da ideologia, esta última entendida em um sentido mais amplo, enquanto consciência prática (de classe) necessária em uma sociedade dividida em classes antagônicas:

O reconhecimento das necessárias limitações da ideologia – originadas do papel que ela foi instada a desempenhar na preservação de sociedades profundamente divididas – significava que a questão da emancipação humana radical não poderia ser vislumbrada sem se considerar também a supressão final das formas distorcidas de consciência social. (MÉSZÁROS, 2004, p. 469)

Além disto, e isso é muito importante, “[…] a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialistamente ancorada e sustentada.” (idem ibidem, p. 75) É por isso que:

[…] se as causas identificáveis de mistificação ideológica fossem primariamente ideológicas, elas poderiam ser contrapostas e revertidas na esfera da própria ideologia. […] o impacto maciço da ideologia dominante na vida social como um todo só pode ser apreendido em termos da profunda afinidade estrutural existente entre as mistificações e inversões práticas, por um lado, e suas conceituações intelectuais ideológicas, por outro. (idem ibidem, p. 479)

Nesse sentido, o pensamento de Mészáros aproxima-se e complementa o do “velho” Lukács, de “Ontologia do ser social”:

[…] a correção ou falsidade [de uma ideação] não bastam para fazer de uma opinião uma ideologia. Nem uma opinião individual correta ou errônea, nem uma hipótese, uma teoria etc., científica, correta ou errônea são em si e por si uma ideologia: podem apenas […] tornar-se [uma ideologia]. Somente após se tornar veículo teórico ou prático para combater os conflitos sociais, quaisquer que sejam eles, grandes ou pequenos, episódicos ou decisivos para o destino da humanidade, elas são ideologia. (LUKÁCS, apud LESSA, 2002, p. 108) 7

Essa compreensão do conceito, para Mészáros, é decisiva, pois “sem se reconhecer a determinação das ideologias pela época como a consciência social prática das sociedades de classe, a estrutura interna permanece completamente ininteligível.” (2004, p. 67)

Mészáros, assim, emprega o conceito em um sentido mais neutro, na linha de Lênin, Gramsci e Lukács, diferente – mas não oposto – do sentido negativo popularizado por Marx e Engels8. Nesta acepção neutra, ideologia corresponde àquelas ideias, falsas ou verdadeiras, capazes de mobilizar amplos contingentes da população. Neste registro, podemos tranquilamente falar em uma ideologia socialista – o que para Marx e Engels não faria sentido – e em uma ideologia burguesa – o que para Marx e Engels seria uma redundância. Em todos os casos, a ideologia não é uma mera ilusão, correspondendo sempre, ainda que de forma altamente mediada, a um determinado estágio da articulação dialética entre forças produtivas e relações de produção, ou, em outras palavras, da luta de classes.

3 O PROBLEMA DA “PASSAGEM”, AS COMUNICAÇÕES E O GOSTO

Podemos agora retomar a questão da passagem da consciência de classe “contingente”, enquanto “falsa consciência”, à consciência de classe “necessária”. Talvez tenha sido o “jovem” Lukács, em “História e consciência de classe”, quem avançou mais nesse sentido, em seu esforço de teorizar a ideologia a partir da forma concreta como aquilo que ele denominava consciência “psicológica” poderia elevar-se, na prática, à consciência “atribuída”. 9
As noções de consciência de classe “psicológica” e “atribuída”, em Lukács, correspondem, respectivamente, às noções de consciência contingente e necessária, em Marx. Nos termos de Mészáros:

[…] a famosa distinção de Lukács entre a consciência de classe ‘atribuída’ ou ‘imputada’ e a consciência ‘psicológica’ tem sua origem na ideia marxiana que opõe consciência de classe verdadeira ou necessária – ‘atribuída ao proletariado’ em virtude de ele ser ‘consciente de sua tarefa histórica’[…] – à contingência do ‘que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado, no momento, considera como sua meta’. (MÉSZÁROS, 1993, p. 86)

Tratando das diferenças ideológicas entre, de um lado, os operários empíricos, e de outro o proletariado enquanto “classe universal”, Lukács diferenciou a “consciência psicológica” dos primeiros da “consciência atribuída” da última, enxergando no partido comunista bolchevique a mediação entre contingência e necessidade, por ser a incorporação atuante, a mediação ativa, o portador da verdadeira consciência de classes do proletariado, à qual as massas operárias empíricas fatalmente teriam que ascender.

A ideia engenhosa do Partido como encarnação da consciência de classe “atribuída” do proletariado, contudo, se pode ter feito algum sentido conjuntural, em termos teóricos e práticos, por ocasião da Revolução de Outubro e até meados da década de 20, revelou-se, a longo prazo, irrealista e mesmo trágica, dado que o Partido, enquanto mediação singular entre o particular – o proletariado empírico – e o universal – o proletariado enquanto “classe universal”, ao invés de superar dialeticamente sua contradição, efetuando sua conciliação em um nível superior – a extinção de todas as classes e a superação da sociedade de classes –, por assim dizer estagnou a contradição em um estágio a longo prazo insustentável, mediante a subordinação do particular e do universal concretos ao “universal abstrato” encarnado na hipostasia do singular. Em termos menos abstratos, o Partido converteu-se, de unidade organizacional revolucionária, em unidade gerencial de extração de trabalho excedente sob uma forma estatizada, ainda que em nome de uma quimérica “acumulação primitiva socialista”. Como bem questionou Kurz (1993), acumulação de quê? De capital! Acumulação de recursos ou de riquezas a serem distribuídos, ainda que de modo menos desigual do que nos estados capitalistas, como legitimação de uma “relação social” (RUBIN, 1980) ainda calcada na extração de trabalho excedente como fim em si mesmo, apesar dos discursos apologéticos.

Enfim, os rumos tomados pelo stalinismo e pelos PCs por ele orientados desacreditaram, até segunda ordem, a elegante mas problemática articulação entre método dialético e estratégia revolucionária de Lukács, em “História e consciência de classe”10. A esperança de Rosa Luxemburgo de que essa consciência emergiria quase que espontaneamente das massas, no decorrer da própria luta, mostrou-se igualmente irrealista.

Permanecemos, assim, com nosso dilema: como efetuar, na práxis, a passagem da consciência de classe “contingente/psicológica” à consciência de classe “necessária/atribuída”? Não se pretende aqui resolver de uma vez por todas as complicadas implicações dessa problemática. Mas talvez o projeto gramsciano de composição gradual de um bloco histórico não “putchista”, que aproxime intelectuais e trabalhadores, visando a conquista da hegemonia ideológica na sociedade civil mais do que a conquista do Estado, siga sendo a mais fértil para se pensar a questão nos dias de hoje.
Para atualizar esse projeto é absolutamente necessário incorporar ao debate a centralidade econômica, tecnológica e ideológica que as comunicações exercem na sociedade civil – e, em certa medida, no Estado.

Aqui chegamos ao ponto onde talvez possamos oferecer uma contribuição original ao problema da “passagem”. Para isso, retomaremos uma hipótese que desenvolvemos em outra ocasião11, segundo a qual o gosto é a inconsciência sensível da ideologia e na ideologia; dela provém e ao mesmo tempo a sustenta; é sua inscrição no corpo. E a assimilação reificante dos gostos ao modo de vida capitalista foi a única forma, além da violência, de minimizar as contradições de seu desenvolvimento, e é a única forma de assegurar sua sobrevida insana e destrutiva. As ideologias só “colam” se seduzirem os gostos. E aí o papel das comunicações se mostra sob uma nova luz.

O gosto, usualmente identificado à esfera do consumo12, só se torna restrito a essa esfera a partir do momento em que é subordinado aos imperativos do capital na esfera da produção, isto é, na medida em que quem trabalha não controla no que trabalha, nem como trabalha, nem os frutos do trabalho. O fim dessa subordinação constitui talvez o objetivo principal do projeto socialista. Nos termos de Marx, “em uma sociedade futura, na qual o antagonismo de classe tenha deixado de existir, na qual não haverá mais classes, o uso não mais será determinado pelo ‘tempo mínimo de produção’; mas o ‘tempo’ de produção será determinado pelo grau de sua ‘utilidade social’.” (MARX, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 176)

Assim, para além dos limites do fetiche do valor (em um nível mais alto de abstração) ou da solvência monetária (em um nível mais imediato), se é o gosto que efetivamente orienta o consumo, ele passaria a constituir não somente a única meta da produção, mas carregaria a própria produção de inspiração, no sentido empregado por Abraham Kook13 e seus comentadores, conforme podemos conferir nas belas alegorias que seguem, referentes ao tema bíblico da “queda”:

“As árvores que dão o fruto […] se tornaram matéria inferior e perderam seu gosto. Esta é a queda da ‘Terra’, em função da qual esta foi amaldiçoada, quando Adão foi igualmente amaldiçoado por seu pecado. Mas todo defeito é destinado a ser corrigido. Assim, estamos seguros que chegará o dia em que a criação retornará ao seu estado original, quando o gosto da árvore será o mesmo que o do fruto. A ‘Terra’ se arrependerá de seu pecado e os caminhos da vida prática não mais obstruirão o deleite do ideal, que é sustentado pelos degraus intermediários apropriados em seu caminho rumo à realização, e irá estimular sua emergência de potência em ato”14.

Nesta passagem, Rav Kook lida com o famoso ‘midrash’15 concernente ao ‘pecado da Terra durante os Seis Dias da Criação’. No terceiro dia, Deus ordenou à Terra que ‘produza ÁRVORES FRUTÍFERAS que dêem frutos’. A Terra desviou-se do comando original e limita-se a produzir ‘árvores que dão frutos’. Aos olhos dos Sábios, a Terra pecou por não produzir ‘árvores frutíferas’, isto é, árvores cujos troncos e galhos tenham o gosto do fruto. Ao invés disso, temos somente o exterior marrom usado para fogueiras, enquanto somente o fruto possui um gosto bom. […] Rav Kook explica este ‘midrash’ como uma parábola: fruto = os fins; gosto ‘[ta’am]’16 = a inspiração; árvore = os meios para que se atinja os fins. […] Originalmente os meios para se atingir os fins deveriam estar plenos do mesmo sentimento de prazer e inspiração que resulta dos fins. A satisfação dos fins penetraria o processo dos meios. Porém, o pecado da Terra deixou toda a inspiração nos fins, restando os meios sem gosto.[…] 17

A Terra, então, “pecou” (isto é, falhou), já que os troncos e galhos das árvores não possuem o gosto dos frutos. Se os troncos e galhos simbolizam os meios para se atingir a meta (o fruto), e deveriam ser da mesma ordem de inspiração (de gosto, sabor/saber) que os fins, não o são porque a Terra falhou. É aqui, pois, um problema da matéria (da imanência). Por outro lado, a missão transcendente do homem, isto é, o sentido de sua vida, seria redimir o “pecado” / falha da Terra, restaurando / realizando a ordem “divina”, ao tornar os meios de se atingir um fim tão inspiradores (saborosos e plenos de significado) quanto o próprio fim.

Depurado o tom religioso do texto, está dito aí que, através de sua práxis, a princípio penosa, o homem deve transcender o “pecado original da Terra”, redimindo-a,18 e estabelecer aquela ordenada por “Deus”, segundo a qual os meios têm que ser inspiradores e sagrados, isto é, plenos de sabor e significado, de gosto. Essa passagem adquire um significado materialista extraordinário se lida à luz do seguinte trecho de “A sagrada família”:

[…] o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma ‘penúria’ absolutamente imperiosa – a expressão prática da ‘necessidade’ –, que já não pode mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem supra-sumir suas próprias condições de vida. Ele não pode supra-sumir suas próprias condições de vida sem supra-sumir ‘todas’ as condições de vida desumana da sociedade atual, que se resumem em sua própria situação. Não é por acaso que ele passa pela escola ‘do trabalho’, que é dura mas forja resistência. (MARX; ENGELS, 2003 a, p. 49)

Sob esse prisma, a “ordem divina” pode ser pensada como um ideal radicalmente humano, na medida em que cabe ao homem a responsabilidade por sua realização. Esta responsabilidade, todavia, não precisa ser pensada como uma obrigação exterior, mas como um poder de autorrealização, já que se trata de uma parceria com “Deus”, e o homem traria em si o elemento “divino”, isto é, a potência de transcender historicamente as limitações naturais imediatas – consequentemente, as limitações sociais subsequentes – no devir histórico. Como ensina Paulo Blank, quando se refere ao “encontro fundador de Deus e Moisés”:

Quando o último pergunta em nome de quem ordenará ao faraó que liberte os hebreus, a voz que lhe fala de dentro do fogo diz: ‘Ehiê Asher Ehiê – Serei O Que Serei’. A versão grega do texto bíblico traduzirá a mesma frase como ‘Sou O Que Sou’. São palavras diferentes (…) O hebraico, que não possui o presente do verbo ser, permite pensar um mundo criado à imagem da mutabilidade e da transformação (…) Diríamos, então, junto com Guikatilla, cabalista espanhol do século 11, que aquele que realiza os preceitos e os atos justos ‘é como se construísse Hashém – o nome de Deus’. Construir o Nome é, sem dúvida, intrigante. Transforma-nos em possíveis parceiros na construção de um futuro que, chamado de Deus, traz em si um princípio que aponta para o futuro como o lugar da revelação. Como sabemos, o sentido judaico da revelação é também o cenário de um mundo de justiça e paz e não a salvação individual da alma. (BLANK, 2002, p. 3)

O que isto significa? Tendo a necessidade do trabalho sem inspiração, sem significado, sem sabor, isto é, sem gosto, se imposto desde os primórdios, seguiu-se o desejo de um paraíso que nos libertasse da condenação ao trabalho, “realizado” na religião, mediante a construção discursiva de um projeto divino que promete o paraíso e explica as razões de seu adiamento temporal, e nas mais diversas utopias políticas19, com sua elaboração de um projeto humano de teor aproximado.

Mais de um autor já apontou essa familiaridade entre a “escatologia” marxista e o messianismo: trazer à Terra o reino dos céus pela ação humana. De fato, ambas têm em comum a insatisfação com uma realidade – em todo caso social, ainda que isto não esteja sempre evidente no discurso religioso – passível de transformação, insatisfação a partir da qual ocorre a elaboração ideal dos meios e fins necessários à tarefa, que irão variar conforme as condições históricas favorecerem ou não o desenvolvimento de projetos menos ou mais realistas.

Ocorre, porém, que a despeito do que possa haver em comum entre messianismo e marxismo, é óbvio que os fundamentos teóricos e a forma específica de ambas as perspectivas variam imensamente, sobretudo no que tange ao fato de que, e agora iremos desfazer mais um mal entendido corrente, o marxismo não concebe nenhum “fim da história”, nenhuma “idade de ouro” definitiva, instaurada de uma vez por todas, mas o fim da pré-história, o início da história humana, isto é, consciente de si, livre de fetiches, não alienada:

O que dá sentido à opção humana pelo socialismo não é a promessa enganadora de um absoluto fictício (um mundo do qual todas as possíveis contradições estejam eliminadas para sempre), mas a possibilidade real de transformar uma tendência ameaçadoramente crescente de alienação numa tranquilizadora tendência decrescente. Isso, em si, já seria uma conquista qualitativa no sentido de uma superação prática, efetiva, da alienação e reificação. Mas outras conquistas importantes são possíveis, não só no plano da inversão da tendência geral, mas também em relação ao caráter substancialmente diferente – autorrealizador – das formas específicas da atividade humana, livres da sujeição a meios alienados a serviço da perpetuação das relações sociais de produção reificadas.
A substituição das “mediações de segunda ordem” capitalistas, alienadas e reificadas, por instrumentos e meios de intercâmbio humano conscientemente controlados é o programa socio-historicamente concreto desta transcendência.
(MÉSZÁROS, 2006, p. 228)

Nesse sentido, as comunicações seriam talvez os mais importantes dentre esses “instrumentos e meios de intercâmbio humano conscientemente controlados”. Por outro lado, considerando seus principais usos atuais, as comunicações, em especial as indústrias culturais, têm contribuído antes para a manutenção da separação dos fins, dos meios e da inspiração, isto é, para a perpetuação da divisão da sociedade em classes: 1) privilegiando o sabor sem saber na esfera do consumo e o saber sem sabor, meramente instrumental, na esfera da reprodução social, calcada na ideologia da divisão trabalho (alienado) / lazer (consumista); 2) subordinando toda produção simbólica socializada a imperativos econômicos de ganho de escala; 3) retroalimentando de modo reificante gostos e padrões de comportamento; 4) martelando a defesa da sociedade de mercado, direta ou indiretamente, na quase totalidade de seus produtos (jornalismo, publicidade, entretenimento); 5) forjando um imaginário coletivo que é em grande parte comum, apesar de desprovido de grande parte dos lastros das experiências concretas comuns, e é altamente diferenciado, sem lastro em boa parte das experiências concretas diferenciadas, borrando tendenciosamente as fronteiras entre vivência e representação, estimulando assim os mais alucinados “bovarismos” integrados; 6) homogeneizando gostos, práticas e mundivisões através de um processo de recalcamento de produção simbólica, que existe em potência e em ato nas experiências concretas extramidiáticas – não-comuns em escala massiva, mas fragmentadas em classes e frações de classes, gêneros, etnias, faixas etárias, nacionalidades etc. –, mascarando assim a luta de classes e seus desdobramentos culturais. Mascarando-a, porém, sem eliminá-la; pois se as comunicações contemporâneas praticamente conquistaram para si alguns dos tradicionais atributos divinos, isto é, a onipresença e a onisciência, não dispõe de onipotência. E é precisamente na potência das práticas concretas extramidiáticas ou intramidiáticas alternativas, nos movimentos de luta, cooperação e resistência à coisificação e obsolescência biológica, cultural e política, que reside o detonador da transcendência histórica, da conversão da quantidade em qualidade, de necessidade em liberdade, do sabor e do saber em gosto, em inspiração.

Juntemos algumas pontas soltas. Em termos materialistas, o “pecado da Terra”, causa da “queda” e do “Mal”, consiste na ausência de gosto (sabor, significado e inspiração) nos meios de se obter satisfação, devido à escassez, à brutalidade dos elementos e das feras, à resistência, com frequência extrema, da natureza face ao homem, fatores com os quais ele tem de lidar em busca de satisfação, mesmo das necessidades mais elementares, o que gera, além de desgosto, medo, dor e trabalho pesado. Este último, no entanto, é a condição de sua própria superação: se todos os meios para que se atinja qualquer fim poderiam ser simplesmente chamados de trabalho, a “condenação divina” que pesa sobre o homem – “ganharás teu pão com o suor de tua face” – reproduz, de modo invertido, uma condenação real, mas historicamente superável a partir de sua própria contradição interna: a ausência de gosto – de sabor, de significado e de inspiração – no trabalho não-livre, em todas as suas formas históricas.

4 LENIN E A MICROSOFT

É por essas razões que um dos principais objetivos do projeto socialista é a extinção do trabalho não-livre em sua forma atual, ou seja, o fim da escravidão assalariada, carente de sabor e de significado, isto é, de gosto. Nos termos de Mészáros:

É evidente que quando a atividade vital do homem é apenas um meio para um fim, não se pode falar de liberdade, porque as potências humanas que se manifestam nesse tipo de atividade são ‘dominadas’ por uma necessidade exterior a elas. Essa contradição não pode ser resolvida a menos que o trabalho – que é um simples ‘meio’ na presente relação – se torne ‘um fim em si mesmo’. Em outras palavras: apenas se o trabalho chega a ser uma ‘necessidade interior’ do homem é que será possível referir-se a ele como “atividade livre”.
É o que diz Marx quando fala do “homem rico” cuja “efetivação própria existe ‘como necessidade interior, como falta20’”. Sua definição de “liberdade como uma ‘necessidade interior’ não exige um ‘reconhecimento da necessidade’” abstrato e conceitual, mas sim uma ‘necessidade positiva’. Somente se existir essa necessidade positiva como uma necessidade ‘interior’ de trabalhar é que o trabalho poderá perder seu caráter de necessidade ‘exterior’ ao homem.
Uma vez que apenas enquanto necessidade positiva, como necessidade interior, o trabalho é ‘gozo’, então a autorrealização, a plenitude humana, é inseparável do aparecimento dessa necessidade positiva. A ‘liberdade’ é, assim, a realização da finalidade própria do homem: ‘a autorrealização no exercício autodeterminado e externamente não-impedido dos poderes humanos’. Como autodeterminação, a base desse exercício livre dos poderes humanos não é um “imperativo categórico” abstrato, que permanece ‘exterior’ ao ser humano real, mas uma necessidade positiva efetivamente existente de trabalho ‘humano’ autorrealizador. Assim, os meios (trabalho) e fins (necessidades) nesse ‘processo’ de humanização transformam-se mutuamente em atividade verdadeiramente humana, feita de gozo e autorrealização, por intermédio da qual poder e finalidade, meios e fins, surgem numa unidade natural (humana). (MÉSZÁROS, 2006, p. 170) 21

É disso que se trata quando falamos de resgatar o gosto cooptado pelo capital da esfera do consumo e inseri-lo na esfera da produção, como inspiração, na execução, da forma menos penosa que se puder, de tarefas coletivamente determinadas por pessoas livres e conscientes.

As comunicações podem e devem ser instrumentalizadas no sentido de solucionar este problema. Zizek, partindo de Lênin, nos dá uma boa pista de como isso pode ser efetivamente posto em prática:

As ideias de Lênin sobre como a estrada para o socialismo corre através do terreno do capitalismo monopolista podem parecer perigosamente ingênuas hoje: “O capitalismo criou um aparato contábil na forma de bancos, sindicatos, correios, associações de consumidores e organizações de empregados de escritório. Sem grandes bancos o socialismo seria impossível. […] nossa tarefa agora é meramente podar aquilo que capitalisticamente mutila esse excelente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais inclusivo. […] seria […] algo como o esqueleto da sociedade socialista.” […] E se alguém substituísse o (obviamente datado) exemplo do banco central pela “World Wide Web” […]? Dorothy Sayers sustentou que a Poética de Aristóteles é efetivamente a teoria das histórias de detetive “avant la lettre¬” – como o pobre Aristóteles ainda não conhecia as histórias de detetive, ele teve que fazer menção aos únicos exemplos que lhe estavam disponíveis, as tragédias… Nessa mesma linha de raciocínio, Lênin estaria efetivamente desenvolvendo a teoria do papel da World Wide Web, porém, dado que ele não conhecia a WWW, ele teve que fazer menção aos desafortunados bancos centrais. Consequentemente, alguém pode também dizer que “sem a World Wide Web o socialismo seria impossível. […] nossa tarefa agora é meramente podar aquilo que capitalisticamente mutila esse excelente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais inclusivo” […] Não haveria na World Wide Web um potencial explosivo também para o próprio capitalismo? A lição do monopólio da Microsoft não seria precisamente a de Lênin: ao invés de combater o seu monopólio através do aparato do estado (recorde-se a divisão da Micrsoft Corporation por decisão judicial), não seria mais “lógico” simplesmente SOCIALIZÁ-LA, tornando-a gratuitamente acessível?22

Isto é, as comunicações, em meio às quais a Microsoft Corporation ocupa um dos papéis mais ilustres, podem e devem ser instrumentalizadas em termos não só ideológicos, mas administrativos e logísticos, considerando-se a sua centralidade no conjunto da economia. Esta operação é absolutamente fundamental, pois como bem lembra Mészáros:

Não basta […] argumentar a favor de uma nova orientação ideológico-política caso se mantenham tal como hoje as formas institucionais e organizacionais relevantes. Se, em sua resposta por inércia às circunstâncias históricas que já não são as mesmas, a desorientação corrente é a manifestação combinada dos fatores prático-institucional e ideológico, seria ingênuo esperar uma solução no que muitos gostam de descrever como “clarificação ideológica”. De fato, enquanto os dois devem desenvolver-se juntos nessa reciprocidade dialética, o “ubergreifendes Moment” (momento predominante) na conjuntura atual é a estrutura prático/institucional da estratégia socialista, que precisa reestruturar-se de acordo com as novas condições. (MÉSZÁROS, 2002, p. 787-8)

Se isto é verdadeiro, e julgamos que sim, é pertinente repensarmos a dialética base / superestrutura à luz do enorme desenvolvimento tecnológico recente das comunicações. Nessa linha de raciocínio, identificamos nas comunicações atuais um momento no qual a produção simbólica é absorvida por sua base mercantil, não o contrário, como apregoam os defensores da “sociedade da informação”. A disputa ideológica contra a ideologia hegemônica, portanto, para ter alguma chance de sucesso, deve ser articulada com uma disputa político-jurídica pela socialização da propriedade das comunicações.

 

5 O CAVALO DE TROIA x O CAVALO DE TROIA DO CAVALO DE TROIA OU O GRÃO UTÓPICO NA CULTURA MASSA

Caso permaneça produtivo o emprego dos conceitos consciência de classe, ideologia e luta de classes, junto ao par base e superestrutura, tanto para os estudos sociais em sentido mais geral, quanto para aqueles mais específicos, como os do campo da Comunicação Social, essa verdade traz consigo a exigência de uma espécie de bifurcação metodológica: ou se dedica atenção especial às inúmeras mediações de ordem extraeconômica que atuam no âmbito das comunicações, assumindo-se a posição de que os interesses políticos e econômicos envolvidos são somente dois fatores a mais entre tantos outros, de peso equivalente; ou se admite que, embora as mediações extraeconômicas, envolvidas nos processos de produção, circulação e consumo das comunicações, não devam ser deixadas de lado, publicidade, entretenimento e informação vêm se convertendo, de forma cada vez mais abrangente, no “cavalo de troia” de determinados interesses políticos e econômicos, cujo peso é decisivo para uma compreensão adequada desses mesmos processos e de seu papel predominantemente conservador.
Nos termos de Ramonet:

Antes podíamos dizer que uma empresa jornalística vendia informação aos cidadãos, enquanto hoje uma empresa midiática vende consumidores a seus anunciantes. Quer dizer, a AOL-Time Warner, por exemplo, vende a seus anunciantes – Nike, Ford, General Motors – o número de consumidores que possui. Essa é a relação dominante. (RAMONET, 2003, p. 248)

Desdobrando esse raciocínio, logo percebemos que as comunicações exercem um triplo papel nas sociedades contemporâneas: 1) enquanto dispositivo de produção, circulação e consumo de bens materiais e simbólicos, constituem um setor econômico de ponta; 2) enquanto dispositivo de sedução, participam ativamente na geração da demanda pelos bens materiais e simbólicos existentes, sejam aqueles diretamente produzidos por elas (produtos da indústria cultural e equipamentos necessários ao seu consumo), aqueles nos quais elas participam na produção (tudo que envolva informática e telecomunicações) e aqueles que elas simplesmente anunciam (qualquer mercadoria); e 3) enquanto dispositivo de (in)formação, socializa, em diversas escalas, um determinado repertório de representações do real, que incluem os bens materiais e simbólicos, junto a sistemas classificatórios, ou códigos valorativos, que dispõem esses bens e representações, uns em relação aos outros, em hierarquias entrecruzadas, menos ou mais complexas.

Este é um dos lados da moeda, o lado mais forte atualmente, o lado da hegemonia. Por outro lado, o fato de os interesses hegemônicos serem em grande parte contraditórios, entre si e, sobretudo, com os interesses da maioria das pessoas – que vivem do trabalho e compõem a massa consumidora –, mesmo que estas últimas não tenham clara consciência desses interesses, esse simples fato representa uma espécie de “cavalo de troia” do “cavalo de troia”.

Um exemplo dessa contradição está no jornalismo, principalmente no telejornalismo. Seu objetivo último é cativar imensas audiências para os anunciantes dos intervalos comerciais. Mas para fazê-lo, é necessário que os programas possuam e conservem credibilidade junto à população, o que requer que estejam minimamente comprometidos com a verdade factual, ainda que a divulgação desta verdade eventualmente entre em choque com os interesses particulares da empresa de comunicação que produz o telejornal ou de setores mais amplos do capital dos quais ela é aliada. Além disso, há, entre os jornalistas, muitos que não pensam “como o patrão”, que possuem, em graus variados, consciência de classe, além de uma relativa autonomia produtiva.

No campo da música, do cinema e até da teledramaturgia, é inegável que, apesar de todas as tendências dominantes, canções, filmes e programas efetivamente inventivos conseguem, aqui ou ali, aparecer no universo das comunicações. No campo do ciberespaço, seu potencial democratizante e pluralista tem sido exaustivamente estudado e demonstrado, embora com frequência com uma carga excessiva de otimismo. Mesmo assim, esse potencial, enquanto potencial, parece inquestionável.

Quanto à publicidade, a mais “integrada” das esferas das comunicações, há que se considerar que, dado que para ser convincente, deve agradar, na busca pela atenção da audiência, a despeito dos apelos grosseiros mais óbvios e de seu conteúdo ideológico tendencialmente conservador, ela não deixa também de explorar e socializar experiências formais que, de outro modo, talvez permanecessem restritas aos nichos de vanguarda, ou a culturas distantes, contribuindo assim para uma maior abertura no repertório de referências culturais e na sensibilidade estética das audiências.23

Nesse ponto, entramos em rota de colisão com Adorno, já que, para ele, “os padrões estéticos inconscientes das ‘massas’ são precisamente aqueles de que a ‘sociedade necessita’ para se perpetuar e perpetuar seu domínio sobre as massas.” (ADORNO, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 157, nota 35)
É uma sentença intrigante, mas com a qual se pode concordar integralmente. Porque se Adorno acerta na definição de um dos aspectos constitutivos do controle social, talvez mesmo do aspecto predominante nos últimos tempos, por outro lado não se dá conta que o momento revolucionário, que existe em estado latente como potência concreta, igualmente pressupõe “padrões estéticos inconscientes”, mas de uma natureza não integrada, não mimética, que podem ser identificados no gosto das massas por alguns produtos das comunicações, ou por alguns elementos de todos eles, para não falar de formas estéticas de resistência ou híbridas / experimentais, no campo da produção simbólica extramidiática.

Há um importante artigo de Fredric Jameson que aponta nessa direção, cujo norte é, sem perder o gume crítico em relação às mercadorias culturais da indústria cultural e de sua importância política e econômica, distinguir o “Cavalo de Troia” no “Cavalo de Troia”, ou o que ele denomina “grão utópico” na cultura de massa, mesmo em produtos cujo caráter ideologicamente reacionário é mais ou menos óbvio. Nas palavras de Jameson:

[…] as obras de cultura de massa não podem ser ideológicas sem serem, em certo ponto e ao mesmo tempo, implícita ou explicitamente utópicas: não podem manipular a menos que ofereçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao público prestes a ser tão manipulado. Mesmo a “falsa consciência” de um fenômeno monstruoso como o nazismo nutriu-se de imaginários coletivos de tipo utópico, sob roupagem tanto socialista como nacionalista. […] as obras de cultura de massa, mesmo que sua função se encontre na legitimação da ordem existente – ou de outra ainda pior – não podem cumprir sua tarefa sem desviar a favor dessa última as mais profundas e fundamentais esperanças e fantasias da coletividade, não importa se de forma distorcida. (JAMESON, 1995, p. 30)24

Mais adiante, o autor desenvolve este ponto da seguinte maneira:

Em meio a uma sociedade privatizada e psicologizada, obcecada pelas mercadorias e bombardeada pelos slogans ideológicos dos grandes negócios, trata-se de reacender algum sentido do inerradicável impulso na direção da coletividade, que pode ser detectado, não importa quão vaga e debilmente, nas mais degradadas obras da cultura de massa, tão certo como nos clássicos do modernismo. Eis a indispensável precondição de qualquer intervenção marxista significativa na cultura contemporânea. (idem ibidem, p. 34-5)

Essa hipótese de Jameson é muito importante no sentido de não se perder de vista o caráter contraditório interno da cultura de massa, reflexo das contradições sociais mais amplas, e para que não se caia no pessimismo imobilizante de Adorno.

Cabe então desvendar o que pode haver no gosto das massas de substrato sensível da ideologia, não só enquanto “falsa consciência”, mas também enquanto consciência de classe “necessária” ou “atribuída”, isto é, revolucionária. Esse desvendamento é necessário para que se possa pensar em deslocar o gosto da esfera mais passiva do consumo à esfera mais ativa da produção, reorientando a produção social – material e simbólica – no sentido da satisfação de gostos não cooptados pelas formas integradoras do capital. O mundo digital, embora por si só não resolva a questão, sem dúvida abre novas possibilidades de pensamento e ação nesse sentido.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O gosto, este saber dos sabores e vice-versa, é o substrato sensível de ideologias e práxis hegemônicas somente em sua positividade atual, passiva e imediata. Sua negatividade dialética, ativa e mediata, consiste em sua potência concreta de despertar práxis contra-hegemônicas. Ou seja, o gosto, em um primeiro momento, não diz respeito diretamente, imediatamente, à consciência de classe necessária, mas mediatamente, isto é, enquanto momento de uma mediação possível da consciência de classe “contingente” à “necessária”. Diz, assim, respeito ao momento da passagem possível da consciência em si à consciência para si. Porque o gosto traz em si um “pathos” revolucionário recalcado sob as mil manifestações do “ethos” conformista da ideologia hegemônica. Em um segundo momento, porém, diante de circunstâncias objetivas mais favoráveis, a tensão entre esse “pathos” e o “ethos” dominante pode resultar em sutura, em uma unidade superior de sensibilidade e consciência, a qual deverá servir imediatamente como sustentação psicológica e motivacional da consciência de classe necessária.

Uma ideia parecida com essa está implícita nas esperançosas palavras de Muniz Sodré: “[…] no bojo das novas condições de existência geradas pela ciência e pela tecnologia, a força ético-política da paixão de viver poderia impedir que a integração harmônica da máquina seja equivalente à assimilação do capital como ‘natureza’ à consciência do homem”.25

Trata-se, em suma, de pensar a noção de gosto cindido em prazer / desprazer e conhecimento / ignorância, a qual, por sua vez, remete à negatividade dialética da consciência de classe “contingente”, enquanto “falsa consciência”, dado que, se esta é positivamente, imediatamente, atualmente, fator constituinte da classe-em-si, negativamente, mediatamente ou potencialmente o é da classe-para-si, capaz de extinguir a si mesma e a todas as classes, portanto a sociedade de classes, promovendo a sutura no gosto em prazer, conhecimento e inspiração, articulados em um nível superior. Ou seja, a noção de consciência de classe “contingente” enquanto “falsa consciência” deve ser entendida, ao mesmo tempo, 1) como tensão entre sua positividade de não-reflexão atual e sua negatividade de reflexão potencial, e 2) como identidade de classe inconsciente, pulsional, passível de simbolização, de exteriorização, de objetivação na práxis, de incorporação à consciência portanto, convertendo nesse momento a consciência em si em consciência para si, através dessa práxis transformadora.

A ideologia, no recorte proposto, é sempre uma formulação dos gostos. Estes, por sua vez, são estruturações historicamente variáveis das subjetividades e das práticas intersubjetivas, ambas determinadas positiva e negativamente, em última instância, pelos vetores econômicos contraditórios de cada formação social; em outras palavras, limitadas em suas possibilidades de objetivação pelas contradições entre o modo de produção hegemônico, os resquícios de sua pré-história e de seus estágios passados, e as possibilidades de superação de si que em si carregam. “Modo de produção” é a forma como as pessoas produzem e reproduzem em sociedade suas condições de vida, nada mais que isso. Se essas formas não são determinadas pela vontade dos sujeitos, mas por imperativos cegos, os gostos como todo o resto permanecem limitados por estes imperativos. É necessário libertá-los. Isso não pode ser feito sem a socialização das comunicações.
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* Marco Schneider é doutor em Ciências da Comunicação (USP). Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense – UFF – e professor assistente da Escola Superior de Propaganda e Marketing (RJ). Desenvolve a pesquisa de pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, intitulada “Culturas da Periferia, Culturas Digitais e Cidadania: Por uma Articulação dos Estudos Culturais com a Crítica da Economia Política”.
NOTAS

1 A passagem de Gramsci citada por Mészáros pertence a uma edição intitulada “The modern prince and other writings”.

2 Sobre as noções de “ontologia social”, de “ser” e “existência” do proletariado, e de “ontologia do ser social”, ver, além do texto acima citado de Mészáros, LUKÁCS (1979).

3 É aí que entram as comunicações, como veremos mais detidamente adiante.

4 Sobre essa origem do termo, cf. ALTHUSSER (1985, p. 81). Ver também HALL (1980) e LÖWY (1985).

5 Ver LARRAIN (1996).

6 Não que as consciências dos sujeitos sejam redutíveis a sua posição de classe. O que se quer dizer é que esta posição é o fator em última instância determinante do complexo de mediações que formam as consciências.

7 A esta citação de Lukács segue o comentário de Lessa: “Não é, portanto, o conteúdo gnosiológico de uma ideação que a torna ideologia, mas sim sua função social específica: ser veículo dos conflitos sociais […]”.

8 Cf. LARRAIN (op. Cit., passim) e WILLIAMS (1985, p. 154-5).

9 Cf. Mészáros, 1993.

10 Não obstante, o esgotamento do papel histórico do partido comunista de inspiração bolchevique (“marxista-leninista”) é um tema controverso. Sobre este tema, ver ZIZEK (2005) e “Repeating Lenin”. Documento eletrônico: http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em abr. 2010. Ver também MAZZEO (1999).

11 Cf. SCHNEIDER, 2008.

12 Raymond Williams nota, a propósito, “que a ideia do gosto não pode hoje ser separada da ideia do CONSUMIDOR.” (WILLIAM, 1985, p. 314-15). Tradução nossa.

13 Segundo SCHOLEM (1995), Abraham KOOK (1865-1935) foi o último grande cabalista.

14 Tradução nossa.

15 Tópico narrativo da tradição oral talmúdica judaica, que inclui também suas interpretações.

16 O termo hebraico “ta’am”, gosto, também relaciona as noções de “sabor” e “significado”.

17 A passagem em itálico consiste nos comentários de Rav Hillel Rachmani sobre a citação anterior, conseguidos na Internet junto à Yeshivat Har Etzion – Virtual Beit Midrash – e-mail: yhe@jer1.co.il ou office@etzion.org.il, por intermédio de Ezra Bick – ebick@etzion.org.il, em 2002. Tradução nossa.

18 A propósito, e lembrando que a escrita hebraica não possui vogais, a palavra hebraica que designa o primeiro homem, “Adam” / Adão, é a mesma de “Adamá”, a Terra.

19 “Utopia” não significa necessariamente um projeto irrealizável, conforme o uso consagrado, inclusive, por Marx e Engels. O termo igualmente pode sugerir um projeto de melhoria social ainda não realizado em parte alguma (u-topos). Nesse último sentido, o socialismo pode ser considerado uma utopia.

20 A citação de Marx pertence aos Manuscritos econômico-filosóficos.

21 MÉSZÁROS, Istvan. A teoria da alienação em Marx, p 170.

22 ZIZEK, Slavoj. “Repeating Lenin”. Documento eletrônico: http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em: abr. 2010.

23 Além disso, é possível supor que o aspecto atraente dos produtos oferecidos, bem como sua quantidade, podem sem querer contribuir para a emergência da consciência de classe, se as pessoas puderem sentir que há algo errado no fato de tudo aquilo existir e estar disponível, mas não para elas.

24 O trecho refere-se a uma análise empreendida pelo autor do filme “Tubarão”. Jameson também coteja o livro e o filme “Tubarão”, ambos de enorme sucesso comercial.

25 SODRÉ, Muniz. Estratégias sensíveis, p. 71.

 

Apagamento e visibilidade autorrepresentada: comunicação autóctone na periferia da periferia | de Ricardo Oliveira Freitas

Introdução

Considerando o fenômeno de emergência e visibilização de produções que retratam múltiplas realidades das periferias brasileiras, baseadas em discursos unívocos, o texto ora apresentado aborda os processos de comunicação e as interações sociais destes resultantes, a partir do lugar ocupado por iniciativas de comunicação popular e comunitária para o desempenho das identidades minoritárias e suas expressões no Brasil e para a elaboração de uma contrainformação do que é produzido sobre si. Por comunicação comunitária e popular entendo todo tipo de iniciativa que, ao utilizar-se de recursos de mídia, promove a participação ativa do indivíduo em processos de desenvolvimento local, quando seus grupos e suas comunidades encontram-se distanciadas das esferas de poder, privilégio e prestígio.

Apesar de presenciarmos a emergência de grandes produções sobre o periférico, tanto no cinema como na TV brasileira (o que coloca o debate como um caso não necessariamente específico da comunicação autóctone), centrei-me na investigação de iniciativas autóctones produzidas por comunidades rurais, no almejo de alcançarem reconhecimento junto à esfera de visibilidade pública e, por extensão, à esfera pública política, a partir da análise e da elaboração de uma pequena cartografia das iniciativas de comunicação popular e comunitária elaboradas na região Sul da Bahia.

Meu interesse por tais modos e formas de comunicação deveu-se ao entendimento, com base nos produtos (finalizados), de que estas invertem a clássica lógica atribuída às populações periféricas e minoritárias, ao contemplarem modos de vida que não são necessariamente urbanos ou suburbanos, aos moldes das recorrentes representações em mídia que, constantemente, lhes atribuem representações baseadas em modos e estilos de vida circunscritos às periferias das grandes metrópoles brasileiras: populações de favela, de modo geral, cerceadas por toda a sorte de violência urbana. Nesse sentido, ao privilegiar periferias rurais nordestinas, me comprometi, pois, com o estudo de modos e formas de comunicação como tido e visto na “periferia da periferia”.

Interessou-me pensar com base em recortes referenciais bibliográficos, que privilegiam análises que desmantelam o clássico esquema da comunicação unilateral onipotente, tão recorrente na corrente funcionalista de estudos da comunicação, representada pelo clássico esquema “emissores dominantes versus espectadores passivos” (cf. MARTÍN-BARBERO, 2003), ao atribuírem tanto um papel de atividade como um lugar de poder ao “canônico” agente da recepção passiva, no que reconhecem a importância de produtos autóctones – tanto em termos de produção como de distribuição e recepção. É, pois, tal fato que atribuirá à comunicação autóctone as categorizações de alternativa, popular e/ou comunitária, em concordância com o que John Downing concebeu como mídias radicais alternativas (DOWNING, 2002).

Ao reconhecer a virtude da categoria “autóctone”, deixo claro que o interesse do projeto sustentou-se sobre as questões da representação; sejam estas “de fora sobre dentro para dentro”, “de fora sobre dentro para fora” e, sobretudo, “de dentro sobre dentro para dentro e fora”. O caso do Sul da Bahia encaixa-se nesta última proposta. Além de comunicação autóctone, pode mesmo ser classificada como comunicação étnica, já que integra-se ao rol de preocupações debruçadas sobre as questões da identidade (étnico-racial) frente não somente às forças homogeneizantes da comunicação hegemônica, mas, sobretudo, às forças homogeneizantes da globalização – o que proporciona importante debate sobre a comunicação como instrumento de análise das questões da identidade e da cultura no mundo globalizado. Sua importância deve-se ao fato de que o tema, além de revelar o caso da não-representação, revela, também, situações em que representações negativadas são acionadas, através de projetos, velados ou não, de [in]visibilidade (que se concretiza pela ausência) e apagamento (que se concretiza pela presença pejorativa e desqualificadora).

A periferia da periferia

A importância de se pensar o conceito de periferia da periferia deve-se ao fato de que, ao assumi-la, incorporam-se tanto as noções de pertencimento, dentro de uma perspectiva global, como as noções de pertencimento a partir de uma lógica local; tanto do Brasil em relação às grandes potências mundiais, como do Nordeste em relação ao eixo centro-sul do país. Ao reconhecer que a quase totalidade das produções sobre periferias (paisagens e cenários) e populações periféricas (panoramas e personagens) estrutura-se a partir de representações do periférico como tido e visto nos grandes centros urbanos brasileiros, opto por classificar meu campo de trabalho como uma “periferia da periferia”, considerando tanto o distanciamento desta região em relação à capital do estado e a outras metrópoles, como o fato de serem cidades com populações abaixo de 25.000 habitantes, que concentram expressivos traços de ruralidade como base das suas economias. Além disso, ao reconhecer as nações em desenvolvimento como territórios periféricos, baseado numa lógica de territorialidade global, que se debruça sobre a noção de centro versus periferia, na qual o centro refere-se aos países desenvolvidos e a periferia ao restante do mundo, e ao comparar o Nordeste rural brasileiro às metrópoles do eixo centro-sul do país, e, até mesmo, aos grandes centros urbanos nordestinos, a partir de uma lógica nacional, percebo a existência de uma meta periferia, que teima em separar o litoral do sertão, o campo da cidade, o interior da capital.

Nos termos da comunidade imaginada, pensada por Benedict Anderson (2009), ou da invenção do Nordeste, como proposta por Albuquerque (2001), não tenho como desconsiderar que tais tipos de categorizações, baseadas em termos relacionais e, com isso, excludentes, são determinadas por processos e contexto históricos que refletem as transformações “inventadas” tanto na esfera sociocultural, como política e econômica. Tais transformações constroem representações autóctones, inaugurando a aparição de termos nativos, mas também externas, que inauguram a aparição de termos no mais das vezes tomados como unívocos e canônicos sobre o Outro, transformando, como lembra Nestor Garcia Canclini (2005), maiorias demográficas em minorias culturais.

A cultura da mídia, ao passo que torna modos de vida e visões de mundo homogêneas, através de incisivas representações ideológicas aliadas aos interesses das classes dominantes, oferece os recursos para que grupos invisibilizados e populações minoritárias reelaborem seus textos a partir de leituras reconstituídas com base em experiências próprias (cf. KELLNER, 2001). É o que Jesus Martín-Barbero percebe como a importante presença dos conflitos, contradições e lutas que descaracterizam a clássica lógica atribuída ao processo comunicacional “como estruturado entre emissores-dominantes e receptores-dominados, sem o menor indício de sedução nem resistência” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 15).

Não à toa, é o paradoxo entre o local e o global que tem regido o debate em torno da comunicação comunitária e popular como comunicação alternativa à grande mídia. Para alguns autores, a mídia é alternativa ao quebrar a homogeneização centralizadora da grande mídia. O debate entre o global e o local também é importante, pelo fato de chamar a atenção para os paradoxos da globalização. Afinal, em um mundo que parecia estar às raias da singularização universal, falar em comunicação comunitária faz parecer um passo bastante retrógrado. Entretanto, tal como o mundo da cultura globalizada, eis que presenciamos a expressiva emergência do tema da comunicação de aspectos locais, popular e comunitária, no bojo da globalização de mensagens e representações em âmbito global.

Ao enfocar a esfera pública de visibilidade midiática e sua relação com o desenvolvimento da ação política por parte de grupos minoritários, baseio-me na hipótese de que tal tipo de prática coletiva contribui não apenas para deslocar lugares e vozes no espaço público, mas, também, para o surgimento de formas alternativas de visibilidade pública midiática, ao reconhecer que a construção e a consagração dessas formas de aparecimento e visibilidade (midiáticas) dependem da ação política compartilhada entre sociedade civil, movimentos sociais e setores do governo.

Por esfera pública, entendo, aqui, a dimensão na qual se constitui um processo de formação de opinião pública, através da participação de atores públicos e privados, regulamentada para o estabelecimento de leis gerais para aplicação no âmbito do privado, mas, objetivamente, relevante para o âmbito do público. Um tipo de esfera que media a relação entre público e privado, entre sociedade civil e Estado, como sugere Habermas (2003). Outra concepção nos remete à ideia de esfera pública como espaço de aparência (mesmo em contextos de aparência derivada da exposição midiática). Nesse caso, a esfera pública aparece como condição sine qua non para que o ato de aparecer no espaço público promova a condição da existência real, a objetividade de ser e estar no mundo, de se fazer ver e ouvir por todos, a concretude da cidadania através da visibilidade.

É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo ‘privado’, em sua acepção original de ‘privação’, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros (Arendt, 2000, p. 68).

Nesse sentido, tais iniciativas são importantes pelo fato de contraporem modos e formas de exclusão e de invisibilidade, que, não necessariamente, estruturam-se na ausência; mas sobremaneira, na presença negativada, que por sua vez, proporciona uma visibilidade que invisibiliza, que excluiu. Um apagamento constituído pela presença, pela presença apagada. A recorrente presença afro-descendente na produção jornalística policial encenada pelo choro e pelo sofrimento é exemplar 2. Em termos cognitivos, a presença negativada, no que é repetidamente representada, naturaliza a ideia de uma existência firmada em um sublugar, em uma subexistência.

A apropriação de meios e veículos de comunicação por grupos e comunidades subalternizadas é forte aliada da emancipação social, através da constituição de ações políticas pelos movimentos sociais, sobretudo em sociedades constituídas com base na desigualdade social – esse, o caso do Brasil. Por isso, a emergência dos movimentos sociais aliados aos recursos de comunicação e suas tecnologias, assim como às expressões em arte, contribui para o enfraquecimento de projetos (velados ou não) de dominação que se sustentam na exclusão, invisibilidade ou apagamento de determinados segmentos sociais.

Agora, nós vamos invadir a sua praia

Muitos são os autores que defendem a ideia de que, ao deixar de constituírem-se em instrumentos de mediação social para configurarem-se em instrumentos de midiatização, os meios de comunicação de massa transformaram fenômenos sociais em espetáculos. A tônica da espetacularização não proporcionou anseio por visibilidade enquanto fenômeno estético, de grandiosidade e beleza, pura e simplesmente. Espetacularização, aqui, traduz-se pela lógica do ineditismo e da representação embutida na ideia de espetáculo. Nesse sentido, grupos e comunidades, até então invisibilizadas dos projetos midiáticos, ao almejarem inclusão e reconhecimento junto à esfera de visibilidade pública, que podemos mesmo traduzir como a esfera de visibilidade midiática, almejam mais que a exposição infundada de suas iniciativas. Anseiam, pois, pela aquisição de reconhecimento de seus problemas, prioridades e, sobretudo, de seus anseios, modos de vida e visões de mundo, junto às esferas de poder e aos seus pares. Por isso, as iniciativas de comunicação comunitária tentam encontrar formas de interação (de comunicar) entre comunidades – quer seja entre grupos e comunidades afins, quer seja entre grupos e comunidades desinteressadas, quer seja junto à sociedade abrangente e hegemônica. Também por isso, comunicação comunitária passa a traduzir a ideia de pertencimento de grupos e comunidades ideologicamente minoritárias junto à esfera hegemônica, relacionando, pois, comunicação comunitária, cultura de minorias, mídias alternativas, midiativismo e ações de resistência.

Jesus Martín-Barbero (2004) entende que as alternativas de comunicação popular não devem, necessariamente, ser marginais às grandes mídias. Podem mesmo apoderar-se de traços de cultura massiva. O que não é problema. Entretanto, devem atentar para o fato de que as culturas populares não são homogêneas – tal qual o discurso construído pelas grandes mídias. O problema reside no fato de que no que é produzida para massificação e controle das massas, a cultura massiva tende a negar as diferenças, fazendo com que desapareçam por assimilação e, com isso, homogeneizando-as. Considerando que mesmo o gosto popular está moldado pela cultura de massa, reconhecemos que a comunicação será alternativa ao assumir a complexidade dos processos de massificação da cultura (e formação da comunicação massiva) que são estruturados na quase negação do popular. Digo, quase, já que entendo que numa análise aguçada dos complexos processos de formação da cultura massiva, podemos perceber traços de popularidade, “de códigos e dispositivos em que se imbricam a memória popular e o imaginário das massas” (Martín-Barbero, 2004, p. 213).

Boaventura de Sousa Santos (2009) confirma a tese de que a apropriação de recursos de comunicação por comunidades desprestigiadas é importante elemento para a aquisição de autonomia e da emancipação de tais comunidades, proporcionando maior atuação e, por extensão, visibilidade junto à esfera pública política.

É evidente que essas tecnologias têm possibilitado um uso contra-hegemônico. Meu trabalho teórico é, sempre, mostrar que os instrumentos hegemônicos podem ter um uso contra-hegemônico. Nós não estamos em um mundo onde haja instrumentos hegemônicos, de um lado, e, do outro lado, instrumentos contra-hegemônicos puros. Temos que usar contra-hegemonicamente instrumentos hegemônicos – entre eles, obviamente, os meios de comunicação e a revolução da informação. (SOUSA SANTOS, 2009).

O Movimento Cultural Arte Manha é boa ilustração. Exemplo típico das articulações entre arte, comunicação e mobilização social, congrega a lógica de que expressões e manifestações em arte permitem trazer à tona problemas e prioridades que afligem, de modo específico, grupos ideologicamente minoritários e, por extensão, juridicamente vulneráveis, tornando-os visíveis para o mundo. Se, num primeiro momento, o grupo priorizava apenas a arte e suas expressões como elemento central em suas atividades, após bom tempo utilizando recursos de mídia como ferramentas para registro, divulgação e documentação (fotografia e vídeo, mais especificamente), seus componentes perceberam que produtos audiovisuais poderiam transformar-se em fortes aliados para o fortalecimento das propostas do grupo: formulação de políticas inclusivas e democratização da arte como favorecimento de ações cidadãs, de atitudes autoestimadas e reconhecimento. A expressiva produção de audiovisuais e a importância creditada a esse tipo de produção resultou na criação de um polo de produção de vídeos e de um cineclube de rua e comunitário, o Cineclube Caravelas.

A lógica do reconhecimento deu às formas de representação lugar de destaque nas produções realizadas pelo Cineclube e seu grupo de autores. Na articulação entre arte como forma de expressão e mídia como instrumento de informação, o Cineclube produziu nos últimos dois anos mais que uma dezena de filmes, com toda a sorte de recursos para produção audiovisual – de equipamentos profissionais a celulares, passando por uma ilha de edição provida de excelentes recursos – mesmo sem o apoio de uma secretaria de cultura, até então, inexistente no município.

Mostramos que existem formas de confrontarmos os grupos que estão no poder em Caravelas! São forças políticas que buscam nos esvaziar como pessoas com o abandono da cidade, do nosso patrimônio… neutralizar nossa riqueza cultural. Mostramos que é possível nos organizarmos, que a partir da própria população podemos criar, construir outras possibilidades para a cidade. Quando um filme de Caravelas ganha um prêmio na capital cultural do país chegamos para essas pessoas e perguntamos: E aí? (sic, Jaco Galdino 3).

Instâncias de intencionalidade na produção audiovisual caravelense e, por extensão, articulações e negociações entre processos de produção e recepção, representação e reconhecimento, fazem do Cineclube Caravelas uma espécie de base para um Estado ampliado, como proposto por Gramsci (2004), que elabora consensos e mediações entre a cidade, seu governo e seus moradores, além de trazer à tona toda a sorte de questões identitárias e de pertencimento (gênero, sexualidade, raça e etnia, geração, classe e regionalismos). Ou seja, a partir das suas especificidades, transformam “arte desinteressada” em “comunicação engajada”.

[…] a comunicação da cultura depende menos da quantidade de informação circulante do que da capacidade de apropriação que ela mobiliza, isto é, da ativação da competência cultural das comunidades. […] O comunicador deixa, portanto, de figurar como intermediário – aquele que se instala na divisão social e, em vez de trabalhar para abolir as barreiras que reforçam a exclusão, defende o seu ofício: uma comunicação na qual os emissores-criadores continuem sendo uma pequena elite e as minorias continuem sendo meros receptores e espectadores resignados – para assumir o papel de mediador: aquele que torna explícita a relação entre diferença cultural e desigualdade social, entre diferença e ocasião de domínio e a partir daí trabalha para fazer possível uma comunicação que diminua o espaço das exclusões ao aumentar mais o número de emissores e criadores do que o dos meros consumidores. (MARTÍN- BARBERO, 2003, p. 145).

Ao reconhecer a necessidade de se produzir vídeos que sejam representacionais e que contemplem traços de reconhecimento pelo público, Jaco (e tantos outros produtores das periferias brasileiras) faz saltar aos olhos a importância da intencionalidade e especialização tanto da produção como da recepção, revelando assim o importante papel creditado ao público e às audiências como codificadoras e decodificadoras daquilo que o produtor inseriu na mensagem. Afinal, a própria ideia de cinema comunitário indica o importante papel do público e audiência naquilo que, afinal, reconhecemos como recepção ativa. Nesse sentido, o cinema que se faz sobre Si, autóctone, quer seja exibido para o Outro ou para o Mesmo, terá o importante papel de suscitar a afirmativa, elaborada por Hall, de que a distinção entre denotação e conotação é apenas analítica – indicativa dos diferentes níveis em que as ideologias e os discursos se cruzam, e não da presença ou ausência da ideologia na mensagem. (cf. HALL, 2003).
Domínios discursivos, hierarquicamente organizados, dão sentido à vida social. A isso, Hall intitula “sentidos dominantes ou preferenciais” instalados dentro de “mapas de sentido” – lugar em que uma cultura é classificada através de uma série de significados. (HALL, 2003, p.397). Entretanto, tal crença dá margem a considerar o resultante da produção um fato e a interpretação uma instância particular e individual, aos moldes de uma “percepção seletiva”.

Mas, “a ‘percepção seletiva’ quase nunca é tão seletiva, aleatória ou privatizada quanto o conceito sugere. Os padrões exibem agrupamentos significativos ao lado das variantes individuais” (HALL, idem). Entretanto, mesmo que consideremos o lugar de destaque dado às teorias que creditam valor supremo ao sentido conotativo do signo, pelo fato de aí instalarem-se, mais eficazmente, as ideologias que transformam e alteram a significação, “isto não quer dizer que a denotação esteja fora da ideologia” (HALL, 2003. p.398). O que significa que a codificação não pode determinar ou garantir os códigos de decodificação que serão utilizados. Portanto, Hall sugere três posições hipotéticas para entendimento do modo com que a denotação de um discurso pode ser construída. Centro-me na hipótese que reconhece que o espectador pode perceber e diferenciar o sentido conotativo e denotativo embutido na mensagem-discurso. Mas, pode, também, decodificá-la de modo contrário, afinado com definições de situações e eventos que estão em dominância global, realocando-lhe dentro de algum referencial alternativo, operando, portanto, um “código de oposição”, numa leitura contestatória da posição hegemônica-dominante – momento em que se trava “a ‘política da significação’, a luta no discurso” (HALL, idem), ou, como prefiro, a aparição do lugar do produtor na figura do receptor.

Se a produção de vídeo sobre a periferia quebra a universalidade de códigos, que no caso brasileiro, parecem estar erigidos sobre uma produção que representa a periferia a partir de um modelo de caos metropolitano como tido e visto no eixo centro-sul do país, os vídeos autóctones, produzidos na, pela e para a periferia, parecem significar uma “nova estética de periferia”, que, se não fogem tão radicalmente dos moldes pré-definidos pela produção hegemônica, contribuem para a destituição da carga de dominação presente na produção hegemônica, reelaborando novas esferas de dominância e preferência. Afinal, seus produtores, até então tidos como receptores passivos, elaboram a codificação a partir de uma longa experiência com a decodificação da mensagem. Ao conotar e denotar tais mensagens, seja no processo de produção seja no processo de recepção, transformam-nas em práticas sociais, permitindo que o circuito comunicacional se complete e produza efeitos. Do contrário, como sugere Hall, “não poderíamos falar de uma efetiva troca de comunicativa”. (HALL, 2003, p. 398).

Tais trocas são importantes, pois promovem a inclusão de novos atores no cenário midiático, com a inclusão de novas mídias e produtos no cenário mundial, além de encontrarem nos recursos midiáticos importantes suportes para desenvolvimento de novas expressões e alianças político-sociais entre Estado, governo, democracia, terceiro setor, sociedade civil e grupos ideologicamente minoritários. Elaboram, assim, novos modos de representação contra-hegemônicos, acenando para a promoção de políticas públicas para inclusão social e redução da desigualdade social, através de recursos de comunicação popular. A expressividade de redes de solidariedade, organizadas entre sociedade civil e terceiro setor, faz emergir, através dos recursos de mídia, vozes subalternizadas e invisibilizadas, excluídas dos projetos de cidadanização, através de “atores coletivos cívicos – associações voluntárias, movimentos sociais, porta-vozes de causas” (MAIA, 2006), criando novas formas de produção artística e cultural como ações inclusivas e novas utilizações de tecnologias na [off] indústria cultural [periférica] – elaborando algo em torno do conceito de redenção pela arte e pela tecnologia.

Se as características no plano das produções culturais não são universais, para o caso das questões sociais acontece o mesmo. Baseadas em prioridades estritamente locais, as “causas” determinarão o ponto de distinção entre um modelo universal e uma tônica local de reivindicações e prioridades. São privilegiadas as causas sociais; entre estas, toda sorte de desigualdades e de ações discriminatórias, assim como a necessidade de inserção destes tidos como Outros no âmbito da hegemonia. O fato é que aquilo que a princípio caracterizava-se como contra-hegemônico acaba constituindo uma nova hegemonia, não outra e não menos hegemônica, formando uma espécie de mainstream do periférico e do minoritário, que faz da contra-hegemonia uma nova hegemonia. Com isso, passam a criar produtos próprios, autorais, responsabilizando-se não somente pela produção como também pela emissão e distribuição. De coadjuvantes a protagonistas, de receptores passivos a emissores ativos.

Galo cantou, eu vou mimbora

O universo de interesse do projeto versou sobre modos e formas de utilização da mídia (mais especificamente, audiovisual) e a contribuição de tais formas de utilização para a consolidação de um [novo] mercado midiático, que, a partir de uma tendência mundial, tenta referenciar identidades pessoais, locais, regionais e étnicas em oposição à premissa da singularização unificada e ímpar trazida no bojo do debate sobre globalização. Dessa forma, o presente projeto se encaixou no rol da produção preocupada com o paradoxo entre o global e o local, tradição e modernidade, que tem constituído, nos últimos tempos, as discussões nas ciências sociais e em estudos de cultura e mídia.

Como objetivos específicos, o projeto apresentou questões a fim de contribuir para as discussões em torno das políticas de identificação e cidadanização (e, por extensão, da nacionalidade) como temas emergentes dos veículos e discursos comunicativos, culturais e mediadores, a partir do debate sobre identidade e diferença que tem, tão incisivamente, tomado tônica nos últimos tempos com o advento da globalização, além de fornecer elementos para uma análise crítica da produção comunicacional brasileira, em seus aspectos comercial e social. Reconhecer a importância da comunicação popular para a construção de redes de solidariedade, acenando para a sua paradoxal configuração, que cria formas de socialização que se estabelecem no âmbito do público (as audiências de TVs e cinemas de rua estabelecem relação com o outro em espaços que são públicos, a céu aberto), na contramão da ideia onipresente de que as novas tecnologias de comunicação contribuem para consolidar a privatização das relações sociais contemporâneas ao serem acessíveis em âmbito privados, foi outro ponto importante no desenvolvimento deste projeto.

Acreditei, pois, que seria necessário tecer uma visão aguçada sobre a totalidade das estruturas de produção da informação. Para Martín-Barbero, é nos interstícios das “estruturas transnacionais da informação e estruturas nacionais do poder” que são revelados domínios ideológicos em modos de ver, que não dizem respeito apenas aos espectadores, mas também aos produtores. Estes últimos, também videntes, espectadores. Os modos de ver são produzidos socialmente, pelo imaginário coletivo. O que confirma a lógica de que a análise do produto não deve centrar-se exclusivamente no produto em si e na sua condição de reproduzir a verdade, mas nos dispositivos de enunciação-produção, de percepção e reconhecimento. Ou seja, os estudos das tecnologias ou dos meios devem ceder lugar aos estudos debruçados sobre a produção de mensagens situadas no âmbito da cultura, a partir de um prisma que privilegie a interação das mídias na mediação entre indivíduos (produtores, receptores e produtores-receptores) na esfera da cultura e sociedade contra uma ideologia tecnocrática, que permeia e esteriliza os esforços da comunicação alternativa, da informação contra-hegemônica, já que não chega a questionar verdadeiramente as estruturas ideológicas e políticas da produção de informação. (cf. Martín-Barbero, 2004).

Portanto, o reconhecimento da comunicação como fenômeno social e sistema cultural exige que sua abordagem e análise não se restrinjam às estruturas formais da comunicação, aos moldes de uma análise das técnicas, como rebatido por Geertz (2003), mas, que englobe os processos socioculturais que moldam a sua produção, isto é, seu uso e significado, aos moldes de uma análise das mediações, mais que dos meios, como proposta por Martín-Barbero (1997).

Nesse sentido, o referido projeto tentou contribuir para os estudos da comunicação que se preocupam com o papel da comunicação popular e comunitária como recurso para preservação e fomentação do panorama cultural de microrregiões e comunidades destituídas de poder, caracterizando-se não somente como importante recurso para registro e preservação da memória tradicional local, como também, possibilitando acesso a novas tecnologias e a novas formas de produção cultural e inaugurando novos modos de organização social, compromissada em divulgar novos modos de comportamento presentes em microrregiões e na realidade de microgrupos (ou em qualquer prática cotidiana sob a égide da globalização), não se restringindo, apenas, à preservação de traços tradicionais isolados, mas de traços tradicionais articulados com formas, modos e estilo-de-vida propostos pela modernidade, a partir do lugar em que a comunicação popular funciona como prática social contemporânea.

Ao avaliar a importância da comunicação popular e comunitária para a formação técnica e para o aperfeiçoamento profissional de integrantes de microrregiões nordestinas, criando novas linhas de emprego e renda e analisar os mecanismos que cooperam para o apaziguamento de ações excludentes, redução da desigualdade social e fomento da inclusão social, visando elevar os índices de melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento humano junto a populações destituídas de reconhecimento, fomentando a participação inclusiva e cidadã (inserção junto à esfera pública política e à esfera de visibilidade pública) através de recursos de mídia, o projeto revelou, pois, a participação de grupos e comunidades minoritárias para a elaboração de uma contra informação que reelabora o que é produzido sobre si.

A utilização de recursos de comunicação por sociedades tradicionais acena para a configuração de novos panoramas, que promovem a descontextualização das funções canônicas dos veículos de comunicação e, por extensão, a sua refuncionalização e a sua ressignificação, contribuindo objetivamente para mudanças no consumo e uso dos veículos e produtos comunicacionais, a partir de uma estratégia de desconstrução, cumprida, no mais das vezes, pela cultura hegemônica diante das culturas subalternas. (cf. CANCLINI, 2005). A apropriação de recursos de mídia por sociedades tradicionais é prova de que recursos tecnológicos, e, por isso, modernos, podem servir como importantes aliados de projetos voltados para a preservação do patrimônio memorialístico e tradicional, mesmo quando tal uso resulta em formas de hibridação cultural, de sincretizações, negociações e articulações, contrárias à ideia de uma essência de pureza em termos identitários. Desse modo, a importância da apropriação da mídia por comunidades tradicionais é que estas descontextualizam não somente a função dos objetos e os recursos das tecnologias criadas a serviço das sociedades industriais e urbanas; mas, sobretudo, recontextualizam a relação de subordinação das culturas subalternas frente à cultura hegemônica.

Concluo que, mesmo quando classificadas como produções artísticas, o teor discursivo das produções sobre minoritário e periférico, no que contempla certa lógica de visibilidade, faz com que tais produções configurem-se como um circuito comunicacional.

Ressalvo, ainda, que o recorte sobre os produtos analisados levou em consideração a variedade de gêneros e formatos e, paradoxalmente, a homogeneidade de repertórios entre tais produtos, com base nas questões da cidadania e da inclusão social; a fim de avaliar a importância da produção de comunicação autóctone para a construção de um modelo de identidade, num primeiro momento, segmentada, depois, regional e, por fim, nacional, atentando para a importância de tais produtos para a elaboração de modelos identificatórios entre grupos minoritários no Brasil e para o debate sobre cidadanização, que extrapola, pois, a esfera da teoria da comunicação e engrossa os estudos sobre sociedade e cultura.

Interessei-me em tecer um estudo não das tecnologias ou dos meios, mas da produção de mensagens situadas no âmbito da cultura, a partir de um prisma que privilegiasse a interação das mídias na mediação entre indivíduos (produtores, receptores e produtores/receptores) na esfera da cultura e sociedade. Essa a ideia de mídia-ação, mediação, que considera a mídia como prática social. Além de considerar a contribuição que tais produtos e suas representações deram para o desmonoramento de práticas excludentes (xenófobas, discriminatórias, racistas etc.) e para a idealização de práticas inclusivas.

 

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TAVARES, Julio C. de S. “Paisagem midiática, etnicidade e pedagogia cívica”.In.: FREITAS, Ricardo Oliveira de (org.). Mídia alter{n}ativa: estratégias e desafios para a comunicação hegemônica. Ilhéus: EDITUS/FAPESB, 2009.

 

 

*Ricardo Oliveira de Freitas realizou o Pós-Doutoramento no Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, do Fórum de Ciência e Cultura – FCC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É Docente e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Midiativismo e Mídias Alternativas – GUPEMA, da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, na Bahia. Foi bolsista CNPq e FAPESB. Autor da coletânea de artigos Comunicação Alter[n]ativa: estratégias e desafios para a comunicação hegemônica, publicado pela FAPESB/EDITUS, 2009.

 

1 O presente texto é parte resultante do Estágio de Pós-Doutoramento por mim realizado no Programa Avançado em Cultura Contemporânea – PACC/UFRJ, sob a supervisão da Profª Drª Heloísa Buarque de Hollanda, entre maio de 2009 e abril de 2010. Não teria sido possível sem o apoio da minha instituição de origem, UESC; do CNPq, que me concedeu uma bolsa PDS; e da FAPESB, através da bolsa de Apoio à Pesquisa. Devido ao espaço determinado pelas normas da Revista, privilegiei o desenvolvimento teórico em detrimento da etnografia e da análise de dados obtidos durante a pesquisa de campo. Para dados e etnografia, ver FREITAS, 2009.

2 Sobre a ideia de “visibilidade sofrida”, ver SILVA, 2009.

3 Jaco Galdino é integrante do Grupo Arte Manha, em Caravelas, e idealizador do Cineclube Caravelas. É o diretor/videomaker que mais vídeos produziu no Cineclube. Entrevista publicada no jornal comunitário O Timoneiro, edição n. 4, jun./jul. 2007 (este, outro projeto do Grupo).

 

O museu em três dimensões | de Viktor Chagas

Pensar o museu como ferramenta de comunicação social é ir além do aprisionamento formal dos meios impressos, digitais e de radiodifusão. E, nesse sentido, ir além do aprisionamento formal do museu como ambiente físico predial, sujeito a limitações de espaço e dinâmicas. O museu é um instrumento de comunicação por excelência, capaz de integrar a comunidade em torno de si e dar vazão a um processo de participação cidadã , através de sua reconstrução engajada do passado .

Dessa forma, tanto quanto com a televisão e o cinema, inserir o museu em uma categoria que permita a sua identificação como meio de comunicação, é trabalhá-lo nos moldes de uma orientação multimídia, dada a intensidade de representações sinestésicas memoriais. No espaço museal, a experiência sensorial de vivenciação e “decodificação” – uma evidente aproximação no sentido de que se opera um deslocamento no tempo e no espaço (meios também de transporte, portanto) – se fundamentam no contato entre o visitante e o acervo. Critério evidente para a construção da associação do museu como ferramenta de comunicação, a proximidade entre a conceituação de tecnologias da informação e da comunicação – trabalhadas especialmente pela chamada Escola de Toronto em meados do século passado – e a de tecnologias da memória – cuja maior inspiração, poderia-se dizer, está alicerçada na sólida Escola dos Anais – permite que compreendamos o museu como híbrido de ambas as categorias.

Myrian Sepúlveda dos Santos, em tese fundamental para os estudos contemporâneos acerca da museologia , descreve dois gêneros de museus, o museu-objeto e o museu-texto, demonstrando especialmente a complexidade deste último no cumprimento da transmissão de uma narrativa museal. O museu-texto, ela indica, conta uma história (jamais uma História). Esta passagem se coaduna com o raciocínio de Richard Wurman, arquiteto da informação americano, que define em belas palavras o processo comunicacional. Para Wurman, “comunicar é lembrar como era quando não se sabia” .

Num museu, durante o percurso da exposição, o visitante é não “instruído”, mas “informado”. Como no rádio – pela condição privilegiada de caráter popular e abrangente –, sua reação imediata é buscar pelo seu lugar na representação do teatro da memória. Assim, seja pelo caráter cívico ou pelo seu foco nos aspectos comunitários, o laço que o museu, sobretudo o museu histórico – que discute ao extremo a patrimonialização do objeto e do discurso museal –, estabelece é o mesmo vínculo através de valores comuns que inspiram os meios de comunicação. Tal vínculo, de acordo com a conhecida descrição de Benedict Anderson , é sem dúvida capaz de conformar uma “comunidade imaginada”, claramente afeita ao trabalho de memória executado pelos técnicos museais.

Pensar o museu como ferramenta de comunicação social é, para além de imaginá-lo como mídia tradicional, aliar sua dinâmica à discussão recente que se tem travado no âmbito estrito do jornalismo, no que tange ao debate político em torno da imagem conceitual do jornalismo público . O museu, assim, coloca a comunidade – seja em que sentido for que estivermos tratando de uma comunidade – no centro do movimento de construção do conhecimento, numa perspectiva que desmitifica seu papel como “lugar de guardar coisas velhas” ao mesmo tempo em que o deselitiza. O museu é feito pela própria comunidade e para a própria comunidade. Não à toa, a experiência emblemática de museus comunitários – a saber, o Museu da Maré –, numa favela que congrega dezesseis localidades do Rio de Janeiro, possui um índice espantoso de público se comparado com o de outros museus de grande porte. Capitaneado por uma organização não-governamental formada por moradores e ex-moradores da favela, o Museu da Maré recebe anualmente uma média de 10 mil visitantes, dos quais mais de 60% se descrevem como moradores da área. Levando-se em conta os visitantes de outras favelas e regiões vizinhas, e o importante fato de que o preconceito e a autocensura, muitas vezes, leva o visitante a se declarar como procedente de outro bairro, são aproximadamente 65% a 70% os visitantes que mantém alguma relação direta com a região . Diferentemente de outros gêneros de museu, portanto, o museu comunitário não é um mero atrativo turístico, capaz apenas de potencializar as atividades do setor de serviços. A frequência e o interesse que desperta na própria comunidade em que se instala sugerem que, em muitos casos, o museu é capaz de dinamizar a cultura local, favorecendo a afirmação de práticas e saberes antes marginalizados pelos meios de comunicação de espectro menos intimista.

O museólogo, nesta concepção, é o agente responsável pela expertise local. Ele atua no espaço da intermediação, isto é, é ele próprio o mediador, capaz de formular com precisão a mensagem a ser transmitida. Para isso, precisa estar próximo à comunidade, de alguma maneira pertencer a ela, equivalendo-se, por assim dizer, ao editor do noticiário.

No modelo clássico do processo comunicativo tradicional, concebido em forma de circuito (emissor—mensagem—receptor), e que muito tem sido criticado por diversos autores , pela sua linearidade e a ênfase no nível da troca de mensagens, o visitante do museu seria mero destinatário da mensagem, e a ele caberia processar a concepção museográfica como discurso . Só isto já seria o suficiente para o argumento que tenta trazer o museu para a categoria de ferramenta de comunicação. No entanto, nos parece que o visitante ele próprio negocia a realidade, tornando-se sujeito histórico, a partir da busca e realização de seu papel no cenário político e cultural que o contexto do museu lhe oferece. Sem muita surpresa, nesse sentido, na mesma pesquisa acerca dos livros de visitas e de depoimentos do Museu da Maré , são algo comoventes as manifestações de moradores que reconhecem seus parentes nas fotos ou que reivindicam a doação de um objeto particular à coleção do museu. Experiências deste gênero permitem compreender o objetivo do espaço museal não apenas como de um estático lugar de memória, mas como de uma ferramenta dinâmica de apropriação cultural e ressignificação de valores. O museu comunica, porque inscreve, escreve e transmite uma mensagem, que é lida, reescrita e reinterpretada. Mutatis mutandis. Sua apresentação não é jamais meramente pedagógica, no sentido de uma instrução verticalizada sobre um determinado tema, mas trabalhada colaborativamente, segundo um esquema de participação cidadã, que envolve mobilização em três etapas distintas no âmbito da comunidade, isto é, produção, planejamento e gestão do conhecimento. Por constituir-se como vetor de memória, o museu é e deve seguir sendo território de negociações, conversações e debate nas esferas política, social e cultural.

Ao trabalhar em conjunto com outros meios de comunicação, como jornaizinhos de bairro, rádios comunitárias, blogs, o museu incorpora a linguagem comunicativa tradicionalmente legada a estas ferramentas e amplia seu alcance. Sobre esse aspecto, é exemplar citarmos mais uma vez o caso do Museu da Maré pelo que ele nos concebe de paradigmático. Em seu bom trânsito com outros projetos paralelos e na constituição particular da ação do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (o Ceasm), valorizando as tecnologias da informação, o Museu da Maré ocupa ainda uma das páginas mais lidas do principal jornal local, talvez o exemplo mais bem sucedido de comunicação comunitária do país, com mais de dez anos de existência ininterrupta, o jornal O Cidadão. A coluna produzida e editada pela Rede Memória, a mesma que coordena as atividades do museu, e que é, em si, um dos braços de atuação do Ceasm, traz a cada edição um texto que valoriza a cultura e a memória da região, desnaturalizando o museu e traduzindo-o como “obra aberta”. A mesma obra aberta que permite que crianças levem e tragam objetos da exposição: são carrinhos que somem e reaparecem nas maquetes, são utensílios de cozinha que ocupam e desocupam o cenário estilizado de uma palafita no centro do galpão em que se localiza o museu. O objeto museal, por este ponto de vista, não é sacralizado, senão fetichizado, transformado autenticamente em suvenir. Da mesma forma que os moradores trazem, eles levam, completando um ciclo que, de certo modo, está representado na própria expografia.

Mas é preciso esclarecer que, ao me referir ao museu, em nada tenho solidificada a imagem do edifício-museu. Em princípio, é importante trabalharmos com a ideia de uma instituição museal, que, portanto, extrapola o sentido de um prédio. Basta lembrar que a noção de “comunidade” evoca ainda, no imaginário contemporâneo, os agrupamentos sociais nos diversos ambientes da chamada web 2.0 e suas redes colaborativas.

Não de outra maneira, tenho recebido com entusiasmo as experimentações de natureza cibernética no campo dos assim chamados webmuseus. Sem maiores resistências, a instituição museal é plenamente apta a oferecer dinâmicas de interação e participação online aos mais diferentes grupos. O contato com o objeto patrimonial virtualizado, a visita emulada em ambiente tridimensional, a visita guiada por aplicações de mensagens de texto através de celular, a rede social que congrega personagens históricos e os coloca em contato direto com o avatar do visitante; todas estas são extensões possíveis sobre as quais se pode intervir. Todas estas são extensões da instituição museu, ou, se preferirem, extensões de nós mesmos, a partir da consagrada ótica mcluhaniana.

Parece-me que o museu é capaz de cumprir ao menos duas funções sociais: a primeira, internamente, num esforço por convergir, ou seja, tornar-se uma instância de identificação da comunidade, através das lembranças e relembranças de um passado comum; e a segunda, exercida externamente, como um bem-entendido divergir polemizador, em que o questionamento e a polêmica gerados em torno de si – como é o caso, por exemplo, da experiência do Museu da Maré como “primeiro museu em favela” – repercutem nos meios de comunicação tradicionais e se aliam à proposta natural de um trabalho de memória na compreensão ressignificada do lugar que ocupa a comunidade no imaginário noticioso da mídia impressa, digital e radiodifundida. O museu, portanto, ainda que feito por e para a comunidade, extravasa as suas fronteiras geográficas e se constitui como referência local para a cultura da região. Se hoje há placas que indicam o caminho para o Museu da Maré a partir da Linha Vermelha, uma das vias mais importantes da cidade do Rio de Janeiro, é sinal de que o museu informa e referencia, inclusive geograficamente, a favela. É sinal de que ele comunica e aponta caminhos. E, sobretudo, é uma indicação clara de que o museu adiciona nuances e valores à realidade combalida das comunidades.

Com estes pressupostos em mente, quero crer que há outras hipóteses a considerar no panorama estratégico da contemporaneidade. Hipóteses que atribuem um sentido lato à ideia de comunicação, mas que perpassam os meios tradicionais, ampliando seu alcance e otimizando a comunicação em esfera hiperlocal, justamente aquela que não é contemplada pelas complexas estruturas midiáticas de cobertura globalizada e globalizante.

De alguma maneira, o museu é capaz de penetrar na comunidade – seja a comunidade uma representação da “favela” ou de “nichos de consumidores eletrônicos” –, atravessando a barreira dos estereótipos e atingindo sobremaneira o cotidiano íntimo daqueles que se constituirão em seus visitantes. Mas é preciso ter consciência de que o museu é visitado, mas é também revisitado. Ele não exerce sobre os visitantes a mesma influência dita avassaladora pelos clássicos frankfurtianos, senão oferece novos horizontes a serem descortinados. Está longe, portanto, de ser mídia de massa e, justamente por isso, meu apelo para a categoria social dos museus comunitários e experiências hiperlocais de comunicação.

Olhar para o passado através de um museu não é o mesmo que olhar um museu como lugar de velharias e cacarecos. Os estudiosos do campo da Comunicação – mas não apenas eles, também, eu poderia dizer, os estudiosos do campo da Memória – têm trabalhado pouco as interfaces de contato entre seus objetos e tecnologias sacralizados. A introdução de um universo novo e vasto como o das novas TICs termina por ofuscar o potencial de mudança social de outras tecnologias muito mais presentes e afirmadas em nosso cotidiano. É um erro correspondente ao etnocentrismo para o etnógrafo ou ao anacronismo para o historiador a circunscrição dos objetos da Comunicação àqueles que se relacionam apenas com a imprensa. Da mesma maneira, é infantilizada e infantilizadora a tentativa de traduzir, por exemplo, um webmuseu em um espaço tridimensionalizado, disposto em galerias e objetos vetorializados e virtualizados. Nesse sentido, ainda que belíssima, a experiência do Museo Virtual de Artes do Uruguai <http://muva.elpais.com.uy/> é, sem dúvida, conservadora. Por outro lado, ainda que careça de um aprofundamento conceitual mais denso em sua estrutura de navegação, o Museu da Pessoa <http://www.museudapessoa.net/> segue pelo extremo oposto, caracterizando-se por uma iniciativa digna de análise cuidadosa. O museu não é prédio, o museu é texto. Esta compreensão pode ser inovadora, se proporciona o desapego de categorias tradicionais de nosso pensamento.

Pensar o museu como ferramenta de comunicação é lembrar da escrita como primeira revolução tecnológica da memória , revolução, em todas as medidas, engendrada por uma tecnologia da comunicação. Desde Michael Pollak , não há dúvida de que a memória, mesmo silenciada, comunica. A provocação que lanço aqui, contudo, quer ultrapassar a inércia do silêncio, e transformar um ambiente propício para a contemplação do discurso histórico em espaço de deliberação e debate sobre as práticas culturais locais. Sobre a revolução das mídias digitais, esta que é uma das mais antigas formas de comunicação – o museu – talvez seja a grande novidade.

*Viktor Chagas é escritor, jornalista, e professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF. Mestre e doutorando em História, Política e Bens Culturais pelo Cpdoc/FGV, desde 2006 integra a equipe de moderação do projeto Overmundo <http://www.overmundo.com.br>, ocupando atualmente a Coordenação Editorial e de Projetos de Comunicação do Instituto Overmundo.

 

O Natal da transformação | de Mana Bernardes


 

 

 

 

 

 

 

* Mana Bernardes é uma jovem designer de jóias, poetisa e artista plástica. Tão múltipla que consegue circular entre o Chelsea Art Museum em Nova York e as ruas populares do Rio de Janeiro. Seus colares estão à venda em conceituadas lojas de design – como a Colette, em Paris e a Zona D em São Paulo. Já sua invenção o Magnomento, um fecho magnético de imã que não pesa, é comercializado em larga escala para os fabricantes de bijuteria do Saara, no Rio. Com o irmão Pedro Bernardes, escreve um livro de poemas musicados. Ela ainda viaja pelo Brasil multiplicando em oficinas o seu trabalho.

O Texto fora do Papel – A Literatura na Mostra SESC de Artes 08 | de Antonio C. Martinelli Jr.


18h30: Instalação do escritor Samir Mesquita na unidade SESC Ipiranga

“Escritas presentes em toda parte, pintadas, gravadas, incisas (…)
ora publicitárias, ora políticas, ora funerárias, ora comemorativas,
ora públicas, ora mais que privadas, de anotações
ou de insultos ou de jocosa lembrança. (…)
Por alguns lugares específicos, praças, foros, edifícios públicos, (…)
num pedaço de parede livre, a altura do homem”
(Armando Petrucci)

O que norteia a produção literária contemporânea? Ainda é interessante preservarmos a literatura ao confinamento de uma única linguagem artística? Quando os gêneros artísticos se tornam híbridos? O objeto livro está ameaçado? O que podemos chamar por literatura contemporânea brasileira hoje? Como se comporta essa literatura? De que forma essa produção toma partido de outras mídias, suportes e tecnologias para se concretizar ao leitor?
Em seu mais recente livro Contemporâneos: Expressões da Literatura no Século XXI, a crítica literária Beatriz Resende aponta que uma das características mais observadas atualmente no fazer literário é a de que este tem se dado “fora do papel”. Para além do modelo clássico livro, os textos ficcionais se apóiam cada vez mais na virtualidade poética, em folhetins eletrônicos (blogs, sites, redes sociais), em intervenções visuais nos espaços públicos, por meio de instalações, cartazes, entre outros.

Segundo Resende:
Dentre as peculiaridades da literatura contemporânea brasileira, venho apontando o fenômeno que podemos chamar, partindo de outras percepções estéticas e produções artísticas, de ruptura com o suporte. Nas artes plásticas, a ruptura já se deu há muito com o suporte tela, papel e outros materiais, para dar lugar as experiências que lidam com o efêmero. Nas artes cênicas também não é novidade, primeiro a ruptura com o palco, em seguida com o próprio edifício teatro, depois com a noção de texto dramatúrgico e, finalmente, com a idéia fundamental de conflito como base da ação. Na literatura, a ruptura teria que ser com aquele que parecia ser sua condição de existir, de tomar forma: o suporte papel”.

Entre 8 e 19 de outubro de 2008, o SESC São Paulo realizou a Mostra SESC de Artes 08, que contemplou todas as linguagens artísticas, entre elas, a literatura. Com uma programação voltada tanto à prosa quanto à poesia (13 projetos ao todo) -, a curadoria da programação literária se lançou a ações que pretendiam atingir diretamente o público em locais e situações não usuais e “assaltar” o cotidiano das pessoas com textos inéditos de importantes escritores e poetas brasileiros. Dessa maneira, a pesquisa da literatura baseou-se no abandono do suporte convencional livro e investiu na busca de outros meios de comunicação que gerassem essas outras formas de leitura (breves ou não).

Foram 80 os convidados à produção de um breve conto, poesia, bilhete, texto curto, mensagem, ou qualquer outra forma literária que tomasse lugar fora do suporte livro, ocupando lugares e meios não usuais, como elevadores, escadas de prédios, celulares, guardanapos, chão, táxi, parede, concreto.

Tudo começa com um torpedo

“ Palavra ou mágica?
Só uma opção. Escolheu. Errado: não era “palavra”.
Mas escritor sempre opta pela palavra”.
(Moacyr Scliar,
SMS enviado dia 15/10, às 20h30)

SESC Pompeia, 8 de outubro – vários celulares apitam nos bolsos e nas bolsas do público convidado e participante da programação da noite de abertura da Mostra SESC de Artes 08. Era o primeiro dos SMS, enviado às 20h30, para os celulares cadastrados das pessoas que ali estavam. A mensagem – um texto duro, grotesco e truncado – do escritor e dramaturgo Alberto Guzik, com título o “Torpor” dava início a um dos projetos literários do evento: o Literatura Celular.

Nos dez dias seguintes, dois mil celulares tocaram em três diferentes horários – 11h30, 16h e 20h30 – com trinta diferentes microcontos de Alessandro Buzo, Ana Rüsche, André de Leones, Evandro Affonso Ferreira, Fernanda Siqueira, Ferréz, Flávio Viegas Amoreira, Ivana Arruda Leite, João Silvério Trevisan, Lirinha, Luciana Penna, Livia Garcia-Roza, Lourenço Mutarelli, Marcelo Ariel, Marcelo Rubens Paiva, Maria José Silveira, Mário Bortolotto, Maurício de Almeida, Menalton Braff, Moacyr Scliar, Modesto Carone, Paulo Lins, Pedro Biondi, Raimundo Carrero, Reinaldo Martins, Ronaldo Cagiano, Sacolinha, Sérgio Roveri e Verônica Stigger.

Idealizado pela equipe da Mostra, e com curadoria de Marcelino Freire -, os torpedos tinham apenas 120 caracteres: um desafio para os autores. O cadastramento dos celulares foi realizado no site do evento, limitado a dois mil números inscritos e válidos apenas a uma determinada operadora no Estado de São Paulo. Porém essa ação programática, como previsto, tornou-se viral, uma vez que os participantes, muitas vezes, repassaram as mensagens para outros amigos ou conhecidos, e esses para outros e outros.

Hoje já difundida e praticada no Brasil, essa forma de escrita teve início em 2000, em Tóquio, Japão 1 , e foi realizada pela primeira vez no país nesta programação do SESC São Paulo. Ela sintetiza muito do norte curatorial da Mostra, uma vez que esta pretendia fazer um mapeamento da produção literária hoje, fosse por meio de ações e práticas já adotadas pelos escritores contemporâneos, fosse pela proposta e convite para que outros viessem experimentar novas formas e suportes para seus textos.

(Logotipo da Literatura Celular, criado para a Mostra SESC de Artes 08, primeira ação programática dessa natureza no Brasil)

Qu’est-ce que c’est?

“Escrever sobre o escrever
é o futuro do escrever”
(Haroldo de Campos, in Galáxias)

Ao escolher apresentar a literatura no meio virtual, com o uso de aparelhos de comunicação de ponta, a Mostra SESC de Artes 08 preocupou-se em abordar a já clássica e polêmica especulação que alguns teóricos da cultura fizeram, ou fazem, sobre o fim do livro. É evidente que, ao criar uma programação que foge, escapa, liberta a literatura da estante, da biblioteca, da poeira e das traças, essa polêmica sobre o fim do livro reacende.

Em sua obra A questão dos livros – Passado, presente e futuro, o historiador norte-americano e criador do projeto Gutenberg-e Robert Darnton, relembra que“o futuro de Marshall McLuhan não aconteceu. A web, sim; a imersão global na televisão, certamente; mídias e mensagens onipresentes, sem dúvida. Mas a era eletrônica não levou à extinção da palavra escrita, como foi profetizado por McLuhan em 1962”.

Recentemente, os críticos Umberto Eco e Jean-Claude Carrière deixaram por encerrada essa tolice na definitiva obra Não Contem com o Fim do Livro 2 . Tivemos e temos o partido de que, o meio virtual, as novas tecnologias e a utilização de diferentes suportes não vieram, ou virão, condenar ou deixar obsoleta a era gutenbergiana. Porém, essa questão nunca foi pauta para essa curadoria.

Ao selecionar ações que expunham o texto literário para fora do objeto cânone da arte literária expunha-se o questionamento recorrente: – Isso é Literatura, com L maiúsculo? Porém, essa Mostra também não preocupou-se em saber se esses fenômenos literários podem ou não ser classificados como Literatura. Assim, escolhemos nomeá-las de “Práticas Narrativas”, valendo-se desse termo sugerido e empregado pela crítica Heloísa Buarque de Hollanda.

Se por um lado os conservadores criticam a literatura de celular e questionam a qualidade das obras, de outro, o escritor e agitador cultural Marcelino Freire rebate, sem hesitar: “Eu sempre falo que um idiota será sempre um idiota na frente do computador ou não. E é a mesma coisa com a literatura. Eu não vou ser da geração naftalina de jeito nenhum! Todo mundo está usando a internet, o celular e, como um profissional da palavra, por que não devo ficar curioso com essas novas mídias?”. É desse lado que estávamos!

Literatura ao alcance de todos


“São Paulo ocupada. São Paulo dominada.
Por um tempo, a cidade viu-se centro de articulações radicais entre
a experiência da palavra, a vida cotidiana e
a densidade da textura urbana contemporânea.
Arte, cidade e vida. Arte ao alcance da mão, da paixão de ler.
O ofício do escritor afinal apostando no que provavelmente
será a maior conquista deste século:
o acesso ao livro, à cultura e à criação compartilhada”.
(Heloísa Buarque de Hollanda. In: Cidade é Texto.
Catálogo da Mostra SESC de Artes 2008 )

De um lado, o desejo do escritor em praticar novos formatos para seu texto, novos suportes para a palavra, novos lugares para outras sentenças; do outro, nossa aposta de que a literatura (as práticas literárias) deve e necessita se reafirmar, se mostrar, se evidenciar. Partindo de constatações e de problemáticas (algumas já “lugares comuns”) do comportamento dessa arte e de seu público, a Mostra SESC de Artes 08 buscou se apoderar dos espaços e aproximar-se mais da vida cotidiana das pessoas. Assim como Marcelino Freire, o criador da Balada Literária, acreditamos que “a literatura é a prima pobre das artes, tão pouco divulgada. Então, quanto mais estiver espalhada no juízo e na memória das pessoas, melhor. Melhor para ela, para os leitores e para os autores”.

As questões que realmente nos tomaram foram essas: Que sutilezas podemos criar para que as palavras possam efetivamente tocar as pessoas de diferentes maneiras? Como pensar essa literatura (essas práticas literárias) em outros meios que não o livro? Qual é a natureza da escrita em nosso tempo? Como pode a literatura desafiar o leitor? Encontrar poesia e prosa em lugares inusitados talvez faça com que prováveis leitores se surpreendam? A palavra ainda causa emoção?

Acreditamos no fato de que apresentando a literatura para diferentes lugares, promovendo encontros, o público/leitor seria convidado a refletir, dialogar e ter momentos de pausas literalmente poéticas no seu dia-a-dia. Acreditamos que essa programação se propunha a criar um fato para o ato da leitura. E essa aposta deu certo, pois perturbamos as categorias mais ordinárias e obsoletas da arte narrativa e poética e proporcionamos o deslocamento e a transfiguração do texto. Isso causou estranhamento e/ou identificação; isso fez com que o texto se mostrasse próximo, presente, vivo.
Não se trata de novidade, e sim de mapeamento

“Apreender e entender o tempo presente são aspirações máximas partilhadas pela literatura séria, entre outras artes, e pelo leitor crítico”.
(Ana Paula Pacheco, in Grafias Urbanas)

Alguém de vocês já pegou uma nota R$ 50, R$ 20, R$ 10, R$ 5, ou R$ 2, com o seguinte poema carimbado: “agora que esta nota contém/ uma poesia,/ fica valendo dois terços/ do que valiam ontem”. Alguém de vocês, ao cruzar o semáforo, foi surpreendido com uma etiqueta colada no poste: “Olhe/ para os dois lados/ antes de atravessar/ um diálogo”. Alguém de vocês, provavelmente, já esbarrou com poemas e aforismos de Rix Silveira, espalhados e fixados em lixeiras, ônibus. Alguém de vocês já foi surpreendido por um livrinho em formato de caixinha de fósforo, plagiando o rótulo de uma marca conhecida, intitulado Dois Palitos, com micro textos do jovem prosador Samir Mesquita 3 . Algum de vocês já participou, ou ouviu falar, de uma balada literária, organizada pelo poeta marginal Chacal, no Rio de Janeiro, e conhecida por CEP 20.000. Algum de vocês possivelmente já esteve em um dos eventos performáticos do escritor Paulo Scott. Algum de vocês talvez tenha recebido um poema gif por e-mail, possivelmente assinado por Marcelo Shae 4 . Essas são práticas literárias recorrentes no cenário nacional.

O poema clip, a performatividade da leitura de um conto, de um sarau, o poema holográfico, a vídeo-poesia tridimensional, o conto curto animado e jogado na rede, nada disso é novo, sabemos disso. Mas, mesmo não sendo novo, ainda é uma prática literária inventiva, diferente da literatura residente nos livros.

Sabemos que uma das características da literatura contemporânea é a de se experimentar em diferentes possibilidades combinatórias com outras linguagens. Escrita e som. Escrita e performance. Escrita e imagem. Escrita e movimento. Escrita e arquitetura. Em Esses poetas, Heloísa ressalta que “a poesia articula-se, em várias realizações e performances, com as artes plásticas, com a fotografia, com a música, com o trabalho corporal”.

Por meio de seus 13 projetos, a Literatura na Mostra SESC de Artes lançou-se na investigação estética sobre a diluição das linguagens artísticas. O limiar entre palavra e imagem, entre o texto e a plástica, entre literatura e artes visuais pautou os seguintes projetos da Mostra: Poesia Visual, uma individual de Marcelo Sahea, e Poesia Concreto, com poemas de Arnaldo Antunes, Antonio Cícero, entre outros. Ainda dialogando com elementos visuais, foram apresentadas as inéditas instalações 18h30, de Samir Mesquita e a Poça de Poemas, com haikais de Alice Ruiz. No que concerne às ações mais performáticas, projetos como o Literatura em Trânsito (Ou Histórias para Ouvir na Hora do Rush) e Concerto Literário para Voz e Base Eletrônica foram exemplos de ações em que a frágil linha entre o que é literatura, o que é cênico ou musical caem por terra.

Comece pelo primeiro degrau…

Os projetos Histórias de Elevador e Prosa na Escada convidaram diversos escritores para um site specific literário, uma vez que convidava escritores e ilustradores para a criação de textos e imagens que figurassem nas paredes dos elevadores de algumas unidades do SESC SP. Breves contos de Beatriz Bracher, Bernardo Carvalho, Chico Mattoso, Cíntia Moscovich, Clara Averbuck, Índigo, João Paulo Cuenca, Michel Laub, Santiago Nazarian dialogaram em uma dobradinha com as imagens criadas pelos ilustradores André Neves, Eva Uviedo, Eduardo Kerges, Laura Teixeira, Milena Galli, Sylvia Jorge e Alexandre Matos. O escritor Bernardo Carvalho apresentou sua criativa e contundente narrativa “Leia de baixo para cima”, num movimento solo, abrindo mão de um ilustrador. Enquanto o escritor e desenhista Lourenço Mutarelli assumiu a mão dupla, do texto e das ilustrações que compuseram o seu elevador infernal.

Com tema livre, essas diferentes intervenções/ocupações provocaram uma experiência diferente ao público visitante ou habitué do SESC SP. Ao subir de um andar para o outro, de escada ou elevador, os frequentadores e passantes se depararam com textos que despertaram curiosidade, espanto ou surpresa. Se mudassem de elevador, eles seriam novamente surpreendidos por outras prosas. Se optassem pela escada, seriam ainda convidados a participarem de narrativas com estrutura labiríntica e circular, assinadas pelos escritores Joca Reiners Terron e Santiago Nazarian, com arte de Valéria Marchezoni e Andres Sandoval.

Trecho da narrativa de Joca Reiners Terron, criado para o projeto Prosa de Escada. Arte: Valéria Marchesoni

Poesia ao alcance das mãos
“(…) Guarda na poesia mora na filosofia, por que rimar futuro e muro
e, isso é duro, por cortesia – falar, só de boca vazia”.
(Poema de Paula Glenadel, para o projeto Boca Suja)

 

 

Os projetos Boca Suja e Poema para Viagem nasceram do desejo de desmistificar a palavra, provocando o público a refletir sobre a potência de um texto mesmo que num pequeno pedaço de papel. No primeiro, um simples guardanapo proporcionava uma série de oito breves poemas inéditos, delicadamente escritos à mão e impressos em diferentes cores. De forma direta, um pedacinho da nossa poesia contemporânea foi apresentada ao público de restaurantes, lanchonetes e comedorias do SESC São Paulo. Na série, poemas do “marginal” Chacal, dos gaúchos Fabrício Carpinejar, Angélica Freitas e Verônica Stigger, além dos jovens poetas Fabiano Calixto, Fabrício Corsaletti, Paula Glenadel e Tarso de Melo. Durante a Mostra, virou mania colecioná-los!

Já em Poema para viagem, o poeta e artista plástico Ricardo Silveira reeditou seu projeto homônimo. Trata-se de uma referência direta aos cartazes de divulgação usualmente fixados em painéis de avisos nos campi universitários, nas ruas, nos postes, e que divulgam, por exemplo, anúncios de compra e venda, de prestação de serviços – o famoso “Aluga-se”- e que o passante destaca um pedacinho com o contato e leva-o para casa.

Nesse caso, as folhas de sulfite A3 traziam, no maior campo da folha, o seguinte poema/ anúncio (de autoria do próprio Rix): “Poemas destacáveis. Poemas de gente nova e muito talentosa. Um tipo de antologia das ruas, feita arbitrariamente, sem o consentimento dos autores. Poemas de Ademir Assunção, Alice Sant´Anna, Ana Guadalupe, Carlito Azevedo, Fabrício Corsaletti e Ricardo Silveira. E o maior (em dimensão, óbvio), meu”.

Outros projetos evidenciaram a produção da poesia contemporânea, como foi o caso do Poça de Poemas, uma instalação de arte-eletrônica, que apresentava haikais de Alice Ruiz numa falsa poça d’ água que, ao ser pisada ou tocada pelo público, mudava, apresentando um novo texto poético. Com o Poema Passageiro, a Mostra SESC de Artes 08 apresentou uma programação de poemas em vídeo, exibidos nas TVs dos ônibus da cidade de São Paulo 5.

Pessoas que circularam pela cidade no período da Mostra, em especial no itinerário que passava pelas conhecidas Rua Augusta e Avenida Europa, puderam contemplar e ler poemas de Chacal, Rodrigo Garcia Lopes, Ricardo Domeneck, Marcelo Montenegro, Ricardo Silveira, Angelica Freitas, Bruna Beber, Marcelo Sahea, Ana Rusche e Leo Gonçalvez.

Detalhe de um dos guardanapos da Mostra, assinado pelo poeta carioca Chacal, no projeto Boca Suja

Outras Histórias para Ouvir ou Ler na Hora do Rush

Um táxi estacionado e seu motorista convida os passageiros para uma corrida literária. Só podem entrar quatro pessoas por vez. Dispostos – um na frente, três passageiros no banco de trás – todos estiveram a bordo de uma leitura dramática de textos da literatura nacional a preço de Bandeira 0 (Zero!). De tanto a tanto, quem foi ao SESC Consolação enfrentou fila para ver o projeto Literatura em Trânsito (ou Histórias para Ouvir na Hora do Rush).

Na primeira noite, 14 de Outubro, o ator Eric Nowinski fez a performance/leitura de trechos do livro Eles Eram Muitos Cavalos, de 2001, do escritor e jornalista Luiz Ruffato. No dia seguinte, o público pôde acompanhar José Eduardo Rennó, a bordo de um táxi, interpretando o conto Só uma Corrida, ficção inédita de João Anzanello Carrascoza, criado especialmente para a Mostra. Por fim, na noite seguinte, sempre começando às 18h, Luís Mármora narrou e vivenciou a personagem do conto Rush, do escritor e músico mineiro André Sant’Anna. O mais interessante era que, embora o táxi não saísse do lugar, a impressão de circulação pela cidade se dava de forma vertiginosa, ou fuik. O que garantia isso era um aparato de projetores instalados no vidro dianteiro do carro e em tripés que exibiam vídeos com diferentes trajetos. Assim, tínhamos a impressão de deslocamento pela pólis, com direito a curvas e brecadas (ressaltadas pela movimentação corporal dos atores/motoristas).

Mas esse não foi o único projeto que se propunha a uma reflexão sobre o frenesi do nosso dia a dia na metrópole. A Mostra apresentou ainda o 18h30, uma instalação de Samir Mesquita, com cinquenta microcontos colados em carrinhos e alinhados como num congestionamento que convidava o leitor a conhecer um pouco do universo particular de cada pessoa presa no trânsito, nestes muitos mundinhos confusos e caóticos da metrópole.

Mais Poesia Visual

e se um poema opaco feito um muro
te fizer sonhar noites em claro?
e se justo o poema mais obscuro
te resplandecer mais que o mais claro?”
(poema de Antonio Cícero,
projeto Poesia Concreto)

A investigação da poesia verbivocovisual contemporânea não parou por aí. Na Mostra SESC de Artes 08, a obra de Marcelo Sahea ocupou algumas paredes, corredores e vidros das unidades do SESC SP, apresentando poemas visuais que investigavam os limites da diluição entre texto e imagem.

Segundo a jornalista da revista Bravo!, Laila Abou Mahmoud: “Outros objetos do cotidiano também viraram suporte para a Literatura e a Poesia na Mostra. Os bebedouros do SESC Pompeia, por exemplo, foram marcados com poemas do paulista Ricardo Silveira. Já as paredes das unidades Interlagos, Itaquera e Vila Mariana receberam poesias contemporâneas de autores como Arnaldo Antunes, Age de Carvalho, Ana Rüsche, Antonio Cícero e Ricardo Aleixo. Os versos brincam com o trocadilho entre o conceito de poesia concreta e o concreto das paredes nas quais estão expostos. Já nas unidades Ipiranga e São Caetano, o brasiliense Marcelo Sahea expõe seus versos sobre o cotidiano”.

Instalação do poeta visual e artista plástico Marcelo Sahea, nas unidades do SESC Ipiranga e São Caetano

Literatura Performática

 

“Na ressonância ouvimos o poema,
na repercussão, nós o falamos, pois é nosso”
(Gaston Bachelard)

Para quem quis ver os próprios autores declamando, uma oportunidade foi a apresentação do Concerto Literário para Voz & Base Eletrônica. Neste sarau, happening, show, ou que mais se tenda a chamar, o escritor Paulo Scott foi um MC, o ator Rodrigo Penna um DJ-intérprete, a atriz Fernanda D’Umbra uma atriz mesmo e Simone Carvalho cantou. Com eles, escritores leram trechos curtos de sua produção literária, enquanto cenas de vídeos caseiros tomaram os telões do espaço. Esses materiais mostraram fotos, cenas de cotidiano, poesias, blas-blás-blás de muitos escritores e poetas. Em paralelo, ao vivo, os escritores convidados – como Índigo, Michael Laub, Tony Monti, Verônica Stigger e João Gilberto Noll – participaram com leituras e improvisações.

O Texto na Cidade

“A cidade ideal é aquela sobre a qual paira um pulvísculo de escrita
que não se sedimenta nem calcifica”.
(Ítalo Calvino, in A Cidade Escrita: Epígrafes e Grafites)

 

Considerando que no establishment da literatura a maioria das atividades é restrita a encontros, lançamentos de livros, saraus e mesas de debates, e considerando ainda que grande parte da população brasileira não tem o hábito de ler, essas ações literárias geraram novas propostas aos escritores, evidenciaram práticas literárias já existentes e apresentaram ao público novas formas de leituras, em lugares públicos ou de passagem. Textos breves e convidativos, curtos e atraentes, estenderam-se para fora das salas fechadas e tomaram espaço na cidade.

Segundo a jornalista Laila Abou Mahmoud ressaltou na página da Bravo!, com essa iniciativa a Mostra SESC de Artes 08 possibilitou ao público a percepção de que “a literatura não tem ou teve um espaço exclusivo, mas diversos e, muitas vezes, inusitados”. Para Heloísa Buarque de Hollanda, numa perspectiva curatorial “a Mostra SESC de Artes foi realmente ao ponto e conseguiu o que muitas pesquisas na área das Letras ainda não deram conta. Focada na busca de novas definições do lugar da arte contemporânea hoje, esta edição 2008 dramatizou a atual expansão da literatura no espaço da cidade e colocou em debate a urgência em democratizar a fruição literária em grande escala. São treze os projetos e treze os espaços onde a palavra literária se desdobra e se revela (…)e sugerem o designer de uma cidade ocupada pela palavra”6.

A questão era exatamente esta. Com todos os riscos implicados, tocamos nosso ponto de fuga a que se pretendia o conjunto do projeto: relembrar as pessoas, leitores ou não, que a literatura, como a arte, pode e deve ser percebida e evidenciada por e para todos. A literatura que se coloca ao público para que esse a decifre, que cria e estabelece diálogo, participação e contemplação livre. Era isso em que acreditávamos. Era neste ponto que queríamos chegar. Nos damos por felizes!

 

NOTAS

 

1 Essa ação batizada de Keitai Shosetsu (Romances de Celular) foi criada pelo jovem escritor japonês Yoshi, que lançou seu primeiro romance adolescente “Deep Love” (“Amor Profundo”). A novidade saiu do mundo virtual, ganhou as páginas impressas e virou febre no Japão e no mundo.

2 Para Umberto Eco, com a Internet e as novas tecnologias nos reintroduzimos na galáxia de Gutenberg, “e, doravante, todo mundo vê-se obrigado a ler. Para ler é preciso um suporte”. E essa ferramenta mais flexível é o livro, e ressalta: “O culto da página escrita, e mais tarde do livro, é tão antigo como a escrita”.

3 Lançado em 2007, este livro apresenta uma coletânea de 50 microcontos, de até 50 caracteres cada, que vem dentro de uma caixinha de fósforos. Esse livro foi distribuído ao público na abertura da Mostra SESC de Artes, bem como a formadores de opinião, como um exemplo claro do que pretendíamos chamar de práticas literárias.

4 O projeto PoeGifs foi criado, a princípio, com o propósito de partilhá-lo apenas com amigos e uns poucos eleitos durante o ano de 2007. Marcelo Sahea criou, produziu e enviou por oito meses via e-mail, todos os domingos, a uma lista de mais ou menos 150 pessoas, Gifs (Graphics Interchange Format) animados com poemas de seus livros e outros textos inéditos.

5 O projeto Poema Passageiro contou com o apoio da Bus Mídia Televisão; puderam ser vistos também na Linha Verde do Metrô e nas livrarias Cultura, Nobel e Siciliano.

6 HOLLANDA, Heloísa Buarque, in Cidade é Texto.

 

* Antonio C. Martinelli Jr. É Coordenador de Programação do SESC Belenzinho. Foi curador da área de Literatura na Mostra SESC de Artes 08.

 

Atraso do progresso | de Alckmar Luiz dos Santos

“… a civilização é a criação de estímulos em excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reação a eles. (…) ser civilizado é inventar reações para os estímulos que excedem já a reação possível, isto é, inventar reações artificiais…”
Fernando Pessoa, A influência da engenharia nas artes nacionais

Given that our days are limited, our hours precious, we have to decide what we want to do, what we want to say, what and who we care about, and how we want to allocate our time to these things within the limits that do not and cannot change. In short, we need to slow down.”
John Freeman, Not so fast. Sending and receiving at breakneck speed can make life queasy; a manifesto for slow communication 2

O que pretendo desenvolver aqui não é, de modo algum, uma lamúria conservadora acerca de nossas relações com as tecnologias. Não haverá neste ensaio a menor sombra de saudosismo das origens, nem lamentação pela pretensa perda de uma suposta época de ouro, no que teria sido uma espécie de tragédia inaugural da civilização. Isso funciona muito bem nos mitos e, talvez, na psicanálise. Aqui, teria o grave defeito de encobrir processos e desdobramentos muito mais interessantes. D. H. Lawrence, em seu Lady Chaterley’s Lover, afirmava que sua época era trágica 3 Ora, em vários sentidos, todas as épocas são trágicas, pois, frequentemente o excesso e o excessivo travam barulhentos combates em que o campo de batalha está em todos e em cada um de nós 4 . Ou, como diz George Simmel, Pues existe lo trágico allí donde la tribulación o la anulación de una energía vital por su adversaria no se debe al choque casual o externo de ambas potencias, sino donde el destino trágico que una preparaba a la otra se encontraba prefigurado ya en ella como algo inevitable. La forma de unidad de esta contradicción es la lucha. 5
É curiosa a retomada de uma perspectiva heracliteana por um pensador, como Simmel, que foi certamente influenciado por Hegel. Contudo, me interessa justamente essa contraposição entre pensamentos de recorte heracliteano e pensamentos de filiação platônica (e, talvez, hegeliana). De certa maneira, boa parte da filosofia ocidental — que François Châtelet caracterizou como um longo diálogo direto com a filosofia de Platão — desprezou uma linhagem mais próxima de Heráclito e que consiste na capacidade de tratar os contrários sem reduzir um a outro, ou sem substituir a ambos por um terceiro. Esta linhagem, curiosa e paradoxalmente, tanto permitiu o surgimento de correntes gnósticas e iniciáticas da Idade Média, quanto influenciou, por menos que fosse, a criação da lógica paraconsistente, por Newton da Costa, em meados do século XX .6
É assim que estou buscando entender as relações entre as artes (em particular, as literaturas, que constituem o campo de onde falo) e as tecnologias, nesse nosso ambiente atual de intensa saturação tecnológica 7 , partindo do que seria próximo de uma perspectiva heracliteana… ou, talvez, paraconsistente. De toda maneira, até aqui, não há nada de substancialmente novo nesse contraste que busco apresentar entre ambas (artes e tecnologias): as primeiras estão sempre fundadas em algumas técnicas (que são, na maior parte, internas às artes) e mantiveram relações constantemente tensionadas com as tecnologias (que são, estas, na maior parte, externas às artes). E quando falo em relações tensionadas, isso quer dizer que estou buscando entender as diferenças e as aproximações das artes com as tecnologias, sem que se tenha de escolher definitivamente uma possibilidade ou outra, como quase sempre tem sido feito ao longo do tempo por artistas, estetas, críticos ou teóricos. Quero dizer com isso que, no mais das vezes, se tem optado pela aproximação com o tecnológico de forma quase sempre submissa e empobrecedora, ou se tem escolhido um distanciamento, frequentemente estéril. O que pretendo aqui é manter visões opostas, sem ser obrigado a adotar uma das posturas rivais; sem ser obrigado, muito menos, a resolver a contradição através de uma síntese dialética unificadora tão artificial quanto impossível. Ao se conservar essa oposição, chegaremos à dinâmica da tragédia como a descreve Simmel, mas também chegaremos a uma perspectiva trágica, no sentido do teatro grego, em que o sofrimento encenado e assistido era o início de um percurso de conhecimento. Em outras palavras, posso dizer que nossas relações com as tecnologias (e não apenas no âmbito das artes) são trágicas, por que elas, as tecnologias, são ao mesmo tempo nocivas e benéficas (e não, de modo simplista, nocivas ou benéficas). E não se pode ter uma perspectiva, sem manter a outra.
Com essa opção, torna-se impossível ou, ao menos, improdutiva a escolha de qualquer uma das duas possibilidades — a tecnofobia ou a tecnofilia. A partir daí, impõe-se reformar a noção de progresso, que, não por acaso, está ligado a vários racionalismos nossos velhos conhecidos. Em vez de progresso, quero propor aqui a noção de avanço, o que implicaria estar livre das camisas-de-força dos esquemas deterministas de presivibilidade. Baseada frequentemente nas mentalidades positivistas, a ideia de progresso parece necessitar desses saltos epistemológicos, em que a síntese em direção a um novo estado se dá pela supressão de um ou até dos dois membros da disjunção anterior. Em vez disso, creio ser possível optar pelo que estou entendendo como avanço, isso é, uma transição complexa e indefinida, em que as disjunções não se resolvem por uma concórdia otimista entre os opostos, nem pela imposição de um oposto sobre o outro. Contudo, ainda não é o momento de aprofundar essa distinção entre progresso e avanço. Mais adiante o faremos. Por ora, voltemos a nossas relações com as tecnologias.
De tudo que acima foi dito, pode-se resumir que não é possível adotar qualquer espécie de luddismo, que renega o acúmulo e a complexidade tecnológica; também não me deixo seduzir pelas vozes entusiastas da tecnologia, mesmo as que se enfeitam com alguma sofisticação, a exemplo de Pierre Lévy. Por outro lado, não há neutralidade possível nesse embate… E nem meio-termo… Dito de outra maneira, nosso diálogo com as tecnologias é muito mais profundo e muito mais antigo do que pode parecer à primeira vista, ou do que tem sido constantemente afirmado. Se me permitem usar uma figura, eu diria que o lado negativo e saturante das tecnologias é como um bola de ferro que, amarrada a nossos pés, pode nos fixar, imóveis, em algum ponto de nosso percurso; ou pode ser jogada à frente, com grande esforço, lançando-nos para bem mais adiante do que iríamos normalmente. Em outras palavras, esse lado negativo das tecnologias não nos abandona nunca e é constitutivo de nossa dimensão cultural.
Alguns terão notado, nos meus comentários acima, alguns ecos longínquos da psicanálise. Em outra perspectiva, trata-se de um raciocínio semelhante ao que aparece no excerto de Fernando Pessoa, transcrito acima. Sem deixar de ecoar as muitas discussões sobre o mal-estar da civilização, o poeta português, nesse trecho citado, associa à civilização um incômodo que é também estímulo, propondo uma postura que pode ser invocada como possível resposta à (correta!) observação de Freeman, também citada acima. Se não temos como deixar de lado nossas limitações 8 , é possível fazer com que elas sirvam de estímulo a nosso trato com as tecnologias.
Assim, de maneira criativa (e a arte não está aí para outra coisa!), é possível usar a saturação e os processos pretensamente deterministas e falsamente ilimitados das tecnologias, para fazer com que tal incômodo nos permita inventar reações artificiais que tomem distância de qualquer lógica de reafirmação da artificialidade tecnológica. Em outras palavras, trata-se de escapar de antigos limites para inventar novos limites para nós, o que significa que não nos conformaríamos com algum estado anterior já adquirido e pretensamente estável. Mas isso tem que ser feito agora, nesta nossa época, justamente quando os mitos contemporâneos das tecnologias nos acenam com redes de informação supostamente infinita possibilitando conhecimento pretensamente ilimitado. E não é preciso dizer que inventar novos limites para nós, implica necessariamente impor também limites às tecnologias, mas limites inesperados, situados fora das lógicas com que elas foram projetadas e das lógicas com que foram construídas 9 .
* * *
Todo esse preâmbulo serve para situar melhor um dos motivos principais deste ensaio — a situação dos estudos críticos e teóricos do texto digital, particularmente os que se desenvolvem a partir do campo literário. Contudo, em relação a este, tomo algumas premissas que ainda devo explicitar, do modo mais claro e simples que me seja possível (mesmo que não constituam absolutamente grandes novidades). Vamos a elas!
1. Quando falo de estudos que se desenvolvem a partir do campo literário, quero chamar a atenção para o fato de que os estudos de literatura, em particular as diversas teorias do texto, surgem dentro do âmbito literário, mas podem ser usados em outros campos: a crítica e a teoria das artes ligadas ao meio digital; as questões relativas aos hipertextos; os processos de construção de redes de informação e de sentidos no ciberespaço; os sistemas de construção de grandes narrativas tecnológicas (especialmente as digitais)10 e que constituem uma nova mitologia imanente em oposição às mitologias transcendentais que vêm da tradição oral… E assim por diante. Posso ainda afirmar sem hesitação que os estudos do texto literário estão em posição privilegiada no que se refere à investigação das relações tumultuadas entre arte e tecnologia. Essa capacidade não viria de nenhuma superioridade do literário com relação a outros campos do conhecimento, mas do simples fato de que é em nosso campo que as investigações sobre processos expressivos e sobre estratégias e campos de construção de sentidos se aprofundaram mais, nas últimas décadas.
2. Sem embargo, assim como é possível fazer os estudos literários saírem de seu âmbito específico e serem utilizados em outras instâncias, é também possível (como, aliás, sempre foi) trazer, para o literário, contribuições de outros campos, notadamente os das diversas artes. Com isso, processos e situações semelhantes já vividas em outras épocas, por outras artes, podem muito bem servir como modelos para se entender paradoxos, impasses e limites dos estudos literários, como os que se experimentam atualmente quando se examina a literatura do meio digital. Com isso, essa atual mudança de paradigmas, do impresso para o ciberespaço, pode ser mapeada, estudada e compreendida, a partir de mudanças de paradigmas com dinâmicas e condições algo semelhantes às que hoje se observam.
3. Uma última premissa se refere às vanguardas e aos experimentalismos, que impuseram seus ritmos e suas perspectivas às discussões sobre as artes, do início do século XX até os dias de hoje. De fato, é impressionante a frequência com que Marcel Duchamp ainda é invocado atualmente como inspiração, como santo protetor das artes contemporâneas. É como se não se tivesse passado quase um século desde suas primeiras intervenções vanguardistas; como se suas relações equivocadas com as técnicas, com as tecnologias e com os meios de produção em massa não fossem já um capítulo mais do que superado na história das artes. Aliás, a esse propósito, haveria que se destacar com mais ênfase a figura de Alfred Jarry (quase contemporâneo de Duchamp), na maneira como se coloca ao mesmo tempo dentro e fora das tecnologias e das ciências, de maneira muito mais interessante do que o fez o próprio Duchamp11 . Em suma, é inegável que todas as discussões sobre literatura e meio digital não podem ficar alheias às questões envolvendo os diferentes experimentalismos, tanto nos acertos quanto nos lapsos destes.
Dito isso, voltemos à segunda premissa para desenvolver alguns de seus elementos. Há que se reconhecer que estamos ainda passando pelas turbulências de uma evidente mudança de paradigmas nos estudos literários, a partir do advento das tecnologias digitais. No dizer de vários teóricos e críticos, praticamente todos os elementos que alicerçavam os estudos da literatura impressa se encontram em processo de contestação ou, declaradamente, de dissolução. E nem é preciso citar nomes, basta uma ligeira busca pela internete para se dar conta desse quase genocídio que vem atingindo conceitos que, até há pouco tempo, eram essenciais e incontornáveis: leitor, escritor, autor, gêneros, texto, leitura, retórica etc. A impressão que se tem é que pouca coisa fica de pé, depois desse furacão chamado internete. Às vezes, autor e escritor parecem condenados aos museus das citações e das referências arcaicas, como antiqualhas que apenas servem, atualmente, para obscurecer a extrema e exclusiva importância dos processos digitais de construção, armazenamento e disseminação de objetos (assimilados a gestos expressivos). Pierre Lévy afirma que “The distinction between author, editor, publisher, critique (assessement) and librarian (categorization) will continue to blur 12.” Philippe Bootz diz que “… bug et obsolescence sont les deux maîtres mots de la condition de l’auteur numérique” 13 . A respeito do leitor, Serge Bouchardon, por exemplo, fala de uma “mise en échec du lecteur” que “fait écho à une autre mise en échec, celle de l’auteur” 14 . Contudo, muitos teóricos passam ao largo de propostas mais bem fundamentadas como as de Bouchardon, na qual se parte da premissa de que leitor é também, mais do que nunca, uma função, uma estratégia, e não apenas uma perspectiva a ser exercida com autonomia por um terceiro 15 . Todavia, não são poucos os que se apressam em esconder essa colocação em xeque do leitor, para alçá-lo ao que seria a nobre função de criador, vaga com a morte do autor 16 . O rei está morto; viva o Rei!, parecem pensar. Quanto aos gêneros, Philippe Bootz, em “Vers de nouvelles formes en poésie numérique programmée 17 ?” , tenta construir uma nova grade para a poesia digital, a partir das primeiras tentativas mais sistemáticas de criação poética:

Le milieu des années quatre-vingts voit la reconnaissance de la spécificité de la poésie numérique à travers trois genres qui sont la génération automatique de textes développée par Jean-Pierre Balpe dès 1980, l’hypertexte, surtout développé aux USA, et la poésie animée, développée en France, principalement sous la forme de l’animation syntaxique, à partir de 1985 par les poètes qui formeront le collectif L.A.I.R.E. en 1988.

Em resumo, ainda estamos mergulhados em uma crise dos modelos oriundos da tradição impressa e, consequentemente, dos elementos a ela associados (autor, escritor, leitor, gêneros, texto etc.). Para alguns, isso parece indicar que seria aconselhável, ou até mesmo mais produtivo, que se desistisse de trabalhar com a tradição ou com a história dos estudos literários. Mais radicalmente, há mesmo quem passe rapidamente da desistência para o desconhecimento. Para chegar a isso, partem da constatação, correta, de que há um desvio epistemológico entre a tradição do escrito e do impresso, com respeito à tradição do digital, mas entendem esse desvio epistemológico de modo simplista e errôneo. Como se ele significasse uma desvinculação radical entre os paradigmas do ciberespaço e os da “galáxia de Gutenberg”; como se nenhum elemento, processo ou estratégia de um paradigma viesse se misturar àquele que lhe é posterior. Isso está expresso claramente, por exemplo, na ideia de Pierre Lévy de que a telemática possibilitaria a existência uma nova humanidade 18 .
É claro que, apressadamente, é até mesmo fácil concluir que tela digital não teria nada que ver com papel; que a linguagem verbal já não seria mais a melhor base para as construções de um pensamento que se tornaria icônico ou imagético à semelhança dos espaços de navegação 19 ; que a ergonomia pode ser melhor critério que a retórica ou a estética para medir o alcance e a profundidade de qualquer expressão, pensamento ou gesto de criação. Ora, abandonar ou ignorar o paradigma anterior, ligado ao impresso, implica muita coisa, menos um aprofundamento na maneira como se podem entender as literaturas do meio digital. De fato, só podemos ter prejuízos quando esquecemos a tradição anterior e nos fixamos na ilusão de que o desvio de paradigmas implica uma ruptura radical e impõe a elaboração de estratégias e de conceitos ab ovo. Desconhecer a tradição anterior e a história dos conceitos e dos métodos, nos obrigaria a propor perspectivas completamente novas, o que só pode ser feito a partir do circunstancial e do imediato. Nesse caso, o risco é cair rápida e facilmente nesses ceticismos ou relativismos contemporâneos, companheiros fraternos da preguiça intelectual. Diga-se, a bem da verdade, que estou muito tranquilo para propor esse diálogo entre paradigmas, na medida em que, desde 1995, para ler e analisar os textos digitais, venho defendendo a utilização de conceitos oriundos do que se convencionou chamar de teoria do texto francesa 20 . E diga-se também que tal diálogo nunca representou para mim uma continuidade de esquemas e teorias antigas, ou uma submissão cega a eles.
Contudo, o que está por trás de todo esse imbróglio poderia talvez ser resumido à antiquíssima dicotomia entre unidade e multiplicidade (que se desdobrou nas várias polêmicas entre idealistas e sofistas, entre realistas e nominalistas, entre racionalistas e empiristas etc.). De fato, o ciberespaço é uma multiplicidade(pois está sustentado por uma imensa quantidade de técnicas, tecnologias, processos, gestos, expressões e obras) híbrida (pois nenhum de seus componentes tem uma primazia evidente e concreta sobre os demais). Com isso, torna-se impossível compreendê-lo em sua totalidade através de uma leitura específica, individual. É claro que isso poderia ser dito do mundo vivido da tradição filosófica ocidental e, ainda uma vez, não teríamos aí nada de novo. Contudo, com relação ao ciberespaço, a diferença reside no fato de que essa impossibilidade está imediatamente diante de nós, disponível como se fosse a singularidade de uma função matemática que é, ao mesmo tempo, infinita em valores, mas restrita a um único ponto do plano cartesiano. De fato, o ciberespaço nos torna capazes não de manipular o infinito, mas sim a sua imagem especular, ou seja, a sua infinitude 21 .
E, nesse caso, mais uma vez batemos de frente com os limites da dedução ou da indução. Até poderíamos tentar entender a multiplicidade como resultado de derivações imperfeitas de um princípio unificador; mas, neste caso, o excesso de significantes do meio digital (que é correlato da saturação tecnológica contemporânea) não se deixa resumir a uma unidade, como quer o dedutivismo; rapidamente, o excesso parece se converter em excessivo e põe diante de nós, concretamente, essa multiplicidade imediata do ciberespaço, tornando aparentemente impossível qualquer operação dedutiva pré-concebida. Diante disso, poderíamos tentar outro caminho e aceitar a limitação de nossos atos de leitura, restringindo nosso percurso de conhecimento ao limite mais imediato dos objetos e das experiências imediatamente disponíveis; fazendo uso de um empirismo que se baseia em alguma forma de indutivismo. Mas, neste último caso, rapidamente o objeto se fecha sobre ele mesmo, a singularidade assume o lugar da generalidade, e o excesso cede lugar à lacuna. Como resultado, ficamos com as mãos vazias de qualquer certeza sobre o objeto que estávamos investigando. De fato, temos aqui um problema de método de pensamento, de leitura, de investigação 22 . É preciso sublinhar que não somos obrigados a escolher uma de duas opções: ou reduzimos tudo a um só esquema totalizante, ou nos restringimos ao horizonte da experiência imediata. Creio ser possível um exercício de pensamento e de leitura dos objetos digitais, que nos faça escapar tanto do reducionismo, representado pela empolgação tecnológica dos inúmeros tecnófilos contemporâneos, quanto do ceticismo (ou do niilismo) dos muitos tecnófobos.
* * *
Nesta nossa época de intensa saturação tecnológica (e não é demais repetir esta expressão!), penso que uma abordagem pelo viés da estética pode nos fazer avançar no entendimento das artes digitais, especialmente das literaturas de que me ocupo. O apelo à dimensão estética da criação e da leitura digitais será capaz de nos fazer ir além dos dualismos redutores com que muitos teóricos do ciberespaço temos trabalhado: linear e não-linear, contínuo e fragmentário, limitado e ilimitado, e assim por diante. No caso da literatura, diria que essas disjunções têm servido para manter as discussões ainda presas à oposição entre impresso e digital, como se estivéssemos condenados a permanecer indefinidamente nessa transição específica. Ou como se não houvesse uma transição contínua em que nos movemos sempre. Vem daí a distinção que mencionei acima entre progresso e avanço. Nesse caso, avanço se oporia a progresso como as imagens fractais se opõem à linha (mesmo que seja uma linha descontínua como a da função tangente).
De outro lado, essa abordagem estética é fundamental para entender de modo mais aberto a criação literária digital. De fato, as dificuldades de explorar e de organizar o campo dessas literaturas estão ligadas diretamente às decorrências estéticas da leitura de obras literárias, sejam elas digitais ou não. De modo geral, isso sempre foi relegado a segundo plano, como se estética e arte não dissessem respeito à literatura. Para confirmar esse juízo, basta ver que poucos manuais de história ou de teoria literária utilizam conceitos que se fundamentam suficientemente em alguma perspectiva estética.
Em um ensaio publicado há alguns anos 23, procurei justamente desenvolver esses aspectos estéticos, com respeito aos poemas digitais, investigando-os como coisa, como objeto e como obra, a partir do que diz Heidegger em A origem da obra de arte 24 . Para retomar brevemente essa discussão, poderia dizer que, como coisa, a literatura digital é explorada como interação imediata, ou seja, como realidade palpável, direta e concretamente disponível aos sentidos do corpo e aos sentidos de algum discurso outro que tente falar de suas especificidades. Como objeto, é vista como resultado de uma criação, como resposta (conflitante ou obediente) a um conjunto de significações possíveis e de utilidades de que as coisas vão sendo dotadas para que apareçam então como objetos. É a partir daí que se torna possível sua utilização como instrumento de observação do mundo e do vivido. A passagem de coisa a objeto se faz quando se explicita que a coisa se reveste de linguagem. Desvela-se assim o objeto, que, nessa operação, se desdobra em interioridades e exterioridades. Todavia, para que cheguemos à perspectiva deobra, é necessário que o objeto deixe de ter interior, é necessário compreender que seu interior se torna imediatamente feito de mesma matéria, a saber, linguagem. Nesse caso, já não resta nenhum espaço para qualquer relação utilitária com a literatura digital.
Se essas descrições dão conta dos aspectos específicos das criações literárias digitais, ou seja, de suas singularidades, elas não exploram suficientemente sua dimensão cultural e histórica. E esta perspectiva é sempre necessária; desprezá-la significaria ser obrigado a optar por concepções redutoras das literaturas digitais, como já apontei acima. Sem isso, não se pode entender suficientemente as condições e as características das artes e das literaturas contemporâneas (digitais ou não). É justamente o que pretendo fazer aqui.
Na história das ideias estéticas, uma questão que me parece muito relevante diz respeito à autonomia das artes, processo que se instala a partir do século XVIII (nas literaturas, essa dinâmica vai surgir bem depois, no final do século XIX, mas é fundamental para se compreender tantos as literaturas impressas que desde então se vêm realizando, como as atuais literaturas digitais). De modo geral, pode-se afirmar que, a partir do século XX, passou-se para um segundo estágio desse processo de autonomia. Quero dizer com isso que ele se radicalizou de tal forma, que chegou a algo que nem mais era autonomia, mas sim desvinculação da arte de outras instâncias culturais. Isso representou na verdade uma postura narcísica ou, em alguns casos, quase um fechamento autista. As artes que levaram esse processo de autonomização às últimas consequências esgarçaram-se, diluíram-se e se tornaram, paradoxalmente, dependentes da figura do artista. Em muitos casos, o objeto artístico tornou-se mero pretexto para a publicização das pessoas envolvidas, isto é, artistas, teóricos e críticos. Em outras palavras, o objeto de arte ficou como que abandonado e perdido em algum lugar ignorado do campo cultural. Nesses casos, só o que temos concretamente diante de nós, no campo artístico, é o artista; no campo estético, o crítico ou o teórico. Resumindo, pode-se dizer que a arte se reduziu ao artista e a estética se reduziu ao crítico e ao teórico. Isso explicaria afirmações do tipo “não há sentido em discutir se um objeto ou processo é arte ou não; se o criador diz que é, aceita-se!…25” ; daí vem essa redução do processo criativo à figura do artista; da crítica à pessoa do crítico ou do curador. O que vale é o gesto que remete à persona e não o objeto em si! Mas, de fato, que autonomia é essa?! Por esse viés, nunca a arte esteve tão presa e tão sujeita a outras esferas que não a sua! Da autonomia, passou-se imperceptivelmente para sua dependência total com relação às pessoas envolvidas (artistas, curadores, compradores, público especializado). Certamente, não há autonomia possível em um processo em que o objeto não apenas se desmaterializou, mas foi abandonado, claramente afastado do horizonte de leitura, lançado fora como escolho, como estorvo; ou, o que dá mesmo, devendo ser acolhido com toda a complacência possível, sempre considerado como prova irrefutável da genialidade de algum indivíduo (artista, crítico, ou curador). Com a ilusão de se estar criando um objeto totalmente autônomo, passou-se a um objeto 26 totalmente dependente das pessoas envolvidas. Mesmo a arte que se diz engajada, que criticaria a sociedade, o consumo, o desastre ecológico, a perda de identidade dos indivíduos etc., mesmo essa arte não faz mais do que ressaltar a figura do criador, ao se tornar mera porta-voz deste. De fato, como combater a perda de identidade dos indivíduos, com manifestações artísticas que perderam sua própria identidade, ainda que seja em proveito de um criador, esse sim!, com identidade hipertrofiada?! Parece-me que temos aqui um processo muito semelhante ao que Simmel descreveu, quando comentou o Futurismo: “… las formas que la vida se ha construido como vivienda se han vuelto una vez más cárcel para la vida 27.” Cárcere para a vida, assim me parece uma boa parte das artes contemporâneas, ao optar pela facilidade do imediatismo, pelo empirismo desajeitado 28 , pelo conceito exposto grosseiramente em forma de alegoria simplista.
À guisa de resumo, poderia dizer, mais uma vez, que se trata de optar por uma visada decididamente epistemológica, no que se refere às artes: é fundamental acercar-se do objeto sem abstrair o sujeito; igualmente, deve-se pôr o sujeito em meio às coisas, sem que estas se reduzam a juízos daquele. E tudo permeado por uma visão do campo artístico como processo eminentemente histórico, maneira consistente de fazer com que nem sujeito (criador ou leitor), nem objeto (criado ou lido) sejam tomados como referência única e privilegiada. Assim, nesta nossa época de substituição do meio impresso pelo digital, é importante aprender com outros períodos em que também se viveu alguma importante mudança de paradigmas. Uma das possibilidades é investigar, mais uma vez, o que ocorreu no século XVIII, época de rebaixamento dos cânones clássicos, em prol de uma nova sensibilidade, mais apropriada ao mundo moderno que então surgia. Pode-se dizer que as intensas discussões estéticas que apareceram nesse período preparavam e anunciavam essa nova sensibilidade, um outro ambiente e uma dinâmica diferente, antes mesmo de que se consolidassem as criações artísticas já integradas a essas situações recentes. Assim, num primeiro momento, os conceitos estéticos que surgiam e tentavam se impor como padrão, deviam encarar criadores e criações artísticas que ainda tinham suas bases solidamente estabelecidas na sensibilidade clássica. É claro que isso é comum a todo câmbio de paradigma nas artes, mas o que me interessa, nesse caso, é justamente essas mudanças que se anunciam no século XVIII, em que claramente se passava por um aumento quantitativo na produção e na leitura de arte, com a incorporação de amplos setores da sociedade ao grupo dos consumidores de objetos artísticos (entenda-se aí não apenas compradores, mas sobretudo observadores). Isso representou inegavelmente um acúmulo de informações como nunca havia sido visto anteriormente, o que exigia dos críticos e do público 29 que se adaptassem a essa situação inusitada em que começavam a dispor de muito mais estímulos para processar e a que responder, do que estavam habituados. Balzac descreve muito bem essa situação na abertura do romance Pierre Grassou 30 :

Toutes les fois que vous êtes sérieusement allé voir l’Exposition des ouvrages de sculpture et de peinture, comme elle a lieu depuis la Révolution de 1830, n’avez-vous pas été pris d’un sentiment d’inquiétude, d’ennui, de tristesse, à l’aspect des longues galeries encombrées ? Depuis 1830, le Salon n’existe plus. Une seconde fois, le Louvre a été pris d’assaut par le peuple des artistes qui s’y est maintenu. En offrant autrefois l’élite des œuvres d’art, le Salon emportait les plus grands honneurs pour les créations qui y étaient exposées. (…) Aujourd’hui, ni la foule ni la Critique ne se passionneront plus pour les produits de ce bazar. Obligées de faire le choix dont se chargeait autrefois le Jury d’examen, leur attention se lasse à ce travail ; et, quand il est achevé, l’Exposition se ferme. Avant 1817, les tableaux admis ne dépassaient jamais les deux premières colonnes de la longue galerie où sont les œuvres des vieux maîtres, et cette année ils remplirent tout cet espace, au grand étonnement du public. (…) Au lieu d’un tournoi, vous avez une émeute ; au lieu d’une Exposition glorieuse, vous avez un tumultueux bazar ; au lieu du choix, vous avez la totalité. (…) Maintenant que le moindre gâcheur de toile peut envoyer son œuvre, il n’est question que de gens incompris. Là où il n’y a plus jugement, il n’y a plus de chose jugée. Quoi que fassent les artistes, ils reviendront à l’examen qui recommande leurs œuvres aux admirations de la foule pour laquelle ils travaillent…

Ora, numa situação de excesso de informações, a primeira reação é adotar uma lógica de exclusão como faz Balzac, insinuando a necessidade de livrar as exposições (e, em decorrência, a própria arte) dessas criações secundárias ou inferiores. Contudo, eu diria que essa não é, definitivamente, a melhor escolha: afinal, criações secundárias ou inferiores, se não concretizam nenhum progresso artístico, são fundamentais para isso que venho chamando de avanço, desde que não sejam acompanhadas de outra exclusão, a dos juízos críticos que apontem tanto as qualidades (o que se pode fazer com facilidade) quanto os defeitos ou impropriedades das obras (o que se faz sempre com dificuldade). Explico melhor: para que tenhamos de verdade essa dinâmica que venho chamando de avanço, é fundamental que nem obras, nem juízos críticos sejam excluídos. De fato, quando me refiro a problemas e obstáculos (limites e pequenezas) das artes (atuais ou não), pode parecer que estaria lamentando uma decadência evidente das criações artísticas. Mas não é nada disso. Esses equívocos fazem parte de toda dinâmica cultural, e as artes não estariam imunes a eles. Pode-se dizer que a lógica do avanço implica que não haja mesmo esse progresso inevitável, sobretudo no campo das artes. O que se pode e se deve lamentar é que, tentando preservar, inutilmente, a noção de progresso, não se exerça a crítica com toda a profundidade desejável. É fundamental justamente apontar essas falhas, essas faltas, essas criações superficiais e inócuas. Esses defeitos, claramente, não fundamentam nenhum progresso; todavia, sem eles e, a fortiori, sem uma crítica feita a eles, não se constrói nenhum avanço.
Voltando à discussão sobre o século XVIII e à mudança de paradigmas estéticos e artísticos que veio com ele, é interessante analisar o caso da literatura. Nela, o abandono dos padrões clássicos só se efetivou com a consolidação do romance como gênero literário, na primeira metade do século XIX. Houve aí então um período de mais de cinquenta anos de defasagem com relação às artes em geral. Algo muito semelhante ocorre hoje em dia. Desde o início do século XX, várias das artes (as plásticas e as visuais, sobretudo) vêm discutindo suas relações problemáticas com as tecnologias 31 , mas a literatura mal começou essa discussão. E isso se reflete na maneira como muitas dessas questões, exploradas pela crítica e pela estética das demais artes, chegam com atraso à literatura; e, quando o fazem, muitas vezes parecem repetir o mecanismo das ideias fora de lugar, que consagrou o crítico brasileiro Roberto Schwartz 32 : são ideias e princípios que, se funcionam bem na pintura, na instalação, na performance, não apresentam o mesmo rendimento na literatura, mostrando-se aí desfocados e deformados. Haja vista a tentativa inábil (e muito frequente) de utilizar os conceitos de original e deaura, de Walter Benjamin, para uma arte, a literária, em que a noção de originalidade tem muito pouco que ver com o que ocorre com a pintura e com a fotografia.

Além do princípio da autonomia da arte, discutido acima, há outros elementos, nessa transição da sensibilidade clássica para a sensibilidade moderna, que ainda podem nos ser úteis, para entender a atualidade das literaturas digitais. Contudo, vou abordar apenas mais um, para não me estender em demasia: o conceito de unidade. Ele é fundamental para as estéticas e as artes clássicas e, a partir da decadência delas, foi colocado em xeque, especialmente no que se refere à ideia de beleza. Trazido para os dias de hoje, esse processo deperda da unidade parece corresponder ao que se convencionou chamar de fragmentação, de não-linearidade, de descontinuidade. Contudo, a despeito da infindável quantidade de discussões a esse respeito, me parece que ainda não se aprofundou suficientemente a oposição entre unidade e multiplicidade nas artes contemporâneas (aí incluída a literatura 33) .

Mas isso nem é o mais importante. O que me parece relevante é que esses debates quase sempre têm insistido em deslizar, imperceptível mas inapelavelmente, para uma outra oposição, aquela que se dá entre materialidade e objetividade. É claro que esse reino do fragmentário e do descontínuo é correlato da desmaterialização da criação artística. Contudo, muitas análises também dão um segundo passo, chegando de forma apressada, fácil e indevida a uma pretensa desobjetivização. O argumento parece ser o seguinte: por ser fragmentária e descontínua, a criação artística se desmaterializa (até aí, creio que estamos todos de acordo), o que significaria que ela também perderia sua objetividade. O problema se dá justamente nessa passagem do desmaterializado ao desobjetivizado. De fato, trata-se de uma ilusão: se se admite que há um processo de desmaterialização nas artes em geral, a partir do século XX, é preciso se dar conta de que esse processo se torna, por sua vez, um objeto. Ora, é justamente quando se faz de conta de que há tal desobjetivização, que se abre caminho para a supremacia atual da persona em detrimento do objeto artístico, como discuti acima. Ao contrário, abandonando essa solução tão fácil quanto improdutiva, pode-se descobrir onde está e como se dá a objetividade (desmaterializada, certo!) da arte contemporânea, o que vale dizer que é possível associar a ela algum tipo de unidade. Mais ou menos como o fizeram os românticos, que substituíram a unidade externa do objeto artístico clássico por uma unidade interna baseada frequentemente na imaginação.

Nesse caso, a questão importante é: como propor uma perspectiva de unidade, nesta nossa época em que circulam quantidades imensas de informações, em que a descrição coerente, de agora há pouco, de um dado objeto, de um certo processo, parece ser posta em dúvida pela informação que nos chega no instante seguinte? Diria que é a primeira vez que a humanidade enfrenta tal desafio, em que a informação não se divide apenas em útilinútil einacessível, como antes, mas em útilinútilimpossível de ser processada por nós 34 . Contudo, também o século XVIII representou um salto bem perceptível na quantidade de informação disponível. Kant possuía em sua biblioteca mais de duas centenas de volumes, o que já era uma enormidade diante das bibliotecas particulares que encontrávamos nos séculos anteriores; mas era bem menor diante das bibliotecas do século XIX. É certo que nossa época se baseia num acúmulo impressionante de informações. Diante dela, os séculos XVIII e XIX apresentavam bem menos informações circulando, com muito menos velocidade. E, nessa situação, levou cinquenta anos para que se consolidasse o abandono dos padrões da arte clássica em proveito da arte moderna. Contudo, nesta nossa época, em que há muito mais informação, circulando com muitíssima mais velocidade, isso não implica que as mudanças de paradigmas ocorram com mais rapidez e com mais facilidade. Ao contrário! Minha hipótese é que, muito provavelmente, a consolidação de novos modelos e novos gêneros vai demorar muitíssimo mais. Talvez se possa investigar até a hipótese de que não haverá mais estabilização alguma de gêneros, modelos, padrões, de que não haverá aí progresso algum! É nessa perspectiva, assim, que estou propondo utilizar a expressão atraso do progresso. Em outras palavras, se podemos eventualmente falar de progresso tecnológico, isto é, aceitar que há uma acumulação aparentemente linear de habilidades e de possibilidades técnicas, isso não significa que essa mesma progressividade linear esteja presente em todos os processos culturais 35 . Ora, a própria progressividade dos processos tecnológicos é causa de atrasos, de crises imprevistas, de retornos inesperados de situações (ou seja, semelhantes a algumas já passadas). E é a conjunção desses progressos e desses atrasos que permite acontecer o que estou chamando de avanço. Vou explicar melhor! No caso da sociedade contemporânea, o acúmulo e a circulação de informações progrediram (ou seja, aumentaram) de maneira vertiginosa, mesmo sendo movimentos conflitantes (de fato, acumular e circular se opõem de várias maneiras). Todavia, de quando em quando, aqui e ali, alguma perturbação (inesperada e limitada a alguns locais) no sistema tecnológico faz com que essa oposição se torne explícita, evidente, efetiva: é o que ocorre quando o acúmulo excessivo obstrui a circulação de informações e, ao mesmo tempo, a velocidade se torna obstáculo ao acúmulo de informações. De uma só vez, temos velocidade reduzida com grande acúmulo, e acúmulo deficiente com alta velocidade, numa situação que chega à paralisia e à indecidabilidade. Talvez esteja eu aqui falando algo próximo do que propõe Virilio, quando menciona a possibilidade de um “grande acidente”. Mas há uma diferença: Virilio o esboça como catástrofe, eu o proponho como solavanco, como percalço. No meu modo de ver, são os acidentes que podem fazer com que passemos da ilusão do progresso para a construção e a constatação do avanço. Enquanto Virilio associa ao “grande acidente” um alcance unitário global (e, claro!, catastrófico), procuro entendê-lo como um processo descentralizado, em que não se pode prever quando irá surgir e, quando surge, vem certamente perturbar a lógica progressista das tecnologias, estabelecendo uma dinâmica que, ao contrário, pode estar longe de ser catastrófica.

Em resumo, atraso do progresso é usado aqui no sentido de uma estrutura de acontecimento — à falta de melhor expressão —. Uma estrutura de acontecimento nodal, singular, que surge aqui e ali, quando percebemos um certo deslocamento, um deslizamento de sentidos 36 : algo rompe as lógicas e os sentidos 37 de percurso do progresso tecnológico, para trazer uma dinâmica que se lhe opõe (o travamento; no nosso caso, a impossibilidade de avançar na formulação de modelos, de gêneros, de paradigmas novos). Sem embargo, isso não se resolve pelo esquema hegeliano, pois não parece haver caminho para uma superação dialética em direção de uma síntese. O avanço não se faz como síntese totalizante, como instalação de um modelo a ser submetido futuramente a novo período de contestação (como disse Thomas Khun), mas como um fluxo constante de idas e vindas, mais no sentido de uma dialética heracliteana 38 . Essa dinâmica é importante para entender propostas que surgem no campo da tecnologia, como a recente, de um engenheiro da Microsoft, de um dispositivo supostamente capaz de armazenar toda informação referente à vida de um indivíduo (como se essa bobagem fosse possível). Mas não só! Ela também é fundamental para compreender como paradigmas se desenvolvem no campo da estética, onde, mais claramente, não há uma progressão linear e contínua de modelos ou de padrões, mas um avanço que se constrói também através de hesitações e de recuos. É assim que a proposta de gêneros literários e de elementos de leitura para as textualidades digitais só pode ter alguma viabilidade, se entendemos sua formulação como uma dinâmica de avanço e não de progresso. Nesse caso, os paradigmas estéticos que vamos desenvolver devem estar atentos às dobras e singularidades que podemos vislumbrar na história das artes e na história da tecnologia. São essas dobras e singularidades que nos fazem ver a impossibilidade do progresso linear e que, por isso, nos permitem dar, não uma sobrevida, mas uma nova vida a elementos aparentemente mortos e enterrados, como leitor, autor, obra e texto. Ou a formas discursivas como a narração. Ou a gêneros antigos como a poesia lírica. E não se trataria de dar-lhes uma continuidade, mas de renová-los diante da realidade tecnológica que é essa nossa contemporânea. Esse caso dos gêneros literários digitais é, assim, bastante ilustrativo. No que diz respeito a essa dificuldade de propor categorias, modelos ou tipologias, como já venho afirmando neste ensaio, não se trata apenas de obstáculos passageiros que serão superados assim que tivermos uma visão mais larga, com mais distanciamento temporal das criações digitais literárias (como parece ter acontecido até aqui, na história da literatura). De fato, o progresso tecnológico saturante causa modificações profundas na maneira como podemos (ou não) organizar as criações literárias. Por vezes, parece que surgem ou desaparecem tantos gêneros quanto surgem ou se tornam obsoletos programas de computador usados na criação. Temos diante de nós uma situação em que a sofisticação tecnológica parece ter tornado quase impossível uma categorização dos objetos literários (e artísticos em geral).

Sob outro ponto de vista, essa sofisticação tecnológica não é distinta da atual multiplicação dos instrumentos e das perspectivas de análise teórico-crítica literária. Em outras palavras, a vertiginosa multiplicação informacional também chegou (como não poderia deixar de ser) a nossos instrumentos de leitura. Ampliou-se assustadoramente o acesso a periódicos especializados da área; abriu-se a possibilidade de acesso a gigantescos bancos de dados (que não se comparam aos das ciências exatas ou biomédicas, mas, gigantescos, assim mesmo); é cada vez mais fácil a frequentação de congressos, ou a consulta a seus anais etc. etc. Com tudo isso, é evidente que fica cada vez mais penosa a dinâmica da atualização constante e do (re)conhecimento das teorias e das críticas que vão sendo feitas e publicadas. Dinâmica que é imposta como moeda-corrente no mercado da notoriedade intelectual e acadêmica. Dinâmica que tenta esconder os óbvios (e cada vez mais prementes) problemas para se manter o ritmo de sofisticação das teorias e dos aparatos críticos que se verificava até há algumas décadas atrás. Em outras palavras, temos também aqui uma situação em que o progresso das teorias e das críticas levou muitos de nós, de fato, a uma imobilização intelectual. Mas esta, muitas vezes, vem a ser disfarçada a golpes de citacionismo desenfreado, vocabulário absconso, arrogância hermética. Assim, o melhor que a maioria dos atuais críticos e teóricos consegue fazer é improvisar um ecletismo à la mode, leviano e passageiro, brandindo algumas das últimas novidades para esconder a angustiosa sensação de que elas seriam, de fato, as penúltimas, e já estariam correndo o risco de uma iminente desatualização. Assim, como propor gêneros mais estáveis que permitiriam estabelecer tipologias convincentes e produtivas? Impossível, diriam muitos leitores. Dessa maneira, parece que temos diante de nós, novamente, uma situação em que a sofisticação dos elementos de um setor cultural (a teoria e a crítica literárias) causou, ao revés, uma limitação dos processos de compreensão de seus objetos. Essa virtual impossibilidade de propor gêneros, sejam duradouros ou não, pode ser entendida como mais outro sintoma desse atraso do progresso. Ora, outras épocas passaram por essa situação de dificuldade ou mesmo de impossibilidade de propor gêneros. Foi o caso das literaturas medievais ibérico-provençais. E nem por isso os críticos e teóricos que a estudaram deixaram de sistematizar suas visões e suas leituras das obras produzidas naquele período, adaptando ou propondo outras tipologias (como a noção de registro, em lugar de gênero). Em nossa época digital, me parece perfeitamente possível aprender com esse passado em que a noção de gênero era estranha a criadores e a leitores. Pode ser um caminho interessante a seguir, encontrando aí uma maneira de chegar a um avanço na compreensão das obras literárias digitais (à semelhança do que já fiz acima, quando propus voltar ao século XVIII para deslindar impasses do nosso século XXI).

De outro lado, uma possibilidade que se apresenta a mim, como criador, pode ser a construção artificial de uma situação em que possa observar mais de perto essa dinâmica do avanço. Seria como uma singularidade artificial 39 , criada e utilizada para adquirir algum conhecimento dela e algum controle sobre esse processo. Em outras palavras, trata-se de inventar, através de um processo da criação artística, uma situação em que o progresso (a rapidez, a quantidade) das tecnologias seja contestado pelas limitações inerentes à arte; e trata-se também de acelerar os gestos artísticos pela influência inegável da velocidade dos processos tecnológicos contemporâneos. É o que estou tentando fazer atualmente, com uma criação que denomino Pequeno jornal das notícias diárias desimportantes. Trata-se de um esforço consciente para diluir um gênero tradicional (a narrativa) e uma retórica específica (a dos jornais), dentro do gênero e da retórica dos poemas em versos, propondo um deslocamento constante de gêneros, um deslizar incessante entre sistemas retóricos diferentes; trata-se de uma tentativa para experimentar ritmos arcaicos, como os do hai-kai e os da terça-rima, perturbando-os ou acelerando-os com os linques e as contínuas sobreposições dos significantes digitais. No caso, é importante sublinhar que não se trata da formulação de conceitos através da criação literária (e já conhecemos bastante bem os equívocos e as fraquezas das artes conceituais). Afinal, fazer da arte apenas uma crítica aos mitos da tecnologia ou limitar-se a uma anteposição de “arte elevada” a “tecnologias depravadas”, significaria uma simples retomada de posturas já gastas do século XIX (lembremos Marx: “a história ocorre uma vez como tragédia, depois se repete como farsa”). Esse confronto entre arte e tecnologia, feito através da criação artística, não pode ser um fim nele mesmo (novamente: cairíamos aí na mera e paupérrima arte conceitual). Essa contraposição que estou buscando não é conteúdo a expressar, nem conceito a exprimir, nem ideal a defender. Repito, não é um fim, mas um meio para atingirmos uma arte que expresse e permita expressar a experiência humana nos dias de hoje. E nos faça trabalhar com toda a complexidade da criação, campo onde todo avanço nasce justamente dos atrasos do progresso.

 

1- Este trabalho foi realizado graças a uma bolsa concedida pela CAPES.
3-“Ours is essentially a tragic age, so we refuse to take it tragically.”
4-Sobre excesso e excessivo, ver o meu livro Leituras de nós. Ciberespaço e Literatura. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, pp. 113 e ss.
5- “Miguel Angel”, Sobre la aventura. Ensayos filosóficos. Barcelona: Península, 1988, p. 132.
6-A respeito dessa lógica, verwww.inf.ufsc.br/~barreto/trabaluno/TC_Nerio_Mauricio.pdf ou www.cfh.ufsc.br/~dkrause/pg/cursos/lparac.htm.
7- Por “saturação”, não quero entender nenhum processo em vias de finalização, ou que apresente uma aproximação assintótica com algum limite definitivo. Saturação, aqui, diz respeito à complexidade heterogênea dos muitos processos e objetos tecnológicos com que lidamos no dia-a-dia e aos quais somos praticamente obrigados a atribuir um sentido imediato e pragmático.
8- Em Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, o mesmo Fernando Pessoa faz seu heterônimo Alberto Caeiro dizer, pela voz de Álvaro de Campos, outro heterônimo: “Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?”.
9- E diga-se que, no campo tecnológico, lógicas de projeto e lógicas de construção não são necessariamente as mesmas, a despeito de os técnicos assim o afirmarem.
10- Como discutido em meu trabalho “La technologie: un récit”, apresentado no seminário L’internet littéraire francophone, em Cerisy-la-Salle, agosto de 2005.
11- Estou me referindo sobretudo a seu romance Le surmâle. Ibid.
12- “From Social Computing to Reflexive Collective intelligence: The IEML Research Program” – http://www.ieml.org/IMG/pdf/IEML-Levy.pdf.
13- “Une poétique fondée sur l’échec”, passages d’encres 33. poésie : numérique, 2008, pp. 119-122.
14- Hypertexte et art de l’ellipse. D’après l’étude de NON-roman de Lucie de Boutiny- http://www.utc.fr/~bouchard/articles/Bouchardon_article-cahiers-du-numerique.pdf.
15- E este último ponto-de-vista implica quase sempre uma visão psicologizante do leitor.
16- Que, a bem da verdade, já havia sido anunciada antes do advento da era digital, como bem se sabe.
18- Como ele afirma em Les Technologies de l’intelligence.
19- Recentemente, em palestra organizada pelo Instituto Madroño, em Madri, com a participação de profissionais da Springer-Verlag, tentava-se vender um banco de imagens da editora, e um dos argumentos favoráveis foi tirado da fala de uma usuária das imagens disponibilizadas pela Springer, que afirmava: “You can in fact skip reading the whole paper, and honestly that is a huge improvement…”
20- Especialmente abordagens teóricas de Julia Kristeva e Gérard Genette.
21- Do mesmo modo como não controlamos nem contamos os valores infinitos Y de uma função matemática, mas podemos calcular e controlar os valores de X, nos pontos em que ela é infinita. Um bom exemplo é a função tangente:
22- Problema que, de fato, não atinge apenas o modo de tratar com as criações digitais, ou seja, ao modo como se articulam concepções teóricas e explorações críticas, mas diz respeito também ao modo como estas minhas reflexões e este meu artigo estão sendo construídos.
23- “O ser e o existir do poema digital”. Gragoatá, Niterói, v. 16, p. 143-152, 2005.
24- Publicado em Arte y Poesía, tradução de Samuel Ramos, Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
25- Como ouvi em recente defesa de um trabalho acadêmico.
26- Que já nem mesmo é mais uma criação específica, mas a generalidade do campo artístico.
27- El individuo y la libertad. Ensayos de crítica de la cultura. Barcelona: Península, 1986, p. 134.
28- Picasso podia dizer, com toda autoridade, “je ne cherche pas, je trouve”, mas quantos picassos temos hoje em dia? Pelo que dizem de si mesmos, milhões. A julgar por suas criações, pouquíssimos.
29- E era a primeira vez que esta categoria ganhava assento no campo artístico.
30- http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k101303h.r=.langPT#. Como outras referências deste meu trabalho, devo esta à muito útil Historia de las ideas estéticas y de las teorias artísticas contemporáneas, organizada por Valeriano Bozal (Madri: A. Machado Libros, 2004).
31- O que não quer dizer que as tenham solucionado.
32- Ao Vencedor as Batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977. Ouhttp://www.culturabrasil.pro.br/schwarz.htm.

33- Rapidamente, diria que, no caso dos objetos artísticos digitais, a unidade está onde sempre esteve, isto é, na estreita e incontornável tensão entre sujeito e objeto. Quero dizer, com isso, que a unidade não se encontra numa inteireza independente do objeto, tal como pregavam as estéticas clássicas; nem numa decisão unilateral e constituinte do cogito, tal como impunham os racionalismos tradicionais. Ela está numa adesão (que é também tensão, como disse acima) que se estabelece entre leitor e obra, de maneira que o leitor (sujeito) se torne obra por meio de seu objeto, quando reconhece a adesão com seu objeto: nesse caso, ele, sujeito, se dá a ler quando lê a obra, se dá a ler por outros e por ele próprio. Mas isso é discussão para ser aprofundada em outra ocasião, não aqui!

34- Como indica John Freeman em uma das epígrafes deste ensaio. No trabalho “La technologie: un récit”, acima citado, mencionei as estratégias de esquecimento próprias à nossa cultura de saturação tecnológica e que seriam necessárias para construir o conhecimento em nossa época.
35- De fato, ela não está nem mesmo na tecnologia, mas isso é discussão que escapa dos limites deste trabalho.
36- Semanticamente falando.
37- Topologicamente falando.
38- Como já venho apontando desde o início deste ensaio.

39- Singularidade no sentido das matemáticas; artificial no sentido que lhe empresta Pessoa, na epígrafe.

 

* Alckmar Luiz dos Santos é pesquisador convidado da Universidad Complutense de Madrid, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq.

 

A cidade dividida nas charges de Mangabeira | de Marcelino Rodrigues da Silva


“No futebol, cada clube não tem uma torcida, tem um partido organizado,
e eles se aliam ou se separam conforme os azares do campeonato.”

Carlos Drummond de Andrade

Estado de Minas, 21 out. 1956.

Se o mundo do futebol pode ser visto como um grande teatro no qual se projetam os sentimentos de pertencimento, sofrimentos e aspirações de indivíduos e grupos sociais, o discurso jornalístico é certamente a principal instância em que essas significações são produzidas, compartilhadas e cristalizadas. Por isso, é no jornalismo esportivo que tenho concentrado as atenções, ao longo de minha trajetória como pesquisador, em busca de elementos que ajudem a compreender o complexo fenômeno cultural que se desenvolveu em torno do futebol no Brasil.1

 

Após dispensar alguns anos à pesquisa sobre a construção e o funcionamento da mitologia esportiva nacional, que historicamente teve o Rio de Janeiro como seu palco principal, tenho me dedicado mais recentemente ao estudo do passado e do imaginário do futebol em Belo Horizonte, cidade onde nasci e continuo vivendo. Nessa investigação, inevitavelmente dispersa em diferentes momentos do século XX, as décadas de 1940 a 1960 acabaram se impondo como as mais significativas, por marcarem a consolidação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro, fato de inegável relevância na vida esportiva belo-horizontina e mineira. Para um breve panorama desse trabalho, pode servir como ponto de partida a história do surgimento dos mascotes dos clubes e a produção do artista que os concebeu.

Os símbolos dos principais clubes de futebol de Belo Horizonte (o Galo para o Atlético, a Raposa para o Cruzeiro e o Coelho para o América) foram criados pelo desenhista Fernando Pierucetti (1910-2004), em 1945, para o jornal Folha de Minas, que tinha uma das seções esportivas mais vibrantes da imprensa mineira daquela época. No ano seguinte, o artista se mudou para o Diário da Tarde e pouco depois para o Estado de Minas, onde continuou publicando por várias décadas. O surgimento dos mascotes foi motivado pelo desejo de Álvares da Silva, secretário da Folha de Minas, de lançar charges parecidas com as que, na mesma época, o Jornal dos Sports publicava no Rio de Janeiro (o Flamengo era o Popeye, o Fluminense o Pó-de-arroz, o Vasco o Almirante, o Botafogo o Pato Donald e o América o Diabo). Ao pedido de Álvares da Silva, Fernando Pierucetti, que era professor de desenho e ilustrador do suplemento literário e da página infantil do jornal, respondeu com a proposta de fazer os mascotes no espírito das fábulas de Esopo e La Fontaine, mas utilizando animais da fauna brasileira. Adotando o pseudônimo de Mangabeira, ele fez os desenhos, não só para os mascotes de Atlético, Cruzeiro e América, mas também para diversos outros clubes da capital e do interior do estado.2

 

Estado de Minas, 14 jan. 1968.

A inspiração para a escolha dos bichos vinha, em grande medida, de elementos que já faziam parte da imagem dos clubes: o Atlético, com sua fama de “bom de briga” e seu uniforme preto-e-branco, que lembrava um galo da raça carijó, seria o Galo; o Cruzeiro, que costumava ter dirigentes italianos de incomparável esperteza para os negócios (como Mário Grosso, presidente da época), seria a Raposa; o América seria o Coelho, que era o sobrenome de vários diretores do clube e combinava com a sua personalidade “fagueira”; o Villa Nova, de Nova Lima, seria o Leão, pois “fazia os adversários sentirem-se em seu estádio como leões na arena”; o Siderúrgica, criado em Sabará por funcionários da Usina Belgo-Mineira, seria uma tartaruga com a carapaça dura como aço; e assim por diante. 3

Desde o seu nascimento, portanto, os bichos de Mangabeira capturavam algumas das significações, tendências e possibilidades de desenvolvimento futuro que estavam em jogo naquele momento da história esportiva da cidade. O Atlético, forte desde as primeiras décadas do século e cada vez mais querido pelos torcedores das classes populares, e o Cruzeiro, que com astúcia e perseverança vinha se tornando cada vez mais poderoso, já começavam a cultivar a rivalidade ritual que dividiria a cidade ao meio, duas décadas depois. Enquanto isso, o América se encontrava num lento processo de decadência, que começou na década de 1930 e se completou apenas nos anos 1960. O combate fabuloso entre o Galo, que defende bravamente seu terreiro das ameaças externas, e a Raposa, bicho atilado que busca com astúcia invadir o território inimigo, foi logo assimilado pelos adeptos de ambos os clubes. Conta-se, por exemplo, que Zé do Monte, ídolo do Atlético nas décadas de 1940 e 1950, costumava entrar em campo com um galo debaixo do braço. Em resposta, a torcida cruzeirense prometia soltar uma raposa em campo, para caçar o bicho de Zé do Monte.

Mas a história da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro não pode ser contada sem um recuo às primeiras décadas do século, quando a recém-fundada nova capital do estado dava seus primeiros passos. Já nesses anos iniciais, a prática de esportes como o turfe e o ciclismo fazia parte da vida belo-horizontina, como componente de um imaginário de sofisticação e modernidade que inspirou o projeto de construção da cidade. Os primeiros clubes de futebol surgiram em 1904, com a chegada de Victor Serpa, um estudante de família abastada que vinha de uma temporada na Europa, trazendo as últimas novidades da metrópole. O Atlético, fundado em 1908, e o América, criado em 1912, foram os principais clubes desse primeiro momento da história futebolística de Belo Horizonte, e cultivaram entre si uma acirrada rivalidade, cuja significação principal estava no caráter elitista e de distinção social que o futebol emprestava a seus adeptos naquela época.4

Entretanto, não demorou muito para que a popularização do esporte provocasse uma transformação nesse panorama. Entre os indícios da mudança, está o próprio surgimento do Palestra Itália, em 1921, por iniciativa dos membros da colônia italiana da cidade, que era predominantemente formada por operários, artesãos, comerciantes, trabalhadores da construção civil etc. Outro momento de grande importância foi a criação da primeira liga profissional de futebol, em 1933, como resultado da presença cada vez maior de interesses econômicos de dirigentes e atletas, decorrentes da popularização do esporte. Enquanto Atlético e Palestra aderiram ao profissionalismo, seguindo uma tendência de crescimento e modernização que se manifestava em diversos campos da vida cultural belo-horizontina, o América permaneceu amador, capitulando ao profissionalismo apenas em 1943, fato que certamente interferiu de maneira decisiva em sua trajetória posterior.

Embora o Palestra já tivesse surgido como um clube forte, conquistando três títulos na década de 1920, o confronto entre Atlético e América continuou sendo considerado, por muito tempo, o principal clássico da cidade, recebendo da imprensa o epíteto de “clássico das multidões”. Na década de 1930, marcada institucionalmente pela profissionalização, a hegemonia esportiva esteve sintomaticamente nas mãos do Villa Nova, clube que tem suas raízes ligadas aos operários da mina do Morro Velho, em Nova Lima. Nos anos 1940 e 1950, o Atlético se manteve sempre no primeiro plano, enquanto o América continuava em lenta decadência e o Cruzeiro em progressiva ascendência. A única exceção foi o ano de 1948, quando o América conquistou o título estadual diante do Atlético, num confronto antológico que pode ser considerado como o último avatar da grande rivalidade que houve entre os dois clubes nos primeiros decênios do século. Foi apenas na década de 1960 que o Cruzeiro passou a ser amplamente considerado como o principal rival do Atlético, conquistando títulos importantes e ampliando sua torcida graças a um time sensacional, formado por craques como Tostão, Dirceu Lopes e Piazza.

A decadência do América e a consolidação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro foram fartamente registradas e comentadas por Mangabeira, em seus desenhos para o Estado de Minas. Como no início de 1968, quando uma curiosa série de charges lamenta a agonia do Coelho, contrapondo-a à supremacia que Galo e Raposa vinham exercendo na eterna luta entre os bichos do futebol mineiro. Em 20 de janeiro daquele ano, por exemplo, o desenho de um globo terrestre dominado por Galo e Raposa, enquanto o Coelho levita para o “outro mundo” onde estão os bichos “que também já morreram”, vem acompanhado de uma longa legenda que começa assim: “o Super-Coelho entra hoje, definitivamente, no esquecimento. Já foi enterrado e agora pertence ao mundo dos mortos. Enquanto na terra todos falam na eterna briga do Galo com a Raposa, o Super-Coelho caminha para o Além…”

Estado de Minas, 20 jan. 1968.

Na criação dos mascotes, como vimos, Mangabeira se inspirou em determinados elementos que já faziam parte do imaginário esportivo da cidade, trazendo para a simbologia dos bichos muitas das significações que já estavam projetadas nos clubes naquele momento. Além da referência ao uniforme do clube – listado como um galo carijó –, o Galo de Mangabeira remetia à mística do “vingador”, cultivada pelo Atlético desde os seus primeiros anos e ressignificada com a popularização do clube a partir dos anos 1930. Da história de uma sequência de jogos em 1913, contra o Granbery de Juiz de Fora, a fama de vingador se transmutou na mística da raça e da paixão desmedidas, que hoje é marca registrada do time e da torcida atleticana. Citando uma reportagem de João Vianna de Oliveira, publicada no jornal O Debate em 1956, a Enciclopédia do Atlético, de Adelchi Ziller, define assim a inspiração de Mangabeira para compor a personalidade do mascote atleticano:

O Atlético é um time que vende caro uma derrota. A vantagem do adversário no placar não lhe tira a garra. Parece um galo de rinha. Um galo na rinha? Justamente: seu símbolo será o Galo, o Galo Carijó, entrando o adjetivo na história por obra e graça de suas cores tradicionais: preto e branco. E o Atlético surgiu nas charges de Mangabeira a caráter: raça de brigão, de sujeito mal encarado, o bico adunco e sempre pronto para rasgar a carne antagonista.5

A escolha da Raposa como símbolo do Cruzeiro, por sua vez, fazia referência à trajetória de muitos dos membros da colônia italiana em Belo Horizonte, cuja astúcia para os negócios possibilitou a ascensão às camadas privilegiadas da população da cidade. Ao lado dessa astúcia, que emula uma racionalidade prática típica do capitalismo, o trabalho e a perseverança também marcaram a trajetória daqueles imigrantes e compõem o cerne da mitologia do clube. Na narrativa das tradições cruzeirenses, dispersa nas diversas publicações que falam sobre sua história, esse traço herdado da origem é constantemente lembrado, como justificativa para o crescimento paulatino e constante da agremiação ao longo do século XX. Como, por exemplo, no livro De Palestra a Cruzeiro, de Plínio Barreto e Luiz Otávio Trópia Barreto, que encerra sua narrativa da fundação do clube tocando de modo conciliador na difícil questão da assimilação dos italianos à sociedade belo-horizontina:

O Palestra nasceu como um clube do povo, diferente de seus atuais dois grandes rivais regionais (…) era a agremiação dos que arregaçavam as mangas nas indústrias da panificação, nos andaimes das construções civis, nas oficinas de calçados, nas serrarias, marcenarias e serralherias, na condução das carroças. Onde houvesse um setor cuja mão-de-obra (…) fazia-se necessária, lá estava um palestrino – italianos e brasileiros – colaborando com o seu trabalho para o progresso da nova Capital. Lado a lado, clube e cidade caminhavam rumo ao progresso.6

Metaforizada pela eterna luta dos dois bichos na disputa pelo terreiro belo-horizontino, a rivalidade ritual entre Atlético e Cruzeiro parece, então, opor dois conjuntos diferenciados de representações e valores, por meio dos quais se constroem duas imagens distintas. Se hoje ambos os clubes reivindicam para si o atributo “popular”, não há dúvidas de que se trata de duas formas diferentes de ser popular. O Atlético, com sua mitologia da raça e da paixão desmedida, parece reafirmar a diferença de um povo passional, intuitivo e sofredor, personificando a heterogeneidade e as energias incontroláveis das massas e opondo-se ao processo de modernização. O Cruzeiro, por sua vez, reforça o vetor desse processo com suas raízes na ação dos próprios europeus como agentes modernizantes e seu ideário marcado por valores e atributos como trabalho (o próprio fundamento do sistema capitalista), perseverança, astúcia e sucesso. 7

Essas significações reverberam, de forma diluída e disseminada, em inúmeros discursos do imaginário esportivo belo-horizontino. A fundação do Atlético por um grupo de estudantes de boa família é contada como um momento de rebeldia inconsequente de garotos que mataram aula para se encontrar no coreto do Parque Municipal. O ambiente social elitista dos primeiros anos é amenizado pela figura acolhedora de dona Alice Neves, mãe de um dos fundadores que acolhia os primeiros encontros do grupo e é tomada como símbolo de um clube que “soube se abrir para o mundo” e “foi generoso com os torcedores que bateram à sua porta”. 8 No panteão dos grandes ídolos atleticanos, destacam-se figuras como o humilde e folclórico Dario Peito de Aço e o negro Ubaldo, que fazia “gols espíritas” na década de 1950 e foi carregado pela massa do estádio Independência até o centro da cidade após um jogo em 1955, num episódio de verdadeira comunhão do clube com o povo. Mediação social e potencial de conflito fundem-se na mitologia do Galo de uma forma semelhante à que, dentro de certa tradição cultural, tem sido identificada como característica definidora da identidade nacional brasileira, baseada na hibridação étnica e cultural e na conciliação sempre tensa das diferenças.

Do outro lado da fronteira simbólica que divide a cidade ao meio, na galeria de herois cruzeirenses os craques do gramado (muitos deles de origem italiana) dividem as glórias com dirigentes quase tão celebrados quanto os próprios jogadores. Como os pioneiros Aurélio Noce e Antonio Falci, e depois Mário Grosso, Felício Brandi, Carmine Furletti etc. A trajetória histórica do Cruzeiro é vista como uma linha contínua de ascensão, “sem lances de heroísmo pungentes” e marcada pela “simplicidade de um trabalho constante e reiterado, quase anônimo, cuja somatória, ao correr do tempo, conferiu a dimensão grandiosa, internacional, universal, de um dos maiores clubes do mundo”. 2Trabalho, racionalidade e sucesso, portanto, se fundem na mitologia cruzeirense para compor uma imagem heroica do popular, evocando a ideia da multidão de trabalhadores que marcha triunfalmente em direção ao progresso.

Os ecos dessas significações ainda se fazem presentes na cena contemporânea. Se a torcida do Atlético é fiel e apaixonada, a do Cruzeiro é exigente, ranzinza, acostumada a cobrar o desempenho de seu time. À possessão da “Galoucura”, encarnando a paixão atleticana, o Cruzeiro opõe a organização e a diligência de sua “Máfia Azul”. No universo da administração dos clubes, o Atlético tem uma mentalidade quase populista, dependendo de um líder forte e carismático como Alexandre Kalil, capaz de superar a corrupção e o desmando e entrar em sintonia com a massa. Enquanto isso, o Cruzeiro vive os benefícios de uma sequência de boas administrações, encabeçadas pelos irmãos Perrella, verdadeiras raposas quando se fala em negócios. Dentro de campo, o rebaixamento do Atlético para a série B do Campeonato Brasileiro e a volta para a série A, em 2005 e 2006, foram vividos dramaticamente, como mais um episódio de superação do “vingador”. Ao passo que a “tríplice coroa” do Cruzeiro, com a conquista do Campeonato Mineiro, da Copa do Brasil e do Campeonato Brasileiro em 2003, foi mais uma “página heroica” na trajetória cruzeirense.

Estado de Minas, 26 out. 1956. Estado de Minas, 9 dez. 1958.

Curioso notar, no entanto, que a simbologia dos clubes captada pelo traço de Mangabeira elide certos elementos que, de certa forma, apontam para o caráter de artifício dessa tradição inventada.10< Na história atleticana, por exemplo, é difícil assimilar a origem elitista dos garotos que fundaram o clube em 1908. Por isso o acontecimento tem que ser deslocado e transformado pelas narrativas da tradição em um lance de rebeldia, que já prefigurava a identidade que o clube consolidaria ao longo do século. E, na trajetória do Cruzeiro, é flagrante o incômodo que se manifesta nos relatos sobre o momento traumático vivido pelo clube em 1942, quando foi forçado a mudar de nome (de Palestra para Cruzeiro) por um decreto do governo federal que proibia referências aos países do Eixo, num episódio cercado por um pesado clima de animosidade contra os membros da colônia italiana em Belo Horizonte. Com sua referência aos céus brasileiros, a escolha do novo nome do clube deixa entrever o caráter problemático do processo de integração dos imigrantes italianos na sociedade brasileira, projetado na necessidade imposta pela guerra de optar entre a fidelidade às origens e a assimilação por uma nova comunidade nacional.

Assumindo algum risco (pelo menos o de ser censurado por ambas as torcidas), seria possível dizer que essas duas narrativas de tradição clubística se assemelham na ambiguidade, oferecendo à sociedade duas alternativas para a solução simbólica do conflito entre o povo e as elites, necessária ao processo de modernização: a ideologia populista da mediação e do pacto social, investida no Atlético, e a ideologia liberal-capitalista da ascensão pelo trabalho, encarnada no Cruzeiro. Daí a necessidade de mitificar a origem, de esquecer os ressentimentos e de selecionar no passado os lugares da memória que sustentarão a tradição. Para que a popularidade se constitua, é preciso assimilar a origem social daqueles garotos que “mataram aula” para fundar o Atlético, é preciso esquecer momentos de tensão e violência que ameaçaram a integração italiana na cidade.

Desse ponto de vista, ao invés de uma simples oposição, a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro pode ser vista como uma complementaridade, que naturaliza e cristaliza a dicotomia entre o tradicional e o moderno, tão disseminada no imaginário e na historiografia belo-horizontina, substituindo e dissimulando outros antagonismos, entre o povo e as elites, brasileiros e italianos etc. Tornados populares, os dois clubes mantêm uma relação especular. O Atlético inveja e busca a racionalidade cruzeirense e o Cruzeiro tem ciúmes da paixão e da fidelidade da torcida atleticana. Os rojões preparados para uma vitória que não chegou hoje poderão sempre ser utilizados na derrota do rival amanhã. A força simbólica de um depende da presença do outro, assim como a cidade precisa conciliar modernidade e tradição, povo e elite.

De certo modo, esta opção interpretativa mais radical nos lembra que, mesmo se estiver fundamentada na experiência dos grupos sociais que se envolveram com os clubes ao longo de sua história, qualquer outra interpretação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro terá algo de abusivo e suplementar. As histórias do futebol e da vida são sempre mais complexas do que os mitos identitários e as construções historiográficas. É preciso reconhecer que tende para o esquematismo qualquer tentativa de “explicar” o universo futebolístico por meio do enquadramento, da classificação e da oposição clara e coerente dos signos esportivos. Porque o futebol, como esporte, espetáculo e universo comunicacional, extrai sua eficácia justamente da capacidade de produzir narrativas que se cruzam, diversificam e desdobram, ao sabor das circunstâncias e das posições enunciativas. É bastante oportuna, portanto, a advertência dada por José Miguel Wisnik, em seu recente livro sobre o futebol, sugestivamente intitulado Veneno remédio:

A divisão da população de uma cidade em times rivais, claramente dualizada em algumas cidades, como acontece com Grêmio e Internacional em Porto Alegre, Atlético e Cruzeiro em Belo Horizonte, e Bahia e Vitória em Salvador, obedece, para além dos perfis sociológicos, a uma necessidade antropológica: a de se dividir em “clãs totêmicos” mesmo no mundo moderno, e disputar ritualmente, num mercado de trocas agonísticas, o primado lúdico-guerreiro, como se não fosse possível ao grupo social existir sem suscitar por dentro a existência do outro – o rival cuja afirmação me nega me afirmando.11

A rivalidade especular entre Atlético e Cruzeiro tem a ver, certamente, com essa “necessidade antropológica” de afirmação e negação do outro, como condição para a realização do jogo social pelo qual se dá circulação dos poderes, sentidos e valores em uma coletividade. Presente tanto na política quanto no esporte, essa necessidade antropológica do jogo e da rivalidade pode ou não encontrar expressão contextualizada mais definida, com contornos razoavelmente legíveis. De qualquer modo, as tensões e os antagonismos sociais estarão sempre presentes, estabelecendo configurações que desafiam a interpretação.

 

* Marcelino Rodrigues da Silva é doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor adjunto da Faculdade de Letras da UFMG. Realizou pesquisa de Pós-Doutorado em Estudos Culturais no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), com financiamento do CNPq.

 

NOTAS

1 Cf. SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol; o Brasil moderno de Mário Filho. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
Cf. também SILVA, Marcelino Rodrigues da. O mundo do futebol nas crônicas de Nelson Rodrigues. 1997. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos Literários.), Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte.

2 Cf. GALUPPO, Ricardo. Raça e amor: a saga do Clube Atlético Mineiro vista da arquibancada. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003, p. 77-78.
Cf. também ZILLER, Adelchi. Enciclopédia do Atlético. Belo Horizonte: Ed. Lemi, 1974, p.221-223.

3 GALUPPO, Ricardo. Raça e amor. Op. cit, p. 78.

4 Sobre a história do futebol em Belo Horizonte nas primeiras décadas do século XX, cf. COUTO, Euclides de Freitas. Belo Horizonte e o futebol: integração social e identidades coletivas (1897-1927). 2003. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), PUC Minas, Belo Horizonte.
Cf. também RIBEIRO, Raphael Rajão. A bola em meio a ruas alinhadas e a uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). 2007. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, Belo Horizonte.

5 Citado por ZILLER, Adelchi. Enciclopédia do Atlético. Op. cit, p. 223.

6 BARRETO, Plínio e BARRETO, Luiz Otávio Tropia. De Palestra a Cruzeiro; uma trajetória de glórias. Belo Horizonte: [s.ed.], 2000, p. 25.

7 Como referência para a discussão teórica sobre as relações entre a cultura popular urbana e o processo de modernização nas sociedades periféricas, cf.:
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997.
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: ______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 247-264.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

8 GALUPPO, Ricardo. Raça e amor. Op. cit, p. 41.

9 SANTANA. Jorge. Páginas heróicas; onde a imagem do Cruzeiro resplandece. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003, p. 32.

10 Para a discussão teórica sobre o papel da memória e do esquecimento na constituição das narrativas identitárias, cf:
BHABHA, Homi K. Disseminação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.198-238.
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989, p.3-15.

11 WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 51.

 

Desentranhando Luis Olavo Fontes – Entrevista, por Masé Lemos

Entrevistar o poeta Luis Olavo Fontes foi uma experiência muito agradável. O “Lui”, como ele é conhecido pelos amigos, domina a arte da boa conversa. Com o seu jeito carioca e sem nenhum pedantismo, ele foi capaz de refazer o seu “retrato de época”, ou seja, da chamada poesia marginal da qual participou ativamente. Essa entrevista foi gravada, transcrita e depois revisada e editada. Ela é uma tentativa de preencher a lacuna do livro de Carlos Alberto Messeder Pereira, pois o Lui, na época, estava literalmente viajando.

Masé Lemos: Você participou nos anos 1970 do movimento chamado “poesia marginal” e em recente minibiografia que você escreveu diz que você seria “um poeta marginal dentro dos marginais ou que teria sido marginalizado nos anos 70 e esse teria sido o seu fim”. Poderia falar um pouco sobre isso?

Lui: Há dois assuntos na sua pergunta. Primeiramente, em relação a mim, ocorreu que em 1976 eu saí do Brasil e só retornei em 79. A poesia marginal estava no auge quando parti. Eu acabara de lançar um livro Papéis de Viagem, que era como eu estava me sentindo: tirando os papéis de viagem para partir. Para mim foram apenas três anos – 74/75/76 – participando do movimento de poesia marginal. Mas, foram três anos muito intensos em que fiz três livros, fundei com o Cacaso a coleção “Vida de Artista”, participei de antologias e fiz muitos trabalhos em jornais e revistas da época. Aconteceu que a melhor e mais completa pesquisa sobre a “poesia marginal”, o livro Retrato de Época de Carlos Alberto Pereira, foi feito em 1977 quando eu não me encontrava no Brasil. Ele entrevistou todo mundo menos eu. Fiquei de fora – marginalizado dentro dos marginais
Além disso, havia contra a poesia marginal um preconceito muito grande, a começar pelo nome. Na verdade, não sei quem deu esse nome, mas não fomos nós. Marginal ali ninguém era. O que havia é que nossos livrinhos eram marginais ao circuito editorial. Com isso, nos livrávamos da censura dos militares, muito rígida na época – censuravam tudo e todo mundo – e também de todos os intermediários – livrarias, distribuidores, editores. Vendíamos diretamente do autor para o leitor. Agora, marginal é uma palavra muito vasta, dá margem a muitos significados pejorativos que a alguns agrada, a outros não.

ML: Essa marginalidade não era também uma forma de resistência a esse sistema editorial? Não só politicamente contra a censura, mas também uma maneira de furar esse, digamos assim, sistema capitalista?
L: Claro que sim. Até porque éramos muito jovens e não conseguiríamos entrar no sistema editorial, ainda mais publicando poesia, algo difícil até hoje. Qualquer jovem que queira publicar poesia vai sofrer a mesma coisa que nós sofremos naquela época. É como você disse: as editoras são empresas capitalistas, feitas com o intuito de gerar lucro. E poesia não dá lucro… Aí vem aquelas frases: poesia está fora do mercado, não dá dinheiro etc. Então era sim uma maneira de furar esse mercado editorial e tentar criar um outro circuito: vender em bares, na praia, no teatro, na rua, no mundo.

ML: A poesia de vocês tem muito do Modernismo…
L: Com certeza. Literariamente falando, nossa maior influência era o Modernismo. O Brasil mudara muito de 68 a 73. Houve a revolução sexual, a televisão a cores com satélite para todo o país. Nós queríamos descobrir esse novo Brasil que estava nascendo. Daí talvez a ligação com os modernistas. As maiores influências eram Manuel Bandeira (de Libertinagem em diante), Oswald de Andrade, Drummond de Alguma Poesia, Murilo Mendes do Poemas, enfim, aquela fase modernista inicial dos anos 1930. Quase me esqueço: Mário de Andrade a gente também lia muito. A outra grande influência vinha da música: Tropicália, samba e rock’n roll. Bob Dylan, John Lennon, Jimi Hendrix, Caetano, Chico Buarque – esses eram os nossos gurus. Eu, particularmente, adorava João Gilberto e o Jim Morrison dos Doors.

ML: E qual relação de vocês com os concretos?
L: Não havia relação… A relação com os concretos me faz lembrar o Cacaso. Cacaso era cheio de frases de efeito, um mestre das respostas rápidas. Uma vez ele disse: “o concretismo é o AI-5 na poesia.” Os paulistas ficaram furiosos. Nós vivíamos o AI-5 naquela época, era o auge dos anos de chumbo da ditadura militar, o governo do General Médici. Cacaso queria fazer não uma poesia engajada tradicional, mas uma poesia de denúncia dos crimes da ditadura, dos horrores da tortura, da violência, do autoritarismo. Mesmo porque havia censura e ninguém sabia o que estava realmente ocorrendo. Cacaso não se conformava com o fato dos concretos terem abolido o discurso literário – com a velha desculpa pernóstica de que “tudo já foi escrito.” Ele dizia, com alguma razão, que a poesia concreta só contribuía para uma maior alienação da poesia brasileira. Fatos terríveis estavam acontecendo e a poesia concreta estava fazendo “Coca-Cola”, “Luxo é Lixo” – poemas alienados que mais pareciam “slogans” publicitários. Ele propunha que a poesia voltasse a ter um discurso, que fosse mais reflexiva, que se aproximasse mais da realidade, e o concretismo realmente estava em outra onda, algo mais “clean”, mais estético – o formalismo em estado puro – que os aproximava mais das artes plásticas do que da literatura.

ML: O que é interessante é que desde os concretos era comum relacionar a poesia artesanal ao individualismo, mas na poesia dita marginal essa ideia de artesanato está muito mais ligada ao coletivo.
L: É verdade. Em termos de produção, eram sempre criações coletivas. É o caso do Almanaque Biotônico Vitalidade, cujo primeiro número foi um exemplo disso. Poetas, pintores, fotógrafos, “designers”, se reuniram e o resultado foi ótimo. O mesmo ocorreu nos primeiros livros da coleção “Vida de Artista”, que foram feitos coletivamente, um monte de gente junta, na fazenda do meu avô. Já com relação à produção poética, acho que as individualidades predominam e são bem definidas. Não concordo com pessoas que rotulam “poesia marginal” como uma coisa una, todos escrevendo parecido. Acho que individualmente éramos muito diferentes e isso se refletia em nossa poesia. A poesia da Ana Cristina é totalmente diferente da do Chacal. A poesia do Chico Alvim é muito diferente da do Cacaso. E todos são considerados poetas marginais.

ML: Como foi dito, no livro Retrato de Época: poesia marginal de Carlos Alberto Pereira, há várias entrevistas com os componentes da “Vida de Artista”, mas você não foi entrevistado. Por onde você estava viajando na época?
Lui: Estava fazendo a grande viagem da minha vida, uma viagem de volta ao mundo. Era um sonho antigo de conhecer o Oriente, a Índia, a China… Nos meus planos iniciais, era uma viagem que iria durar entre 3 e 6 meses, mas acabou durando 2 anos. A ideia era seguir a rota de Marco Polo, de Veneza a Pequim pela Estrada da Seda e voltar pela Ásia do Sul – exatamente como foi a viagem de volta de Marco Polo. Mas, o Sikiang (oeste da China) estava fechado para estrangeiros, então fui primeiro pra Índia e sudeste asiático e terminei na China. Voltei pelo Pacífico, parando em algumas ilhas, até chegar no Chile. A viagem foi bacana porque foi feita toda por terra, só peguei dois aviões: um na ida, Rio-Roma, e outro na volta (com escalas), Bali-Santiago do Chile. Foi a volta ao mundo em 700 dias.

ML: Antes da viagem, você foi aluno da Faculdade de Letras da PUC-RIo.
L: É verdade. O Cacaso e a Ana Cristina foram muito importantes nesse processo. Em 1973, eu estava terminando o curso de Economia na PUC – que cursara por pressões familiares – quando houve um evento poético na faculdade: a “Expoesia”. Puseram um monte de quadros de cortiça no pilotis da PUC, que é uma área imensa, e você podia ir lá e pregar com tachinhas um poema seu. Era uma coisa livre, aberta a todos – então, fui lá e coloquei um poema meu. Ocorreu que o Cacaso e a Heloísa Buarque escreveram em conjunto um artigo para a revista Argumento – uma revista importante na época, era do Fernando Gasparian, que também tinha o jornal Opinião – dizendo que havia um novo movimento de poesia feito pelos jovens. Para exemplificar, publicaram uns 4 poemas expostos na Expoesia, entre os quais estava o meu “Homenagem à Yoko Ono”. Eu me surpreendi porque até então não conhecia nenhum desses jovens poetas, não conhecia o Cacaso, não conhecia a Heloísa, ainda estava estudando Economia. Por outro lado, sempre fui muito ligado à literatura, porque o meu avô por parte de pai era o Amando Fontes, romancista com alguma fama nos anos 30, 40 do século passado, quando ganhou prêmios com seu romance Os Corumbas. Sempre escrevi, desde garoto, mas era algo solitário e meio secreto, não mostrava pra ninguém. Nunca havia exposto em público um poema meu até que nessa “Expoesia” tudo aconteceu. O Cacaso escreveu esse artigo com a Helô e quis me conhecer. Logo conheci a Ana Cristina e comecei a me interessar em, quem sabe, cursar Letras na PUC. Foi assim que terminei Economia em 73 e entrei para Letras em 74.

ML: E aí você foi cursar Literatura em 74. Conte como foi que surgiu a coleção “Vida de Artista”.
L: Foi um tempo muito bom. O Cacaso logo se tornou meu amigo e fez um curso sobre a poesia da gente – que ainda não se chamava marginal. A Ana Cristina, que era minha namorada, era também minha monitora num curso que eu fazia com a Cecília Londres. Houve uma espécie de simbiose entre as pessoas, todas ficaram muito amigas. O Chacal, que fazia o curso do Cacaso de ouvinte, começou a namorar minha irmã Debinha. Ele fez um poema lindo pra ela que está no América, dedicado “à Deborah”. O Cacaso começou a namorar outra irmã minha, a Kaki, que também estudava literatura na PUC. Nesse curso, ele começou a publicar os poemas da gente no mimeógrafo da PUC e a ideia de fazer livros assim já estava acontecendo – o Charles e o Chacal já haviam feito seus primeiros livros dessa maneira. Foi então que surgiu o Toledo, um amigo do Cacaso que tinha um mimeógrafo moderno na sua firma de arquitetura e deixou que nós fizéssemos nossos livros lá. Eu estava com meu primeiro livro, Prato Feito, pronto e o Cacaso convidou: “Vamos fazer no mimeógrafo do Toledo.”
Prato Feito tinha fotos da Bita Carneiro, que tinha sido namorada do poeta João Carlos Pádua e era irmã do Geraldinho Carneiro, também poeta – ambos alunos de Letras da PUC. A ideia do Cacaso, nosso professor, era fazer uma coleção em que cada livro vendido pagasse a produção do seguinte. Uma espécie de cooperativa literária. O dinheiro da venda do livro não iria para o autor, mas para a produção do próximo livro. Assim, o Prato Feito financiou a publicação do Segunda Classe, o segundo livro da “Vida de Artista”.

ML: E como eram os famosos encontros na fazenda do Lui?
L: Esses encontros foram muito citados no Retrato de Época, mas a fazenda não era o único ponto de encontro da gente. No Rio, havia a casa do Cacaso – um apartamento enorme na avenida Atlântica – e o casarão da Lagoa, onde morávamos eu e meus irmãos. Éramos sete irmãos, a casa era bem grande e vivia cheia de gente. Isso era no tempo em que havia casarões na Lagoa… Os meus dois primeiros livros, Prato Feito e Segunda Classe, foram lançados lá. O que aconteceu foi que no réveillon de 74/75, passamos uma longa temporada na fazenda e foi um tempo muito rico, vários livros foram feitos. Foi uma turma enorme pra lá: poetas, artistas plásticos, músicos, cineastas, um bando de artistas, mas o intuito principal era fazer livros de poesia. E foram feitos pelo menos três livros nessa temporada na fazenda: Segunda Classe, que era meu e do Cacaso, o América do Chacal e o Creme de Lua do Charles. Aliás, o América foi o terceiro livro da “Vida de Artista”, tinha o carimbo da coleção feito pelo Dick e Sérgio Liuzzi – um balãozinho muito bonitinho. Mas, o Chacal estava sendo muito pressionado por amigos da faculdade dele – ele estudava comunicação na ECO, onde também estava o Charles – para participar de outra coleção que eles estavam criando: a “Nuvem Cigana”. Assim, o América foi, nas palavras do próprio Chacal, um livro híbrido; foi tanto da “Vida de Artista” quanto da “Nuvem Cigana”. O Creme de Lua do Charles já saiu pela “Nuvem Cigana”. Aliás, tem um poema nesse livro que foi feito na fazenda: o Charles estava deitado na rede da varanda quando apareceu um bando de maritacas aos berros num vôo rasante. Charles gritou: “Olha a passarinhada!” Fomos todos correndo para a varanda: “Aonde? Aonde?” E o Charles imóvel na rede respondeu: “Passou.” Esse poeminha está no Creme de Lua e tem três linhas: “Olha a passarinhada!/Onde?/Passou…”

ML: A Ana Cristina César na entrevista que deu ao Carlos Alberto Pereira, falando sobre a fazenda do Lui, dizia que tinha toda uma roda de meninas em volta… então, talvez houvesse esse clima narcisista, clube do bolinha, o que você poderia falar sobre isso?
L: É difícil falar sobre isso… São os sentimentos da Ana Cristina… Mas, acho que ela tinha alguma razão – afinal, éramos uns garotões de vinte e poucos anos… Mas aí, acho que tem duas coisas. Primeiro, talvez ela se sentisse meio deslocada porque ela era a única mulher poeta, todos os outros eram homens. Talvez, ela se sentisse meio fora do negócio. Em segundo lugar, é preciso lembrar que no réveillon de 75 Ana Cristina ainda não havia publicado nada. Ela escrevia muito, mas não queria publicar, não se sentia segura. Ela dizia também que não possuía uma quantidade suficiente de poemas para fazer um livro de qualidade, algo com que eu não concordava. Eu dizia a ela: “está cheio de gente muito pior que você publicando livros, por que você não publica?” Mas, ela não publicava nada. Então, devia ser uma situação meio incômoda pra ela: todo mundo fazendo livro e ela não. Mas isso são suposições…
Agora, nesse comentário que ela faz, que havia muitas luluzinhas em volta da gente, como se fossem umas tietezinhas, acho que há um certo exagero dela em dizer isso. Ainda que houvesse um certo machismo dos homens, as meninas que estavam lá eram nossas amigas e namoradas, a maioria delas também artistas. Você quer nomes? No réveillon de 75 na fazenda, em volta da mesa redonda da sala de jantar, estavam a Sandra Werneck – hoje cineasta de renome – , a Bita Carneiro que é uma grande fotógrafa, a Olívia Byington que é ótima cantora (acho que ela namorava o músico Paulo Guimarães na época), Debinha que era atriz, Massoca que é artista plástica e a Kaki que é poeta, mas que também só publicaria mais tarde. Como se vê, as meninas eram todas artistas e não tietes idiotas como ela deixa transparecer na entrevista. Havia também um pessoal da música, ouvia-se e tocava-se muita música. Muitas drogas também. As pessoas tomavam muitas drogas naquele tempo.

M: E essa viagem ao São Francisco, que deu como resultado o Segunda Classe, qual era o significado da viagem? Porque você tem uma relação especial com essa noção de viagem…
L: Tenho. E o Cacaso não. O Cacaso era mais quieto, mais sedentário. Ele nasceu em Uberaba e depois se mudou para Barretos. O pai era fazendeiro de gado, tinha terras em vários estados. As maiores fazendas ficavam no Pantanal. Com 11 ou 12 anos, Cacaso se mudou para o Rio, e aquilo foi um choque para ele, menino interiorano na cidade grande. Apesar de estar no Rio há tanto tempo, Cacaso nunca deixou de ser aquele mineirinho calado, observador, esperto.
Já o meu caso era diferente, nasci no Rio e minha família adorava viajar. Minha mãe era a maior incentivadora dessas viagens. Lembro que em 61, Brasília estava quase pronta e meus pais decidiram conhecê-la. Puseram as crianças no carro e lá fomos nós pro planalto central. Meu pai era médico, Dr. Olavo Fontes, mas sua maior paixão eram os discos-voadores. Então íamos para os Estados Unidos, onde meu pai se encontrava com astrônomos e pesquisadores de OVNIS. Passei assim a infância viajando, era uma coisa natural pra mim.
Mas, a primeira grande viagem que fiz foi com meu amigo de infância, Guy Van de Beuque. O pai dele era francês, Jacques Van de Beuque – idealizador do maravilhoso museu Casa do Pontal – e na sua lua-de-mel com a mãe do Guy, nos anos 40, atravessaram a América por terra desde os Estados Unidos à Patagônia. O Guy queria repetir essa viagem (eles tinham slides que nós assistíamos) e me convidou pra ir com ele. Minha namorada tinha terminado comigo, eu estava meio sem rumo, acabei indo. Fomos de mochila – era 1970, eu tinha 18 anos – e nossa viagem tinha duas leis de ouro. Primeira: não pagar transporte. Segunda: não pagar hotel. Isso se devia ao fato de termos pouquíssimo dinheiro – então a viagem virava uma coisa meio aventureira, só viajávamos de carona e nos hospedávamos em igrejas, escolas, universidades ou em casas de pessoas que ofereciam quartos de graça.
Eu e o Guy viajamos assim por toda a Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Nessa viagem aprendi a viajar. Descobri como era fácil viajar com pouco dinheiro e comecei a viajar pelo mundo todo. Viajava também pelo Brasil: fui conhecer Sete Quedas antes que a represa de Itaipu a cobrisse para sempre. E, como todo mundo, me apaixonei pela Bahia.
O movimento poético dos anos 70, seguindo os passos do Modernismo, também tinha esse desejo de conhecer o Brasil. O Charles e o Dick (o designer Rogério Martins) foram de jipe para o Nordeste e passaram por muitas aventuras no sertão. Havia os livros do Oswald viajando com a Tarsila pelo Brasil, os livros do Blaise Cendrars, do Mário de Andrade… Manifesto Antropofágico era a leitura predileta de quase todo mundo: “Tupi or not Tupi: that is the question”. Era preciso conhecer o Brasil.

ML: Mas o Cacaso não se animava…
L: É, o Cacaso era meio parado e nós ficávamos forçando “Vamos viajar, Cacaso?” e levávamos o Cacaso para Rio das Ostras, pra Pirapora… Sim, porque essa viagem pelo rio São Francisco começava em Pirapora (MG) e terminava em Juazeiro (terra de Ivete Sangalo) no sertão da Bahia. O mais interessante eram as barcas que haviam sido importadas do Mississipi e tinham aquelas enormes rodas de madeira na popa. Apesar de lindas, as barcas era altamente antiecológicas, pois seu combustível eram toras de madeira recém-cortadas das matas ciliares do rio. Elas provocavam a maior devastação nas margens do São Francisco. Iam acabar com as barcas, mas não por esse motivo. Uma enorme represa, a de Sobradinho, estava para ser construída, o que iria afetar a navegabilidade do rio. Por isso, resolvemos ir – para conhecer as famosas barcas do São Francisco que iam se acabar.

ML: E era tranquilo viajar com o Cacaso?
L: Era ótimo. Cacaso era cômico, estava sempre fazendo alguma observação engraçada sobre tudo que via. Ele ficou maravilhado com a Bahia, que nós já conhecíamos e ele não. “Nós” éramos eu, minha irmã Massoca e a Bita Carneiro. Parecíamos dois casais, mas não éramos. Acho que foi em outubro de 1974 que fizemos a viagem e eu namorava a Ana Cristina. Já o Cacaso queria namorar a Massoca e não conseguia. Assim fomos os quatro amigos e acabamos nas praias de Salvador comendo acarajés, abarás, carurus e vatapás.

ML: E essa ideia de poesia escrita coletivamente que o Segunda Classe apresentava, sem diferenciação de autoria nos poemas?
L: Os teóricos adoraram na época.

ML: Já havia essa noção de coisa coletiva, de grupo, de “Vida de Artista”, de coleção…
L: Mais ou menos. A gente tentava, mas éramos muito desorganizados. No caso do Segunda Classe, não houve nenhum planejamento, tudo foi acontecendo naturalmente. Quando fizemos a viagem, não foi para escrever um livro. Foi para conhecer o São Francisco.

ML: E como surgiu a ideia do livro?
L: Não surgiu, foi acontecendo naturalmente.

ML: Vocês foram escrevendo lá mesmo?
L: Sim, mas separadamente. Eu escrevia meus poemas, Cacaso escrevia os dele. Às vezes mostrávamos alguma coisa que havíamos acabado de fazer um para o outro. A viagem foi indo, a gente foi escrevendo sem compromisso de estar preparando um livro. Foi só depois, quando fomos para a fazenda no fim do ano que eu mostrei pro pessoal: “olha só os poemas que fiz lá.” O Cacaso tirou uma pasta da bolsa baiana recém-adquirida no Mercado Modelo e disse: “Eu fiz esses todos lá”. A Bita chegou e mostrou: “olha, eu tirei essas fotos.” E a Massoca: “ah, eu fiz esses desenhos.” Nós estávamos no mesão redondo da fazenda onde tudo acontecia: fazia-se livros, tocava-se música, conversava-se muito e a certa altura o Cacaso se vira e diz: “Com esse material aqui dá pra se fazer um livro. Vamos fazer um livro?” E assim foi. No meio do processo é que surgiu a ideia de não dizer de quem eram os poemas, acabar com esse conceito autoral.

ML: Uma espécie de morte do autor…
L: Pois é. Mas, havia uma coisa curiosa acontecendo: os nossos poemas tinham ficado muito parecidos. Um dia dissemos, meio de brincadeira, que se tirássemos a autoria dos poemas, ninguém saberia dizer qual era de um, qual era de outro. Na verdade, um influenciava o outro, as coisas que líamos eram as mesmas, as paisagens deslumbrantes eram as mesmas para os dois.

ML: Era a mesma viagem…
L: Era a mesma viagem e realmente os poemas ficaram muito parecidos. Era difícil distinguir o que era de um, o que era do outro.

ML: Recentemente você voltou a ter problemas com a autoria dos poemas deste livro – conte o que houve.
L: Chega a ser irônico. Ficamos esse tempo todo sem dizer de quem eram os poemas e quando isso foi revelado – saiu tudo errado! Três poemas meus foram dados para o Cacaso. São eles: “Mudando o Estado”, “Constatando” e “Diário”. O pior foi ter lido num ensaio crítico recente da pesquisadora Luciana di Leone que escrevendo sobre o Segunda Classe apontou diferenças cruciais entre a minha poesia e a do Cacaso. Para demonstrar isso ela cita dois poemas do Cacaso – que são meus! Quer dizer, com isso ela conseguiu comprovar que eu sou completamente diferente de mim mesmo.

ML: Mas ela partiu de um material que estava errado.
L: É verdade, ela não teve culpa. O erro está no livro das obras completas do Cacaso, o Lero-Lero, editado pela Cosac Naify e 7Letras. Vou mandar uma carta para eles, para ver se eles corrigem isso nas próximas edições. Afinal, já existem estudos literários dizendo que os meus poemas são de outro!

ML: Seria melhor que deixassem como antes – sem autoria. Deixar os dois misturados coletivamente.
L: Realmente, teria sido melhor. Foi o Pedro, filho do Cacaso, que me pediu para que assinalasse no Segunda Classe os poemas do pai que havia morrido. Mandei para ele uma lista com os poemas do Cacaso no livro. E mesmo assim saiu errado.

ML: Ana Cristina César tem um poema, Vigília 2, “desentranhado do poema Vigília de Luis Olavo Fontes”. Como foi isso?
L: Ana fez esse poema lá em casa, na minha mesa. Fizemos uma tentativa de morar juntos que não deu certo, éramos muito jovens (22 anos) e muito dependentes de nossos pais. Aluguei um apartamento em Santa Teresa e saí de casa. Mas, comíamos na casa dos pais, falávamos no telefone (não tinha telefone no apê), enfim, era uma vida meio dividida. Mas em Santa Teresa, líamos, escrevíamos e namorávamos muito. Vários poemas da Ana foram feitos lá em casa – por exemplo, os dois que ela publicou na revista Malasartes de setembro de 1975. Um deles foi o “Vigília 2”, que eu considero um dos melhores poemas da obra dela. Aliás, foi a Luciana di Leone quem percebeu que no livro póstumo, Inéditos e Dispersos, organizado por Armando Freitas Filho, o poema foi publicado sem a epígrafe – “desentranhado do poema Vigília…”. Ou seja, o Armando cortou a epígrafe. Acho que ele não gosta muito de mim… O título do poema fica sem sentido – por que Vigília 2? Onde está o Vigília 1?

ML: Alguns poetas da geração de vocês morreram jovens… Queria perguntar sobre essas mortes que de certa maneira santificaram alguns poetas.
L: Santificaram uns e outros não, né? Lá no Nordeste, o povo gosta de dizer durante o velório de um pecador: “agora que morreu, vai virar santo.” Mas, tem também os que morrem e ninguém lembra mais. Um dos poetas fundadores da “Nuvem Cigana”, o Guilherme Mandaro, morava a três prédios da Ana Cristina na mesma rua Tonelero e também se jogou pela janela, uns dois anos antes dela, e hoje ninguém fala dele, é uma pessoa totalmente esquecida. Era ótimo poeta, mas só fez dois livros: Hotel de Deus e Trem da Noite. Tinha militância política e apareceu no livro do Gabeira “O que é isso companheiro” com o codinome de Bom Secundarista. Ele era do Pedro II no tempo da guerrilha urbana. No início dos anos 70, Guilherme era professor de História e foi dele a ideia de usar os mimeógrafos das escolas onde dava aula para publicar poesia. Foi ele quem permitiu ao Charles e ao Chacal fazerem seus primeiros livros em mimeógrafos. A ideia foi dele, do Guilherme Mandaro. E quase ninguém sabe disso. Já outros, como você disse, foram beatificados: Leminsky, até mesmo o Cacaso; e a Ana Cristina é a santa maior.

ML: Torquato…
L: Torquato, pois é, também conheci o Torquato. Foi numa filmagem em Super 8 do Ivan Cardoso, “Nosferatu no Brasil”. Torquato era o ator principal, o Nosferatu. Tinha uma cena antológica: Torquato (Nosferatu) de sunga e capa negra à sombra de um coqueiro, com os caninos pontiagudos à mostra, tomava coco gelado no canudinho enquanto fiscalizava os pescoços femininos na areia da praia.

ML: Em 2007 você publicou três livros – Colar de Coral, Linha de Fogo e Livro do Príncipe. Excesso de inspiração?
L: Nada disso. Excesso de preguiça para publicar. O Livro do Príncipe é antiquíssimo, foi escrito em 1975 no apê de Santa Teresa, tempo em que estudava Letras na PUC. Ficou na gaveta mais de 30 anos. O Colar de Coral é meu livro de poesias inéditas abrangendo um período de tempo que vai de 1982 a 2002. Eu não fazia um livro de poesias inéditas desde 1987, quando lancei o Tupis, Rubis e Abacaxis.

ML: Bem modernista o título, né?
L: Na verdade é um verso do Mário de Andrade, num poema em que exaltava as riquezas e maravilhas do Brasil: “Abacate, cambucá e tangerina/Tupis, rubis e abacaxis!” Algo assim, não lembro bem.

ML: Faltou falar de um livro…
L: Ah, sim… O Linha de Fogo é um livro pequenino, no formato de uma caderneta, que por isso cabe no bolso de uma calça jeans ou na bolsa das mulheres. São 150 poemas curtinhos ou poemetos – que hoje chamam poema-minuto – 50% dos quais inéditos. É outra característica da poesia dos anos 70 inspirada no Modernismo. Drummond, Oswald de Andrade, Murilo Mendes e até Bandeira – todos faziam o chamado poema-minuto de quando em vez. Nossa geração seguiu essa tradição.

ML: Você não disse como terminou a Coleção Vida de Artista… Quais os livros publicados?
L: A “Vida de Artista” começou a ficar famosa em 1975. Pessoas desconhecidas nos mandavam livros de todo o Brasil para que as publicássemos. Tivemos de fazer uma triagem, uma seleção. Acredito que a ideia inicial do Cacaso era compor um conselho editorial comigo, Ana Cristina, João Carlos Pádua, Charles e Chacal – a turma que passara a temporada na fazenda. Mas, Charles e Chacal logo abandonaram o barco e foram para a Nuvem Cigana. João Carlos e Ana Cristina tiraram o corpo fora, como era de praxe, não queriam se envolver. Sobramos então eu e o Cacaso para tocar a “Vida de Artista”. Publicamos um poeta de Brasília, Eudoro Augusto, que não conhecíamos, mas que nos enviou um bom livro, A Vida Alheia. Publicamos também Carlos Felipe Saldanha, também conhecido como Zuca Sardana, um diplomata amigo do Chico Alvim que fazia livros em mimeógrafos desde os anos 1960, muito antes da nossa geração ter essa ideia. O livro dele chamava-se Aqueles Papéis. Cacaso publicou o Beijo na Boca, seu livro de poemas líricos, com capa da minha irmã Massoca. Acredito que, finalmente, depois de toda essa paquera, ele tenha conseguido namorar ela.
Em 1976, o projeto do Cacaso para a “Vida de Artista” começou a caducar. A antologia da Heloísa Buarque fizera um enorme sucesso, nossa poesia se espalhara pelo Brasil. Já havia editoras interessadas em publicar os “marginais”. A Vida de Artista foi se esvaziando naturalmente. Os namoros acabaram, outros começaram, as pessoas se distanciaram. Como dizia Murilo Mendes: “a vida separa muito mais do que a morte”. Ainda fizemos dois livros que podem ser considerados da coleção “Vida de Artista”: o meu Papéis de Viagem (1976) e o Na Corda Bamba (1977) do Cacaso. O carimbo da “Vida de Artista” – todos os livros eram carimbados manualmente na capa – ainda está lá em casa, guardado com carinho.

ML: E a poesia contemporânea, você tem acompanhado?
L: Até tenho, na medida do possível. Acho que a poesia contemporânea está muito tribalizada. Cada tribo tem sua poesia. Como no tempo dos índios, algumas tribos guerreiam entre si. Outras, sentindo-se superiores às demais, ignoram-nas. Essas últimas cultivam a fantasia de que só eles conhecem e produzem a verdadeira poesia. Parecem não se aperceber que a poesia é como o vento – sopra onde quer. Há inúmeras maneiras de se fazer boa poesia – basta ler poetas como Fernando Pessoa, Maiakovski, Baudelaire, e ver como são maravilhosos, ainda que suas poesias sejam construídas de modo bastante distinto.

ML: Algum poeta lhe agradou ultimamente?
L: Sim, gostei muito do livro Rilke Shake da Angélica Freitas. É uma poesia bem-humorada, a começar pelo título. Está faltando um pouco de humor na poesia: tá todo mundo muito sério… Também gostei dos poemas daquele menino que morreu, Leonardo Martinelli; entrei no site dele e ele era um bom poeta. Fiquei com pena, um poeta tão jovem e tão talentoso…

ML: Você lançou um livro de prosa em 2009?
L: Lancei Novelas de Guerra. Livros de contos e novelas. Sou um contista bissexto, mas fazia 16 anos que não publicava nada desde Ócio do Oficio de 1993. Já estava na hora de publicar outro. Estou até espantado com a boa repercussão do livro, tenho recebido inúmeros e-mails com elogios, algo que não ocorre quando publico poesia…
Novelas de Guerra era na verdade dois livros: um de novelas e outro de contos. Pensei a principio em editá-los separadamente, mas a Heloisa Buarque de Holanda, que é a minha editora, me convenceu a uni-los num só volume. Três contos são de 1973 [eu tinha 21 anos] e não entraram no Ócio do Oficio nem me lembro mais por quê. Mas, a maioria é recente, do século XXI, ainda que haja dois ou três dos anos 1990. Apenas um deles, “Separação”, não é inédito, pois já havia sido publicado numa coletânea de contos editada pela Francisco Alves. A maioria das histórias é de aventuras em vários lugares do mundo – minhas viagens tiveram alguma influência nisto. São fáceis de ler e têm boa dose de humor, acho que é por isso que têm agradado tanto às pessoas.

ML: E os planos para 2010?
L: Estou terminando uma biografia do meu avô, o dono da fazenda onde fazíamos os livros de poesia, Severino Pereira da Silva. É um livro feito por encomenda da família. Mas, a história dele é tão incrível que pode até dar samba. A ideia seria lançá-lo em dezembro de 2010.

Masé Lemos é professora de Teoria da Literatura na UERJ. Em 2007, publicou Redor pela 7Letras. maselemos@me.com

 

A Literatura Brasileira num mundo de fluxos | de Beatriz Resende

Parto, neste texto de uma afirmação de Arjun Appadurai, professor da New School University na cidade de Nova York, nascido e educado em Bombain (Bombay), na Índia.

Em sua introdução ao volume por ele organizado Globalization 1 , Appadurai começa afirmando que a globalização é uma “fonte de ansiedade” no mundo acadêmico americano. Isso em 2003, ou seja, antes da grande crise. O que interessa a Appadurai, neste ensaio, e a nós, ao pensarmos a literatura brasileira contemporânea, é perguntar-se sobre a possibilidade da globalização criar ou não um mundo sem fronteiras (“world without borders”), eliminar ou afirmar formas de diferenciação que a academia tanto afirma como recusa e, finalmente, investigar como a pesquisa e os estudos de área se situam diante da questão. Tais ansiedades são encontradas em muitas esferas públicas nacionais (inclusive as dos EUA) mas também estão presentes nos debates de scholars dos países mais pobres.

O pensador identifica uma forte separação, um “apartheid”, entre os debates envolvendo questões econômicas, formas de organizações multinacionais, práticas políticas internacionais e o que chama de “discursos vernaculares” envolvendo autonomia cultural, sobrevivência econômica e acordos sobre mercado, trabalho, meio ambiente, doenças e guerras, quando são discursos de países pobres e seus defensores.

O que torna o debate inevitável e a necessidade de pesquisas conjuntas evidente é sua constatação de que vivemos num mundo caracterizado por objetos em movimento. E esses objetos incluem ideologias, povos, mercadorias, imagens e mensagens, tecnologias e técnicas. É o que chama de um mundo de fluxos: “This is a world of flows”.

Mesmo aquele que pode parecer o mais estável desses objetos – o estado-nação – é frequentemente caracterizado por populações em movimento, fronteiras questionadas, configurações, habilidades e tecnologias móveis.
A inevitável mobilidade em tempos de fluxos globais inclui, evidentemente, a imaginação. E aqui já nos aproximamos da produção literária de forma mais evidente. Para Appadurai, a imaginação não é mais produto do gênio individual, forma de escape da vida cotidiana ou uma dimensão da estética. É a faculdade que dá forma à vida do homem comum de maneiras as mais diversas. É o que faz com que as pessoas pensem em emigrar ou viajar, as fazem resistir à violência, procurem redesenhar suas vidas, buscar novas formas de associação e colaboração, muitas vezes para além das fronteiras nacionais.

Diz o antropólogo:

I have proposed that globalization is not simply the name for a new epoch in the history of capital or in the biography of the nation-state. It is marked by a new role for the imagination in social life 2.

É, portanto, a partir da constatação de vivermos num tempo em que a imaginação, a arte, a cultura, contaminam-se – positivamente ou não – com os efeitos globais, que gostaria de tratar, ainda que muito brevemente, as possibilidades da vida literária e da produção da ficção no Brasil em tempos absolutamente atuais (tentarei falar dos dois ou três últimos anos). A principal questão que aparecerá no debate será a dos limites da literatura nacional.

Evidentemente, esta não é uma questão exclusiva de países ainda periféricos, mesmo que, como é o caso do Brasil, sua interlocução a nível global, tenha crescido expressivamente. O recente reconhecimento internacional da impotência do G8 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá e Rússia) na conferência de Áquila e a proposta de criação do G14 (o G8 mais Brasil, Índia, China, África do Sul, México e Egito), assim como a importância que vem sendo dada pelo presidente Obama a grupos como o G5 (países emergentes na conjuntura internacional junto com China, Índia, México e África do Sul) ou os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), faz com que possamos, talvez, falar, mesmo em conferências onde os estudos de área são determinantes, de um lugar um pouco menos distante do que aquela última porta no final do corredor, que costumamos dividir com estudos latino-americanos.

Como dizia, a produção literária mundial, hoje, tem apontando para a força do debate que estamos propondo. Tomemos alguns exemplos recentes. O genial vencedor do Prêmio Nobel de 2003, J. M. Coetzee, nasceu na África do Sul, de uma família africâner. Profundo critico do passado de apartheid, escreve em inglês, o que lhe permitiu receber dois (caso único) Booker Prize. Em seu mais importante romance, Desonra (Disgrace), deixa de lado certa escrita alegórica que exercera no também magnífico À espera dos bárbaros (de algum modo marcado por seus estudos sobre Beckett) e parte de uma questão própria de tempos do politicamente correto, uma acusação de assédio sexual por parte da família de um alunado protagonista, condenação que marca o fim da carreira acadêmica do personagem, para penetrar numa África do Sul violenta onde brancos e negros continuam a se odiar. Coetzee é hoje cidadão australiano e não poupa a academia nas falas de sua famosa personagem Elizabeth Costello.

No ano passado, o prestigioso Prêmio Goncourt, o mais francês dos prêmios franceses, foi atribuído ao afegão Atiq Rahimi, por seu romance Singuê Sabour – A pedra da paciência. Terceiro romance de Atiq, foi o primeiro a não ser escrito em persa, mas na língua do país que lhe concedeu asilo político. Mais do que ser escrito na língua do país onde vive, Singuê Sabour é uma narrativa fortemente tributária da escrita de outra premiada com o Goncourt, Marguerite Duras. Mesmo ritmo, mesmas frases curtas, mesmo apelo visual, perfeitamente de acordo com um autor que é também cineasta.Mas é das mulheres de seu país, da covardia masculina, do ímpeto bélico que fala através da voz monocórdia da mulher que habita uma casa desmoronada, acossada pela guerra fratricida, ainda que o Afeganistão não seja mencionado.

São apenas exemplos, dentre vários outros possíveis, mas significativos porque o trânsito, o fluxo, de uma língua para outra, de uma influência ou dialogo para outros, não são determinados por condições obrigatoriamente políticas, ou por opção estética como a feita por Beckett. Perguntado sobre a razão de optar por escrever em francês, Samuel Beckett afirmou, certa vez, que o fazia porque“o francês é uma língua pobre”, provocativo e evocando uma menor variedade vocabular identificada nesta língua do que no inglês. Em francês, seu texto ficaria mais seco.

Voltemos aqui às condições vividas pela literatura brasileira contemporânea. No que diz respeito ao trânsito internacional e a possíveis ampliações do público leitor, o acordo ortográfico firmado com Portugal em janeiro deste ano é um esforço para que “oficialmente” tenhamos uma só língua e para facilitar iniciativas editoriais. Mas não são as novas regras que farão com que nossas pronúncias se tornem mais compreensíveis mutuamente, ou que a linguagem literária, sobretudo a coloquial, se torne mais ou menos próxima.

Como produzir, então uma literatura que se imponha entre leitores brasileiros, seja reconhecida, primeiro pelo universo editorial e depois pela crítica, e, se possível venda? O escritor funcionário público, melhor ainda se diplomata como Guimarães Rosa e João Cabral e Melo Neto, que tinha sua fonte de renda garantida pelo Estado, é figura do passado, ainda que continuem existindo honrosos representantes como o embaixador do Brasil na Tailândia, o premiado escritor Edgar Telles Ribeiro, ou o em Washington, o interessante romancista João Almino.

O jornalismo talvez seja a opção profissional paralela mais frequente, mas alguns conflitos acabam se estabelecendo entre as duas funções.

Dados recentes divulgados pelo Ministério da Cultura não são nada animadores. O brasileiro lê em média 1,8 livros per capita ao ano (contra 2,4 na Colômbia e 7 na França, por exemplo). 73% dos livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da nossa imensa população de um pouco mais de 190 milhões de habitantes. O preço médio do livro de leitura corrente é de R$ 25,00, (U$ 12, 40) elevadíssimo quando comparado à renda média da classe média (das classes C,D e E).

Curiosamente, no entanto, apesar desse quadro, novas editoras vêm se instalando no país, especialmente espanholas e portuguesas; pequenas editoras surgem a todo momento; os prêmios literários se multiplicam e aumentam de valor a cada ano. As festas, feiras e bienais literárias crescem e um evento como a Festa Internacional Literária de Paraty traz, todo ano, para a pequena cidade histórica os mais importantes escritores do mundo, já chegando a ter num mesmo evento dois prêmios Nobel de literatura. Paul Auster, Toni Morisson, J.M. Coetzee, Nadine Gordimer, Orhan Pamuk, Ian MacEwan e outros já passaram por lá. Tudo isso nos leva a crer que o potencial criativo desta nossa forma de arte é alto e capaz de disputar espaços mundo afora.

O que quero analisar brevemente são tendências, recursos, opções que se colocam para nossos escritores contemporâneos. Vou me ocupar unicamente da prosa de ficção, já que o universo da produção poética tem peculiaridades próprias e é atingida, de forma ainda mais grave pelas dificuldades de tradução.

Em 2008/2009 três de nossos importantes escritores contemporâneos encontraram-se em situação de incrível coincidência ao lançarem romances que se utilizavam basicamente da mesma estratégia narrativa. Silviano Santiago, autor do romance experimental marca do surgimento da paródia pós-moderna entre nós, o Em liberdade, autor de Stella Manhattan, publicado em 1985, no final do regime autoritário, romance que fala, com ênfase política das performances de um travesti brasileiro e passado em Nova York, autor do contos gays de Keith Jarett no Blue Note e do provocativo O falso mentiroso, afirmação inconteste da peculiaridade do ficcional, lança em 2008 o “romanção”: Heranças, onde um homem velho escreve suas memórias e repassa história, costumes, usos e cultura no Brasil a partir dos anos 30, em Minas Gerais, até os dias de hoje, na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Junto com a história do homem de poucos escrúpulos vem a história do Brasil moderno. O modelo declarado é Machado de Assis, especialmente em sua vertente irônica, além de imagens e figuras de linguagem que dele são explicitamente tomadas emprestado.

Neste ano de 2009, Chico Buarque em sua versão romancista publica sua quarta obra: Leite derramado. O anterior fora o arrojado Budapeste, verdadeiro debate entre as possibilidades da escrita, da sinceridade, do plágio, possibilidade ou não do traduzível, numa narrativa que se passa em grande parte justamente em Budapeste, cidade que o autor nunca tinha sequer visitado. No romance de 2009, Eulálio d’Assumpção, com cem anos, numa cama de hospital, entre delírios e rememorações narra a trajetória do decadente membro de uma perversa elite brasileira, racista e arrogante, que vê sua descendência amulatar-se e se perder nas inabilidades de lidar com o real no país que se moderniza. Com a história do homem e da mulher que o abandonara, novamente, vem a história do país, dos costumes, dos preconceitos, dos sonhos delirantes da família que sonhava com uma Europa que, também ela, desaparecia.

O modelo, sem dúvida, é novamente o Machado de Assis de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou do excepcional Memorial de Aires.

Em recente encontro literário, Chico Buarque e o terceiro autor que cito nessa parte, Milton Hatoum, brincavam, divertidos, de acusarem-se mutuamente de plágio, diante do lançamento do autor amazonense neste ano. Em Órfão do Eldorado, o premiado Milton Hatoum mantém seu capital regionalista que vem dando particularidade a suas narrativas de gosto mais clássico desde o festejado primeiro livro Relato de um certo Oriente. No último romance, um velho um tanto enlouquecido conta sua história e da mulher que perdera enquanto narra parte da história de fausto e tragédia de Manaus, no Amazonas, no momento em que a cidade fora considerada uma espécie de Eldorado.

Nos três autores – os dois primeiros tendo realizado uma forte guinada em suas trajetórias – fala-se do Brasil. As narrativas são reflexões sobre a formação do Brasil moderno, recuperam a tarefa que a crítica de base sociológica, em especial a de Roberto Schwarz, atribui à literatura de Machado de Assis. Para Schwarz, simplificando pifiamente seu pensamento, o grande valor do nosso “Mestre na periferia do capitalismo”, como se refere a Machado, seria ter sido, na criação ficcional um “intérprete do Brasil”.

O modelo machadiano aparece – apesar das diferenças existentes em cada um desses autores de dicção própria – como um mesmo recurso que lhes atribui o mérito que o Schwarz vê em nosso romancista do século XIX: ser um mestre a partir das próprias condições adversas do país ou da sociedade.

A verdade é que a tradição crítica marxista, a partir sobretudo dos trabalhos de Antonio Candido, tem sido a mais forte legitimadora, de forma inevitavelmente canônica, da literatura brasileira.

Não posso evitar a volta ao ensaio de Appadurai quando diz:

The many existing forms of Marxist critique are a valuable starting point, but they too must be willing to suspend their inner certainty about understanding world histories in advance 3 .

Na contramão dos três romances “clássicos”, um dos mais interessantes escritores contemporâneos, Bernardo Carvalho, lançou em 2009 seu 9o romance Filho da mãe.

Neste romance, o título, segundo o próprio autor perde completamente as possibilidades de entendimento plural se traduzido para qualquer outra língua, já que filho da mãe além do sentido linear que tem tudo a ver com a história do romance que fala de mães lutando pela vida de seus filhos, é um xingamento um pouco mais aceito socialmente do que filho da puta. No entanto, todo o enredo entrecruzado, desdobrando-se em múltiplas narrativas, como costuma fazer, passa-se na Rússia, especialmente em São Petersburgo e fala de um país destroçado por guerras fratricidas, especialmente a guerra da Tchetchênia, pela corrupção, pelo desalento, pela vivência de fracassos pessoais e nacionais. Bernardo Carvalho segue uma trajetória de absoluto desenraizamento em suas narrativas, já consagrada em romances como Teatro (1998) e As iniciais (1999) e radicalizado em Mongólia (2003), romance realizado a partir de prêmio ganho em Portugal que o levou a viajar por este país e depois narrar histórias de nômades que se movem sem deixar rastros.

Em todas as suas obras trava-se um combate ente real e ficcional. A arma da ficção é o discurso, a da realidade, o estranhamento. A luta entre adversários poderosos é instigada pelo autor que, de um lado, fornece suprimentos à curiosidade do leitor interessado em relatos de viagem através de culturas tão diversas e geografias peculiares. De outro, porém, cria um enredo tão simples quando emocionante. Ao final, o que garante a vitória da ficção, é a própria construção discursiva desenvolvida em manobras precisas do escritor hábil e competente. E é, sobretudo, na afirmação dos poderes do ficcional que está a importância de suas obras originais e instigantes.

Além de premiado no Brasil, Bernardo Carvalho tem sido publicado regularmente em Portugal e na França e traduzido em várias línguas. O escritor/jornalista garante, porém, que não dá para viver de literatura.

Uma terceira tendência tem se multiplicado com força em nossa ficção nos últimos anos. É a escritura realista das grandes cidades contemporâneas, especialmente narrativas da violência e da desigualdade. O romance Cidade de Deus, (de 1997) de Paulo Lins, transformado em filme que circulou mundo afora, firmou as possibilidades de romances, contos e novelas que falam desta faceta da vida brasileira, mas que em muito se assemelha à vida de quase todas as grandes cidades mundo afora.

Escritores da periferia, como Ferrez, também autor de raps, vindo de área pobre do entorno de São Paulo, utilizam-se desses recursos ao realismo cru. O foco na realidade nacional transforma-se rapidamente numa espécie de passe-partout abrindo caminho para viagens globais e com um olho ambicioso no cinema. Apesar da dificuldade em ser original ao optar por esta proposta, os resultados em termos de público leitor e vendas de direitos a outras mídias têm sido satisfatórios.

Apontadas estas três tendências dominantes, todas de alguma forma exitosas, resta olharmos rapidamente para o trajeto e as possibilidades que se oferecem aos jovens autores que têm surgido com surpreendente frequência.

Em relação à literatura de autores emergentes, cabe, de saída, observar a multiplicidade de possibilidades que vem se revelando como característica principal. Ainda que com leve predomínio de um tom levemente autocentrado, preferindo frequentemente a si mesmo como tema, o que os faz com que sejam frequentemente acusados de praticar uma literatura egótica, estilos, dicções, temas os mais variados convivem na produção literária do século XXI.

Ao falar desses jovens escritores, ou outros menos jovens mas ainda firmando suas carreiras, vale conferir as novas estratégias de divulgação, circulação e consolidação de sua participação na vida literária brasileira. Para tal, o uso das novas tecnologias disponíveis na web mostra-se uma possibilidade nova, capaz de mudar toda a relação entre autor, editor e público leitor. Os blogs de escritores e de críticos, as revistas virtuais, os sites especializados além de novas ferramentas como o twitter ou espaços virtuais como o facebook, vêm se mostrando instrumental indispensável. No cyberspace surge uma nova vida literária – com amizades, brigas, compadrismo ou perseguições – que configuram, hoje, novas formas de escrita, de leitura, de crítica e, sobretudo de produção e circulação literárias. A maior vantagem que os recursos da internet têm apresentado para os autores que sabem usá-los positivamente, tem sido a independência em relação aos mediadores tradicionais não só no que diz respeito ao processo editorial como ao de legitimação, detido por editores e pela crítica acadêmica. Este processo revela um desejo de ultrapassar as instâncias mediadoras indispensáveis até o final do século XX. Ultrapassar, no entanto, não significa recusar. Toda legitimação é bem vinda, mas os novos autores estão determinados a não esperar por ela. A diferença entre o que aponto como ultrapassar e a recusa marca uma grande diferença entre a atitude contemporânea e aquela vivida por alguns autores dos anos 70, especialmente os da chamada “Literatura marginal” dos anos de regime autoritário.

Hoje, editores pescam na web. Os autores, mesmo inéditos, submetem-se, imediatamente, à crítica – às vezes impiedosa de seus pares.

A produção literária contemporânea não tem como proposta ideológica circular fora do sistema mercadológico ou midiático, mas está determinada a não esperar pela autorização dos representantes deste sistema. O melhor exemplo dessa possibilidade é Ana Paula Maia que lançou o terceiro romance que escreveu, Entre rinhas de cães e porcos abatidos, em seu site, como um “Folhetim Pulp”. Com a recepção e os comentários recebidos, a autora foi convidada a publicar o segundo romance, até então sem editora, pelo selo Língua Geral e, logo depois, o terceiro romance que citamos, acrescido de uma excelente novela: “O trabalho sujo dos outros” pela editora major Record, firmando-se como uma das mais originais escritoras contemporâneas.

Essas novas formas de circulação vêm impondo à produção literária e artística novos formatos, tributários, várias vezes da linguagem própria à internet. Assim como os quadrinhos (HQ), os espaços virtuais deixam marcas na própria estética literária até mesmo quando os escritos migram da internet para o papel.

Mesmo o sistema de premiação vem encontrando no espaço da internet versões originais, como a “Copa de Literatura”, já em sua segunda edição, com participação de escritores e críticos funcionando como jurados da produção literária do ano. Organizado à maneira das copas de futebol a Copa de Literatura tem como grande prêmio, circular no cybersapace e simplesmente: ganhar a copa.

Num país de dimensões continentais como o Brasil e onde a jovem democracia ainda não diminuiu de forma expressiva a desigualdade social, a circulação através da web, capaz de neutralizar as grandes distâncias e o afastamento dos tradicionais centros produtores de cultura (São Paulo e Rio de Janeiro, em especial, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, em seguida, cada um com seu perfil) impõe uma nova cartografia literária ao mesmo tempo em que estabelece novos fluxos de circulação artística na relação entre a produção artística local e global. E para viajar até a Europa não é preciso pagar passagem.

 

* Beatriz Resende é pesquisadora do CNPq e do Programa Avançado de Cultura Contemporânea -PACC/UFRJ e professora do Departamento de Teoria do Teatro da Escola de Teatro da UNIRIO. Atualmente é Coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.


1 APPADURAI, Arjun. “Grassroots Globalization and the Research Imagination”. In: APPADURAI, A. (ed.) Globalization. Duke Univ. Press, 2 2001. Pág.5.
2 IDEM, Ibidem, pág. 14.
3 IDEM, Ibidem, pág. 19.

 

A dialética do entusiasmo | de Paulo Roberto Pires

Duas almas moram
no teu peito humano,
nas entranhas tuas.
Evita o insano
esforço da escolha:
precisas das duas.
Pra ser um, amigo,
deves ter contigo
conflito incessante:
um lado elevado,
bonito, elegante;
o outro, enfezado
e sujo, aos molambos.
Precisas de ambos.
Bertolt Brecht, epílogo de Santa Joana dos Matadouros 2

Este ensaio pode ser melhor entendido como parte de minha pesquisa de doutorado, Vida literária no Brasil 2.0. Em explícito diálogo com Brito Broca, pretendo fazer na tese um retrato de época, partindo do pressuposto de que a internet tem papel central na reconstrução da vida literária brasileira na virada dos 1990 para os 2000.

Se, no momento imediatamente pós-ditadura, as artes plásticas, a música e o cinema reconstituíram com vigor suas respectivas “cenas”, na literatura a produção contemporânea só se delineia mais tarde. E é em torno de blogs e comunidades que escritores começam a aparecer, para a sociedade, a universidade, o mercado e até mesmo para eles próprios, como integrantes de um conjunto de publicações, iniciativas, eventos e até atitudes que já foi chamado “nova literatura”.

No texto que se segue, aproximo Machado de Assis e Walter Benjamin para tentar demonstrar, historicamente, como a sedução da tecnologia teve grande importância para eles. E, oswaldianamente, buscar em ambos “a contribuição milionária de todos os erros” – que ilumina o presente.

Prólogo

“Seventeen copies sold, of which eleven at trade price
to free circulating libraries beyond the seas.
Getting known”
S. Beckett, Krapp’s last tape

O jovem escritor atravessa a madrugada teclando. Entre um comentário no Twitter e uma passeada por sites, constrói sua narrativa. “Escritor”, aliás, é como ele se vê, como ele quer que o vejam. E assim o veem os leitores de seu blog, um blog literário porque assim ele o batizou e onde, naquela mesma madrugada, ele postou o que acabou de escrever. Sim, pois o ato contínuo de sua escrita não é a reescrita ou a ponderação, mas a publicação. Na mesma máquina, ele escreve e publica. E ainda entra em contato com as primeiras reações de seus leitores, que comentam seu texto. Alguns só veem defeitos. E o escritor, que assim se chama por conta própria, não o esqueçamos, descobre a crítica – não a ponderação ou o “diálogo entre homens inteligentes”, mas osnark 3 , o ataque selvagem e predador. Intenso e pouco meditado como o texto com que acaba de se expor ao mundo.

O jovem escritor, aliás, acabou de postar um diagnóstico da morte definitiva da literatura. Ou melhor, destacando a superioridade dos novos meios, da web, do computador e até do celular sobre os livros. Seus argumentos são temerários e não há uma frase em que ele, utopicamente, não defenda que a literatura se espalhe pelo mundo. É o fim do copyright, a liberdade radical de acesso à informação, a literatura para quem quer e precisa – literatura que, a princípio, assim se autodenomina.

Assim, o jovem escritor ganha um público. E, lançado na rede como as velhas mensagens em garrafas, seu pensamento selvagem cai nos olhos de um editor, destes que publicam livros de papel mas não tiram o olho da internet, das revistas literárias, das publicações independentes, enfim, de todos os lugares onde possa encontrar novos talentos e frescor. Afinal, pelo menos em tese, ele vive disso. E o jovem escritor, chamado por e-mail a uma conversa, acaba assinando um contrato, destes que preveem pagamentos de royalties, resultam em livros vendidos em livrarias e resenhados nos jornais – e, é claro, também nos sites e nos blogs.

Depois de algumas críticas positivas de gente importante, algumas entrevistas e até palestras sobre seu “processo criativo”, o jovem escritor ganha um prêmio. Agora não é só mais ele, os leitores de seu blog e seu editor: praticamente todo mundo se refere a ele como “escritor”. E ele mesmo acaba tomando um susto quando, ao viajar para uma feira literária, escreve na ficha do hotel “escritor” onde deveria preencher “advogado”, já que foi essa a faculdade que acabara de terminar a duras penas.

Em uma destas feiras literárias, o jovem escritor é perguntado sobre a importância da web em seu trabalho. “Nenhuma”, afirma, categórico. Sua vida não deve ter mais nada a ver com o mundo dos blogs. Aliás, no blog ele só posta notícias sobre seus próprios escritos, aos quais se refere como “seu trabalho”: críticas de jornais (as amargas, não), participações em feiras, cursos livres de escrita criativa, palestras etc. A máquina de escrever, que também já funcionava como máquina de se comunicar e publicar, virou máquina de promover. Afinal, quem vai levar a sério um escritor que não tem livros e só publica nas nuvens virtuais? Já viu alguém ganhar concurso literário só com blog e clouds? Fala sério.

***

A história do jovem escritor é uma colagem das trajetórias de diversos autores da recente literatura brasileira. Dramatiza a ambivalência dos novos meios e sua importância na reconstrução da vida literária dos últimos dez anos. É marcada pela precipitação, pelos juízos mal formados, pela incompreensão dos tempos mais lentos e tradicionalmente associados ao processo de construção de um livro e, a longo prazo, de um autor.
Melhor assim, pois, ainda que precário, seu começo de carreira é uma realidade imediatamente viável, tem receptividade, não é o poço de “incomunicabilidade” e tédio que marcou os escritores que eram jovens nos anos 1980 e na primeira metade dos 1990.

Pior assim, pois sua carreira começa quase sempre meio torta, precariamente meditada, inflada pela velocidade do reconhecimento e dos brilharecos literários, os mesmos que enchiam de ambição e vaidade os jovens escritores na virada do século XIX para o XX. É o beletrista 2.0, a versão digital do fanqueiro literário retratado por Machado numa de suas Aquarelas.

O mundo tecnológico da escrita e da publicação é hoje um mundo de superposições: coexistem nele lógicas completamente distintas e muitas vezes conflitantes. Pois se a literatura pode hoje chegar por diversos caminhos e de diversas formas, sua legitimação ainda se dá nos circuitos tradicionais: publicação em revistas literárias, reconhecimento entre os pares, publicação para o público mais amplo, reconhecimento da crítica, construção de um “nome”, premiações, trânsito acadêmico etc…

Se o jovem escritor, nosso dileto personagem, começa prescindindo disso tudo, dificilmente abrirá mão de, mesmo por um atalho, trilhar a estrada principal. E assim o é, diga-se de passagem, em todo o mundo. Então, o que mudou? O tal do atalho, apenas? Eu diria que muito mais. Pois este mundo tecnológico da escrita e da publicação é marcado por uma impetuosidade histórica, que moveu escritores e intelectuais seduzidos por novas mídias ou pelo novo apelo de mídias consagradas.

Assim é com nosso jovem escritor, como assim foi com Machado de Assis e Walter Benjamin, dois autores que dramatizaram de forma exemplar esta ambiguidade do entusiasmo, força que anima arquitetos e demolidores e que perde importância e acuidade se lida apenas pelo lado triunfalista da construção ou pelo desencanto desvitalizado das ruínas. É na tensão, pois, que se faz o argumento.

1. O erro de Machado

O jornal e o livro é, justificadamente, considerado um texto “menor” de Machado de Assis. Posto em perspectiva da obra que viria, o ensaio publicado no Correio Mercantil em janeiro de 1859 tem mais valor histórico do que literário. Dá testemunho de um escritor em formação, um jovem de 19 para 20 anos tateando caminhos mais orientado por certezas do que pela suspensão delas – o que, finalmente, seria a marca de sua obra sob diversos aspectos 4 .

A aposta de Machado traz o desassombro próprio da pouca idade, como o nosso jovem escritor-blogueiro: eivado por hipérboles e grandiloquência, Machado afirma a superioridade do jornal sobre o livro, do posicionamento imediato sobre o mais longamente meditado. Este “equívoco” é, no entanto, o que mais me interessa, pois expressa o fascínio de um jovem intelectual pela técnica de reprodução mais em voga em sua época.

Não foi por capricho ou acaso que Machado escolheu para epígrafe de O jornal e o livro uma citação de Eugène Pelletan (1813-1884). O pensador francês, escritor, polemista e republicano ardente, exerceu considerável influência no Brasil com um discurso altissonante que fazia do progresso um Deus no qual deveria espelhar-se o homem em busca de uma comunhão com seu tempo. Ao apontar sua influência sobre Machado, Jean-Michel Massa não esconde a fragilidade das ideias que o fascinavam, indigestamente misturadas com “a eloqüência de Hugo”:
Homem de vastas sínteses, Pelletan abarcava de um só relance o passado, o presente o futuro. Outros dirão sobre o valor de sua visão de mundo, mas seu sincretismo generoso de idéias, em que misturava tumultuosamente todos os domínios do conhecimento, seduzira então numerosos espíritos eminentes. Machado de Assis, sensível ainda a todas as correntes, encontrou nele uma fé ardente e talvez uma resposta a algumas das questões que a si mesmo colocava. 5

A descrição de Massa corresponde ao peculiar “método” de exposição de Machado neste texto. Originalmente publicado em duas partes, o artigo evolui num galope, às vezes atabalhoado, para mostrar como a humanidade vem, através dos séculos, “em busca de um meio de propagar e perpetuar a idéia”. Das inscrições em pedra ao primeiro livro, estes meios de reprodução técnica se sucedem vertiginosamente na narrativa do atilado polemista. Trata-se quase de um épico em que escrita, arquitetura e arte convergem como patrimônio comum da humanidade.

Para que se tenha uma idéia do quanto este percurso é pontuado por saltos e conclusões precipitadas, Machado considera a arquitetura o resultado de uma progressão da comunicação primeira, nascida para “transformar em preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos”. Aperfeiçoando-se, a arte de construir e dar sentido a uma comunidade encontrará no livro um sucedâneo como forma de transmissão das ideias e das representações dos povos.

“O edifício, manifestando uma idéia, não passava de uma coisa local, estreita”, escreve Machado, lembrando um mundo em que os referenciais eram bem definidos, estáticos e locais. “O vivo procurava-o para ler a idéia do morto; o livro, pelo contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada” . 6

Ocorre aí, argumenta ele, uma revolução sem precedentes. Já não é mais preciso ir ao monumento para dar conta da História, pois o livro é a forma portátil para a difusão do “pensamento da raça aniquilada”. Esta passagem é o início da democratização que Machado vê se materializar plenamente no impulso que toma a imprensa. Trata-se, no seu entender, de um processo de radical democratização do conhecimento, com consequências imediatamente políticas – que, no caso de Machado, é a celebração dos ideais republicanos 7 , diretamente importados da França :
O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social. 8

Há aí uma aguda consciência de que a técnica promove uma ampla redefinição de referenciais na cultura. E, mais ainda, a certeza de que esta revolução tem consequências políticas imediatas – Machado vê nas transformações a potência democratizante da república como força legítima de aniquilamento da monarquia.

Indo ainda mais além, O jornal e o livro aponta ainda para a redefinição do papel social do escritor. Até então ligada às alturas da criação artística, a criação literária entra no circuito da mercadoria e o escritor é instado por Machado a se alinhar à nova ordem, deixando de lado inclusive qualquer nostalgia das musas vaporosas:
O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; porque ele diz ao talento: “Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da criação!” Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?

Reconhecendo, lucidamente, o exagero de seus argumentos, Machado assume uma posição tática – “se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia” – e termina com o ponto que, talvez, seja o mais radical do texto. Vale a transcrição do argumento que desafia frontalmente a distinção que faz a identidade do escritor em sua época:
O talento sobe à tribuna comum; a indústria eleva- se à altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por toda a parte os princípios inveterados das fórmulas governativas, talha com a espada da razão o manto dos dogmas novos. É a luz de uma aurora fecunda que se derrama pelo horizonte. Preparar a humanidade para saudar o sol que vai nascer, — eis a obra das civilizações modernas. 9

Foi este mesmo Machado, ou melhor, um outro Machado que deste nasceu para se consagrar como o grande autor de seu tempo, que respondeu com eloquente silêncio à enquete que João do Rio empreendeu em O momento literário. Publicado em 1904 o livro reuniu entrevistas com escritores sobre a importância do jornalismo para a literatura e a influência daquele sobre esta. Depois de receber o autor de Cinematógrafo “com um acesso de gentilezas, que nele escondem sempre uma pequena perturbação” 10 , Machado calou-se. “O fogo, a confiança, o futuro, o progresso” do jovem polemista deram lugar ao “tédio à controvérsia” do Conselheiro Aires.

1.1. Machado reloaded

Machado olha a tradição do ponto de vista da novidade. Ainda que respeitoso, crê pouco que os grandes edifícios e monumentos sejam suficientes para transmitir o patrimônio da civilização. A cultura das catedrais, da pedra, só vive plenamente porque tornada portátil no livro e, de forma ainda mais leve e fluida, na imprensa, o que ele entende como o mais democrático dos meios.

Não é forçado relacionar esta linha de argumentação com os discursos que hoje vemos sobre as possibilidades de democratização do patrimônio cultural a partir dos novos meios de informação. E o que vacina tal paralelo do anacronismo puro e simples é uma lógica que entendo como a “dialética do entusiasmo” e que, a meu ver, está permanentemente relacionada aos embates e intercessões entre os bens culturais da tradição, qualquer tradição, e as inovações tecnológicas, sobretudo as novas tecnologias da informação.

Se nosso jovem escritor-blogueiro estivesse plenamente engajado em causas de seu tempo – e a ausência de uma ideologia de fundo é o que o distingue talvez mais decisivamente do jovem Machado, que apesar do fervor liberal quase religioso age de acordo com um conjunto de ideias – poderia defender tranquilamente que o livro e o jornal são praticamente letra morta diante do universo da web e, por exemplo, da polêmica digitalização global dos conteúdos impressos promovida pelo Google .11

Não se trata, diferentemente do que pensava Machado, embebido da ideologia do progresso, de uma sucessão de vitórias rumo ao aperfeiçoamento da humanidade. Mas, antes, de cortes profundos e descontinuidades que refazem o jogo de forças entre um conjunto de práticas e obras e tecnologias que as desorganizam e reorganizam constantemente.

A visada de Machado sobre a tecnologia de informação de seu tempo contempla, portanto, pelo menos três rupturas fundadoras da história da cultura tal como ela se configuraria a partir do século XIX: a portabilidade dos conteúdos (com o livro atuando como um primeiro difusor da cultura até então monumentalizada, tornando-a um patrimônio comum), a criação dos veículos de massa (e a consequente profissionalização e remuneração da escrita) e, num raciocínio abertamente controverso, a possibilidade de que o receptor torne-se emissor (“o talento sobe à tribuna comum”, escreve ele).

Se quisermos, boa parte da polêmica e da indefinição provocada pela multiplicação de vozes da web passa exatamente por este tripé – devidamente turbinado pelas reinvenções de parâmetros das décadas mais recentes. A leveza da tecnologia (na multiplicação de devices, do celular ao e-reader, passando pelos computadores cada vez mais portáteis) permite uma expansão ilimitada dos veículos de difusão (dos jornais aos blogs, Twitter e toda a chamada “mídia social”) e põe em curto-circuito o tradicional vetor dos meios de comunicação (pondo em questão as noções de autoria, de legitimação da escrita e, até mesmo, de literatura).

Está precariamente delimitado um território pantanoso que, pouco mais de 60 anos mais tarde, também será trilhado de forma errante por Walter Benjamin, a quem seguiremos agora como ele fez com o homem das multidões de Poe.

2. A aposta de Benjamin

Em 1928, podia-se ler o nome de Walter Benjamin na capa de dois livros singulares lançados na Alemanha: A origem do drama barroco alemão e Rua de mão única. O primeiro, rejeitado como prova de livre-docência pelo Departamento de Estética da Universidade de Frankfurt, é uma intricada meditação teórica que vai ao fundo da cultura alemã clássica usando bússolas jamais imaginadas para aqueles caminhos; o segundo, de gênero indefinível, usa a montagem de corte surrealista para dar conta do geral e do particular, do episódico e do filosófico, da complexidade de um mundo já coalhado de informação e movido por máquinas.

Benjamin é tão alheio a toda forma imediata, que nem mesmo pensa em se confrontar com ela. Ele nem registra a impressão de qualquer forma dessa imediaticidade, nem se abandona ao pensamento abstrato dominante. O seu material próprio é o que passou: pra ele, o conhecimento nasce das ruínas,
escreveu Siegfried Kracauer numa certeira resenha dos dois livros publicada em cima do lance, em julho daquele ano. Benjamin era um desconhecido e seus textos, ainda no dizer de Kracauer, “são conjuntamente a expressão de um tipo de pensamento estranho ao desta época e que, em sua origem, é semelhante aos escritos talmúdicos e aos tratados da Idade Média” .12

O jovem autor era desde então chegado a uma síntese inusitada. Processava com desenvoltura e originalidade o idealismo e o romantismo alemães, cinema, literatura de entretenimento, traduções de Proust para o alemão, marxismo e judaísmo. Amava Kafka e o camundongo Mickey, Brecht e romance policial. Mais do que um simples gosto pelo ecletismo, Benjamin via na superposição temporalidades e referências um retrato indireto e mediado – e por isso fiel – do tempo que vivia.

Para garantir a precária sobrevivência em meio a um casamento instável, filho para criar e amores impossíveis para a administrar, trabalhou compulsivamente como jornalista e, entre 1929 e 1932, produziu, escreveu e atuou como locutor em mais de 80 programas de rádio em Berlim e Frankfurt. Numa carta a Gerschom Scholem, datada de 26 de junho de 1932, Benjamin procura explicar sua situação:
As formas literárias de expressão que meu pensamento forjou para si mesmo ao longo da última década têm sido totalmente condicionadas pelas medidas preventivas e antídotos a que tenho que recorrer para conter a desintegração que ameaça constantemente meu pensamento como resultado de tais contingências. E ainda que muitos – ou um numero considerável – de meus trabalhos tenham sido vitórias em pequena escala, eles foram ofuscados por derrotas de grandes proporções. 13

Graças a estes fracassos exemplares, Benjamin lambuzou-se das precárias vivências de seu tempo. E, impregnado por elas, produziu algumas das mais contundentes reflexões sobre as relações entre cultura e técnica, principalmente, a meu ver, por combinar sua extraordinária inteligência e originalidade com uma critica feita de dentro, na qual idealismo e pragmatismo mantêm tesa a corda dos argumentos, o perde-ganha constitutivo de uma cultura tecnológica em que construções e ruínas, arquitetos e demolidores são mais vizinhos do que pode parecer em termos ideais.

Experiência e pobreza (1933), O autor como produtor (1934) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (três versões entre 1935-1939, a última delas póstuma), são os textos em que Benjamin expõe, tão didaticamente quanto possível em sua obra, o resultado destas reflexões 14. Michel Löwy refere-se a esta produção, não sem desconfiança, como “parêntese progressista” e “período experimental”. Preocupa-se em destacar que a influência soviética pode ter causado distorções no pensamento de Benjamin, sobretudo pelo tom programático de O autor como produtor, mas acerta ao calibrar a visão do filósofo: “o que ele (Benjamin) recusa apaixonada e obstinadamente é o mito mortalmente perigoso de que o desenvolvimento técnico trará por si mesmo uma melhora da condição social e da liberdade dos homens” .15

Nestes ensaios, bem como em fragmentos e textos dispersos relacionados a eles, Benjamin desenvolve alguns dos conceitos-chave de sua obra, que podem ser mapeados pelos seguintes pares dialéticos, sempre representativos de um perde-ganha impossível de ser rompido e que procuro resumir a seguir:

Civilização/Barbárie
Esta é uma das tensões fundamentais para compreender a obra de Benjamin. “Não há um documento de cultura que não, seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”, afirma a sétima tese de Sobre o conceito de História, referindo-se ao mundo submetido à ideologia do progresso e à tirania da técnica. Mas este mundo é também o que possibilita uma “nova barbárie” da qual dão testemunho Brecht, Le Corbusier e Klee. Perde e ganha.

Experiência/Vivência
O mundo moderno destitui o homem de sua experiência, da tradição passada de geração em geração, entregando-o à vacuidade das vivências. Mas a vida pobre em experiência é, também, a tábula rasa para a eclosão do novo.

Autor/Produtor
Para ser transformador, subverter a ordem que o oprime em particular e ao homem em geral, o autor deve ter consciência plena dos meios de produção e trabalhar para assumir o seu controle em bases totalmente distintas da estrutura “reacionária” da lógica capitalista.

Público/Produtor
Ao formar um público, os meios de reprodução técnica criam uma massa amorfa e sem opinião, que simplesmente consome mensagens e bens. O autor que se assume como produtor vai incluir o público neste processo, eliminando a distância entre eles.

Aura/Reprodução
A aura é o acontecimento único da obra de arte, que se perde para sempre com a reprodução. Mas a reprodução engendra por sua vez uma nova magia (as condicionantes de magia e técnica são históricas, escreve ele em Pequena história da fotografia) e a fotografia, sobretudo em seu início, dá testemunho deste potencial aurático.

2.1. O progresso dos desconfiados

Se o jovem Machado de Assis via no republicanismo o horizonte de libertação do meio de comunicação privilegiado de seu tempo, o jornal, Walter Benjamin apostava no marxismo como o antídoto revolucionário para as estruturas de dominação que já enxergava no jornal, no rádio e, com espantosa lucidez, no cinema. E como o dado e insubmissão fundamental para a prática artística transformadora.

O marxismo está para O autor como produtor assim como o liberalismo para O jornal e o livro. São, cada qual a seu tempo e princípio, o horizonte político destes intelectuais. E, também, turvam os argumentos com acessos doutrinários e jargões que, na perspectiva histórica que temos hoje, podem ganhar uma escala mais justa. Machado e Benjamin acertam menos pela argumentação do que pela formulação dos problemas.

Em notas tomadas entre julho e outubro de 1934, numa temporada passada com Brecht na casa do dramaturgo em Svendborg, na Dinamarca, Benjamin assim sintetiza a tese central de O autor como produtor, que discutiu à exaustão com o amigo:
Em meu ensaio, desenvolvo a teoria de que um critério decisivo para a função revolucionária da literatura reside na medida em que os avanços técnicos levam a uma transformação das formas artísticas e, consequentemente, dos meios de produção intelectual.16

No jargão brechtiano a que recorre, Benjamin aponta, no geral, para a necessidade de uma “refuncionalização” do papel do escritor. E aqui o que menos interessa, a meu ver, é o inegável fantasma da doutrina soviética, sendo mais importante, hoje, lembrar que a “refuncionalização” é proposta por um intelectual que, como vimos, experimentou as principais formas de expressão e comunicação mobilizadas pelo capitalismo.

O texto constrói-se a partir de uma oposição do escritor rotineiro ao escritor progressista. O primeiro é escravo da diversão pura e simples e não reconhece a liberdade; o segundo é dominado pela “tendência”, a doutrina política, e pode confundi-la com a liberdade. O importante, observa Benjamin, é que “uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário”. E este debate da “qualidade” não deve residir na oposição forma/conteúdo. Benjamin prefere situar a obra literária dentro das relações de produção de um época e não em relação a elas:
É vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a idéia de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos de nossa situação atual, se quisermos alcançar as formas de expressão adequadas às energias literárias de nosso tempo. Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre.17

O texto dá conta de um “processo de fusão de formas literárias” diretamente relacionado com os avanços técnicos, a ponto de provocar a dissolução dos gêneros literários e, levando o raciocínio ao limite, à extinção de toda uma ideia de literatura. Um raciocínio que se ouve com nitidez neste início de século XXI nas palavras dos evangelistas de uma cultura da convergência 18 e, num nível menos analítico, nas discussões 19 sobre os novos formatos para os livros, desde o e-book até as experiências integrando texto, som e imagem nos vooks(vídeo+book).

No ponto crucial do texto, Benjamin aponta propriamente para a transformação do leitor em autor e do autor em produtor. Vale aqui a citação um pouco mais longa, em que, sem se identificar, cita um texto de sua autoria, O jornal , publicado no periódico Der Öffentliche Dienst, de Zurique, em março de 1934.

Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada de leitores, que se vêem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento dialético nesse fenômeno: o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela […] o leitor tem acesso à condição de autor […} O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica”. 20

Ainda neste texto, Benjamin afirmava que “diante do fato de que a escrita ganha em fôlego o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e público mantida pela imprensa […] está desaparecendo de uma forma socialmente desejável”. 21

Tal constatação é perfeitamente consonante com o raciocínio colaborativo que passou a caracterizar os meios de comunicação a partir do que o editor e guru da internet Tim O’Reilly passou a chamar, em 2005, de web 2.0., a redeparticipativa 22. Esta dimensão colaborativa desperta reações sempre apaixonadas, podendo ser balizadas pelo otimismo de um Pierre Lévy e seu conceito de “inteligência coletiva” (que afirma o poder democrático inerente ao modo de funcionamento da rede, minimizando em larga escala as implicações propriamente políticas) até o apocalipse de Andrew Keen no panfleto A cultura do amador (que prevê nada menos do que a derrocada do patrimônio cultural, do jornalismo às artes, a partir da possibilidade de acesso indiscriminado à produção de mensagens).

Permeia tal raciocínio um otimismo que não se encontra em outra parte da obra de Benjamin, sempre detalhista ao matizar argumentos e conclusões. Um otimismo propriamente revolucionário, que ganha o benefício da dúvida de ser nada mais do que uma posição tática, necessária para que se ganhe posições na discussão.

O que intriga e, finalmente, leva à reflexão que dá título a este texto é a constante, no Brasil de meados do século XIX e na Alemanha das primeiras décadas do XX, de um fascínio dos intelectuais pela tecnologia. Fascínio que, diga-se já, é consonante a momentos de importantes rupturas. Mas que apontam, desde sempre, para uma avaliação crítica ambígua.

3. A dialética do entusiasmo

Um dos princípios básicos das tecnologias da informação contemporâneas é a sua “useabilidade” ou seu estatuto “amigável”, ou seja, a possibilidade de uso imediato, sem a necessidade de conhecimento específico aprofundado. Trata-se, como se pode supor, de um considerável catalisador para que se passe da ideia à ação, do planejamento ao ato. Não é difícil prever, portanto, o impacto deste tipo de mecanismo sobre aqueles que têm na escrita seu horizonte profissional ou de criação estética.

Se, de alguma forma, realizou-se a portabilidade democratizante de Machado e a refuncionalização entre autores e produtores almejada por Benjamin, esta não foi certamente a concretização dos ideários republicano e socialista. Com seu potencial de demolição/reconstrução, a técnica não acomoda pacificamente a reflexão e, muitas vezes, a exclui do processo. Mas, ao convidar à criação, estabelece uma tensão permanente que prefiro chamar “dialética do entusiasmo”.

A idéia do bem acompanhado do afeto se chama entusiasmo”, afirma Kant sobre um conceito que nasce embebido em ambiguidade. Alia o imponderável (“o entusiasmo não é de forma alguma digno da satisfação da razão”) a um valor moral prezado pela humanidade: “este estado da alma parece sublime a tal ponto que, geralmente, pretende-se ter certeza de que sem ele nada de importante possa se obtido” 23 . Ainda segundo o filósofo, o entusiasmo seria um afeto “do tipo corajoso”, isto é, “que nos faz tomar consciência de nossas forças nos permitindo vencer toda resistência”.

Pois é precisamente este gênero de afeto que viceja quando o homem tecnológico se vê privado de suas referências constitutivas tendo à mão a possibilidade de, a partir desta “terra arrasada”, erguer outro tipo de parâmetro. Machado comemora, com o aumento de importância da imprensa, “a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social”. O “novo bárbaro” de Benjamin comemora o empobrecimento da experiência, “que o impele para ir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” 24 .

Assim se anima a escrita concebida nos meios de informação e/ou veiculada através deles. A aceleração das etapas que vão da escrita à publicação e distribuição é produto direto deste “afeto corajoso”: o entusiasmo de nosso jovem escritor ignora a temporalidade da criação literária, suas relações com o passado e a possibilidade de traçar caminhos futuros. Ele “simplesmente escreve” (aspas necessárias e fundamentais).

A pluralidade de vozes que advém daí é também, e de um certo ponto de vista, cacofonia. Desigualdade brutal no resultado dos textos, pretensão e mesmo ignorância são alguns dos diagnósticos para a vida literária em circulação acelerada. Mas, como lembra Kant, há em torno destes movimentos impetuosos um halo de grandeza, a certeza subliminar de que o entusiasmo é a marca fundamental de todo empreendimento que se pretenda importante. A certeza, em suma, de que um de suas principais fraquezas é, finalmente, sua força fundamental.

Quando se perde de vista um dos pontos de vista da questão, a discussão do que chamo “vida literária 2.0” perde completamente o sentido. Se assumirmos que o entusiasmo é o pai absoluto e suficiente de toda criação, qualquer análise da literatura contemporânea se transforma em nada mais do que a crônica, triunfalista, de um momento de puro e improvável renascimento da escrita literária no Brasil dos anos 2000. Se, ao contrário, assumirmos que o entusiasmo “não é de forma alguma digno da satisfação da razão” e que, portanto, propicia o mero espontaneísmo, transformamos nossa narrativa crítica num check-list viciado do cânone e da vida literária. Um filme reprisado no qual sabemos muito bem o que acontece no fim: morremos todos, de inanição, pela falta de apetite em enfrentar a produção contemporânea em suas oscilações.

 

Bibliografia


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http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2144


* Paulo Roberto Pires é aluno do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura (Programa de Literatura Comparada) da Faculdade de Letras da UFRJ.

 

1 Trabalho apresentado ao professor André Bueno no curso Historiografia e Crítica Literária, Faculdade de Letras da UFRJ no 2º semestre de 2009.

2Tradução de Leandro Konder.

3 Snark é o termo que David Denby, articulista da New Yorker, usa para designar a crítica virulenta, pessoal e precariamente fundamentada que marca o mundo dos blogs e dos comentários na internet. Sem significado preciso, “snark” faz referência a um dos seres non-sense criados por Lewis Carrol.

4 Aqui é importante lembrar o estudo de Kátia Muricy, A razão cética – Machado de Assis e as questões de seu tempo.

5 MASSA, p.190.

6 ASSIS, p.1008.

7 Nas palavras do próprio escritor: “O direito da força, o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica”.

8 Idem, p. 1009.

9 Idem, p.1012.

10 RIO, p. 98.

11 Para uma discussão completa ver o texto de Robert Darnton, “O Google o futuro dos livros” in: Serrote no 1, p.23.

12 KRACAUER, p. 279.

13 BENJAMIN, 1999, p. 844.

14 Aqui os três textos serão citados na tradução de Sergio Paulo Rouanet em Obras Escolhidas – Volume 1.

15 LÖWY, Redenção e utopia, p.97.

16 BENJAMIN, 1999 p.783.

17 Idem, 1985, p. 123.

18 JENKINS, Henry. Convergence culture: where old and new media collide.

19 Neste caso é exemplar o Revisiting a publishing Manifesto – What does the future look like for publishers? (disponível em http://thedigitalist.net/?p=714) apresentado pela editora Sarah Lloyd na conferência Tools of Change in Publishing realizada em Frankfurt em outubro de 2009.

20 Idem, p. 125

21 BENJAMIN, 1999, p. 741.

22 O artigo What Is Web 2.0 – Design patterns and business models for the next generation of software está disponível emhttp://oreilly.com/web2/archive/what-is-web-20.html

23 KANT, p. 216.

24 BENJAMIN, 1985, p. 116.

 

Ponto de Vista: Escrever com as frases que ficam no ar | de Liv Sovik

“My words echo
Thus, in your mind”
T.S. Eliot. “Burnt Norton” The Four Quartets (1944)

Estas palavras, traduzidas por Ivan Junqueira como “Assim ecoam minhas palavras / em tua lembrança” (infelizmente debilitando o acento na palavra Thus e a pausa que vem depois), evocam em mim a ação de uma bola de bilhar que é uma frase ecoando na minha cabeça. Tem frases que permanecem até ficarem estranhas e outras que são tão estranhas que ficam. Foi o caso de “Aqui ninguém é branco”, que uma pós-graduanda me deu como resposta à pergunta, “Mas” (o “mas” se devia à recorrente discussão da cultura e herança afrobaiana) “o que significa ser branco na Bahia?” Aquela frase comunicava pela incomunicação. Sabia que havia brancos na Bahia porque não estava sozinha na minha branquitude, mas de alguma forma a frase soou tão verdadeira, sincera e natural, que não houve resposta possível na hora. Tive que pensar enquanto as palavras ecoavam na minha lembrança.

Ecoaram tanto que viraram o título de meu livro, que já tive dificuldade em explicar: às vezes dizia que era paradoxal, uma negação no título do próprio assunto de uma obra sobre a branquitude; em outras dizia que era uma ironia ou uma expressão essencial do discurso identitário nacional. Certa vez, expliquei que o tom era mais para “Você é gordo!” do que “Todos vão à praia”, pois sentia que usar a frase como título tinha algo de confronto. Quando Silviano Santiago escreveu no prefácio que o título foi “inspirado na certa em leitura de Ionesco”, foi um alívio. Quando ele apontou para o absurdo da frase, tudo ficou claro e não estava mais sozinha, ninguém podia dizer que só eu era branca.

Minha cabeça deve funcionar assim, como câmara de eco, pois os versos de Eliot volta e meia estão presentes quando preciso refletir sobre como eu penso. Fragmentos me chamam a atenção, refrãos como “A carne mais barata / É a carne negra” ou “Não vivendo pra dançar / Mas dançando pra viver”. Por mais que a frase de Eliot chegue para mim como resumo de minha pequena ópera em forma de colagem, me imagino pensando e não escrevendo. Para mim é uma grande e agradável surpresa que o meu jeito de escrever dê prazer, pois é tão difícil me imaginar escritora que demorei anos para poder pronunciar, sequer para mim, as palavras “meu livro”, parecia tudo em maiúsculas e eu, me levando a sério demais. A hesitação, fantasiada de cuidado, me aflige.

+++

O vai e vem entre escrever e não escrever vem de longe. Quando cursava a oitava série e ela tinha 40 anos, minha mãe começou a fazer seu mestrado em Letras. Conversava comigo sobre as coisas que lia e aprendia, na cozinha depois da escola. No mesmo ano, como dever de casa, descrevi uma profissão que me atraísse, em texto que redescobri no meio às coisas guardadas na casa de meus pais 30 anos mais tarde. Estava interessada em ser professora universitária, disse, mas a desvantagem seria ter a obrigação de escrever, publish or perish. Minha resistência não aguentou a passagem dos anos, mas o que cedeu primeiro foram as ressalvas à escrita. Só assumi a carreira universitária um pouco antes da descoberta do texto sobre “o que quero ser quando crescer”.

Escrever adquiriu diversos sentidos através do tempo. Quando tinha 26 anos, era patinar na superfície. A superfície tem má fama, mas neste ano de jogos olímpicos de inverno, lembra-se como patinar é tecer passo a passo, com graça quase involuntária, um caminho que encontre um chão onde nem sempre há terra firme. Significava não cair – de bunda ou, pior, no buraco da tristeza – e isso era minha preocupação principal quando tinha essa idade. Escrever parecia uma forma de criar meu próprio chão.

Não caí no buraco, mas tampouco deslanchei a escrever. Quando a popularização do computador permitiu essa façanha contemporânea, titubear e corrigir quase na mesma hora, virei uma escritora de cartas relativamente longas, cujas qualidades dependiam da relação com os amigos e parentes que as recebiam: só podia escrever coisas engraçadas ou tocantes para aquela pessoa. O destinatário de algumas dessas cartas me respondeu (certamente querendo dar ênfase à parte “poesia”), que eu escrevia “poetry without yet its wings”. Escrevo poesia sem asas, que não decola do chão. Por outro lado, quem sabe patinei bem, fiz curvas bem fechadas, trançando as pernas com corpo na diagonal para não desperdiçar energia, dei talvez até uma pirueta, mas sem adornos, como ensinaram meus professores em Yale, que exigiam humildade diante da tarefa de dizer.

Hoje, escrever a primeira versão de trabalhos acadêmicos muitas vezes causa algo que é quase dor, pela angústia do não dito, o medo de não encontrar a forma de abrir uma picada na mata fechada de um assunto, o tédio da vasta escolha de palavras e noções. Gosto mais é de revisar, revisar, reinventar, embora tenha que conter, quando estou me sentindo criativa, minha tendência a rir sozinha, às private jokes. Em gostar de frases prontas, estou muito bem acompanhada. Eliot demonstrou ter ecos de palavras na sua lembrança e citava desde a eremita medieval Julian de Norwich (“Tudo estará bem / toda sorte de coisa estará bem”, em “Little Gidding”) ao barman do pub chamando o público para sair (“Hurry up please it’s time”, em The Waste Land. Mas talvez a frase que mais frequentemente resvala na minha mente nem seja de Eliot, mas dos irmãos Gershwin, cantada por Aretha Franklin, claríssima na sua percepção da contingência da vida: “It ain’t necessarily so” – Não é necessariamente certo.

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de Aqui ninguém é branco, recém lançado pela Aeroplano. Escreveu este texto sobre os “bastidores” do livro para a revista Pernambuco (Nº 50, abril 2010, p.3.http://www.suplementopernambuco.com.br/), onde saiu sob o título “Ninguém podia dizer que só eu era branca”.<

Surgimento e difusão da marca Daspu: o nome como palavra de ordem | de Washington Dias Lessa e Jeanine Geammal

Washington Dias Lessa, ESDI/UERJ
Jeanine Geammal, UFC

Este texto busca investigar a marca de vestuário feminino Daspu, criada no Rio de Janeiro em 2005. O tema se vincula ao marketing, ao branding e ao design – área em que foi realizada esta pesquisa –, podendo ser desenvolvido segundo os referenciais analíticos respectivos. Dadas, porém, as particularidades do surgimento e difusão da marca, optou-se por trabalhar com o conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari, buscando trazer uma inteligibilidade diferente à produção de sentido e aos relacionamentos com a mídia e com o mercado que caracterizaram o processo Daspu.

1. O surgimento da marca Daspu

A Daspu é uma marca do setor de moda e vestuários que pertence à ONG Davida. Esta ONG foi criada no Rio de Janeiro em 1992 por Gabriela Leite, e está voltada para questões ligadas à cidadania das prostitutas e para iniciativas visando a organização da categoria. Integra a Rede Brasileira de Prostitutas que tem a missão de articular politicamente o movimento de defesa e promoção dos direitos dessas profissionais. Segundo a Rede, “a prostituição é uma profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos”1. A Davida manifesta seu repúdio à vitimização das prostitutas, e anuncia o combate à discriminação, ao preconceito e ao estigma. E, sobretudo, não preconiza o abandono da prostituição. Ao contrário, defende o direito das prostitutas prestarem serviços sexuais, afirmando que devem assumir sua profissão em vez de envergonharem-se dela.

Desfile de 16 de dez., na Rua Imperatriz Leopoldina. Matéria publicada na capa do jornal O Globo, em 17 nov. 2005. Foto de André Teixeira.

Em 2005 é lançada pela Davida a marca de uma confecção, a Daspu, que tornou-se conhecida nacionalmente a partir de uma polêmica com a Daslu, loja multimarcas de luxo sediada em São Paulo.

O nome Daspu havia sido criado como uma brincadeira em 15 de julho de 2005, durante a comemoração, na sede da Davida, dos 13 anos de fundação da ONG. Dois dias antes, Eliana Tranchesi, uma das sócias da Daslu, fora presa pela Polícia Federal acusada de sonegação de impostos, e o acontecimento havia sido amplamente coberto pela imprensa. Foi com base nessa referência que, em meio a uma conversa sobre a ideia da ONG montar uma confecção visando arrecadar fundos para o movimento, Sylvio de Oliveira sugere, com bom humor, o nome Daspu (Lenz, 2008: 34). Mas nada foi feito para implementar a ideia.

Primeiro desfile, 16 dez. 2005, na Rua Imperatriz Leopoldina, Rio de Janeiro. Fotos de Marcos Silva

Em 20 de novembro de 2005 o nome aparece publicamente pela primeira vez, mencionado em nota na coluna de Elio Gaspari, do jornal O Globo (Gaspari, 2005: 16). No entanto nem Gabriela Leite nem Flavio Lenz, assessor de imprensa da ONG, tiveram qualquer participação na publicação desta primeira notícia sobre a marca. Segundo hipótese de Lenz, a informação teria chegado ao jornalista por intermédio de alguém que, em algum bar nas imediações da sede ONG, na região da praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro, teria ouvido uma conversa de seus integrantes, sempre em tom de brincadeira, sobre o assunto (Lenz, 2008: 45-46).

Logo depois desse aparecimento na mídia, a Daslu ameaça processar a Davida alegando tentativa de denegrir sua imagem, o que dá a Flavio Lenz e Gabriela Leite a oportunidade de tornar a Daspu assunto de manchete 2. E as matérias jornalísticas sobre o confronto Daslu X Daspu, evidenciam uma adesão da imprensa à iniciativa das prostitutas. Um pouco depois a Daslu retira o pedido de processo.

Após o lançamento involuntário do nome, o sucesso repentino naturalmente impõe a criação efetiva da confecção. A opção inicial foi a de divulgar a causa política da Davida através de camisetas com frases provocativas. Com a repercussão e o apoio recebido da mídia e do público a partir da polêmica com a Daslu, surge a ideia de uma estruturação empresarial mais complexa, prevendo coleções, desfiles, venda de outros tipos de roupas etc. E esta ideia era mais afinada com o discurso da Davida. Uma simples confecção estaria associada a mulheres que necessitam de ganho econômico e produzem e vendem roupas para atingir esse objetivo. Uma empresa de moda, por outro lado, deve envolver atitude e ditar comportamento, conforme categorias correntes no meio da moda. Assim como envolve expectativas de reforço financeiro, não apenas a partir de vendas estritas, mas compreende essas vendas também como resultado do desempenho da marca como imagem.

Capa do caderno Ela do jornal O Globo, publicada em 14 jan. 2006.

Durante sua trajetória visando consolidar-se no mercado da moda, a Daspu, desde seu lançamento em 2005 até 2009, apresentou sete coleções. Em ordem cronológica e associadas a seus criadores são elas: Batalha, criada pelos próprios integrantes da Davida; Daspu na Pista BR-69, concebida pela estilista Rafaela Monteiro; Puta Arte, com criação do designer Sylvio de Oliveira; Copa Sacana, por Franklin Melo; As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada, criada pelo grupo Profissionais do Ramo – Movimento Puta Life Style, formado por ex-alunos e alunos da Unversidade FUMEC Fundação Mineira de Educação e Cultura (Alzira Calhau, Ana Luisa Santos, Bruno Oliveira, Luisa Luz, Maíra Sette, Marília Tavares, Natália Assis, Rafael Boneco, Rangel Malta); e Da farofa ao caviar, concebida pelo mesmo grupo da coleção anterior.

Por sua facilidade de produção e sua adequação às necessidades de propagação do discurso da Davida, as camisetas, caracterizadas com o mesmo humor presente na criação do nome Daspu, tornam-se um produto emblemático. Trazem mensagens irônicas e bem-humoradas sobre cidadania, liberdade, sexualidade e prevenção de DST e AIDS. “Somos más, podemos ser piores”, “PU Davida”, “Moda pra mudar” e “Antes do show, afine o instrumento” – são algumas dessas frases que aparecem adornadas por imagens de preservativos, de mulheres ou casais. Concebidas dessa forma por Sylvio de Oliveira, são transformadas nos verdadeiros trajes de batalha da ONG e recebem o aval da mídia especializada, confirmado por sua aparição na seção “Fetiche” do jornal O Globo sobre a legenda: “Daspu. Aí está a camiseta mais Cult do momento” (O Globo, 2006: 1).

A camiseta Beijo aparece na edição de 14 jan. 2006 do jornal O Globo, na seção Fetiche, dentro do caderno Ela Fashion, como a mais cult do momento. Foto de Luciana Whitaker.

Apesar do amadorismo apresentado pela Davida na fase inicial do desenvolvimento de produtos, consolida-se o protagonismo dos responsáveis pela administração da marca. No que tange à formação e projeção de sua imagem, a inexperiência com o negócio moda e, por outro lado, a experiência no trato com a imprensa3 , acrescida da premência da causa política, conduziram o processo de projeção pública desse empreendimento nascente para o uso do espetacular, do que dá notícia. Mas, complementarmente, também é buscada uma estruturação mais profissional, assim como foram buscados subsídios quanto à administração e gerenciamento.

2. Em busca da especificidade Daspu: uma opção de método

A área de criação e gestão de marcas integra de modo tendencialmente diferenciado os campos do design, do branding e do marketing, e atualiza-se segundo as várias possibilidades de agenciamentos entre essas especializações, e delas com as propostas de criação de marcas que ganham existência concreta no mercado.

O conhecimento elaborado/sistematizado pela área constitui um conjunto heterogêneo que abarca de análises e sistematizações, validadas pela experiência profissional em projeto e consultoria, a elaborações mais especificamente teóricas, tanto abordando a estruturação do mercado quanto metodologias para o desenvolvimento de projetos.

Uma análise que considerasse o caso Daspu estritamente segundo essas referências, identificando/julgando protocolos e tipos de intervenções consagradas pelos padrões de excelência técnico-profissional, tenderia a não dar conta da riqueza do processo, já que o surgimento e difusão da marca Daspu apresenta algumas especificidades particulares.

Temos, inicialmente, o modo como surge a Daspu. Uma marca existe associada a produtos ou serviços, mas ganha consistência com base não apenas na qualidade desses produtos ou serviços. Na medida em que existe um espaço público de comunicação, dado tanto pela existência de diferentes configurações midiáticas (mídia impressa, a web, espaço urbano etc) quanto pelas atividades que as articulam (jornalismo, propaganda, marketing, design etc), a projeção da marca neste espaço de aparecimento possui uma autonomia em relação à sua associação direta ao produto ou serviço respectivo.

Segundo desfile da marca, na Praça Tiradentes, no Rio de janeiro, em 13 jan. 2006. Foto de Paulo Jabur

O que sobressai no surgimento da Daspu é a forma como subverte a ordem natural sugerida pelos ensinamentos do branding para a criação de uma marca de sucesso: “posicionamento, nome e identidade gráfica” (Martins, 2006, p.80-81). Seu aparecimento na mídia antecede não só a estruturação do negócio, que no momento não passava de uma conjectura, assim como qualquer estudo de posicionamento mercadológico e registro da marca. Graças à ação da imprensa ela se projeta como imagem antes de existir o empreendimento que ela deveria representar, criando condições propícias para a sua concretização.

Uma outra característica diz respeito à associação da Daspu ao universo dos movimentos sociais. Como a ideia surge de um grupo de prostitutas que trabalha pelos direitos civis de sua profissão, a marca vincula-se às searas política, social, cultural etc. E esta dimensão vai caracterizar fortemente o seu DNA.

Um outro aspecto, dado pelo contexto em que a marca é proposta, diz respeito a eventuais fragilidades dos encaminhamentos propriamente empresariais. Mas se de acordo com parâmetros técnico-profissionais estritos esta constatação até pode levar a uma avaliação negativa, por outro lado não pode ser ignorado o vigoroso senso de oportunidade da Davida visando o crescimento da Daspu: ele se manifesta tanto na busca do fortalecimento da imagem da marca que começa a se construir, quanto nas providências visando a estruturação do negócio que deve embasar a marca em termos produtivos.


Daspu na GNT

Tendo em vista a intenção de investigar o processo de surgimento e difusão da marca Daspu, deparamo-nos, assim, com as limitações que um referencial analítico técnico-profissional, da área de criação e gestão de marcas, poderia apresentar para a recuperação da especificidade Daspu como feixe de experiências sociais. Sem invalidar ou desqualificar as análises realizadas segundo este referencial, optou-se por uma “conformidade analítica”, relativizando a competência técnico-profissional como parâmetro de avaliação e buscando destacar a riqueza da experiência social presente no processo. Para isso recorreu-se ao conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, na seção Postulados da Lingüística, conceito que se refere à presença de uma pragmática na estrutura mesma da língua, possibilitando a transformação da realidade pelo discurso. Pesou nessa decisão: o fato de que o processo Daspu se construiu com base no caráter nominativo da marca; a importância assumida pelos slogans veiculados nas camisetas; e o fato da projeção pública da marca ter se dado pela ação da imprensa, na qual se destaca o discurso verbal.

 

Página do jornal Extra com matéria sobre a Daspu, publicada em 14 jan. 2006.

 

Foi tomado como corpus da investigação o clipping referente à Daspu arquivado pela Davida. Sucedem-se nesse espaço configurado pela mídia: versões e fatos fortuitos ou planejados, personas e personagens diretos e indiretos – tais como jornalistas, a direção da Davida, profissionais de moda e de imagem pública etc –, iniciativas da Davida perseguindo profissionalismo e visando adquirir estrutura e ritmo minimamente empresariais etc. A partir da compreensão da enunciação Daspu como palavra de ordem, buscou-se a caracterização dos agentes, das circunstâncias da enunciação e dos desdobramentos do processo de nascimento e crescimento da marca.

3. A palavra de ordem, conceituada por Deleuze e Guattari, e a enunciação Daspu

Para chegar ao conceito palavra de ordem, Deleuze e Guattari partem da crítica ao caráter formal e fechado da língua, tal como esta categoria é proposta por Saussure, e trabalham: a) com o conceito ato de fala ou ato ilocutório proposto por J. L. Austin e desenvolvido por John Searle no âmbito da filosofia da linguagem ordinária; c) com a compreensão, segundo a filosofia estoica, de que num campo social existem os corpos e as modificações corpóreas 4 , e por outro lado os atos incorpóreos levando a transformações incorpóreas que são atribuídas aos corpos – caracterizando-se neste processo “uma independência entre as ações e paixões dos corpos, e os atos incorpóreos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26). Vejamos como esses conceitos se constroem.

A conceituação de ato ilocutório pressupõe que tanto a função representativa quanto a função comunicativa da linguagem são apenas condições para a realização de sua pragmática, pois quando faço uma enunciação eu atuo sobre a realidade. Dizer “prometo” não é descrever uma promessa ou apenas comunicá-la, mas fazer uma promessa; assim como ao dizer “eu juro” eu estou jurando, ou estou ordenando quando emprego o imperativo. Mas as atuações sobre a realidade não se resumiriam a esses atos performativos explícitos. Por exemplo, em última instância todas as enunciações envolvem um modo ou um tom de voz, e ao enunciar em tom peremptório que “a terra é redonda”, um sujeito pode estar se posicionando e influindo pragmaticamente no curso de algum acontecimento.

O ato ilocutório impõe uma compreensão da linguagem que se diferencia do modelo linguístico saussureano, pois ultrapassa a compreensão do enunciado com base em sua dimensão significante (que define a esfera da significância/informação, remetendo ao caráter representativo da linguagem), assim como a compreensão da enunciação com base na sua relação com um sujeito (que define a esfera da subjetivação/comunicação, remetendo ao caráter comunicativo da linguagem).

Enquanto a lingüística se atém a constantes – fonológicas, morfológicas ou sintáticas – relaciona o enunciado a um significante e a enunciação a um sujeito, (…) remete as circunstâncias ao exterior, fecha a língua sobre si e faz da pragmática um resíduo. (…) Como diz Bakhtine, enquanto a lingüística extrai constantes, permanece incapaz de nos fazer compreender como uma palavra forma uma enunciação completa; é necessário um “elemento suplementar que permanece incessível a todas as categorias ou determinações lingüísticas” (Deleuze, Guattari, 1995: 21)

Na caracterização da palavra de ordem, este efeito próprio do ato ilocutório é complementado pela concepção estoica de que há uma independência entre corpos de uma sociedade – associados por Deleuze e Guattari, com base no universo linguístico, a um plano de conteúdos – e os enunciados a respeito desses corpos – associados a um plano de expressos. Os enunciados promovem transformações incorpóreas nos corpos, sendo essas transformações distintas das ações e paixões que afetam os corpos (Deleuze, Guattari, 1995: 18). As palavras de ordem são

não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (…) [E diferentemente da concepção lingüística tradicional] a linguagem só pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em um dado momento. (Deleuze, Guattari, 1995: 16)

Se os atributos não-corpóreos são ditos acerca dos corpos, se podemos distinguir o expresso incorpóreo “avermelhar” e a qualidade corpórea “vermelho” (…), é então por uma razão bem diferente do que a da representação. Não se pode nem mesmo dizer que o corpo, ou o estado das coisas, seja o “referente” do signo. Expressando o atributo não-corpóreo, e simultaneamente atribuindo-o ao corpo, não representamos, não referimos, intervimos de algum modo, e isto é um ato de linguagem. A independência das duas formas, a de expressão e a de conteúdo, não é contradita, mas ao contrário confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo. (Deleuze, Guattari, 1995: 27)

Buscando esclarecer este regime de independência entre corpos e enunciados, entre o âmbito da “lição das coisas” e o âmbito da “lição dos signos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26), os autores referem-se à introdução que Oswald Ducrot fez para a edição francesa de Speech Acts, de Searle:

Quando Ducrot se pergunta em que consiste um ato, ele chega, precisamente, ao agenciamento jurídico, e dá como exemplo a sentença do magistrado, que transforma o acusado em condenado. Na verdade o que se passa antes – o crime pelo qual se acusa alguém – e o que se passa depois – a execução da pena do condenado – são ações-paixões afetando os corpos (corpo da propriedade, corpo da vitima, corpo do condenado, corpo da prisão). (Deleuze, Guattari, 1995: 18)

A palavra de ordem coloca-se como condição necessariamente social da linguagem, e por isso, diferentemente das sistematizações fonológica, semântica, sintática da língua, possui um caráter não necessário e não pré-determinado, e ao mesmo tempo interventivo/transformador:

Os corpos têm uma idade, uma maturação, um envelhecimento; mas a maioridade, a aposentadoria, determinada categoria de idade, são transformações incorpóreas que se atribuem imediatamente aos corpos, nessa ou naquela sociedade. “Você não é mais uma criança…”: esse enunciado diz respeito a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões. A transformação incorpórea é reconhecida por sua instantaneidade, por sua imediatidade, pela simultaneidade do enunciado que a exprime e do efeito que ela produz; eis porque as palavras de ordem são estritamente datadas, hora, minuto e segundo, e valem tão logo datadas. (Deleuze, Guattari, 1995: 19)

Porém é importante salientar que a palavra de ordem não funciona com base apenas no exercício da vontade, desvinculado das circunstâncias em que a enunciação se dá. O que possibilita, ou não, a efetividade da palavra de ordem são essas circunstâncias.

[Benveniste] mostra que um enunciado performativo não é nada fora das circunstâncias que o tornam o que é. Alguém pode gritar “decreto de mobilização geral”; esta será uma ação de infantilidade ou de demência, e não um ato de enunciação, se não existir uma variável efetuada que dê o direito de enunciar. O mesmo é verdade em relação a “eu te amo”, que não possui sentido, nem sujeito nem destinatário, fora das circunstâncias que não se contentam em torná-lo crível, mas fazem dele um verdadeiro agenciamento, um marcador de poder, mesmo no caso de um amor infeliz (Deleuze, Guattari, 1995: 20-21)

A enunciação Daspu como palavra de ordem articula-se conjugando dois momentos. A data-referência principal é o dia 20 de novembro de 2005, quando Elio Gaspari publica a nota n’ O Globo. É a partir desse momento que a Davida assume a exposição pública e a repercussão positiva, que vai transformar um projeto de confecção em um processo de construção de uma empresa de moda, assim como vai potencializar a imagem da própria Davida. Mas também se coloca a data de 15 de julho de 2005, quando o nome é criado, pois é a especificidade do nome que dá a sua consistência como palavra de ordem, apesar dessa só se efetivar em 20 de novembro depois de ter seu potencial transformador reconhecido/assumido pela Davida. Se não fosse a referência à Daslu, talvez a nota não tivesse sido publicada; mas se não fosse a ironia e o bom humor, uma “brincadeira carioca” nas palavras de seu criador, Sylvio de Oliveira, talvez a repercussão não tivesse sido tão grande.

Fotos do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pelo jornal O Estado de São Paulo, 12 abr. 2006.

De qualquer modo o nome Daspu é coerente com a visão positiva e não moralista que caracteriza a ONG. A chave de leitura do nome Davida, por exemplo, refere-se a um eufemismo para puta – mulher da vida –, mas também à positividade da afirmação Da Vida. E o nome Daspu, ao se apresentar como uma marca Das Putas – homologamente ao nome Daslu, motivado pelos prenomes Lúcia e Lourdes de suas duas fundadoras –, brinca com o estereótipo da mulher obrigada a se prostituir para sobreviver em contraposição ao consumo de luxo da cliente Daslu. Assim como alude ao fato de que o mundo Daslu é eventualmente também atravessado pela relação entre sexo e dinheiro.

 

Foto do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pela Folha de São Paulo, 12 abr. 2006. Foto de João Sal



A menção satírica à Daslu, associada à autoironia de relacionar prostitutas da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, à boutique mais luxuosa do país, dão ao humor Daspu um certo tom de ”escracho”. Grande parte do sucesso pode ser tributado a esta irreverência, que também se faz presente nas frases das camisetas. Sua carioquice conquistou cariocas e não cariocas, pois a proposta tinha potencial para apresentar-se culturalmente como fetiche. Assim como aconteceu com as camisetas: tornaram-se, imediatamente, objetos de desejo.

No entanto devem ser assinaladas as circunstâncias que tornam possível a palavra de ordem, assim como as transformações na ONG e no empreendimento Daspu que se seguem às suas reverberações.

Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Ela Fashion, em 10 jun

 

4. As circunstâncias da enunciação Daspu

Devem ser assinaladas quais as circunstâncias que efetivam a Daspu como palavra de ordem, vale dizer os modos como essas circunstâncias vão sendo dispostas, no momento inaugural e ao longo do processo daí decorrente, por corpos (lição das coisas) e enunciados (lição dos signos) conectados ou conectáveis ao evento. E de como as pressuposições recíprocas entre as ações e paixões desses corpos e as transformações incorpóreas expressas por esses enunciados dialogam com as circunstâncias que sustentam a palavra de ordem. Conforme já indicado, os expressos podem “se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo.” (Deleuze, Guattari, 1995: 27)

No cenário da enunciação Daspu destacam-se entre a heterogeneidade dos corpos e agentes dos enunciados: prostituição, moda, jornalismo, público leitor, comunicação, marketing, design, empreendedorismo, sociedade brasileira, arte, sociedade do espetáculo, movimentos sociais, política, bom humor e crítica, discurso antropológico, moralismo, ética, “consistência cidadã”, criação, transgressão etc. Neste sentido delineiam-se agenciamentos fragmentadamente coletivos e processuais.

Daspu nos bastidores de “Caminho das Índias”

A partir da análise do clipping pesquisado, e tendo em vista os corpos e os enunciados em jogo, pode-se compreender as circunstâncias que fundamentam a enunciação Daspu na particularidade de quatro confluências: a) a confluência entre a lógica da imprensa, o escândalo Daslu, e o surgimento da Daspu; b) a confluência entre a Davida como proposta e organização, e sua experiência com a mídia; c) a confluência entre a lógica da moda, a cobertura jornalística da moda, e o caráter transgressivo associado à Davida/Daspu; d) a confluência entre o apoio de artistas e intelectuais, e o trabalho voluntário de profissionais de moda e de imagem pública.

4.1. A lógica da imprensa; o escândalo Daslu; o surgimento da Daspu

Independentemente dos aspectos técnicos e éticos que caracterizam as diretrizes explícitas de produção/edição de um meio de comunicação – tais como a fidedignidade, a abrangência e a isenção da informação veiculada –, coloca-se a diretriz pragmática de motivar o leitor. Isto envolve a articulação das várias possibilidades de formatação da informação jornalística, assim como o tratamento cativante dos fatos que a reportagem e a edição constroem. A eficácia dessa estratégia fortalece o prestígio e o cacife empresarial do veículo, e é isto o que se busca expressar na a fórmula-síntese “notícia vende jornal”.

No caso Daspu colocam-se como pano de fundo desta articulação pragmática: a) a diretriz ética de defesa da sociedade, pois a motivação da publicação da nota vem da existência de um processo contra a Daslu, e evoca tanto a necessidade de cumprimento das leis, quanto a impunidade das elites; b) a existência de um público leitor afetado pelas condições da economia e, por isso, receptivo à critica de desmandos legais; c) o caráter inusitado da associação entre uma confecção de prostitutas e a loja multimarcas de luxo, que se dá pela referência paródica e satírica do nome Daspu ao nome Daslu. O fato é imediatamente percebido em seu potencial de repercussão jornalística. E a sua publicação como nota numa coluna de opinião acentua ainda mais sua dimensão irônica.

No desdobramento da cobertura das ações da Davida, o tema da defesa da sociedade é alimentado pela notificação judicial da Daslu, e potencializado por comparações de fundo ético entre a Daslu e a Davida. Em alguns momentos, em colunas de opinião essa cobertura ganha um tom carregado de denúncia. Entretanto na quase absoluta maioria das vezes o assunto Daspu é reproduzido/caracterizado com o mesmo bom-humor presente na criação do nome. Pois apesar do caráter político e de critica social, a novidade apresentada pela Daspu é alegre e divertida, assim como o bloco carnavalesco dos Prazeres Davida, uma das iniciativas culturais da ONG.

4.2. A Davida como proposta e organização; sua experiência com a mídia

O desdobramento da enunciação Daspu através da ação da imprensa coloca a Davida em evidência. E a consistência política e cultural da Davida dão substância à palavra de ordem, pois as referências éticas são reais. No momento de seu aparecimento público a Daspu podia ser só uma ideia, mas consegue tornar-se realidade, pois existe por trás da marca um grupo de prostitutas organizadas com um discurso e posição critica coerentes em relação à realidade da prostituição. Sylvio de Oliveira, referindo-se ao ineditismo da proposta da ONG, lembra que no primeiro desfile, por ocasião do Fashion Rio, havia, aproximadamente, trezentos jornalistas do mundo inteiro “naquela ruazinha estreita”, o que seria um acontecimento inédito no mundo. Nunca antes houvera tantos holofotes focalizando positivamente a prostituição. Sylvio conta que na Europa, onde há um trabalho consistente com prostituição,

existe uma mulher, que […] é como se fosse a Gabriela lá. Fazem coisas incríveis, mas nunca com essa preocupação que a Davida teve de fazer a população virar cúmplice das prostitutas.[…] O trabalho lá na Europa é muito interno, o político, o de prevenção a AIDS sim, mas é muito para o bem estar das putas apenas, não contando com a cumplicidade da população. (Oliveira, 2008: 58)

Mas além dessa retaguarda ética e política, as ações e posições da Davida subsequentes à publicação da nota de Gaspari estabeleceram um diálogo ativo com a cobertura jornalística, evidenciando a habilidade de Gabriela Leite e Flávio Lenz em capitalizar a imagem da marca. Eles souberam fomentar por um longo período o interesse da mídia na Daspu. Fala-se tanto da marca que esta chega integrar uma lista publicada n’ O Globo por Ancelmo Gois, em 26 de novembro de 2006, dos assuntos que “ninguém aguenta mais ouvir”, e isto um ano depois de ter sido anunciada por Gaspari! (Gois, 2006: 27). Ou seja, a partir do momento inesperado em que a marca foi divulgada pela primeira vez, todos os outros espaços na mídia foram bem aproveitados pela Davida. E muitos, de certo modo, articulados pelos seus dirigentes.

Famosas apóiam projeto social em “Caminho das Índias”
Elke Maravilha, Susana Vieira, Betty Lago, Preta Gil e Priscila, vice-campeã do BBB9 falam sobre o trabalho da Daspu para o documentário da personagem Leinha.

Neste sentido foi fundamental a experiência jornalística de Flávio Lenz, adquirida na atuação em jornais de grande circulação, no trabalho como assessor de imprensa da Davida desde 1992, e na publicação do jornal da ONG Beijo da Rua, em suas versões impressa e on line.

4.3. A lógica da moda / o caráter transgressivo da Davida/Daspu

A recepção da Daspu pela moda desenha-se com base em algumas características valorizadas pelo meio. Destaca-se, inicialmente, o imperativo do novo. A moda, com sua natureza inquieta e desassossegada, é movida pela novidade. A esta deve-se a busca pelo diferente, do que não integra ainda o repertório do campo. O tédio associado ao que já foi seguidamente vivenciado abre espaço para o exógeno. E segundo um referencial antropológico destacam-se as tribos e as periferias, que oferecem um “viés diferencial perseguido, dialeticamente, pela estética globalizada” (Villaça, 2007: 59), proporcionando novas identidades possíveis. Através do ato de vestir uma camiseta, ou desfilar, ou se projetar em uma imagem fantasia, promove-se uma brincadeira de prostituta, ou de apoio às prostitutas. Relativamente ao seu processo de comunicação, a Daspu foi surpreendente nesse aspecto: foi criada uma marca viva, uma marca sujeito (Lipovetsky, 1989: 187) com a qual é fácil de se identificar.

Por outro lado, como a empatia do provável consumidor com a marca tende a se estabelecer segundo uma dimensão política, isto aponta para uma critica de relações e enquadramentos autoritários e moralistas. E essa condição também vem fortalecer a busca do novo, só que num outro registro. Caracteriza-se aí um outro aspecto valorizado pela moda, que é o rompimento com o passado, o gosto por desobedecer regras. E isto destaca a valorização, pela moda, do transgressivo, e de como a Daspu corresponde duplamente a esta expectativa.

Primeiramente coloca-se o discurso da prostituta autodeterminada, que é capaz de falar por si, defender seus direitos e atuar politicamente, rompendo com o silenciamento, com o não-discurso, da prostituta comum. Num outro nível coloca-se a crítica, no âmbito da defesa dos direitos civis, às posições assistencialistas que têm como objetivo “recuperar” as prostitutas, tirando-as “da vida”. Diferentemente a Davida defende a opção consciente de atuar na profissão, assim como o orgulho profissional. Essas posições têm um papel importante na recepção da marca pelos artistas, jornalistas e criadores, graças à valorização do transgressivo como veículo tanto do novo quanto da renovação social. Assim como o transgressivo também se associa à categoria de atitude, igualmente valorizada pela moda.

“Da farofa ao caviar” desfile da Daspu em BH 2009

E existe, finalmente, a consciência quanto aos recursos de exposição e aparecimento, presentes na prática da moda. A Daspu, desde seu lançamento, utiliza sobretudo um determinado modo de operação da moda: a valorização do sensacional (Carli, 2002: 114). Com a ajuda de artistas e cenógrafos tira proveito do show. Seus desfiles se referenciam na arte e transformam-se em instalações e performances. Embora não se abra mão de obter recursos através das vendas, a marca não se descuida da premissa e protocolos do desfile espetáculo. E isto até porque a produção não está bem equacionada. De qualquer maneira há plena consciência de que o aparecimento em si mesmo trabalha pela causa, e de que estar na mídia significa, ainda que de modo relativo, o direito a ter voz.

4.4. O apoio de artistas e intelectuais / o trabalho voluntário de profissionais de moda e imagem pública.

A imagem da marca projetada pela imprensa é fortalecida pela adesão e apoio de artistas, intelectuais, profissionais de cultura e de moda.

As formas de apoio podem envolver efetivações estratégicas, como o convite de Gringo Cardia para a Daspu participar do estande do SEBRAE na edição outono-inverno do Fashion Business de 2006, assim como o oferecimento de trabalho voluntário, como faz o próprio Cardia com a cenografia para o desfile da coleção Daspu na Pista – BR 69, no Circo Voador, e toda uma legião profissional que se envolve com a marca: estilistas, cenógrafos, designers, modelos, cineastas. Como também há o apoio dado através da cessão de espaço em programas de entrevista, como fazem Betty Lago e Jô Soares, ou em outros espaços televisivos, como na participação na novela Caminho das Índias, da Rede Globo de Televisão, em 2009.

 

Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Fashion Rio, em 10 jun. 2006. Foto de Fábio Guimarães.

A motivação desse apoio se origina na identificação tanto com o caráter ético que a imagem da marca projeta, quanto com o caráter transgressivo. Por outro lado, pode-se falar de um retorno desse apoio, dado pela exposição que se ganha com o destaque que o assunto tem na mídia. Porém simpatizantes como Gringo Cardia ou Betty Lago, só para citar dois exemplos, não podem ser considerados principiantes em busca de exposição pública. Mas, sem juízo negativo de valor – pois é legítima a expectativa de exposição por parte de quem contribui com a ONG –, este talvez seja o caso, por exemplo, da estilista Rafaela Monteiro (segundo desfile), ou do grupo Coletivo Puta Life Style (quinto e sexto desfiles). E da parte desses profissionais também pode estar presente uma expectativa, também legítima, quanto a uma liberdade do exercício criativo.

Desfile de lançamento da coleção Daspu na Pista BR 69, no Circo Voador, Rio de Janeiro. 9 jun. 2006. Fotos Marcos Silva.

Resulta deste apoio: a) o reforço temático da imagem da marca, na medida em que citações de “famosos” na imprensa enfatizam aspectos éticos ou transgressivos; b) o reforço da visibilidade da marca, pois as declarações de apoio colhidas em eventos específicos transcendem tanto esses eventos quanto o caráter referencial dado pelo espaço na mídia, incorporando-se a um espaço maior e menos material de aparecimento; c) consistências parciais na visualidade ligada à marca, dadas pelos parâmetros profissionais do trabalho voluntário (que elas sejam mais ou menos articuladas entre si é uma outra questão).

5. Inserção da palavra de ordem Daspu no corpo Davida

Conforme indicado por Deleuze e Guattari, um enunciado diz respeito “a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões” (Deleuze, Guattari, 1995: 19). Ou seja, independentemente da distinção entre corpos e transformações incorpóreas, estas tornam-se presentes e podem marcar os processos de mistura dos corpos.

Com base nesta orientação, destacamos dois aspectos das transformações na ONG Davida e no empreendimento Daspu que se seguem às reverberações da palavra de ordem: o primeiro ligado à autoimagem das prostitutas que participam, ou se conectam à ONG, assim como à própria imagem da ONG; e o segundo ligado à estruturação da Daspu como negócio.

5.1. A moda sem vergonha

A enunciação pública do nome Daspu recoloca o jogo exibe-esconde com o qual as prostitutas lidam em seu dia-a-dia – exibe para o cliente, esconde da sociedade, polícia, família. É obviamente salutar para a causa política da Davida, mas exige das prostitutas que abram mão de sua habitual repulsa pela exibição/exposição pública, que na moda é parte inseparável do jogo.

E isto traz uma mudança quanto ao ato de mostrar-se. As prostitutas passam a ter status distinto do que tinham antes, pois incorporam a persona da modelo, que mostra o que veste mostrando-se. E, momentaneamente, ganham voz na mídia. Com a sua entrada no meio da moda, a marca inaugura um novo padrão para a autoimagem das associadas à Davida: mostrar-se e dizer-se puta.

Este processo ganha uma compreensão mais nítida a partir da categoria discurso reverso, proposta por Michel Foucault em História da sexualidade 1: A vontade de saber: Desenvolvendo a questão da “polivalência tática dos discursos” nesta área (Foucault, 1988: 111), o autor postula que deve-se imaginar uma “multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes”. Refere-se, entre outras coisas, ao fato das enunciações ligadas a controles sociais comportarem deslocamentos e utilizações para fins opostos. Segundo ele o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na jurisprudência e na própria literatura, de toda uma série de discursos sobre espécies e subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e “hermafroditismo psíquico”, permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de “perversidade”; mas, também, possibilitou a constituição de um discurso “de reação” [discurso “reverso” 5 ]: a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua “naturalidade” e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico (Foucault, 1988: 112).

Esta estratégia já estava presente no discurso de Gabriela Leite antes da Daspu. No entanto a marca fornece o megafone/amplificador que a propaga e faz reverberar, conforme o subtítulo do livro de Lenz: Daspu – a moda sem vergonha. O que a Daspu promove com sua moda sem vergonha é a transformação da puta sem-vergonha ou desavergonhada, na puta sem vergonha de dizer-se puta, o que, entre outras coisas, significa, por exemplo, deixar-se fotografar para jornal.

Por outro lado, este imenso potencial transformador que a marca representa, na medida em que se apresenta como “uma forma inusitada de ativismo político”

6, perde seu poder se a Daspu desaparece como marca. O valor da marca pode ser tão importante quanto a venda de produtos, mas também é verdade que se as vendas não acontecem e a empresa não se fortalece, este valor tende a se esvaziar. Esta avaliação aponta para a importância da Daspu manter-se ativa no mercado da moda.

5.2. O negócio Daspu

A recepção favorável que a enunciação Daspu teve no meio moda não significa que ela tenha sido sempre avaliada positivamente. Muitas vezes a moda se apropria das práticas e dos produtos de periferia como demonstração de correção política, por exemplo, mas exige em troca a adaptação. Ao se associar à moda, a Daspu fica sujeita à sua lógica mutante: estar na moda pode significar, no minuto seguinte, não estar mais. Ao mesmo tempo que o fascínio pela novidade favorece o surgimento de marcas e estéticas fora de um mainstream, o imperativo do novo dificulta sua permanência. A partir do momento em que uma experiência específica ganha visibilidade, deixa aos poucos de ser uma novidade. Para se manter como sujeito nesse espaço social é necessário não só produzir outras novidades, mas também enquadrar-se segundo seus parâmetros produtivos. Movimento que a Daspu vem se empenhando em fazer desde seu lançamento.

Sobre a estreita relação entre a imprensa especializada em moda e o sistema da moda, que dá aos jornalistas especializados e veículos um certo poder na homologação dos gostos e inclusão das marcas neste sistema, deve-se lembrar que, observando-se o desempenho do Brasil na moda mundial dos últimos tempos, observa-se uma elevação significativa nesse padrão para a homologação. O investimento das empresas nacionais para obter reconhecimento internacional da moda brasileira, requer, com toda certeza, mais rigor no critério de seleção das marcas que receberão essa homologação, seja da imprensa especializada ou dos demais setores do sistema da moda. A edição de 2009 do Fashion Rio pareceu caminhar ainda mais na direção da elevação desse padrão. Reduziu drasticamente o espaço oferecido às marcas em processo de profissionalização e manteve no evento oficial apenas as que haviam alcançado um estágio profissional mais avançado. Profissionalismo, design, qualidade de produto, permanência e constância são critérios importantes para a manutenção do status alcançado em solos internacionais e, consequentemente, concorrem para a eleição do grupo de marcas que ingressará nesse círculo cada vez mais restrito. E este é um movimento natural da perspectiva da indústria da moda.

Desfile da coleção Daspu na Pista BR 69, no Club Glória, São Paulo, 15 jun. 2006.
Fotos de Marcos Silva.

Nas raras avaliações dos jornalistas de moda, são encontrados indícios da não homologação da marca Daspu. Mas, sobretudo, a raridade dessas críticas é a principal evidência de que ela não chegou a ser exatamente considerada como parte do meio.

Nas escassas avaliações e críticas que a marca Daspu recebe da imprensa especializada, é possível perceber inadequações do produto oferecido, ou da empresa Daspu, ao negócio moda. Como quando Iesa Rodrigues, ao elogiar a camiseta Beijo da Rua, sublinha a ausência de produtos apresentados pela marca naquele momento. Ou quando Glória Kalil, comentando um padrão de vulgaridade presente hoje na moda, e comparando as roupas da Daspu e da Daslu, refere-se às diferenças de tecido e acabamento. Ou ainda na crítica encontrada no site de Erika Palomino, que afirma que o público aplaudiu mais as prostitutas e menos as modelos de verdade, ainda que pouco antes tivessem reproduzido a afirmação de Rafaela Monteiro – “prostituta não tem cara”.

 

Fotos do desfile da coleção Puta Arte, na Praça Tiradentes. Rio de Janeiro. 19 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda

 

É interessante, para o caso Daspu, pensar nos binômios socialização/individualização, distinção/imitação, presentes na teoria de Simmel (Simmel, 1957). Quando Gabriela Leite afirma que faz uma moda para todas as mulheres parece ciente da importância dessa relação. Entretanto, na maioria das vezes, a roupa da Daspu é nomeada pela imprensa como roupa de prostituta para prostituta. Segmentação que nada ajuda ao discurso da Davida. Uma confusão que talvez seja estimulada pelos conceitos autorreferentes presentes em todas as coleções. Essa segmentação advém, normalmente, da mídia não especializada. Glória Kalil, como visto, afirma justamente o contrário. Mas nesse caso o discurso de indistinção também tem, subjacente, a distinção. Nos comentários de Glória Kalil sobre a similaridade entre as modas Daspu e Daslu, está claro que ela não ignora que são “as pequenas diferenças que fazem toda a moda”. Quando destaca a importância de um bom tecido ou acabamento, não desconhece que “a torrente de pequenos nadas” (Lipovetsky, 1989, p.32) à qual o tecido e o acabamento pertencem pode, imediatamente, desclassificar ou classificar a pessoa que os adota ou que deles se mantém afastada. Se inserem em “uma parte da moda que se tornou como a alma da economia geral do vestuário: o detalhe” (Barthes, 2005: 341). Assim, nem tudo é paródia e deboche na apropriação que Daspu faz do nome Daslu: deve haver também imitação. Ou pelo menos ela é esperada. Quando as análises, elogiando o desempenho Daspu, equiparam suas criações com as demais, anunciam que é isso que esperam da marca.

Desfile da coleção Puta Arte, no Club Glória, em São Paulo. SP, 27 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda

Mas a habilidade de articulação do grupo gestor da Davida em função dos objetivos da ONG fica evidenciada também no trato administrativo com a marca. Desde as ações para o pronto atendimento das urgentes demandas para a constituição real da marca – não somente produtivas, como a realização de uma primeira camiseta em transfer para simular uma produção inexistente, mas também empresarias, como o registro da marca no INPI, feito por Lenz quinze dias depois da publicação da nota de Gaspari –, passando pela busca de qualificação empresarial, e chegando às associações com a FUMEC e seus alunos para o desenvolvimento das novas produções

 

 

Relativamente a essa parceria é preciso destacar o fato das estampas para as camisetas da última coleção acentuarem com humor o caráter de naturalidade e sensualidade do tema prostituição, caracterizando com mais justeza as referências que conferem a ligação ao trabalho da Davida, dando o tratamento merecido às camisetas, produto que mais se identifica com a marca Daspu.

 

 

Desfile da coleção As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada. Belo Horizonte. Jun. 2008. Fotos de Nana Moraes.
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6. Considerações finais

O design se define como uma disciplina prática, como por exemplo o marketing e a administração, e projetual, como a arquitetura e o urbanismo. Isto leva a que, diferentemente da história, da filosofia ou da matemática, por exemplo, em paralelo à esfera acadêmica também se estabeleçam cânones e instâncias de sua validação profissional no mercado.

Em termos da esfera acadêmica, temos que ela cumpre o papel de elaboração, sistematização e transmissão do conhecimento humano produzido/acumulado, tendendo a encarar este conhecimento com base no paradigma consolidado pelas ciências da natureza a partir do Renascimento 7. Frente ao fato de que, segundo esta concepção, todas as áreas acadêmicas devem se compreendidas como ciências 8 – mesmo que extraoficialmente o paradigma dominante leve a uma grande seletividade no reconhecimento desta atribuição –, caracterizam-se duas posições no âmbito do design:

a) uma envolvendo iniciativas visando conferir uma cientificidade à profissão, normalmente através de uma super valorização da metodologia 9 – embora elas tendam a não funcionar para grande parte da prática profissional;

b) outra envolvendo um consenso de que, mesmo que esta cientificidade metodológica possa ser adequada a alguns tipos de projeto, e não deixando de considerar a possibilidade da utilização do conhecimento científico, o design em geral, como outras atividades práticas e projetuais, não se caracteriza conforme o modelo da ciência moderna que se desenvolve a partir do século 16.10

De qualquer modo o espaço acadêmico marca mesmo as disciplinas práticas com alguns dos atributos da cientificidade, como a busca de isenção técnica e uma supervalorização dos limites das áreas de conhecimento, com base na pressuposição de uma divisão social do trabalho que tende à idealização, pois possui um caráter formalmente descritivo e ignora a dinâmica concreta da relação entre áreas de conhecimento no mercado e no espaço acadêmico.

Considerando, por outro lado, os parâmetros de validação profissional pelo mercado, temos que, a partir de uma racionalidade e de um pragmatismo de mercado, são valorizados protocolos de relacionamento profissional, a competência e a neutralidade técnica e uma “política de resultados”, ou seja, o retorno do investimento. Embora esses parâmetros coloquem-se com independência em relação à esfera acadêmica, esta, por sua própria razão de ser, precisa incorporá-los enquanto referência necessária para o ensino da profissão, sendo que nessa operação eles passam a ser enquadrados segundo os modos de funcionamento e parâmetros do espaço acadêmico. E neste fechamento do campo os critérios se cruzam – a neutralidade técnica se conjuga à isenção de caráter científico, por exemplo – criando “enrijecimentos” de ação e percepção, dificultando a compreensão de novas dinâmicas da sociedade e novos modos de conhecer.

Conforme fica sugerido no item 2 deste trabalho, os parâmetros do mercado sinalizam o caminho mais evidente para uma análise, com base na competência profissional, do peso relativo que a criação e gestão de uma marca pode adquirir no possível sucesso um empreendimento.

Desfile na Unidos da Tijuca. Rio de Janeiro. 6 jun. 2008. Foto de Celso Pereira.

No entanto o recorte estritamente profissional – neutro e isento segundo os protocolos do mercado e sua replicação acadêmica –, não elimina o fato de que existe a atividade, correspondendo ao trabalho e suas especificidades e potencialidades técnicas e sociais, como algo distinto da profissão. Mesmo considerando que atividade e profissão se apresentam como um mesmo “corpo”, esta distinção analítica se justifica. Pois embora a efetivação da atividade dependa dos balizamentos profissionais que dispõem as condições de sua existência, isto pode se dar tanto como confirmação dessas condições, quanto relativamente, por meio da investigação/experimentação de alteridades, e celebração de um compromisso com um “objeto ampliado” e com uma abertura do conhecimento. Neste sentido a caracterização de uma autonomia da atividade se aproxima de iniciativas de revisão dos parâmetros igualmente técnicos e isentos das ciências sociais. Como indica Boaventura dos Santos “A experiência social […] é muito mais ampla e variada do que a tradição científica e filosófica concebe e considera importante” (Santos, 2006: 778).

A opção por uma referência analítica adequada à recuperação da experiência social presente na criação e difusão da marca Daspu – envolvendo aceitação da diferença e construção de cidadania –, assume a possibilidade de conexões e aberturas que enriqueçam o escopo do design e de disciplinas afins. E isto abrangendo caracterização técnica e posicionamentos sociais e culturais, tanto em termos da atividade quanto da profissão.

E finalizando, cabe registrar o paralelo, em termos do trabalho prático, a esta busca de abertura do campo em termos do conhecimento, destacando o desprendimento e generosidade dos profissionais que se engajaram no processo Daspu.

Referências bibliográficas

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CARLI, Ana Mery Sehbe de. O sensacional da moda. Rio de Janeiro: Educs, 2002.

CROSS, Nigel. “From a Design Science to a Design Discipline: Understanding Designerly Ways of Knowing and Thinking”. In MICHEL, Ralf (ed.). Design Research Now: Essays and Selected Projects. Basel: Bierkhäuser Verlag, 2007. p.41-54.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. “Postulados de lingüística”. In: Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. P. 11-60.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

GASPARI, Elio. “Uma nova grife”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 20.11.2005.Caderno O Pais. P.16.

GOIS, Ancelmo. “Ninguém agüenta mais ouvir”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 26.11.2006. Caderno Rio, p.27.

LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.

LESSA, Washington Dias. “Prática de design e conhecimento”. Designe. Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais/ Univercidade, ano III, nº 3, outubro de 2001, p. 80-86.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MARTINS, José Roberto. O manual para você criar, gerenciar e avaliar marcas.3ª edição. 2006. Disponível em www.brandingemarcas.com.br/kose-roberto-martins

O GLOBO. “Fetiche”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 14.01.2006. Caderno Ela Fashion, p.1.

OLIVEIRA, Sylvio de. Entrevista concedida a Fábio de Araújo Keidel. In: KEIDEL, Fábio de Araújo. Criação de marcas em movimentos sociais: uma análise do caso Daspu. Rio de Janeiro, 2008. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Comunicação. p.54-62.

SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente – um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. [2003]

SIMMEL, Georg. “Fashion”. In: American Journal of Sociology. vol. LXII, Nº 6 , Chicago, may 1957. p. 541-558.

VILLAÇA, Nízia e Góes, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

VILLAS-BOAS, André. Prefácio. In: LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. p. 10-17.

 

*Washington Dias Lessa é designer graduado pela ESDI Escola Superior de Desenho Industrial, onde leciona desde 1977, quando ela passa a integrar a UERJ. Tem doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e seu trabalho de pesquisa está voltado para questões ligadas à linguagem visual (contextualizadas historicamente ou não), às relações entre design e significação/comunicação, e à teoria e epistemologia do design. Além de artigos e capítulos de livros publicou “Dois estudos de comunicação visual”, onde analisa a participação de Amílcar de Castro na reforma do Jornal do Brasil nos anos 1950-1960. Como designer destacam-se seus projetos de design editorial e design de exposições.

* Jeanine Geammal é designer e professora do curso de Design de Produto da Universidade Federal do Ceará. Atua no campo do design de jóias, principalmente com a produção de joalheria-arte e no desenvolvimento de coleções. Organizou a coletânea “Joia em estudo” (Editora SENAI, 2009).

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1- Divulgação da “Carta de Princípios” da Rede Nacional de Prostitutas, divulgada pelo sítio “Beijo da Rua”, mantido pela Davida.

2- Visando, num primeiro momento, divulgar as questões relativas às lutas da ONG Davida.

3- Marcada pela figura de Flávio Lenz, assessor de imprensa da Davida
“dando à palavra ‘corpo’ a maior extensão, isto é, todo conteúdo formado” (Deleuze, Guattari, 1995: 26).

4- No texto original em francês o termo usado por Foucault é discours “en retour” (Histoire de La sexualité 1: La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976. p.134). Em vez de discurso “de reação”, utilizado na tradução brasileira, consideramos mais fiel às intenções do autor a tradução discurso “reverso”.

5- Em inglês o termo também é traduzido por “reverse” discourse.

6- André Villas-Boas, prefaciando o Livro de Flávio Lenz, afirma que a novidade não reside “na realização de espetáculos ou atividades artísticas e de lazer […], mas na sua transformação em estratégia. A conformação estética não é mais um ‘braço cultural’ do movimento, mas tornou-se o próprio movimento”. (Villas-Boas, 2008: 13-14)

7- Apesar do encaminhamento desta investigação colocar-se como um questionamento desse paradigma, não cabe aqui indicar nem o seu processo de consolidação, nem a “geopolítica” acadêmica que dele decorre, nem as vertentes e natureza da crítica a que tem sido submetido.

8- Segundo uma das categorizações oficiais de ensino e pesquisa no Brasil, o design é uma ciência social aplicada.

9- A este respeito ver Cross, 2007: 41-46

10- A este respeito ver Lessa, 2001: 81-82.

Noções do mundo hippie hoje: seus desdobramentos culturais e políticos | de Martine Xiberras

* Dados da autora
** Tradução Ricardo Ferreira Freitas 1


Introdução
O movimento hippie exerce ainda hoje um fascínio geral; o que se passou exatamente e o que ficou na memória contemporânea? Por que permanece como uma aura, um souvenir desse encantamento? O que nos faz sentir essa atração e essa nostalgia, mesmo por aqueles que não conheceram essa época na qual existiu uma espécie de magia coletiva, um paraíso ao alcance da mão…

A perspectiva antropológica do imaginário (Gilbert Durand) pode permitir a compreensão ou nos aproximar um pouco mais da perspectiva global dos hippies. Trata-se de um ethos ou um credo comum que foram construídos como uma herança condensada de todas as grandes utopias ocidentais e orientais. Um imaginário equilibrado, ao mesmo tempo heroico e místico, propriamente sintético nos termos de G.Durand.

A ótica do imaginário nos permite ilustrar como um imaginário surgiu e depois foi disseminado, desdobrando-se, às vezes se invertendo, ou derivando até os dias de hoje no cotidiano, sob formas desbotadas, por vezes desdobradas, ou mesmo travestidas. O desdobramento ou a disseminação dos esquemas presentes no mundo hippie supõe que as ideias principais, ou imagens matrizes, estão ainda presentes atualmente. No entanto, falta a articulação desses elementos que estão dispersos, disseminados, difratados em diferentes campos, culturais e sociais. Iremos também sublinhar como esses esquemas informam ainda sobre o social no século XXI. O campo de observação é a Europa, a França em particular.

Um movimento cultural fulgurante
Ao analisar de perto, ao ler as histórias de vida dos atores e de suas aventuras comunitárias, o movimento reivindica raízes longínquas e diversas: o cristianismo primitivo, o fourierismo2, o orientalismo…

Outras fontes e referências mais próximas vão servir de catalisador do século XX, nos anos 60: as drogas do século XX dão um salto adiante, a revolução sexual de Reich explode realmente, o imaginário da Beat generation vem martelar seu ritmo endiabrado. A utopia psicodélica nasce como uma flor sobre o pedestal da sociedade prometeica 3 dos anos 60. O filme “A primeira noite de um homem”, The Graduate com Dustin Hoffmann, e seu fundo musical de Mrs. Robinson de Crosby, Still, Nash e Neil Young, ilustram bem o salto epistemológico que se produziu no seio da família americana4 .
Desde seu nascimento, o imaginário psicodélico é uma utopia em atos, uma filosofia que nasce no movimento de contestação política, na efervescência musical, e na liberação florida dos corpos, um flower power como ele próprio se auto-proclama. As comunidades logo terão os porta-vozes, os ídolos e os ícones, e mesmo um papa, Timothy Leary, que instituirá sua doutrina e suas palavras de ordem. A filosofia de movimento é contida na fórmula: Turn in, tune in, drop up5 .

Todas as outras experiências sensíveis do mesmo tipo, viagens chamânicas, transe de criação, transes poéticos como os de Paul Valéry em “O cemitério marinho”, ou transes de êxtase dos estados de Nirvana e Buda, parecem induzir a uma diversidade de estados de consciência. O acesso é permitido pelas práticas ancestrais de ascendência, de concentração, de meditação, como na yoga pela redução ou suspensão da respiração, ou ainda graças à escuta de músicas privilegiadas tradicionais6 , aqui reinventadas pelas sonoridades da música psicodélica.

Um Ethos
Outro marco daí em diante célebre, Make love, no war, Faça amor, não faça guerra, permite resumir os princípios éticos para o grande público que compreendem mal essa nova forma de contestação. As diferentes regras que daí resultam se instituirão pouco a pouco, a ponto de ficarem como rituais.
No war, (Não faça guerra), representa o pólo ou o aspecto da reivindicação política (parar a guerra do Vietnã) e Make love (Faça amor), o outro polo da contraproposição, contida e sintetizada na palavra amor, vasto campo que a filosofia hippie vai desdobrar à sua maneira. De fato, esse conceito holístico da sua filosofia apresenta-se como um modelo completo de utopia, já que ele está bem fundado sobre uma simples, só e banal ideia, o amor. Uma visão holística, adquirida pela impregnação de uma mesma experiência sensível, multiplicada pelo uso dos psicotrópicos e que está sem dúvida ligada aos seus contatos com as fontes tradicionais que compartilham essa percepção: os mesmos esquemas definem suas concepções religiosas (êxtase cósmico e social), político (paz entre todos os povos, e a doçura da palavra para a resolução de conflitos), econômico (divisão, desprovimento), estético (beleza do natural), e ligação social (espírito coletivo e comunitário, ou neotribalismo)7 .

O credo dos novos membros comunitários contém desordenadamente: a liberdade sexual, o erotismo, as relações interpessoais, o esoterismo e a ecologia, …8 entre outros, mas trata-se antes de tudo de um ethos rigoroso, um princípio de partida coerente (liberação pelo amor) declinado sobre diferentes planos, depois sobre todos os planos, muito logicamente.

Logo, as idéias hippies se organizam, as ligações se entrelaçam entre as diferentes fontes que inspiram esses novos modos de vida coletiva e os hippies tentam se aproximar de outras minorias. A imprensa descreve então, não mais somente um movimento, mas uma cultura, ou uma subcultura, derivada das culturas mais tradicionais, e que procura alianças com outras minorias críticas e reivindicativas, na busca de um status social menos estigmatizado. Assim se multiplicam as subculturas, subtendências dos subpoderes potenciais (Black Power, Red Power, Ethnic Power) ou metafóricos (Flower Power, Green Power)9 .

O Enterro
Em 14 de janeiro de 1967, em uma grande reunião no Golden Gate Park, os hippies proclamam que o verão de 1967 seria o lugar sob o signo da paz, do amor e do LSD. Para esse célebre Summer of love (Verão do amor), mais de 500.000 jovens chegaram a São Francisco. Após o uso das drogas, que de certa forma, degeneraram os hippies, o bairro transformou-se em um lugar violento, desertando-o assim do resto da cidade. As drogas alucinógenas foram substituídas pouco a pouco pelos barbitúricos, depois os opiáceos, e logo a decadência e as doenças invadiram a superpopulação do bairro.

No outono os membros da comunidade de Haight sentindo-se, sem dúvidas, ultrapassados pelo movimento da população que eles provocaram, reuniram-se no Buena Vista Park para celebrar o fim da era hippie com uma cerimônia fúnebre. Em outubro de 1967, os hippies organizam o enterro simbólico de seu próprio movimento, enterrando um caixão no Buena Vista Park. Mas, desde o início dos anos 70, a sensibilidade idealista e ecológica iniciada pelos hábitos hippies parece surgir e surfar pelas ondas, revivendo como um eco distante nas gerações seguintes de jovens desesperados.

Derivações e desdobramentos, a disseminação dos esquemas
O choque com a realidade ficou difícil, após a saída do berço californiano, para um movimento hippie que se refugia nas montanhas e nos campos10. O poder de contágio do sonho psicodélico nascido em São Francisco era grande porque esse contágio ganhou o resto dos Estados Unidos e, depois, a Europa Ocidental.

Mas ao deixar o berço californiano, o sonho perdeu sua força e sua coerência e, com o tempo, ele acabou por se dispersar. As circunstâncias econômicas também colaboraram – as crises da sociedade da abundância acabaram com aquilo que haviam gerado. Sem dúvidas os valores centrais ou motrizes, os “esquemas”, que o constituem, perduram e estão instalados sustentavelmente na paisagem social ocidental, porém dispersos em pequenos pedaços e esvaziados de sua transcendência, de seu sentido inicial, canalizados e racionalizados pela pós-modernidade.

A disseminação geográfica
O imaginário psicodélico e as práticas culturais e sociais que as suscitaram são amplamente ecoadas pelos Estados Unidos da América. Mas, ao encontrar em sua expansão contextos bem diferentes, adquiriu rapidamente direções bem contrastantes. Indo às fontes de percepção, sua penetração entre os jovens das sociedades ocidentais está longe de ter se tornado igual em todos os lugares e constata-se que as suas declinações são inúmeras.

É da Inglaterra que vem esta revolução musical que atua sobre o plano artístico, mas também sobre o plano social. Daí, a emersão dos Beatles, depois dos Rolling Stones sobre o cenário musical britânico, o estilo de vida e de cultura.

Nos dois maiores países do continente, a França e a República Federal Alemã (então Alemanha Ocidental) a penetração do imaginário psicodélico é ao mesmo tempo colorido politicamente e também complexo. As culturas da França como da Alemanha não são estrangeiras às utopias familiares da contestação política violenta, e que se manifestam na liberação dos costumes com algum atraso em relação a seus vizinhos ingleses, holandeses e escandinavos.

É pelo viés de uma reivindicação política e social mais clássica que o movimento de contestação se imporá pelos eventos de maio de 68 na França e as manifestações dos estudantes berlinenses na Alemanha, constituindo incontestavelmente o ponto de entrada europeu nos movimentos de reivindicação dos anos 60. É, por conseguinte, sob uma forma já muito politizada que ele continuará a se desdobrar. A busca revolucionária substitui a busca mística, as manifestações políticas tradicionais substituem os love-ins, smoke-ins e be-ins, a fraternidade militante, a sonoridade do Peace and Love (Paz e Amor).

A disseminação ideológica e política
O movimento beatnik (hippie) disseminou-se principalmente em duas galáxias opostas; de uma parte os hippies e suas celebrações amorosas, e da outra parte uma nova esquerda americana que milita contra a guerra do Vietnã e a favor do Movimento pelos Direitos Cívicos para uma integração das minorias negras. Um forte exemplo é o Free Speach movement, nascido na Universidade de Berkeley, que milita contra o ensino exageradamente rígido, mas também contra o racismo, o pragmatismo, e a guerra do Vietnã. Como os hippies, esses militantes são contra os princípios fundadores da sociedade da abundância, sobretudo quando eles conduzem a um esbanjamento de barbáries e de alienação.

A herança das espiritualidades contemporâneas
Do sincretismo hippie ao New Age, as religiões e espiritualidades antigas e novas explodem a partir dos anos 70. A ideia de transcendência, com sua abordagem pelos rituais tradicionais e sua experimentação sensível, não abandonaram o novo milênio, pelo contrário. Mas a ideia de sagrado parece se refugiar longe do domínio das toxicomanias e de seus cortejos de problemas corporais, sanitários, econômicos e jurídicos para se desenvolver em direção a um longo e lento movimento de redescoberta das espiritualidades sob todas as suas formas.

Na aurora do ano 2000, as autoridades observam o desenvolvimento das seitas e os pesquisadores, a explosão de uma “nebulosidade esotérica e mística”, assim como a retomada de antigas religiões, budismo, islamismo e catolicismo no ocidente, ou das práticas tais quais a astrologia, a adivinhação, a quiromancia…

Das portas da percepção à toxicomania
Com os anos 60, os países europeus enfrentaram uma nova forma de toxicomania, a toxicomania de massa ou do povo. Mas ao passo que os usuários das sextees estão centrados sobre os produtos da família dos phantastica, e fundados pela filosofia hippie, até os anos 70, esse consumo de massa ocidental se infiltra nos produtos da família dos hipnóticos, heroína principalmente, mas também álcool e barbitúricos. Palavra chave dessa nova nebulosidade underground: os hipnóticos são mais estupefacientes, mais viciantes, como a heroína. Tudo parece se opor a essas duas formas de uso da droga: as famílias dos produtos utilizados, os imaginários revelando as práticas e filosofias de vida opostas, inversas.

As lógicas das décadas seguintes são uma lógica de compilação dos produtos. A manutenção dos hipnóticos, retorno com força das phantastica, adaptação oportunista dos Extancia, em progressão. Os Golden Eightees, ou os brilhantes anos 80, são reflexos da economia que floresce, associando socialismo e economia de mercado, e as drogas de adaptação.

Efeitos sobre a música, as socialidades contemporâneas
O movimento techno, que começa nos anos 80 e explode nos anos 90, lembra e parece comemorar, sem cessar, as grandes aglomerações festivas e funcionais como o concerto de Woodstock ou aquele da ilha de Wight pelas grandes festas, les technivals. Essas festas gigantescas, as raves, agrupam milhares de pessoas em lugares insólitos das grandes metrópoles (depósitos abandonados, canteiros, prédios inabitáveis), depois vão imigrar para os lugares mais bucólicos onde elas serão mais livres, as free parties. As festas techno também irão se institucionalizar e penetrar em lugares mais reconhecidos como as boates e os estádios e se transformam em technivals, que duram muitos dias. Os frequentadores de raves são também consumidores da pequena pílula de ecstasy, que se toma a dois, ou em grupo, para se entregar a esse tipo de festa. Como o LSD alucinógeno dos hippies, é uma droga hedonista que multiplica as sensações, e como as anfetaminas, permite a liberação das forças físicas, para ficar toda a noite sem dormir, dançando. Como o LSD, o ecstasy poderia ser uma droga do amor, pois, ela é um multiplicador dos efeitos sexuais e eróticos. No entanto, os participantes de raves não a utilizam nesse sentido. A droga parece mais favorecer uma espécie de fusão com o coletivo, pares ou o público dessas festas. Dançar todos juntos como um só corpo coletivo, esse envolvimento é o nirvana do frequentador da rave.

O movimento reggae, e o rastafári, como os hippies, consomem cannabis e usam os cabelos longos (de preferência não penteados), as famosas tranças ou dread locks, lembrando assim suas raízes africanas, Mãe África, ou aquelas dos sadhous indianos, Mãe Índia, e poderiam ser considerados como seus herdeiros diretos. Tanto o movimento reggae como o movimento hippie desenvolvem uma abordagem holística de sua reivindicação cultural. Ao mesmo tempo movimento musical e movimento religioso, o rastafarianismo, tem um forte conteúdo mitológico, é também um movimento político de contestação e de reivindicação de uma cultura própria. Eles adotam um modo de vida fundamentada sobre a paz e a tolerância, a dignidade pessoal e a redescoberta das harmonias naturais e cósmicas esquecidas pelo mundo moderno. There is a natural mystic flowing to the air/ Há qualquer coisa de naturalmente místico no ar, canta Bob Marley que divulga o movimento e suas dimensões místicas, através do reggae jamaicano, suas cores, vermelho /ouro / verde, seus valores, o sonho bíblico de Zion, (Iron, Lion, Zion), e o Deus Jah de um povo negro vindo da Etiópia, os ancestrais longínquos dos rastas.

O movimento hip hop, lembra também a utopia hippie, porém de maneira mais remota ainda, já que a música rap e o mundo dos rappers poderiam desenvolver uma crítica radical de modernidade e uma vontade de viver aqui e agora, senão na harmonia, mas ao menos na dignidade e na honra de uma cultura reinventada. Ponto comum, contudo, o cannabis, é um meio de se desprender e de romper com a vida mediana proposta pelas sociedades ocidentais e, no caso francês, com o deserto da vida, dos conjuntos residenciais, para fundar uma cultura própria. Um mesmo velho sonho coletivo de um paraíso perdido, a Zoulou nation11 , os sound systems, os crews, os possies, designam os bandos, clãs ou famílias aumentadas, que vão, logo, se transformar no ponto focal do estilo de vida de rua no sul do Bronx12 , e também nas periferias de todas as grandes capitais ocidentais, dos jovens encapuzados e dos tênis Nike.

Efeitos sobre a socialidade, “o espírito em grupo”
Viver em comunidade é então um ato político para os hippies, é sempre um ato de revolta ou de reivindicação de uma vida alternativa, é um ajuntamento de indivíduos decididos a viver em comum uma vida diferente daquela que lhes foi proposta pela sociedade da qual eles saíram13 . Essas são as motivações de todos os jovens que vão deixar suas famílias, escolas, empregos, para fundar uma comunidade. Os grupos se reencontram, simpatizam-se, fundem-se e decidem viver juntos, criando seus novos princípios e costumes de vida.

Adotando e reivindicando um modo de vida comunitário, esses coletivos vão reencontrar antigas fontes desses modos de organização, e mesmo desenvolver alianças com a imprensa, o mundo intelectual e político, para defender e argumentar suas posições. Desses exemplos, alguns testemunhos reais e romanescos de aventuras em comunidades, de suas regras de vida inventada e de sua trágica história coletiva, estão hoje descritas em nossa literatura14 .

É então possível constatar a existência e a diversidade de ritos: festas, assembleias gerais, reuniões em torno da mesa comum,…15 , rituais recompostos pela necessidade da vida em comum, e bordados sobre os modelos de organização de coletivos já existentes.

As consequências sobre as representações da sociedade permitem abrir e assistir a retomada dos coletivos em todos os domínios: renascimento da vida associativa, da solidariedade grupal, talvez tribal; na pedagogia, as escolas paralelas, “as crianças livres do Summer Hill”, escolas Montessori, escolas occitânicas; na psiquiatria, as comunidades terapêuticas da antipsiquiatria (Deleuse, Cooper e Laing); na arte, os ateliês de criação coletiva, as experiências da arte-terapia de Jean-Pierre Klein; na economia, as cooperativas de consumidores, as compras em grupo; no casal, o desejo para uma vida mais comunitária (famílias plurais repensadas em torno das crianças).

Efeitos sobre a sexualidade: herança complexa da revolução sexual
O mesmo acontece para todos levantes sociais, éticos e estéticos esboçados pelo movimento psicodélico. A liberdade sexual aparece como uma das aquisições majoritárias desse período, e a libertação se estende a outras formas de sexualidade mais específicas. São Francisco se transforma nos anos 70 na cidade dos gays. Mas nas últimas décadas não reteve o lado profano do “amor universal” coroados pelos hippies. A idéia que a energia sexual bem canalizada, como o quer o modelo tântrico, permite se direcionar à “unidade cósmica”, ou somente uma maior circulação do desejo conduzido a uma nova sociedade esquecida. O desejo sexual não visa mais apenas à satisfação, ajusta-se mais ou menos ao sucesso das estruturas sociais que impediram a sua expressão.

Esse retrocesso e essa racionalização do imaginário permitem compreender esse “retorno do reprimido” contemporâneo, a coexistência dos arcaísmos culturais e moralismos sociais, com as expressões mais liberadas da sexualidade, e todas as suas recuperações plurais na esfera do mercado, que são particularmente manifestos na complexidade contemporânea. Paradoxalmente após essa liberação dos corpos e dos costumes, os efeitos parecem invertidos e provocam um retorno de diferentes regras morais e do declínio, ou um confinamento sobre si mesmo, dos indivíduos e dos modelos. Para os homens, poderíamos qualificar de “cúspide” do masculino, esse movimento de recuo do modelo “machista” e paternalista do patriarcado. De fato, nos últimos trinta anos voltamos periodicamente à afirmação de que “não há mais homens”. A identidade masculina apresenta, além disso, uma diferença em relação à ideia da virilidade, ou em relação a um comportamento médio dos homens, durante a época imediatamente anterior.

Para as mulheres, que possuem agora importante capital cultural e social, apresentam-se todas as razões de estarem amedrontadas por essa terrível concorrência que se instaura, sobre o mercado matrimonial e amoroso, entre elas mesmas e para seus equivalentes masculinos. Mais que o entusiasmo, é a desconfiança que se instala do lado feminino como do masculino. Essa inadequação das representações femininas e masculinas, e do casal no estado real da sociedade, gera inúmeras desconfianças particulares, um paradoxo generalizado, já que essa desconfiança resulta também no plano geral de uma inadequação devido à demografia social, assim como a repartição desigual do capital social e cultural. Contrariamente às gerações dos anos 60-80 e pós-60-80, aWoodstock Generation, que conquistaram a abertura dos direitos jurídicos, as novas gerações encaram barreiras invisíveis do tipo cultural.

Efeitos sobre a nova sensibilidade ecológica
As preocupações ecológicas dos hippies invadem hoje o universo de nossos pensamentos e programas políticos. A ecologia se transformou em um dos importantes termos irreversíveis da dialética de dominação da natureza: nossa vontade de dominar a natureza se inverteu em preocupação pela sua proteção.

Com a mesma ideia de uma “Idade de ouro” na qual os homens e os deuses comunicavam-se livremente, e na qual os alimentos estavam imediatamente disponíveis, falava-se de uma idade vegetariana. A idade de ouro vegetariana que se lê no simbólico do mel, na nostalgia desse tempo sagrado que se ocupa dos mitos relativos à deusa Deméter e nos rituais de cozinha, “Em todos os mitos da Idade de ouro perdida, o vegetarianismo comporta uma conotação de pureza e bondade”16 . Isso é particularmente evidente na Índia ou no Extremo Oriente, no bramanismo ou no budismo onde a carne é considerada como um impedimento à ascensão espiritual; mesmo no mundo ocidental, nos dogmas da igreja cristã com a quaresma, período de purificação, retorno a inocência onde a interdição de alimento “carne” corresponde também à interdição às relações sexuais; da mesma maneira em inúmeras especulações filosóficas, celebra-se o estado de natureza, uma alimentação amplamente vegetariana, como nas obras de Rousseau, por exemplo.

Efeitos econômicos
Da viagem de iniciação às viagens banalizadas, a moda contemporânea dos deslocamentos nasce a partir das viagens iniciadas pelo movimento hippie. Viagem de carona, ou viagens em grandes companhias a custos reduzidos. Os enumerados destinos são reinventados pela viagem hippie: de Katmandou e Marraquexe, aos ciganos rurais, as grandes estradas, as ecos-comunidades na vida nas árvores, ou simplesmente passar suas férias no campo. Sem fronteiras para os hippies, como o nome da companhia que fará fortuna17 … Sem diferenças de raças contra o predomínio ocidental, essa é a bandeira do hippie nas viagens em que ele gosta de viver como os nativos.

Do libertarismo ao liberalismo. O trabalho intermitente dos hippies parece ter se transformado no modelo de trabalho atual (flexibilidade, tempo parcial). As co-locações, novas maneiras de morar comunitário, lembram também um eco longínquo do modo de vida dos hippies. O pensamente em rede, o desejo de comunicar e a invenção da informática. Timothy Leary explica que essa revolução da informática não teria tido lugar se a experiência com o LSD não tivesse ajudado a descobrir seus principais atores, a interconexão de todos os elementos do cosmos, assim como uma autêntica comunicação com o outro18 . Os itinerários do Bill Gates ou de Steve Jobs, de certa maneira membros da revolução psicodélica, poderiam ter algum crédito nessa ideia19 .

* Martine Xiberras é doutora em Antropologia Social e Cultural e encontra-se atualmente ligada à Universidade Paul-Valéry-Montpellier-III. Preocupada com os flagelos sociais contemporâneos, é um dos autores atuais mais importantes neste domínio.

** Ricardo Ferreira Freitas é professor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É doutor em Sociologia pela Sorbonne, mestre em Comunicação pela UFRJ e graduado em Relações públicas pela Uerj.

NOTAS

1 Com colaboração da revisora técnica Tais Alexandre Baptista.

2Fourierismo : seguidores do pensador Fourier.

3 Prometeica : oriundo de Prometeu.

4 Assistir ao filme “Théorême , Teorema” de Pasolini “salto epistemológico” da família italiana.

5 Turn in: ligar,conectar ; Tune in: expandir sua consciência; Drop up: deixar pra lá.

6 G. Lapassade, La Transe; G. Rouget, La Musique et la transe, Paris, Gallimard, 1990.

7 O filme La grande Verte.

8 G. Lapassade, La Transe; G. Rouget, La Musique et la transe, Paris, Gallimard, 1990. p.151

9 Em Roger-Gérard Schwartzenberg, Sociologia Política.

10 Atualmente vivem em pequenos grupos e, localidades rurais como Mendocino Countt ou Santa Cruz Mountains, nos Estados Unidos.

11 A história de Afrika Bambaataa foi recontada por G. Lapassade.

12 T. Polhemus, Street Style, p. 106

13 Bernard Lacroix, L’utopie communautaire, A utopia comunitária

14 Bouxyou et Delannoy, p. 169

15 TC Boyle,

16 Sr. Toussaint-Samat, Natural and Moral History of Foods, Paris, Bordas, 1985, p.84.

17 Nouvelles Frontières (Novas fronteiras) é uma das mais importantes empresas francesas na área de turismo.

18 Cf. P. Mignon, art. cit., p. 61 sq

19 Ver, por exemplo, J. Wukovitz, Bill Gates: Software King, F. Watts, 2000.

 

Da fronteira ao originário: estranheza e familiaridade no romance – Relato de um certo Oriente | de Daniela Birman

“E foi atirado para sempre àquele lugar intermediário […].”
Salman Rushdie

Introdução
Um estranho e pequeno peixe, de olhar cindido, é objeto de um breve diálogo desdobrado no conto “A casa ilhada”, de Milton Hatoum.1 Neste, o narrador nos relata a cena em que admirava tal peixe, no aquário do Bosque da Ciência, em Manaus, quando um estrangeiro se dirigiu a ele: “Então eu soube que o tralhoto, com seus olhos divididos, vê ao mesmo tempo o nosso mundo e o outro: o aquático, o submerso”2, nos conta ele. Encontrados na região amazônica, tais peixes são comparados pelo escritor manauara aos seus narradores romanescos.3 Com efeito, em seus três romances o autor criou personagens que podem ser caracterizados como fronteiriços, situados num posicionamento limítrofe: entre a família e fora desta, a cidade e seu exterior, entre dois tios, ou entrepai e filho em extremo conflito.4 E esta localização, segundo buscaremos expor ao examinarmos o olhar que norteia a narrativa de Relato de um certo Oriente,5potencializa a capacidade de enxergar o próprio universo com olhar estrangeiro. A visão do narrador-fronteiriço, nesse contexto, pode ser aproximada daquela do tralhoto. Citamos a comparação feita por Hatoum:

É como se fosse aquele peixe da Amazônia, o tralhoto […]. Ele vive na superfície, tem um olhão e metade do olho fica para fora, metade para dentro. Vê o céu e vê a água, as profundezas. É esse olhar duplo, do interior e do exterior, que é importante para esse tipo de narrador.6

Neste artigo, enfocaremos a posição limiar ocupada pela narradora do Relato em diversos espaços e grupos sociais: na família que a criou, a qual integra na condição de filha adotiva; em sua cidade, da qual partiu há mais de quinze anos; e em seu país natal. Buscaremos expor de que modo o posicionamento desta narradora, personagem responsável pela reunião e ordenação de todas as vozes do romance, a levará a se defrontar com a ausência de uma utópica origem7 e a se deparar com a camada do originário.8 Nesta, ela desnaturalizará o lugar que ocupa em sua família, verá sua cidade como marcada pela heterogeneidade e aprenderá ser perpassada por construções múltiplas e pela contingência. Procuraremos mostrar ainda como essa posição característica, que implica um esforço produtivo no sentido de demarcar seu espaço na sociedade, na casa ou na cidade em que se mora, é capaz de levar à indagação sobre os limites e as possibilidades de se contar uma história. Afinal, quem sabe que seu lugar no mundo é construído, e não dado, pode sentir como sua voz também o é; perceber que sua distância em relação ao objeto narrado é variável e, consequentemente, sua visão e as formas como ele o afeta.

Posição limítrofe
A narradora anônima do romance de estreia de Milton Hatoum é uma figura ao mesmo tempo familiar e estrangeira em sua cidade natal, Manaus, a qual visita após quase vinte anos de ausência e de onde escreve seu relato a partir deste olhar capaz de estranhamento e intimidade. O livro que lemos constitui, pois, uma longa carta redigida ao seu irmão, na qual ela conta sua passagem pelo espaço da infância deles e transmite a triste notícia da morte de Emilie, matriarca da família libanesa na qual os dois cresceram. Mas não é somente em Manaus que ela ocupa esta posição fronteiriça. Na casa de sua infância, seu lugar também é limiar. Ela faz e não faz parte da família de Emilie, ou pelo menos possui um estatuto diferente de seus outros membros, pois, ao lado de seu irmão, foi adotada pela matriarca. O lugar da principal instância organizadora do Relato é ocupado, portanto, por uma figura que receberá contornos mais precisos e fortes no segundo romance de Hatoum, Dois Irmãos: a do agregado da família, personagem emblemático da nossa sociedade e presente em obras seminais da literatura nacional.9

Além de estar associado ao afastamento da cidade natal e à condição de filha adotiva, o olhar fronteiriço de nossa narradora também pode ser relacionado ao estatuto limiar da nacionalidade desta: nem inteiramente brasileira nem estrangeira. Com efeito, ao apontar o caráter limítrofe da narradora do Relato e do personagem André, de Lavoura arcaica, Sarah Wells ressalta o fato de ambos pertencerem à segunda geração de imigrantes, nascida no país de destino de suas respectivas famílias. Ou, como ela escreve, os dois são “parcialmente definidos por seu estado intermediário: nem nascidos aqui nem inteiramente lá”.10

Segundo a autora, para tais personagens, a história de migração de seus familiares, e as rupturas que estas implicam, ao mesmo tempo em que não podem ser esquecidas, não são priorizadas em suas experiências. Desta forma, “a nova pátria não é de todo nova para membros da segunda geração. Tampouco podem eles recriá-la como bem entenderem. O solo pode não ser construído com gerações de antepassados, mas também lhes é vedado buscar em outro espaço sua realização”.11 Nesse sentido, o fato de ter nascido no lugar em que se cresceu, e no qual é possível permanecer, não garante uma relação estável com a noção de identidade, pois a construção desta não pode excluir o vínculo com o país de origem e a cultura de seus pais nem aceitar integralmente este país e cultura como suas únicas “pátrias”. Pelo contrário. O pertencimento à segunda geração de imigrantes é entendido aqui como fator agravante do caráter fronteiriço de nossa narradora.

Mas vejamos como a própria personagem enuncia e problematiza sua condição. Embora seja agregada da família, ela acredita ser tratada exatamente como os outros membros, enunciado que, ao negar sua diferença, já o torna suspeito. Ao falar de seu “avô”, o marido de Emilie, por exemplo, a narradora comenta:

Foi ele quem me ajudou a sair da cidade para ir estudar fora, e além disso nunca se contrariou com a nossa presença na casa, desde o dia em que Emilie nos aconchegou ao colo, até o momento da separação. Desfrutamos os mesmos prazeres e as mesmas regalias dos filhos, e com ele padecemos as tempestades de cólera e mau humor de um pai desesperado e de uma mãe aflita. Nada e ninguém nos excluía da família, mas no momento conveniente ele fez questão de esclarecer quem éramos e de onde vínhamos.12

Ao citarmos este trecho do livro, chamamos a atenção para o fato de ela declarar seu estatuto igualitário em relação aos outros integrantes da família, declaração que só se faz necessária num contexto em que a igualdade de tratamento coexiste com certa distinção. Nesse caso, a igualdade não pode ser naturalizada e calada, mas deve ser enunciada como resultado de uma conquista ou da generosidade e bondade alheia (evidentes na frase “nunca se contrariou com a nossa presença na casa”). Nesse contexto, podemos supor que, ao se deparar com o fato de que sua condição no interior da família não é dada, a personagem se defronta com o caráter contingente de sua entrada na casa em que cresceu – dependente de diferentes fatores, como a receptividade positiva da família adotiva, a impossibilidade de sua mãe de criá-la ou a vontade desta em entregar-lhe para adoção –, de seu próprio lugar na casa e, quem sabe, na sociedade.

Por meio da diferença em relação ao outros membros da família, que desnaturalizasua condição no interior desta, faz-se presente no romance uma importante temática vivida por nossa narradora: a questão da ausência, em seu modo positivo, de uma procedência que ela poderia utopicamente tomar (e desejar) como umaorigem. Ao citarmos o termo origem aqui, o entendemos como um utópico solo fundador, lugar primeiro, inicial, que deteria a verdade e a essência dos que dali se originaram. Apoiamo-nos, assim, no sentido do termo exposto por Foucault em “Nietzsche, a genealogia e a história”.13

Nesse contexto, o caráter contingente do lugar de nossa narradora no mundo pode lhe apontar como seu modo de viver, pensar e sentir não são inatos nem necessários e que, para além de seu universo, há sempre um fora. Ao enunciarmos aqui este termo, de inspiração claramente blanchotiana, restringimos seu sentido àquilo que é exterior a um determinado ambiente, que, como qualquer espaço-tempo, limita de um determinado modo as vivências, as reflexões e os discursos possíveis de serem produzidos em seu interior.

Supomos ainda que nossa narradora, ao se deparar com a ausência de origem, defronta-se com a camada do originário, aquela que, de acordo com a descrição de Foucault, indica que não possuímos um solo fundador nem somos contemporâneos do que nos faz ser, visto sermos determinados por construções mais antigas do que nós, com temporalidades próprias – as quais podemos, ilusoriamente, supor como fixas e naturais, acreditando no mito da origem. Essa camada do originário é assim apresentada em As palavras e as coisas:

[…] o originário no homem é aquilo que, desde o início, o articula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que introduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigas do que ele e que ele não domina; é aquilo que, ligando-o a cronologias múltiplas, entrecruzadas, freqüentemente irredutíveis umas às outras, o dispersa através do tempo e o expõe em meio à duração das coisas. […] O que se anuncia no imediato do originário é, pois, que o homem está separado da origem que o tornaria contemporâneo de sua própria existência.14

Neste caso, nossa narradora perceberia que, embora constituída e atravessada pelas histórias, pelos hábitos e pelos afetos de sua família adotiva, esta não constitui um fundamento de seu modo de ser, visto que sua entrada nela é marcada antes pelo acaso do que pela necessidade. Dessa maneira, ela não pode nem se desvincular inteiramente da influência da esfera familiar nem acreditar como natural e obrigatória sua inserção numa história linear e contínua deste grupo de pertencimento. E se ela consegue se ver como fruto de construções diversas, também poderá assim enxergar seus próximos. Além disso, ao se defrontar com o desmoronamento da ideia de origem, nossa personagem terá acesso ao pensamento e ao desejo de liberdade, que inclui a possibilidade de se abrir para outros modos de ser e viver, de escolher outras máscaras.

A temática da ausência de origem e da entrada na camada do originário também transparece no fato de que ela não possui uma cidade natal onde se sinta inteiramente em casa – e para a qual, portanto, possa voltar como quem retorna aomesmo, o que lhe restituiria ou lhe confirmaria sua identidade, essência e verdade. Certamente, nem ela nem ninguém tem acesso a tal cidade, mas esse fato pode se tornar mais evidente para aqueles que se afastaram de onde nasceram e, ao retornar, percebem como o lugar de regresso se distanciou dele mesmo (e como o que foi ontem já não é mais).

Com efeito, nossa narradora reconhece, logo no primeiro capítulo do livro, antes de começar a lembrar e contar sobre seu tempo de menina, que a cidade visitada não existe como objeto real, mas é produto da imaginação (e, podemos supor, do afeto e do desejo). Trata-se, nesse caso, da Manaus evocada pela rememoração de sua infância, cuja fundação não coincide, portanto, com o tempo usual da história, mas refere-se àquele da memória:

Antes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo […], quem sabe se também pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954…15

Ao iniciar o livro com este ato de recordação, nossa narradora indica que a Manaus que busca não é (ou não apenas) aquela a qual encontra como presença, mas, sobretudo, a de seu passado. Qualquer viagem de retorno se torna, nesse contexto, impossível, visto que a infância não se fará de novo presente e a cidade não voltará a ser o que era. Contudo, através dos seus passeios pelas ruas, do encontro com diferentes personagens, cores e cheiros da Manaus atual, a paisagem e os fatos da infância podem ser evocados e construídos. Nesse contexto, o que nossa narradora poderá fazer, tal como ela anuncia, é declarar a dimensão imaginária da passagem por esse espaço que, para ser visitado, deverá ser rememorado.

Hatoum tem plena consciência da existência desta barreira intransponível entre o presente e o passado, não acreditando, pois, em nenhum projeto de restituição deste. O autor conta em entrevista que, ao voltar para Manaus, em 1984, após quase vinte anos fora da cidade16, ele “sentia falta de algumas paisagens e vozes da infância, estas coisas que constituem a nossa pátria simbólica”.17 No entanto, apesar da saudade (e das possíveis idealizações e devaneios a que esta pode levar), ele não parecia ter ilusões quanto a qualquer plano de retorno à terra de sua meninice: “Sabia que iria encontrar uma cidade devastada, e que toda busca de um paraíso é infrutífera, pois só há paraísos perdidos”.18 Em outra entrevista, porém, a história contada não é exatamente a mesma. Hatoum afirma, pois, ter retornado a Manaus “em busca de minhas primeiras paisagens, que não encontrei mais”.19Porém, independentemente das expectativas alimentadas na época, anterior à conclusão e publicação do Relato, o escritor hoje sabe que não há retorno à cidade encantada da infância. Mais do que isso. De volta a Manaus, não escapa de certo sentimento de dépaysement. É assim, por exemplo, que se refere à enxaqueca que o abate desde a infância “como uma metáfora de um mal-estar mais profundo: sentir-se exilado e estranho na própria terra natal”, segundo escreveu Carlos Graieb em reportagem sobre o autor.20

O estranhamento em relação à própria cidade também se faz presente no sexto capítulo do Relato, no qual a narradora nos conta a visita realizada a um bairro cujo acesso lhe fora proibido quando criança, vivenciando a ameaça, o medo – e, acreditamos, o abalo de se deparar com a diferença num mundo que julgava ser o “seu” e no qual ilusoriamente se supõe somente o encontro com a identidade. Como Maria Zilda Ferreira Cury comenta, referindo-se a esta passagem do romance, “o espaço de origem torna-se estranhamente desconhecido. A narradora transforma-se em estrangeira, suscitando um olhar de estranheza dos outros nativos, pondo […] em ‘suspeição’ a inteireza identitária”.21 Reproduzimos, pois, o trecho em questão:

Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro desconhecido. Um cheiro acre e muito forte surgiu com as cores espalhafatosas das fachadas de madeira, com a voz cantada dos curumins, com os rostos recortados no vão das janelas, como se estivessem no limite do interior com o exterior, e que esse limite (a moldura empenada e sem cor), nada significasse aos rostos que fitavam o vago, alheios ao curso das horas e ao transeunte que procurava observar tudo, com cautela e rigor. Havia momentos, no entanto, em que me olhavam com insistência: sentia um pouco de temor e de estranheza, e embora um abismo me separasse daquele mundo, a estranheza era mútua, assim como a ameaça e o medo. E eu não queria ser uma estranha, tendo nascido e vivido aqui.22

Embora o enunciado não nasça de uma visita a um lugar familiar, o desconforto de nossa narradora em sua cidade natal aparece de modo bastante evidente no seu desejo em não ser uma estranha ali. Pois, podemos supor, caso ela se sentisse em Manaus como em casa, de acordo com o sentido dado pelo senso comum a essa palavra, o estranhamento da visita a um lugar desconhecido poderia ser experimentado por meio da transformação apenas do outro no estrangeiro, naquele que difere dela – e na exclusão daquele espaço do território da “sua cidade” (que poderia, desse modo, ser declarada “partida”). Esta seria, pois, a atitude decorrente de um olhar em busca do exótico que, independentemente da atração ou do medo despertados pelo Outro, o mantém à distância (mesmo quando se aproxima dele e acredita entabular um diálogo). O equívoco, nesse caso, parece residir na ideia e no sentimento de que em casa só nos deparamos com o conhecido ou homogêneo. E que, caso o diferente surja, este só pode ser estrangeiro e, consequentemente, pertencer a outro espaço, denominado por expressões como as de “cidade proibida”23 ou “outro lado da cidade partida”.

O olhar de nossa narradora não realiza, contudo, esta operação de classificação e exclusão. Com efeito, em vez de enfatizar a estranheza daquele que é diferente dela, e em relação ao qual ela sente ameaça e medo, ela ressalta sua vontade em não ser uma estrangeira ali, potencializada pelo fato de estar na sua cidade natal – ou seja, a imagem do lugar aonde nasceu e cresceu abrange espaços que não a incluem, onde ela não é reconhecida pelos outros, não os reconhece e nem experimenta nenhuma espécie de acolhimento.

No lugar da origem como fundamento temos, portanto, a camada do originário, indicando-nos que a cidade natal (em seus territórios familiares e estrangeiros) é atravessada e marcada por ordens e construções múltiplas, as quais não dominamos nem muitas vezes temos acesso. Apenas com a substituição da origem pelo originário, substituição que desvincula nosso lugar de procedência das noções de identidade e essência, nossa ideia da cidade de onde viemos poderá incluir espaços e indivíduos que não reconhecemos e com os quais não nos identificamos. Será, portanto, a partir da defrontação com esta camada que nossa narradora poderá perceber Manaus como atravessada pela heterogeneidade e pela diferença – noções incompatíveis com aquelas comumente aceitas de solo, raiz, lar ou origem e capazes, quando lidas pela ótica dessas últimas ideias, de gerar ameaça e medo.

A casa materna
Mas não é apenas a cidade natal, a infância ou a família que podemos confundir ingênua ou apressadamente com a noção de origem. A ausência desta, e a experiência do caráter inalcançável de sua busca, também serão indicadas no romance por meio da distância entre nossa narradora e sua mãe biológica, a quem ela viu apenas uma vez quando criança. Surge aqui, porém, uma importante diferença. Como pretendemos mostrar, nossa narradora nunca confundiu a figura materna com uma ideia positiva de origem e de fundamento. Ela parece antes ter buscado, obstinadamente, enxergar a ausência da figura da mãe, ver a origem como ausência, em sua dimensão negativa, experiência radical que consideramos importante indicar.

Com efeito, embora se dirija à casa materna quando chega a Manaus, nossa narradora não planejava encontrar a mãe por lá. Como ela mesma nos conta: “Já passava das onze horas quando cheguei na casa que desconhecia. Ninguém foi avisado de que eu chegaria aquela noite, mas eu sabia que, na ausência da mãe, a empregada ficaria sozinha na casa construída próxima ao sobrado onde Emilie morava.”24 E no final do romance, a personagem nos revela ter conhecimento da localização materna naquele momento: “Ela (sua amiga Miriam) soube que minha mãe ia viajar pela Europa e passaria por Barcelona para te visitar. Minha história com ela é a história de um desencontro.”25

Neste caso, contudo, o “desencontro” parece ter sido planejado. Por que, ao retornar a Manaus, ela volta à casa materna, e não à de Emilie, sabendo que sua mãe, porém, não estará lá, mas sim com o irmão em Barcelona? Que ausência perturbadora é essa que ela parte à procura? Citando suas próprias palavras, podemos dizer que ela buscava o encontro com o impossível, que nunca se materializará: “Emilie nunca me escondeu nada, como se me dissesse: tua mãe é uma presença impossível, é o desconhecido incrustado no outro lado do espelho.”26

E ela enfatiza o vazio existente na casa materna assim que entra nos aposentos localizados em seu andar térreo, no dia seguinte àquele de sua chegada. Dessa forma, ao nos expor os objetos “orientais” reunidos no ambiente, e o reflexo destes num espelho que produzia “uma perspectiva caótica de volumes espanados e lustrados todos os dias”27, ela acrescenta: “como se aquele ambiente desconhecesse a permanência ou até mesmo a passagem de alguém.”28

Como sabe de antemão que a casa estará repleta da ausência da mãe, podemos concluir que esse impossível que ela procura não consiste em algo positivo: algo que existe, ou existiu, mas ela não poderá encontrar (sua mãe, por exemplo, ou outro lugar de “procedência”, como sua cidade natal), referindo-se antes à experiência de não se alcançar, de se buscar uma ausência que nunca surgirá na sua concretude, tal como a morte. A sua busca, assim, é atravessada por uma impossibilidade fundamental e sua viagem de retorno é interminável.

Nesse contexto, o seu afastamento possui um caráter radical, já que não existe um lugar que faça com que nossa narradora sinta-se plenamente em casa; que dê a sua vida um local próprio na ordem do universo, com um sentido correspondente e, portanto, uma identidade sólida, uma subjetividade estável. E esse sujeito “desenraizado” (termo que discutiremos logo abaixo), que estranha o mundo aonde mora e aquele de onde veio, poderá notar com facilidade como as narrativas, as crenças, os hábitos e as identidades são construções. Mas ao mesmo tempo em que percebe isso, sentirá que sua voz, e aquela que reproduz dos outros, também o são.

Exílios
Gostaríamos de enfatizar algumas conclusões, refazendo em parte o caminho percorrido e introduzindo novas noções. A primeira apoia-se na ideia de que o “desenraizamento” não significa aqui somente uma distância em relação à terra natal, que desaparece com a simples volta ao país “de origem”. O imigrante, migrante ou, em última instância, qualquer indivíduo, pode também experimentar uma perda radical da pátria e do sentimento de pertencimento a um país, uma cultura, uma língua. Por esta razão, consideramos delicado utilizar, sem o devido cuidado, termos como “desenraizamento” ou “exílio” neste sentido e contexto específicos, pois estes supõem a existência de raiz, pátria, solo. E, se o que se quer ressaltar não é a distância da cidade ou do país natais, mas justamente a impossibilidade de se sentir em casa, em qualquer lugar do mundo, o emprego de noções como estas deveria ser acompanhado da ressalva de que esta “casa” ideal inatingível pode ser vivida, de modo intenso, como perdida, porém não apenas não existe no presente como nunca existiu.

Esta concepção de perda radical da terra natal é aquela priorizada por Hatoum não apenas na construção da personagem-narradora do Relato, mas também na interpretação de sua própria enxaqueca como metáfora da experiência de exílio e estranhamento em terra natal29 e na sua descrição daquele que se muda para outro país. Para o autor, com efeito, “o imigrante é aquele sujeito que diz: ‘Percebi que não tenho nenhum lugar para ir e não tenho também nenhuma razão para ir para algum lugar.’”30

É também de acordo com essas considerações que compreendemos o vínculo traçado por Lukács entre romance e exílio, quando este se refere à forma da nossa grande épica como “expressão do desabrigo transcendental”.31 Entendemos, assim, o vínculo criado pelo teórico húngaro para caracterizar o romance como uma enunciação da perda da ideia de origem e de fundamento – e, consequentemente, das tradições estáveis, dos sentidos e valores dados. No entanto, consideramos que, embora outrora se impusesse como absolutos, a “pátria transcendental” ou, citando outras expressões do léxico de Lukács, o mundo como “totalidade-homogênea”, o “sentido imanente à vida”, sempre resultaram de construções, de modo que sua perda é antes signo do desmoronamento destas do que do fim de uma presença dada. Isto não impede, claro, que esta “perda” seja vivida com a nostalgia de quem foi expulso do paraíso ou com os festejos daquele que saúda, enfim, a liberdade.

Ao diferenciarmos os “exílios” aos quais nos referimos também impedimos uma perigosa generalização da questão. Evitamos, desse modo, banalizar um problema político de importante dimensão no mundo contemporâneo: aquele das massas de refugiados, expatriados e imigrados formadas nos séculos XX e XXI. Evidentemente, as duas formas de desterramento se entrecruzam e se influenciam de diversos modos. Como afirmamos, aquele que deixa sua terra natal, segundo sugere a criação da personagem de nossa narradora, pode se deparar com a ausência de origem e com o estranhamento dos seus supostamente “iguais”. Da mesma maneira, num mundo de fronteiras móveis, ou, segundo o exame de Lukács, num universo que teria perdido a totalidade e a homogeneidade, nos defrontamos com a existência do fora. Dessa forma, a diferenciação aqui defendida não se acredita pura, reconhecendo sua precariedade. No entanto, ao apontarmos o estranhamento radical de nossa narradora e enfatizarmos sua possibilidade de ser vivido por qualquer um de nós, corremos o risco, identificando-o a uma ideia genérica de exílio, de transformar a dor dos indivíduos integrantes das massas acima referidas naquela de qualquer um, o que significa, em termos de força política, na de ninguém. Concordamos, nesse contexto, com Said quando este afirma que

para tratar o exílio como uma punição política contemporânea é preciso mapear territórios de experiência que se situam para além daqueles cartografados pela própria literatura de exílio. Deve-se deixar de lado Joyce e Nabokov e pensar nas incontáveis massas para as quais foram criadas as agencias da ONU. […] Negociações, guerras de libertação nacional, gente arrancada de suas casas e levada às cutucadas […] para enclaves em outras regiões: o que essas experiências significam? Não são elas, quase que por essência, irrecuperáveis?32

Após essas ressalvas, podemos retornar às nossas conclusões e ao exílio radical de nossa personagem. Gostaríamos de ressaltar o movimento da passagem, que acreditamos ter sido realizado por nossa narradora, do posicionamento limiar à defrontação com a ausência de origem e com a camada do originário. Como vimos, ao ocupar uma posição fronteiriça na família em que foi criada e na cidade em que nasceu e cresceu, ela estranhou a si mesma, ampliou as fronteiras da Manaus visitada e “visitável” e desnaturalizou sua condição na casa da infância. A posição fronteiriça, nesse caso, impulsionou o enfrentamento desta camada, a partir do qual podemos questionar as ordens em que vivemos e que nos constituem. E nossa personagem, com efeito, viveu a experiência de que, embora formada por esses antigos hábitos e vivências em comum, nenhum deles contém uma verdade ou essência sobre si mesma, de modo que ela pôde se estranhar, transgredir limites e ver-se como fruto de contingências e acasos aos quais não domina e muitas vezes não tem nem sequer acesso.

No entanto, se ela não possui uma identidade primeira, qual voz deve adotar para nos contar a história? Esse posicionamento fronteiriço, ao exacerbar o descentramento de nossa narradora e levá-la a se deparar com a constelação de contingências, historicidades e acasos que a atravessam, a impelirá também a questionar e a refletir sobre os limites de se contar uma história.33 Neste caso, ela se defrontará com o fato de que nem sua fala nem aquelas que nos restitui são naturais, que toda citação é uma forma de apropriação e os sentidos constituem construções.

E será através do embate entre, de um lado, o desejo de relatar sua história e, de outro, a impossibilidade de encontrar uma voz natural e de reproduzir de forma “adequada” aquela dos outros, que ela optará por uma escrita auto-reflexiva, marcada pela renúncia às noções de verdade e de totalidade e pela assunção de seu caráter inventivo e rememorativo. Assim, ao concluir, ao menos aparentemente, sua carta ao irmão, a narradora nos conta que voz é essa que ela buscou criar para resgatar sua infância, perdida no passado, e transmitir, à distância, uma terrível notícia: a morte de Emilie. Ela procurou, pois, reinventar um tom familiar e esquecido, incorporando nele, de modo ativo, as lacunas deixadas para trás: “Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção seqüestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida.”34

 

* Daniela Birman é jornalista e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez pós-doutorado em Estudos Culturais no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ).

NOTAS

1 HATOUM, Milton. A casa ilhada. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 19, n. 53, p. 325-329, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24097.pdf . Acesso em: 7 out. 2007.

2 Ibidem, p. 325.

3 Cf. BIRMAN, Daniela. Das cinzas à memória. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2006. Suplemento Prosa & Verso, p. 6.

4 Referimo-nos aqui aos seguintes narradores: a mulher ao mesmo tempo estrangeira e enraizada na cidade de Manaus, de Relato de um certo Oriente; Nael, o curumim bastardo que mora numa casa de brancos de ascendência libanesa de Dois irmãos; e Lavo, o órfão criado por dois tios em pé de guerra de Cinzas do Norte. Cf. HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Idem. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Idem. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

5 A partir de então, poderá ser chamado apenas de Relato.

6 BIRMAN, Daniela. Das cinzas à memória. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2006. Suplemento Prosa & Verso, p. 6.

7 Sobre o conceito de origem, ver FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. P. 15-37.

8 Sobre o sentido do termo originário aqui empregado, ver FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. P. 345-351.

9 Ver o estudo clássico de Roberto Schwarz sobre o tema em Machado de Assis. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2000.

10 WELLS, Sarah. O improvável sucessor de Nassar: a genealogia alternativa de Milton Hatoum. In: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/UNINORTE, 2007. P. 63, grifo da autora. Podemos considerar nossa narradora integrante da segunda geração de imigrantes de duas diferentes maneiras: como filha adotiva de Emilie ou como filha “natural” da mulher desconhecida de ascendência árabe, habitante da casa de decoração suntuosa e gosto duvidoso descrita no primeiro capítulo do livro. Neste segundo caso, porém, não possuímos nenhuma prova da procedência de tal mulher. Trata-se, pois, somente de uma hipótese interpretativa.

11 Ibidem, p. 64.

12 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit, p. 20.

13 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: ____. Microfísica do poder. Op. cit., p. 15-37.

14 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 347-348.

15 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit., p. 12.

16 Nascido em Manaus, em 1952, Hatoum viveu nesta cidade até os 15 anos, quando se mudou para Brasília (onde morou nos anos de 68 e 69). Ele passou a década de 70 em São Paulo e depois ganhou o mundo, tendo vivido em Barcelona, Madri e Paris. Após 18 anos fora, retornou a Manaus, onde foi professor de literatura francesa da Universidade Federal do Amazonas. Em 1999, deixou a cidade de novo. Desde então, mora em São Paulo.

17 GRAIEB, Carlos. “Amazônia está à margem da História”, diz escritor. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

18 Ibidem.

19 CASTELLO, José. Milton Hatoum reclama a volta da indignação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 1998. Caderno 2, p. D4.

20 GRAIEB, Carlos. Milton Hatoum cria pátria entre dois mundos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

21 CURY, Maria Zilda Ferreira. De orientes e relatos. In: SANTOS, Luis Alberto Brandão; PEREIRA, Maria Antonieta (orgs.). Trocas culturais na América Latina. Belo Horizonte: Pós-Lit/FALE/UFMG; Nelam/FALE/UFMG, 2000. P. 172.

22 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit, p. 123.

23 Ibidem, p. 123.

24 Ibidem, p. 164.

25 Ibidem, p. 162.

26 Ibidem, p. 162.

27 Ibidem, p. 10.

28 Ibidem, p. 10.

29 Cf. GRAIEB, Carlos. Milton Hatoum cria pátria entre dois mundos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

30 CASTELLO, José. Milton Hatoum reclama a volta da indignação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 1998. Caderno 2, p. D4.

31 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000. P. 38.

32 SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio. In: ____. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. P. 48-49.

33 Identificamos nesta passagem do fronteiriço à reflexão sobre nossos limites, realizada pela narradora do romance, a postura integrante da concepção de crítica defendida por Foucault e presente em suas ontologias do presente. Com efeito, em “Qu’est-ce que les Lumières?”, o filósofo defende um ethos filosófico no qual o sujeito romperia com a escolha entre exterior e interior, localizando-se no limiar, de onde examinaria os limites que constituem nosso modo de agir, pensar e dizer – e que, transgredidos, permitirão nossa transformação e o exercício de nossa liberdade. “Parece-me que a questão crítica, hoje, deve ser invertida em questão positiva: naquilo que nos é dado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e causado por coações arbitrárias”, escreve Foucault. Cf. FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce que les Lumières?. In: ____. Dits et écrits IV. Paris: Gallimard, 1994. P. 574.

34 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit., p. 166.

 

Cinéfilos e fazedores de cinema a contrapelo | de Alice Fátima Martins

Na sétima de suas Teses sobre História, Walter Benjamin (1994) destaca que, em geral, historiadores constroem suas narrativas com base na relação de empatia com os vencedores e poderosos. No entanto, os bens culturais devem sua existência não somente ao esforço de gênios ou poderosos, mas também (talvez, sobretudo…) “à corvéia anônima dos seus contemporâneos” (p. 225). Assim, reivindica como fundamental a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, desde o ponto de vista dos oprimidos, ou dos vencidos, lançando-se em insurgência não só contra a tirania, mas também contra a própria corrente histórica.

Sem perder de vista o necessário esforço para evitar as armadilhas reducionistas das análises dicotômicas, a expressão “a contrapelo”, que assume o lugar de advérbio de modo no título deste artigo, buscada em Benjamin, refere-se ao trabalho de cidadãos comuns que, movidos a paixão pelo cinema, dedicam seus esforços para assegurar, não só para si, como também para suas comunidades, o acesso a histórias contadas pela indústria cinematográfica, e também a aventura de contar suas próprias histórias, ainda que em condições precárias, e à revelia dos sempre onerosos orçamentos das produções cinematográficas disponíveis no mercado do entretenimento.

Nesses termos, o trabalho desenvolvido por fazedores de filme tais como Afonso Brazza (DF) e seu Manoel Loreno (ES), e pelo senhor José Zagati (SP), responsável pelo Mini Cine Tupy, fornece pistas para que sejam tecidas algumas reflexões sobre as noções de identidade(s) e pertencimento na cultura contemporânea, no panorama do complexo mercado das narrativas audiovisuais, dentre as quais estão as cinematográficas, e suas dinâmicas de produção / distribuição / circulação / consumo / descarte das mercadorias culturais no mundo globalizado.

Como linguagem, o cinema instaurou sintaxe própria para a arte de contar histórias, ficcionais ou não, atendendo a diferentes propósitos e objetivos. No decurso do século XX, o cinema instituiu-se indústria de narrativas e um dos principais filões de entretenimento, com abrangência planetária, partindo de alguns núcleos localizados no Ocidente, estendendo-se para o Oriente, num trânsito intenso de fluxos de narrativas e contranarrativas cujas histórias afirmam e questionam posições e pontos de vista, defendem e denunciam, reafirmam e negam relações de poder, chocam e entediam, omitem e explicitam, dissimulam, surpreendem, assustam, divertem, sempre forjando e alimentando imaginários, integrando, no continuum, as dinâmicas de (re)configuração das relações identitárias.

Desde os seus primórdios, o cinema é portador de uma natureza inerentemente globalizada, multicultural e transnacional. Stam e Shohat chamam a atenção para o fato de que “os mesmos filmes projetados em 1895 no Grand Café de Paris eram projetados apenas alguns meses depois em locais como Beijing (então Pequim), Cairo, Bombaim e Cidade do México” (2004, p. 400). Não por acaso, ele foi instaurado no auge da efervescência da sociedade industrial, integrando o que se costumou chamar de indústria cultural, expressão cunhada, inicialmente, no contexto das discussões propostas pelos pensadores da Escola de Frankfurt. Dando sequência, então, a essas ideias, na década de 60, Edgar Morin (1999), no texto A indústria cultural, tratou dessa questão, no contexto da sociedade-indústria, a partir dos processos culturais que se desenvolvem sob o impulso primeiro do capitalismo privado. Essa indústria, ultraligeira, produz uma mercadoria intangível, destinada ao consumo psíquico, do comportamento, e obedece à reprodução de certos padrões, para assegurar sua aceitação pelo público. No entanto, ao mesmo tempo, seus produtos precisam apresentar novidades capazes de manter a motivação de consumidores susceptíveis de se entediarem com o já conhecido. Devem ser capazes, também, de conquistar novos públicos-consumidores, no desafio contínuo de ampliação de domínio de mercados. Fica estabelecida, assim, uma contradição dinâmica entre inovação e padronização.

Para Morin (1999), o cinema é uma usina de produzir histórias (ou um complexo de usinas), organizada em torno de uma rígida divisão de trabalho que tem como base a estrutura industrial. A fabricação de suas mercadorias observa uma racionalização que preside o processo desde o planejamento, o estudo do mercado cultural, até o consumo propriamente dito pelos públicos-alvo. E pressupõe, também, sua rápida substituição por outros itens, com inovações que os tornem, supostamente, mais interessantes que seus precedentes.

Ora, a divisão do trabalho e a padronização podem sufocar os processos de criação. Para superar esse risco, a indústria cultural – nela, a indústria cinematográfica – estabelece relações com produções culturais situadas fora dos circuitos dominantes, nos processos de criação ou de distribuição, marcadas por baixos orçamentos, muita invenção e experimentação, formando, assim, trânsitos entre centros e periferias, de modo que as relações entre o padrão e a invenção resultam sempre dinâmicas e imprevisíveis, nunca estáveis.

Ajustando o foco da discussão nas histórias contadas pelo cinema, vale lembrar: essas fábricas de imagens sonoras em movimento produzem signos que articulam narrativas, nas quais se delineiam os vínculos de pertencimento seja daqueles que as realizam, seja do público, nas salas de cinema, ou nos ambientes domésticos, no momento em que interagem com essas histórias, incorporando-as ao seu imaginário. Nos percursos entre quem as conte e quem as consuma, entrecruzam-se elementos conformadores de identidades plenas de tensões e contradições. São as tramas de agonísticas cujas tessituras conformam perfis de bandidos e mocinhos, amantes e odiados, parceiros e solitários, forjando os que pertencem a este ou aquele grupo, os estrangeiros, e ainda os indesejados. Tais referências demarcam visões de mundo de quem conta as histórias na direção de quem as consome. Da parte dos espectadores, não há identidades monolíticas únicas. Ao contrário, nos mais diversos contextos, estão envolvidos em referenciais identitários múltiplos, a partir dos quais se relacionam com as narrativas cinematográficas: “As posições espectatoriais são multiformes, fissuradas, esquizofrênicas, desigualmente desenvolvidas, cultural, discursiva e politicamente descontínuas, e constituem parte de um domínio em constante modificação (…).” (STAM & SHOHAT, 2005, p. 421).

A noção de identidade, neste trabalho, está estreitamente relacionada com a depertencimento(s). O sujeito se reconhece na medida em que reconheça seu pertencimento a esta ou aquela rede de relações. E ainda a esta e aquela rede. Ou ainda se localize em interstícios, entrerredes, na perda de uns e no estabelecimento de novos pertencimentos, de diversas naturezas. Assim, cada indivíduo liga-se, em diferentes intensidades, a redes de vínculos e, portanto, de relações identitárias que se entrecruzam, sobrepõem, concorrem, tensionam, configurando seu estar no mundo, sempre em movimento. Nessa linha, a cultura pode ser pensada como produção de signos compartilhados coletivamente, que estabelecem as mediações dos elos nas redes de pertencimento. E as narrativas fílmicas, que são, ao mesmo tempo, produto da indústria cinematográfica, entretenimento, mercadoria cultural intangível e imponderável, articulam, criam, sobrepõem, renovam signos em profusão, em interação com o contexto sócio-cultural no qual está inscrita.

A produção de excedentes

A sociedade industrial funda-se na produção de excedentes. Isso significa que as mercadorias não são produzidas para atender a necessidades objetivas, mas trazem, na sua própria concepção, a geração de novas e sempre insaciáveis necessidades. Assim, mercadorias são produzidas em excesso, sempre a mais, para ampliar o seu consumo. A entrada de novas mercadorias em circulação pressupõe o descarte das velhas (as ideias de novasvelhas constituem solo incerto…), de modo que se produz, também, lixo em excesso. Uma das consequências é que, nos centros urbanos, formam-se lixões, nos quais são jogados os mais diversos itens, danificados, perecidos, ou simplesmente substituídos por novos modelos.

Mas os lixões não são o ponto final do percurso cumprido por essas mercadorias, como descartes. Nesses territórios, desafiando desconfortos, mau cheiros, riscos de contaminações as mais diversas, e disputando espaço com animais outros, legiões de cidadãos recolhem os restos, e os reaproveitam de quantas formas: em construções alternativas e rudimentares de moradias, no consumo de alimentos muitas vezes em processo de deterioração, na recuperação de vestuários, na seleção de papelões, garrafas, dentre outros itens de interesse para as indústrias de reciclagem.

Na sociedade pós-industrial, marcada pela expansão sem precedentes das tecnologias de comunicação e de informação, igualmente, há circulação de informação, signos e entretenimento em demasia. Portanto, não são apenas as fábricas de mercadorias materiais que produzem em excesso, entulhando prateleiras e desejos dos consumidores, e gerando, no outro polo do processo de consumo, lixões cada vez mais extensos. Da mesma forma, há mercadoria simbólica em excesso, multiplicada em progressão geométrica, a cada fração do tempo, confundindo e saturando a percepção da audiência.

Do mesmo modo que parcelas significativas da população dos grandes centros urbanos trabalham nos lixões, tendo em vista toda sorte de reciclagem, é possível pensar, também, na existência de lixões intangíveis de produtos simbólicos da indústria cultural, de cujos descartes quantos cidadãos se apropriam, devorando-os, para regurgitá-los, recriando narrativas próprias, e, nelas, a própria noção de pertencimento. Stam e Shohat (2005) referem-se aos processos pelos quais as mercadorias culturais são importadas, nacionalizadas e mobilizadas para uso local.

Nesse cenário, entre a grande indústria e esses lixões culturais, há complexas redes e instâncias de fermentação da cultura, por vezes mais, noutras vezes menos artesanais, podendo ser mais, ou menos, inseridas nos circuitos culturais oficiais, por vezes mais locais, intracomunitárias, noutras mais afeitas ao caráter globalizado de produção: transculturais, “desterritorializadas”, multimidáticas, “pós-modernas”…

Se, de um lado, a indústria cinematográfica dominante tem produzido, em excesso, narrativas sobre “os ‘vencedores’ da história, em filmes que idealizam o empreendimento colonial como uma ‘missão civilizatória’ (…)” (STAM & SHOHAT, 2005, p. 400), entre os públicos consumidores dessa mercadoria intangível, agentes anônimos de cultura tratam de realizar e difundir suas narrativas, fazendo uso da imagem em movimento, pautados pela sintaxe do cinema, apropriando-se de repertórios aprendidos nos filmes veiculados por salas de cinema e programações televisivas. Tais narrativas trazem, como traço fundante, as marcas digitais de modos próprios e singulares de contar histórias e com elas interagir.

Muitas dessas produções são classificadas, por quantos críticos de cinema, como filmes trash,1 desqualificando-os. Uma coisa é certa: é preciso questionar desde onde tais avaliações são formuladas: se desde o ponto de vista dos poderosos e vencedores, ou da corvéia anônima… Além disso, os chamados filmes trash podem ser pensados como resultado desse processo de saturação de signos, informações e histórias, no mercado cinematográfico dominante. Produzem-se narrativas em excesso, nas quais há excesso de correrias, destruições, assassinatos, mortos, explosões, tiroteios, acidentes espetaculares, dentre outros ingredientes recorrentes em boa parte dos títulos colocados à disposição do grande público. Esses agentes anônimos que atuam nos lixões da indústria cultural reciclam os restos descartados pelo grande mercado, criando suas próprias histórias, que interagem, dialogam com as histórias contadas pelas grandes produções. E o fazem dispondo de poucas e precárias ferramentas, em estruturas narrativas que, ou por falta de condições técnico-orçamentárias, ou mesmo pela própria natureza de seus projetos, constituem-se a contrapelo dos cânones oficiais, sobretudo das narrativas dos vencedores.

Da Boca do Lixo para o cerrado, um Rambo brasileiro

Agora vou partir, vou viver junto com os animais, eles não têm maldade no coração. (Dirige-se à mocinha). Vamos. Mas sempre tem a verdade. Nem Cristo escapou dos inimigos. Agora eu lhe pergunto: pra quê tanta violência? Pra quê matar, destruir a vida do próximo, sabendo que somos todos irmãos, na paz, na alegria e na tristeza. Meu Deus, eu não lhe peço perdão, porque isso eu não mereço, mas lhe peço: perdoe o resto do mundo. Deus escreve certo por linhas tortas…

Fala da personagem interpretada por Afonso Brazza, na sequência final do filme No eixo da morte (1997).

Os filmes realizados pelo cineasta-bombeiro Afonso Brazza fizeram com que ele chegasse a ser considerado, por alguns críticos de cinema mais entusiasmados, se não o maior cineasta de Brasília, um dos mais criativos e instigantes. Em contrapartida, seus filmes foram qualificados, muitas vezes, como trash. Ele próprio costumava fazer provocações, reivindicando, para si o título de “pior cineasta do mundo” (PROGRAMA DO JÔ, 2002).


Ainda adolescente, Brazza seguiu para São Paulo em busca do cinema. Ali, iniciou-se na Boca do Lixo, onde conheceu José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e aprendeu a trabalhar com produções de baixo orçamento. Nos anos 80, mudou-se para o Gama, no Distrito Federal, onde passou a trabalhar como soldado do Corpo de Bombeiros. Entre os anos 1982 e 2002, dirigiu quase uma dezena de filmes de longa metragem: O matador de escravos (1982); Os Navarros (1985); Santhion nunca morre (1991);Inferno no Gama (1993); Gringo não perdoa, mata (1995); No eixo da morte (1997); Tortura selvagem: a grade (2000); Fuga sem destino(2002). Este último ficou inacabado, por ocasião de seu falecimento. Editado por amigos, sob a liderança de Pedro Lacerda, foi lançado em 2006, integrando a programação oficial do Festival de Cinema de Brasília.

A ideia de reciclagem transpira no corpo todo de sua obra, formada por histórias contadas com retalhos cujas emendas não são disfarçadas. Narrativas que divertem, antes de tudo, a quem as realiza. As sequências são desconexas, não há preocupação com continuidade, o som é dublado com vozes de outras pessoas, e muitas vezes os lábios dos atores indicam que estão pronunciando falas diversas das que se está ouvindo. Morrer nas mãos do herói é sempre divertido: por vezes, os bandidos resistem em morrer, para permanecer mais na cena, noutras, morrem antes mesmo dos disparos os atingirem. Tais características, que serviriam para desqualificá-los, ao contrário, tornam esses filmes obras vibrantes e intrigantes. E, para o público, diversão garantida!

Cenas do filme Tortura selvagem: a grade(2000), dirigido por Afonso Brazza.

Nelas encontram-se alguns elementos indispensáveis aos filmes de ação produzidos em massa pela indústria norte-americana: um herói, sempre interpretado pelo próprio Brazza, cujas entradas envolvem mistérios, estratégias, gestos amplos, falas de efeito, vociferações, ameaças e advertências aos “agentes do mal”; mulheres bonitas, algumas vilãs outras vítimas; a mocinha de todas as suas histórias, bela e loira, interpretada pela sua esposa, a atriz Claudete Joubert; muitos bandidos que aparecem de todos os lugares, não interessa saber como, mas por certo para serem implacavelmente combatidos e mortos das mais diversas formas; fugas de carro, saltos de pontes, lanchas velozes, explosões. Tudo executado como quem brinca: fazer cinema é, sobretudo, diversão, nas versões de Afonso Brazza.

O herói composto pelo cineasta, recorrente em todos os filmes, embora assumindo diferentes nomes e trajetórias, é inspirado na personagem Rambo, interpretado pelo ator norteamericano Silvester Stalone, o que lhe valeu a alcunha de Rambo do Cerrado2: um soldado do Corpo de Bombeiros, orgulhoso de sua farda, ocupado em salvar as pessoas, com sua missão levada às últimas consequências, inclusive na dimensão do imaginário.

No tocante aos custos, a maior parte de seus filmes foi realizada com orçamentos bem modestos. À medida que ganhou espaço e visibilidade para o seu trabalho, passou a ampliar as fontes e a forma de apoio com que passou a contar. Assim, o filme Tortura selvagem: a grade, por exemplo, custou R$ 200.000,00, podendo ser considerado uma superprodução, tendo-se em vista que seu primeiro título, O Matador de escravos, realizado em 1982, custou o correspondente a R$ 8.000,00, em valores atualizados.

Na passagem gradativa para produções mais sofisticadas e caras, sem terem sido apagados os traços de autoria, seus filmes, que não deixaram de ser trash, rapidamente ganharam o status de cult. Muitos intelectuais de Brasília, entre jornalistas, artistas, poetas e outros, faziam questão de colaborar e participar dessas produções. Por ocasião da morte do cineasta, em 2003, o jornalista Ricardo Noronha declarou, em matéria veiculada num jornal local:

Tenho a honra de ter sido morto por Afonso Brazza duas vezes. O primeiro tiro pegou exatinho no meio da testa. (…) Caí de costas e ainda reuni forças para virar a cabeça de lado, de maneira assim pouco provável, antes de expirar. [a cena] está em Tortura Selvagem – a grade, filme de pancadarias e tiroteios deliciosamente sem nenhuma cena de tortura, sem grade alguma. A segunda vez que Afonso Brazza me matou foi à traição. Me acertou um tiro pelas costas. (…) Dei um rolamento para a frente, me estabaquei no chão. (…) Ainda não vi essa cena. Está em Fuga sem Destino. A não ser que nosso Brazza tenha aprontado das suas e deixado esse pedaço de película perdido no chão de sua sala de edição caseira, no Gama. (NORONHA, 2003).

Embora tenha conquistado mais visibilidade junto à mídia e espaço junto às agências de fomento para o cinema, o que lhe valeu voos mais ousados em cenas de ação, não conseguiu avançar muito junto aos meios de distribuição de seu trabalho, de modo que a circulação dos filmes não conquistou maiores espaços fora do Distrito Federal, seja na projeção em salas de cinema, ou no formato VHS ou DVD para venda e empréstimo. Ainda hoje, um número muito reduzido de títulos pode ser encontrado em poucas locadoras da capital federal.

O sonho de Loreno, o cineasta analfabeto, servente de pedreiro, locutor de rádio

Até debaixo de chuva eu gravei filme. ‘Tava chovendo, e chuva grossa. Nós ‘tava lá no meio do pasto, correndo atrás uns dos outros, dando tiro, tudo moiadinho, e todo mundo alegre, todo mundo animado. Era aquela alegria! Sabe por quê? Não era pra aparecer lá fora na televisão, era pra ver. Quando chegava de tarde, a gente aprontava a fita, quando era mais tarde, ficava pronto, aí ia todo mundo lá pra assistir o filme, sentir o prazer de ver ele no próprio trabalho, alegria só pra vê eles ali dentro da televisão.

Seu Manoel Loreno, Mantenópolis, ES (2009).

A pequena Mantenópolis fica no noroeste do Espírito Santo. Atualmente, uma das principais atividades econômicas da região é a produção de café. A migração de parcela importante da população para os Estados Unidos da América do Norte também é um traço marcante da cidade, com reflexos na economia local, na organização das famílias, nas construções de casas, nos sonhos de futuro, e, sobretudo, no imaginário dos que ficam… Seu Manoel Loreno nunca saiu do país, mas tem notícias de que seus filmes já foram vistos em redes norteamericanas de televisão, fazendo sucesso entre as comunidades brasileiras lá instaladas. Mas nunca recebeu nenhum comunicado oficial a respeito, tampouco foi remunerado de qualquer forma por alguma possível exibição de seu trabalho.

Ele, que já foi servente de pedreiro, é apaixonado por cinema, desde muito cedo. Em meados da década de 60, enquanto o Cine Império estava em funcionamento, ainda meninote carregava cartazes pelas ruas, anunciando a programação da sala, para assistir aos filmes nas sessões noturnas. Nos anos 70, continuava trabalhando como anunciador, sem salário, tão somente em troca dos ingressos para as sessões.

Seu Manoel relata que, enquanto via os filmes, em sua maioria, estrangeiros – filmes de Tarzan, de faroeste, dentre outros – ficava imaginando suas próprias histórias projetadas no telão. Em seu sonho, anunciadores, outros que não ele, carregariam cartazes pelas ruas com a propaganda de seus filmes. No final dos anos 80, soube aproveitar a oportunidade quando apareceu alguém com uma câmera de vídeo, que se dispôs a fazer as gravações: realizou seu primeiro filme, A vingança de Loreno (1989). Desde então, segundo relata, já contabiliza quase 50 títulos de sua autoria 3, boa parte dos quais, contudo, encontra-se perdida: realizados em VHS, sem cópia, tomados emprestados por vizinhos, forasteiros, curiosos, muitos dos quais não foram devolvidos. Quantos desses foram remetidos para amigos ou conhecidos que moram nos Estados Unidos da América do Norte, sem que deles mais se tivesse notícias…

Quando começou a fazer seus filmes, a população de Mantenópolis não tinha mais o hábito de assistir filmes no cinema. A sala de projeções já havia fechado há algum tempo – ainda hoje não há sala de cinema na cidade – e as pessoas acompanhavam apenas a programação das redes abertas de televisão. Desse modo, seu Manoel instaurou uma atividade inovadora que, além da natureza artística, cultural e de entretenimento, mostrou grande potencial agregador da comunidade, que se reunia para trabalhar nos filmes e para assistir aos trabalhos realizados. Ele não tem dúvidas: “Eu sei que eu emocionei muita gente fazendo filme aí…”, ainda que a exibição não fosse em grandes telões, mas no écran de modestos aparelhos de televisão, instalados na quadra de esportes. Seus olhos brilham, recordando os primeiros anos, quando “todo mundo ficava doidinho pra ver”.

Seu Manoel Loreno, em cenas do filme O homem sem lei (2003), de sua própria direção.

Para realizar seus filmes, em primeiro lugar ele imagina toda a história, e a divide em partes: “se eu vou fazer um filme daqui a uns trinta dias, aí eu já vou pensando a história dele, eu penso quantas pessoas vai gastar, cena por cena, quantas partes vai gastar…” (LORENO, 2009) Em geral, seus filmes contam com aproximadamente trinta partes. Então ele planeja a execução de cada uma delas, incluindo o número de participantes, as roupas e locações necessárias, os acontecimentos. Após as orientações sobre o que cada um deve falar e fazer, inicia a gravação. Os atores são membros da comunidade, trabalhadores rurais, vizinhos, pessoas com mesmo tipo de inserção sociocultural que ele. Ele conta, também, com a atuação entusiasmada e bem humorada da esposa, dona Isa. Geralmente, os trabalhos duram um final de semana. E como as cenas são gravadas na própria sequência da história, ao final, o filme está pronto (uma espécie de copião, sem edição), razão pela qual, findas as gravações, todos podiam assistir ao trabalho concluído, sempre no domingo à noite.

Embora tenha conseguido mobilizar tantas pessoas da comunidade desde o início, ele era, quase sempre, referido como lunático, e seu trabalho considerado como uma atividade sem maior relevância, não muito mais do que mera distração. Seu reconhecimento veio a partir da visibilidade conseguida com a participação em programas de entrevista em redes de televisão de grande audiência. Tornou-se uma espécie de embaixador da pequena cidade no cenário nacional, e foi recebido entre os conterrâneos como celebridade. No entanto, essa inserção na mídia resultou no imprevisível:

(…) mas agora eu vou falar: (…) aparecer na televisão no Brasil inteiro não me trouxe facilidade pra fazer mais filme. Num ponto foi bom, mas no outro não foi não. Então, foi ruim, que as pessoas não ajudam mais: tem que pagar o dia, e tem que dar o almoço prá eles. Por que, de qualquer maneira, se for um filme de faroeste, eu tenho que gastar umas 80 pessoas. Pra fazer esse filme, então, 80 pessoas, como é que a gente aguenta pagar? (LORENO, 2009).

Seu Manoel sempre contou com a colaboração dos membros da comunidade para realizar seus filmes, pelos quais não recebe retorno financeiro, ou quando recebe algum valor, é simbólico. No entanto, a visibilidade conquistada criou uma nova condição nessa rede solidária. A maior parte de seus parceiros entendeu que ele teria conquistado, além da visibilidade, alguma forma de ganho em dinheiro, de modo que passaram a reivindicar para si, também, alguma forma de pagamento. É possível supor que, inicialmente, houvesse uma espécie de contrato intracomunitário para a produção desse trabalho, o que teria sido rompido a partir da projeção midiática de seu Manoel, em detrimento dos demais, e da expectativa destes quanto a ganhos financeiros. Quebrou-se, assim, a magia das contações de histórias por meio das imagens sonoras em movimento, sob a liderança do cineasta analfabeto, ex-servente de pedreiro, atualmente locutor-comentarista da TransaSon FM, rádio comunitária de Mantenópolis.

Hoje, ele imagina pelo menos três projetos: “Se eu tivesse uns dois mil, eu conseguia fazer um filme com menos pessoas…” As histórias latejam em profusão em sua imaginação. O desejo de realização o inquieta, e a frustração ante as dificuldades têm angustiado seu Manoel Loreno, em pleno impulso de criação… “Não tem cabimento eu não conseguir fazer mais nenhum filme!” Ele tem o roteiro pronto de um filme intitulado Liberado para matar, cuja ação começa em Vitória, e termina em Mantenópolis… umroad movie de ação… “Ah, mas pra esse, ia precisar de muito mais dinheiro, pelo menos uns vinte mil…” (LORENO, 2009)

Cinema, reciclagem e meio ambiente, tudo a ver!

Eu sempre querendo fazer plateia. Não é que eu queria fazer cinema, fazer cinema é outra coisa. Aquela lembrança, quando eu entrei no cinema, a primeira coisa que fiz foi ver o filme passando: a luz tá vindo de lá, e a tela, e aquelas pessoas estavam ali, sentadas, assistindo. A luz, a tela, e as pessoas. Então eu queria fazer era aquilo. Era a emoção, as pessoas assistindo e eu passando o filme, eu sonhei com isso por toda a minha vida. Era um sonho.
Sr. José Zagati, Taboão da Serra, SP (2009).

O corpo esguio e elegante, o sorriso largo, os gestos que acompanham os relatos, avivando-os para a oitiva dos interlocutores, as mãos expressivas e calejadas pelo trabalho braçal de catar papel para reciclagem: o sr. José Zagati é um narrador por excelência, dentro do espírito descrito por Walter Benjamin:

(Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão (…) é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. (BENJAMIN, 1994, pp. 220-221)

Fazendo uso da habilidade para narrar vidas, desde a sua própria, ele relata ter ido ao cinema, pela primeira vez, aos cinco anos de idade, na pequena cidade de Guariba, no interior de São Paulo, levado pela irmã. Era um filme de Billy the Kid. A experiência primal não se apagou de sua memória. Mais tarde, tendo se mudado com a família para Taboão da Serra, conheceu o Cine Tupy, que, na adolescência, passou a frequentar. Durante a semana, fazia pequenos trabalhos para comerciantes do bairro onde morava, em troca dos quais recebia “umas moedas” que guardava para ir ao cinema no domingo. “Então eu pegava o ferro-de-brasa da minha mãe, fazia questão de pegar minha melhor roupinha, eu esquentava o ferro e passava: eu vou ao cinema!” (ZAGATI, 2009)

Sr. José Zagati | Foto: Hamilton Alves(2009)
Kombi do Mini Cine Tupy | Foto: Alice Fátima Martins 2009)
Coleção de rolos de filme e fitas VHS | Foto: Alice Fátima Martins (2009)
Sr. José Zagati e crianças assistem projeção de filme | Foto: J. Bamberg (2009)

Na vida adulta, trabalhou como servente de pedreiro, metalúrgico, dentre outras tantas atividades. Mas, em 1990, desempregado, começou a catar papel, “e foi daí que eu consegui realizar o meu sonho”, afirma. Frequentemente encontrava pedaços de filme: “quando eu achava um pedaço de filme, aquilo para mim era um grande tesouro que eu tinha encontrado”. Ele próprio questiona por que se encontravam tantas coisas relativas a cinema no grande aterro sanitário, e explica que todo o lixo resultante das reformas feitas nos prédios do centro de São Paulo era depositado ali. Eram entulhos de quantos prédios derrubados para que outros fossem erguidos, e outros tantos refeitos, para assumir novas feições e funções, pela pressão do progresso. Dentre esses prédios, estavam as antigas salas de cinema, muitas das quais fechadas, recebendo outras destinações. “Eu comecei a encontrar esses restos, esses pedaços de filme, fui guardando, tudo quanto foi pedaço, aquela coisa de Cinema Paradiso, (…) vou guardar, isto aqui é história…” (ZAGATI, 2009). Então, ele encontrou a carcaça de um projetor no lixo. Embora não funcionasse, ele a levou consigo, para casa. Algum tempo depois, numa “loja de usados” do centro de São Paulo, comprou o primeiro projetor em condições de funcionamento. Seu relato é emocionado:

Peguei o projetorzinho e vim (faz o gesto de quem carrega uma criança), peguei o ônibus e vim com ele no colo assim, parecia um bebê, louco prá chegar em casa prá botar ele prá funcionar, e ver os pedaços dos filmes que eu tinha juntado. Aí eu arrumei, quando foi no outro dia de tardezinha, estendi um lençol lá em cima duma cerca, eu morava num bairro aqui perto, né, aí eu pendurei um lençol, de tardezinha, puz uma mesinha lá na rua, botei o projetorzinho. Foi escurecendo, comecei a passar aquele filme (imita o som da máquina) rrrrrrrrrrrrrrrrrrr. Assim que surgiu o cinema aqui! (sorri) Aí começou a vir aquelas crianças todas, todo mundo curioso, o que é isso, Zagati? Que é isso seu Zagati? Eu falei: Isso é cinema! Eles nunca tinham visto aquilo… Como ainda tem muita gente que nunca foi ao cinema, ainda tem muita gente assim, que nunca viu. Aí, eles erguia o pano, não via nada, olhava no projetor, tão encantados com aquilo, eu tão feliz com aquilo! (ZAGATI, 2009).

A primeira projeção de um filme de longa metragem, completo, ele conseguiu realizar em agosto de 1998, inaugurando o Mini Cine Tupy, numa homenagem ao antigo Cine Tupy, que povoou sua infância e juventude com histórias e sonhos. Desde então, o trabalho de projetar filmes para a comunidade, na sede do “cineminha”, ou em outros locais, tais como escolas, asilos, hospitais, praças, dentre tantos, confunde-se cada vez mais com o de catar material para reciclagem. Atualmente, ele é membro da Cooperativa Zagati de Agentes Ambientais, que ajudou a fundar. Tem orgulho de seu papel social, e clareza das relações intrínsecas entre os cuidados com o meio ambiente, a reciclagem, e a produção de cultura. Por isso mesmo, escreveu em seu carrinho de coleta de papelão os seguintes versos, de sua autoria:

Reciclar é bom

A natureza agradece

Tudo pelo cinema!

A sétima arte merece!

(ZAGATI, 2009)

Banquetes antropofágicos: da dor e da delícia de devorar o outro

Nas últimas décadas, muitas salas de cinema foram fechadas, em cidades do interior e nas periferias dos grandes centros urbanos. Uma pesquisa realizada por uma parceria entre o Ministério da Cultura e o IPEA constatou que mais de 90% dos municípios não possuem sala de cinema. A migração das salas para as grandes redes instaladas em shopping centers implicou na exclusão do acesso a uma parcela significativa da população de suas programações, o que se reflete na informação de que apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema pelo menos uma vez ao ano. Ou seja: os outros 87% não vão ao cinema, ou vão muito raramente. (BRASIL, 2007).

Os srs. Manoel Loreno e José Zagati desenvolvem um trabalho na contramão desse cenário, reunindo os poucos recursos de que dispõem para veicular realização e exibição de filmes à sua comunidade, no exercício incansável de busca do sonho. Se Afonso Brazza, residente no Gama, Distrito Federal, também, à sua época, não contava com salas de cinema, cumpriu uma trajetória que, embora mais cosmopolita, não foi menos entulhada pelos excessos da indústria cultural.

Esses três homens têm em comum a paixão pelo cinema, que mobilizou seu imaginário e nutriu seus sonhos desde a infância. Do mesmo modo, são apaixonados pelo lugar onde vivem, estabelecendo com ele uma relação de intimidade e encantamento, endereçando-lhe o seu trabalho. Brazza traz para as telas as paisagens e os percursos da capital federal, tornando-os personagem de primeiro plano em seus enredos. Suas histórias são urbanas, trespassadas pelo trânsito de automóveis, ônibus, ruas movimentadas, arquitetura, edifícios, construções, mas também por amplas áreas verdes, e sobretudo pela abóbada celeste do Planalto Central. Seu Manoelzinho respira uma atmosfera mais rural, interiorana, traços fisionômicos de sua pequena Mantenópolis. Reconta histórias de homens brabos as quais tem ouvido desde seus tempos de infância. E reinventa outras, sempre pensando, como cenário, nos caminhos entre o cerrado e as matas da paisagem recortada por morros e pedras de grande plasticidade. A comunidade e sua inserção sociocultual e ambiental também constituem a paisagem para a qual é endereçada uma das paixões do sr. José Zagati (ao lado do cinema, é claro, e de sua esposa, d. Madalena…), que percorre suas ruas, recolhendo material para reciclagem, olhando suas gentes, observando os movimentos, levando projeções de filmes, reunindo crianças, artistas, outros quantos sonhadores, estabelecendo elos, relações, sentidos…

Afonso Brazza e seu Manoelzinho, fazedores de cinema, apropriam-se de signos produzidos pelo outro, particularmente pela indústria norteamericana de cinema, que concentra parcela majoritária das produções cinematográficas ocidentais, mas, sobretudo, detém a hegemonia das redes de distribuição dos filmes. Mas essa apropriação pressupõe a assimilação e a retradução em termos de parâmetros próprios, identitários. Heróis dos outros, como o Rambo, cowboys e outras personagens, ganham versãotupiniquim. Mais que isso, ganham identidade própria numa nova malha de pertencimento. São devorados e regurgitados, numa apresentação para o mundo a partir dos cenários onde as novas versões são gestadas.

Em termos conceituais, a ideia de antropofagia como metáfora do processo cultural brasileiro foi eleita pelos modernistas, na década de 20 do século passado. O Manifesto Antropofágico, escrito, em 1928, por Oswald de Andrade (1995), busca responder a algumas questões colocadas pela Semana de Arte Moderna, em 1922, e reivindica uma atitude de devoraçãodos valores europeus, suas condutas normativas, seus cânones hegemônicos, para a reformulação na perspectiva das referências identitárias brasileiras.

Para o filósofo espanhol Eduardo Subirats (2001), a antropofagia brasileira inverteu o discurso das vanguardas européias e da definição da modernidade como um modelo externo, uma nova figura de colonização estética e política. Ela formulou, além disso, um projeto original de civilização não redutível às categorias do progresso capitalista ou tecnológico-industrial, buscando realizar a síntese o erudito e o popular, o hegemônico e o marginal, o altamente tecnológico e o artesanal.

No entanto, a ideia de antropofagia neste trabalho evoca uma outra fonte metafórica, da obra de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro! (2008). O romance trata da saga de pequenos heróis da nação, tecendo uma anti-história em contraponto à história oficial, ou, retomando a ideia inicial deste artigo, uma história escovada a contrapelo (BENJAMIN, 1994). Embora esse romance tenha vários pontos de aproximação com o manifesto e o ideário modernista, com ele estabelecendo um diálogo inevitável, o texto de Ribeiro não tem um projeto político e intelectual em que a antropofagia seja apontada como o caminho para a solução dos impasses culturais no cenário brasileiro. Em contrapartida, também não assume o ponto de vista falso moralista dos colonizadores que condenam o ritual antropofágico. Ao abordar a história da dominação, fundada em quantas formas de violência, João Ubaldo Ribeiro busca a própria voz do dominado, seja do ponto de vista das relações de poder, da produção da cultura, da história como um todo. Nela, o ato de devoração prazerosa do outro aparece como o gesto germinal dos processos de miscigenação que articulam o sentido de brasilidade, no seu melhor, e também no seu pior…

A diferença entre a antropofagia e o canibalismo está no aspecto ritual, presente na primeira, ausente no segundo. O canibal devora o outro, seu semelhante, reduzindo-o à condição de caça, ou alimento circunstancial. Nos rituais antropofágicos, o outro é reconhecido e respeitado, e seu devorador quer assimilar sua vitalidade e força, incorporando, assim, suas características à própria identidade. Embora a distinção conceitual entre antropofagia e canibalismo não seja consensual entre estudiosos e pesquisadores, essa concepção orienta a discussão proposta neste trabalho, que trata da atuação de agentes produtores de cultura mais que meros caçadores de restos nos lixões intangíveis da indústria cultural: na verdade, devoradores rituais do excedente simbólico despejado pelo outro, pelos outros. Devorando ritual e prazerosamente o lixo descartado, reprocessam-no, integrando-o às suas próprias redes de pertencimento e sentidos. A natureza, a cultura e o cinema agradecem, como preconiza o sr. José Zagati.

Figuras que não se submetem aos modelos impostos por outrem, mas os incorporam aos seus próprios referenciais e ferramentas, Afonso Brazza, seu Manoelzinho e o sr. José Zagati não estão sozinhos no cenário brasileiro. Tantos outros se aventuram à labuta de catar lixo da indústria cultural, fazendo uso de recursos geralmente precários para produzirem suas próprias narrativas, para abrir espaços de veiculação de narrativas, de modo independente em relação ao mercado oficial cinematográfico. De alguma forma, esses agentes culturais interagem não apenas com as narrativas e os veículos hegemônicos, mas com a própria intervenção colonizadora destas em seus contextos, absorvendo e retraduzindo seus signos, atribuindo-lhes novos significados, recontando suas próprias histórias.

São tomadas de posição no mundo presididas pela interlocução ativa e criadora, dialogal. Afinal, nenhuma imagem, e, de resto, nenhuma narrativa é fechada, mas tem seu sentido completado na relação com o público, que a interpreta e reconstrói em sua própria percepção. Nos processos de interpretação de narrativas, sejam imagéticas, literárias ou cinematográficas, entram em cena tanto os referenciais subjetivos, individuais, quanto os coletivos, culturais. Indivíduo e coletivo são, afinal, duas dimensões imbricadas e indissociáveis nas dinâmicas do tecido social. No tocante ao trabalho desses cinéfilos e fazedores de filme a contrapelo, mais do que meramente interpretar essas narrativas, reconstruindo-as no próprio imaginário, de fato in-corporam, antropofagicamente, os signos das histórias contadas pelos outros, os heróis dos outros, em histórias autorais e ambientes regidos por sua soberania, que dizem de seu tempo, de suas relações, de sua própria inserção no mundo. De seus pertencimentos.

* Alice Fátima Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, com pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), financiada pela FAPERJ.

 

NOTAS

1 No cinema, não há consenso em relação à classificação de filmes como trash. Em geral, são assim referidos os filmes de baixo custo, “mal realizados”, em sua maioria, caricaturas de filmes de horror ou de ação.

2 Embora no filme Tortura selvagem: a grade os antagonistas do herói refiram-se, algumas vezes, à sua personagem, em pleno enredo, como o Kojak, em função da cabeça raspada.

3 Alguns títulos dentre os filmes realizados por sr. Manoel Loreno: A vingança de Loreno, O gatilho mais rápido do Oeste, A revolta de Loreno, Loreno volta para matar, O sonho de Loreno, Natal sangrento, Karatê, Golpe fatal, A vingança do apaixonado, O amor proibido, O homem feliz, A gripe do frango, O homem sem lei, O rico pobre.

4 A escrita do nome do cinema não está unificada nos documentos, camisetas, folders, etc. Considerando o cinema homenageado pelo sr. José Zagati, o antigo Cine Tupy, e a maior parte do material de divulgação veiculado, neste artigo é adotada a grafia Mini Cine Tupy, apesar de, na porta da Kombi, constar Mini Cine Tupi.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 1ª publicação em 1928. São Paulo: Globo, 1995. 2ª Ed. Disponível em http://www.puc-campinas.edu.br/centros/clc/Acesso em 23 de fev. de 2008.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BRASIL, Ministério da Cultura. Economia e política cultural: acesso, emprego e financiamento. Coleção Cadernos de Políticas Culturais, volume 3. Brasília: Ministério da Cultura, 2007.

BRAZZA, Afonso. Depoimento. Entrevistador: Jô Soares. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Programa do Jô. Rio de Janeiro: Rede Globo de Televisão, 2002. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=qDyZqlxdrEM&feature=related. Acesso em 22 de fev. de 2008.

MORIN, Edgar. A indústria cultural. In FORACHI, M. A. e MARTINS, J. S. (1999) Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro/São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1999.

LORENO, seu Manoel. Depoimento. Entrevistadores: Alice Fátima Martins e Jairo R. P. Bamberg. Arquivo digital formato MP3. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa catadores de lixo da indústria cultural. Rio de Janeiro: PACC/FCC/UFRJ/FAPERJ, 2009.

STAM, Robert & SHOHAT, Ella. Teoria do cinema e espectatorialidade na era dos “pós”. In RAMOS, Fernão Pessoa. Teoria contemporânea do cinema, volume 1: pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2005.

ZAGATI, José. Depoimento. Entrevistadores: Alice Fátima Martins e Jairo R. P. Bamberg. Arquivo digital formato vídeo. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa catadores de lixo da indústria cultural. Rio de Janeiro: PACC/FCC/UFRJ/FAPERJ, 2009.

REFERÊNCIA FILMOGRÁFICA

O HOMEM SEM LEI. Seu Manoel Loreno. DVD. Brasil, 2003.

TORTURA SELVAGEM: A GRADE. Afonso Brazza. Película. Brasil. 2000. Disponível em http://video.google.com/videoplay?docid Acesso em 17 de janeiro de 2008.

 

Tramas urbanas: un posicionamiento teórico crítico sobre la experiencia cultural contemporánea de la periferia urbana carioca y paulista | de Lucía Tennina


Ésta es la tapa de un libro. Salta a la vista que es a todo color. El título de este libro es Cooperifa, y el subtítulo, Antropofagia Periférica, que nos remonta al movimiento vanguardista brasileño de los años ‘20, pero desde un lugar diferente: la periferia. “Sérgio Vaz” es el nombre del autor.


En la contratapa del libro se lee un texto de Mano Brown, un rapper brasileño oriundo del barrio periférico Capão Redondo y vocalista del grupo Racionais MC’s., que se titula “El general de las palabras”. Como es corriente en este tipo de escrituras, la metáfora bélica articula sociedad y literatura. El título de la reseña apunta a Sérgio Vaz escritor.


A diferencia de otros libros, éste tiene sus auspiciantes: Petrobrás, el Ministerio de Cultura y el Gobierno Federal.

En la página de apertura, otro paratexto nos informa que el libro que tenemos en las manos pertenece a una colección, Tramas Urbanas, que consta de diez volúmenes. El texto no tiene firma.

Los créditos señalan que la curaduría de la colección está a cargo de Heloísa Buarque de Hollanda, consagrada crítica literaria brasileña, y la consultoría pertenece a Ecio Salles, literato brasileño oriundo de un suburbio carioca y coordinador del movimiento cultural Afro Reagge



En el interior se pueden ver los escritos de Sérgio Váz intercalados con fotos de él: algunas del artista cuando niño, otras de las actividades que desarrolla en la periferia y otras en las que el autor se promociona a sí mismo en su propio cuerpo, como si además de los secretos de la pobreza conociera los de la mercancía capitalista.

Las separaciones entre capítulos llevan una tipografía tridimensional, que supera el tamaño de la página y que tiene diferentes tonalidades de grises, algunas veces pixeladas. También están pixeladas las fotos.

El último capítulo narra el origen del libro y las mediaciones para su concreción, encarnadas en Heloísa Buarque de Hollanda quien aparece como comitente: “ (…)Heloísa me pediu que eu contasse um pouco da minha história e da Cooperifa (…)”


Este libro, junto a otros nueve, forman una pequeña biblioteca: la de Tramas Urbanas, que comenzó a salir en el 2007 y al año siguiente cerró con 10 títulos.

Desde fines de la década del ’90, el campo literario brasileño comienza a verse atravesado por una serie de escrituras aproximadas por el origen social de los escritores que la producen, todos oriundos de la periferia urbana, además de por afinidades temáticas centradas en la marginalidad social, la criminalidad, la violencia, el tráfico de drogas y el racismo. En el año 2001 la revista Caros Amigospublicó una edición especial sobre la literatura producida en las favelas/barrios pobres. Se trata del primero de los tres números que esta revista dedicó a dichas escrituras, llamada en esas ocasiones Caros Amigos –Literatura Marginal Ato I (2001), Ato II (2002) y Ato III (2004). A partir de esta publicación, ideada, organizada y editada por el escritor Ferréz, se instala y se disemina el concepto “literatura marginal”, alrededor del cual se agrupa un importante número de escritores de origen subalterno, conformando en conjunto un movimiento literario.

Frente a este fenómeno, el círculo de los letrados viene actuando confusamente: o no emite palabra, o deslegitima sus producciones, o, por el contrario, las legitima idealizadamente. Aunque todavía no hay, entonces, una cartografía crítica armada, una voz que se destaca es la de Heloísa Buarque de Hollanda, quien, no casualmente, es la primera académica que, al surgir la poesía marginal en los ’70, se abre para su comprensión y arma la famosa antología llamada 26 poetas hoje. Frente a la “literatura marginal” de los últimos años, la operación crítica que Heloísa Buarque toma es absolutamente diferente a la que llevó a cabo con la poesía marginal. No hay artículos de su autoría en relación con dichos textos, solamente hay algunas entrevistas en las que se puede leer que, en este caso, su programa apunta a “dar voz a quienes no tienen voz” (Revista Raiz, 12-09-08), de ahí que organice la colección Tramas Urbanas.

Este silencio puede interpretarse en una línea foucaultiana, como un acto de crítica política, negándose a hablar por ellos y a caer en la trampa de la representación. Ahora bien, ese “dar voz” está determinado por varias mediaciones que, si bien no se articulan en palabras, le dan forma al fenómeno y lo condicionan dotándolo de nuevos sentidos ¿Pueden pensarse tales operaciones en tanto posicionamientos teórico-críticos?

El gesto fundamental de Tramas urbanas es colocar a los textos que publica en el entramado de la demanda ciudadana pero a su vez, la demanda del libro en relación con esos autores es la de que entreguen un relato de vida. Los libros firmados por escritores de la periferia no presentan poemas o textos literarios, sino que cuentan la historia de cada uno de ellos. La propuesta de esta colección no consiste en un espacio de experimentación, sino que apunta a la presentación de historias particulares que dan cuenta de un universo colectivo, presentado como representable y con un sistema de significación complejo y propio. Se trata de una decisión que instala un punto de vista frente a los escritos periféricos: la condición de reciprocidad entre dichas producciones y un relato biográfico ligado al contexto, relato que, a su vez, funciona como eje desde el cual se narra.

Este posicionamiento apunta, a su vez, a un tipo de lector para los libros de esta colección, que igualmente se puede predecir desde su precio, que ronda los 30 reales. La historia de vida presentada en la colección Tramas Urbanas contrasta fuertemente con los datos biográficos que los escritores de la periferia escriben en textos publicados por ellos mismos. En estos casos, la referencia a la vida del autor se señala en pequeñas notas al pie de pocas líneas, donde se indica el barrio en el que vive, su trabajo, otros títulos de libros suyos y las actividades culturales en las que participa.


Se trata de pequeñas puntualizaciones que ayudan a un sujeto de experiencias similares a identificarse y a imaginar una comunidad. La historia de vida en Tramas Urbanas consiste, por el contrario, en un largo relato cargado de información, de explicaciones y de fotografías, que para un periférico resultarían redundantes, pero para un lector no nativo aportan a la comprensión de ese espacio. En el caso de la colección en cuestión, entonces, el foco de interés desde el cual se hace pública la cultura de la periferia, es su misma condición de “periférica”. Recordemos en este punto, como nota de color, que la palabra “interés” deriva de una construcción impersonal latina inter est, que significa “es diferente”. Y en este caso es la diferencia en lo que hace a la experiencia urbana lo que se vuelve un valor instrumental para que la editorial presente esta colección.

El acento en esta diferencia tiene su eco, a su vez, en la separación dentro de la editorial Aeroplano de la colección Tramas Urbanas. Es importante aclarar que esta división no se justifica desde cuestiones de género literario, sino que es la idea misma de periferia la que establece una distinción entre estos diez libros y el resto de los publicados por esta editorial. Si se toman en cuenta todos los libros que completan esta colección, se puede ver que no se centran solamente en escritores de la periferia, solamente dos se ocupan de ello. Otros tres refieren al movimiento del hip-hop, y uno al movimiento tecno. Dos remiten a la estética de ese espacio. También la categoría “violencia” interviene en los títulos, vinculada a la memoria de acontecimientos trágicos en el conjunto habitacional Vigário Geral. Finalmente, hay una referencia a la historia de un medio cultural alternativo.

La colección aparte dentro de la editorial Aeroplano se sostiene desde la consideración e interpretación de eventos articulados en el espacio urbano institucionalmente reconocido como “periférico”. No hay, en este sentido, un cuestionamiento desde el punto de vista territorial de la idea de “periferia”: lo que se cuenta ocurre en barrios pobres o favelas. Hay sí, de todos modos, una complejización de tal concepto a partir de la consideración de ese lugar desde procesos activos de creación que moldean un conocimiento histórico imposible de entenderse desde una estructura fija y previa.

En paralelo a esta formulación del concepto de periferia, se desprende una modulación particular del concepto de “cultura”, ya no tomada como modelo a alcanzar, sino como un conjunto que funciona, junto con la memoria, la comunicación y el habitus de la vida cotidiana, como parte de un proceso de constitución de un sujeto y, por extensión, de una comunidad. La noción que se articula de cultura aquí, en este sentido, más que trascendente es incluyente. Culturalización de particularidades, podríamos decir, sin búsquedas de formas comunes y sin pretensiones de integrar. Pero ¿qué diferencia hay entre integrar e incluir? ¿Por qué hablo de una cultura incluyente pero no integrativa? Como explica João Camillo Penna, las operaciones de integración son universalizantes, “(…) buscan homogeneizar la sociedad a partir del centro, en un marco nacional” (Penna, 2009: 173). En cambio, la inclusión considera las particularidades positivamente y sobre ellas desarrolla medidas transitorias (transitorias en tanto “(…) el remedio no intenta curar al enfermo, sino apenas mantenerlo convaleciente en la cama” (Penna, 2009: 173)). Frente al gesto de criminalizar la periferia, y, en consecuencia, considerarla como “marginal”, la política de inclusión, señala Penna, se activa básicamente desde la culturalización de la misma. La colección de Heloísa Buarque pretende, entonces, mostrar una culturalización de la vida sufriente que, a diferencia de la criminalización, anima al diálogo y, por lo tanto, a la inserción.

La posibilidad de diálogo es una de las afirmaciones más evidentes que establece la colección Tramas Urbanas. Y se plantea desde varios aspectos. En cuanto atendemos, por ejemplo, a los nombres de los autores, se puede ver que algunos de los que firman los libros no son de la periferia, sino que son artistas o académicos de origen social medio. La referencia a la periferia se propone, en este sentido, a partir de un diálogo entre voces de sujetos con vinculaciones diferentes en relación con ese lugar. El ejemplo más claro es el libro Vigário Geral, escrito en conjunto por una historiadora de clase media y un literato oriundo de un suburbio carioca y coordinador cultural del movimiento Afro Reagge.

No se trata, de todos modos, de una nivelación absoluta de las voces. Esto se puede comprender si prestamos atención a la reseña que tiene cada contratapa, en la que escriben rappers o escritores periféricos cuando se trata de autores del mismo origen, pero cuando no, como en el caso de Cidade Ocupada, libro escrito por un artista de clase media, quien reseña el libro es una reconocida voz de la academia ligada al cine y a las artes visuales, Ivana Bentes. En este sentido, se puede inferir que, si bien Tramas Urbanas remite a un diálogo entre periferia-academia, reconoce las agencias desde las que cada una de las voces se formó y actúa.

El diálogo a nivel de las voces se puede visualizar también en los aspectos gráficos del objeto libro. Si nos centramos en las tapas, por ejemplo, en cada uno de los diez ejemplares que conforman esta colección se advierte una especie de collage de imágenes, grafittis, papeles, colores que no coinciden con los propios de las fotografías, sino que están superpuestos. No hay pretensión alguna de proponer una imagen homogénea, sin pliegues ni superposiciones. Tampoco hay intención de señalar imágenes que pretendan documentar, es decir, mostrar una verdad, de ahí que las fotografías no mantengan su color original y que en su mayoría se muestren pixeladas. La propuesta de las tapas parece adelantar, más bien, una idea de periferia en tanto forma de elementos superpuestos y en diálogo.

El montaje de la tapa da cuenta, asimismo, de una propuesta de lectura, que se reitera en la separación entre capítulos. En esos casos, la titulación de cada parte ocupa dos páginas, en las que se lee el nombre en letras bien grandes, que muchas veces superan el espacio, por lo que aparecen cortadas, y en general con las palabras superpuestas, provocando un efecto 3 D, que, como tal, no solamente arrastra un efecto visual, sino también táctil y cinético. Así, el ojo del lector, habituado a las letras en sucesión y sin relieves ni matices, se enfrenta con sensaciones particulares, justamente al tomar el libro y también antes de empezar a leer cada capítulo.

Finalmente, en lo que hace a los aspectos gráficos, tanto dentro como fuera del libro aparece pequeño y completo, o bien de cerca y fragmentado, el logo de la colección: una especie de tejido que remite directamente a la palabra “Tramas”. En el nombre de la colección no resuena ninguna categoría relacionada al “arte” o a la “cultura”, sino más bien a la idea de artesanía, es decir, un producto hecho a mano que, parafraseando a Benjamin, está marcado por las huellas de los dedos de quien lo crea. En otras palabras, “tramas”, o, en español, “tejido” apunta a la relación entre el artesano y el objeto que trabaja, en consonancia con la reciprocidad historia de vida-escritura.

La palabra tejido remite, a su vez, al trabajo por medio de un material en crudo, vinculado directamente a las afirmaciones de los periféricos respecto de los materiales de sus producciones, como el habla de la calle en el caso de los escritores. Por ejemplo, dice el rapper Mano Brown en la contratapa del libro de Sergio Vaz: “Sergio Vaz é um cara diferenciado, um cara que trabalha na arte de garimpar matéria prima na quebrada: o ser humano e seus pensamentos. Ele usa como arma e instrumento, a humildade do malandro e a inteligencia, no momento certo e na hora certa.”. Tejido, entonces, como esa materia prima no mediada ni presentada como objeto de consumo.

La última frase de estas palabras de Mano Brown, nos trasladan a un tercer significado de “tramas”: a la idea de “conspiración”, es decir, de la unión de un grupo contra otro. Este aspecto resulta un punto fundamental, en tanto señala un elemento propio de los movimientos culturales de la periferia, el de la violencia. El llamar de “tramas” a esta colección asume que una categoría que problematizan estas producciones es ésa. Y efectivamente, todos los escritores de la periferia afirman la calificación de violentos que pesa sobre ellos, aunque la articulan a otro cuerpo: el lenguaje mismo (recordemos aquel “general de las palabras” que leímos al principio).

Finalmente, la palabra “trama”, según el diccionario, significa “relatos”, contextualizados en este caso en la “urbe”, y no en la periferia: llamativamente el adjetivo es “urbanas” y no “periféricas”, por lo que la atención se centra en los significados de rapidez, movimiento. Así, “tramas urbanas” abre también la idea de formaciones móviles y dificultosamente fosilizables, de ahí que no sea la palabra “historias” la que da nombre a la colección, que remitiría a cierto ordenamiento.

¿Qué se puede decir, por último, de la introducción sin firma que abre cada uno de los libros? En principio, que al leerla se comprende sin problemas que es la voz de Petrobrás la que articula esas palabras. Hay, entonces, junto a la voz de los intelectuales y la de los artistas, una tercera voz que participa en este diálogo. Desde una retórica del desarrollo y de la inclusión, esta empresa justifica su ayuda económica para la colección de libros: “A Petrobrás, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso pais, apóia essa coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade social contribuir á inclusão cultural e o fortalecimento da cidadania que esse debate pode propiciar.”. La voz de Petrobrás es la que hace posible este tipo de producciones de diálogo intelectuales-periféricos, por medio de la ayuda económica. A partir de una “ética de la discriminación positiva”, como dice el antropólogo Renato Rosaldo, Petrobrás se posiciona como un puente para que la diferencia se incluya a la ciudadanía por medio de la cultura. Nuevamente, la vinculación de la idea de cultura con el programa de la inclusión. Pero hay más: la concepción de dicha categoría que se puede percibir en la palabra de Petrobrás se expande hacia la idea de cultura como medio para resolver problemas en pós de la ampliación de la idea de “ciudadanía” en la sociedad brasileña y hacia la idea de apuesta económica en función de ese propósito. En palabras de George Yúdice, se trata de la idea de “cultura” en tanto “recurso”, entendida como “(…) expediente para el mejoramiento tanto sociopolítico cuanto económico, es decir, para la participación progresiva en esta era signada por compromisos políticos declinantes, conflictos sobre la ciudadanía y el surgimiento de lo que Jeremy Rifkin denominó “capitalismo cultural”.” (Yúdice, 2002: 23). La cultura situada, entonces, entre un programa de justicia social y un programa económico.

En base a la palabra de Petrobrás, podría llegar a hipotetizarse que, al fin y al cabo, esta colección lo que termina siendo es una forma más para que las clases gerenciales saquen provecho, por medio de la retórica de la inclusión, de las producciones de los grupos periféricos. Pero este reduccionismo se complejiza y debilita al considerar que la voz de los periféricos no se articula solamente desde esta colección, sino que los libros de Tramas Urbanas son una forma más de modular la palabra periférica, en este caso en diálogo con voces intelectuales y con potenciales lectores de clase media. Esto se puede percibir claramente cuando, al final del libro, Sérgio Vaz dice: “Quando a Heloisa pediu que eu contasse um pouco da minha história e da Cooperifa, no começo eu não estava muito afim, por conta da minha memória um tanto quanto irresponsavel e mentirosa. Mas também não podia me furtar o direito de dividir com você essa história de luta em prol da cidadania através da literatura”. Ése primer “Heloisa me pediu” con el que comienza la cita es clave, dado que marca el papel activo del escritor de la periferia, en este caso, frente a las demandas desde el mundo letrado. Lo que se establece con la afirmación del pedido, la reflexión sobre el mismo y la aceptación es que no se trata de una operación consentida por los escritores en tanto única alternativa para la circulación de sus textos. A diferencia de las posibilidades inexistentes que Carolina de Jesus, autora de Quarto de despejo. Diário de uma favelada, tenía en relación con la publicación de sus escritos en los años 60, los escritores “en la favela” (y no “de la favela”, como suele aclarar Ferréz, uno de los más combatientes escritores del movimiento “literatura marginal”) han llevado a cabo en los últimos años un gran número de cooperativas editoriales y medios alternativos para que sus textos circulen y sean accesibles.

Escribir un libro para la colección Tramas Urbanas es una operación más dentro de la “historia de lucha em prol da cidadania”. Es un “arma” en contra de la criminalización de sus vidas y en pos de la culturalización de las mismas. Más que una “culturalización de la vida sufriente”, que es la operación que se hace desde la colección, los escritores apuntan a una “culturalización del ciudadano sufriente” . En este triple agenciamiento –el de los letrados, empresas y escritores de la periferia- se complejiza la operación de la culturalización como escenario de debate.

Esta operación “bélica” de los escritores consta de dos pasos: una subjetivación del sujeto periférico por medio de la escritura, y una objetivación de ésta, por medio del libro. El “aura” del objeto libro, defendida por los “letrados”, es reafirmada en este caso por y frente a los escritores de la periferia urbana. Así, ese antiguo lazo entre los discursos y la materialidad, que la revolución digital hace tiempo está empezando a quebrar, se renueva a la hora de leer una voz contextualizada en la periferia. Pero la diversidad en las formas de presentar ese objeto obliga a la revisión de los gestos y las nociones que nuestros ojos, aquellos “órganos de la tradición”, según el principio de Boas, asocian con lo escrito. En este sentido, la colección Tramas Urbanas da cuenta de que frente a este tipo de escrituras periféricas es necesario revisar los modos de leer y, en consecuencia, los modos de hacer crítica.

BIBLIOGRAFIA

Foucault, Michel, Microfísica del poder, Madrid, Ediciones La Piqueta, 1992

Hollanda, Heloísa Buarque, 26 poetas hoje, 2da edição, Rio de Janeiro, Aeroplano Editora, 1998

———————————–, “Coleção Tramas Urbanas lança livro sobre movimento literário da periferia paulistana”, en Revista Raiz, São Paulo, 12 setembro 2008

Penna, João Camillo, “Criminalización y culturalización de la pobreza”, en Revista Confines, Buenos Aires, número 23, abril de 2009: pp. 169-179

Yúdice, George, El Recurso de la cultura, Barcelona, Editorial Gedisa, 2002

 

Radicais, Raciais, Racionais: a grande fratria do rap na periferia de São Paulo. Violência e Mal Estar na Sociedade | de Maria Rita Kehl

Comício do Partido dos Trabalhadores, dia 1º de maio de 1999. Tem mais gente do que no ano passado, ou retrasado, mas a diferença não é muito significativa. O que chama a atenção é a presença de um outro tipo de gente, um “público” diferente da militância petista que já se pode chamar de tradicional, 18 anos depois. São jovens das periferias de São Paulo. A caracterização é clara. Olha-se para eles e se vê que não vieram dos sindicatos, das comunidades católicas, da base organizada de alguns deputados, da militância feminista. Esta moçada usa boné, bermudas largas, moletons imensos, cabelo raspado e óculos escuros. São escuros também, a grande maioria. Estão atentos, um pouco tensos, impacientes, mas nada agressivos. Escutam os discursos (sempre os mesmos, sempre chatos, com exceção das falas vivas do Lula e do Vicentinho), aplaudem, vaiam, repetem algumas palavras de ordem. O clima é pacífico e ordeiro, contrariando preconceitos da classe média branca. Alguns garotos sobem nas janelas do prédio dos Correios para ver melhor; um vitrô abre sozinho, pode-se presentir uma invasão, mas não: os próprios meninos se encarregam de fechar o vidro e continuam equilibrados perigosamente, assistindo a tudo lá do alto.

Quando o animador do comício anuncia a apresentação de alguns grupos de rap, encerrando com os Racionais MC’s, dá para entender a presença da moçada: são os manos. O grande exército dos fãs dos Racionais. Vale falar em fãs, no caso deles? Não, com certeza deve haver um termo que indique outro tipo de interação entre a multidão de jovens pobres e os grupos de rap que os representam. É como se cada um deles se considerasse um rapper em potencial, capaz de contar sua vida no ritmo repetitivo e opressivo, nas rimas obrigatórias, às vezes preciosas, às vezes brutais, executando a dança que não autoriza alegria nenhuma, sensualidade nenhuma — disto que nasceu na periferia de algumas cidades americanas como rhythm and poetry e se espalhou pelo Brasil, partindo de São Paulo, é claro: a mais opressiva das cidades brasileiras.

Há 17 anos, a grande festa petista de encerramento da campanha da primeira candidatura do Lula em 1982, daquela vez ao governo de São Paulo, contou com a presença estranha, espontânea, não necessariamente politizada, mas talvez em busca de alternativas, de vários punks da periferia. Sem liderança, desorganizados, os punks fizeram um certo “turismo revolucionário” em volta do PT, que não sabia o que fazer com eles. Seis anos depois, num melancólico e esvaziado 1º de maio de 1988 na praça da Sé, via-se um grupo de punks, já então aderidos a um patético neonazismo, cruzar a praça em atitude ameaçadora, procurando briga. Viraram inimigos da esquerda, truculentos, racistas. Buscaram reconhecimento — isto que todo jovem busca, mas que os pobres precisam lutar muito mais para obter — identificando-se com o opressor. Arrogância, racismo, violência física; os punks marcaram sim sua presença na cidade, mas não foram capazes de superar a condição subjetiva de sua alienação. Tudo o que conseguiram fazer foi passar adiante, para cima de outros garotos ainda mais frágeis do que eles, a humilhação que se recusavam (com razão) a sofrer.

Agora é diferente. A esquerda talvez ainda não saiba o que fazer, ou o que propor, para os milhares de rappers que, liderados pelo Mano Brown, parecem interessados em radicalizar um discurso contundente de oposição. Mas os “manos” têm uma idéia um pouco mais precisa de sua revolução, a começar pelas armas: sua palavra em primeiro lugar. Em seguida, sua “consciência”, sua “atitude” — expressões empregadas insistentemente nas letras dos Racionais, e que em termos gerais significam: orgulho da raça negra e lealdade para com os irmãos de etnia e de pobreza. Sabem para quem estão falando, e sabem sobretudo de onde estão falando: “Mil novecentos e noventa e três, fodidamente voltando, Racionais/ usando e abusando de nossa liberdade de expressão/ um dos poucos direitos que um jovem negro ainda tem neste país./ Você está entrando no mundo da informação/ autoconhecimento, denúncia e diversão./ Este é o raio-X do Brasil, seja bem vindo” (“Fim de semana no parque” — Mano Brown e Edy Rock).

Os quatro jovens integrantes do grupo — Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edy Rock —, apesar das 500 mil cópias vendidas do último CD, Sobrevivendo no inferno, recusam qualquer postura de pop-star. Para eles, a questão do reconhecimento e da inclusão não se resolve através da ascensão oferecida pela lógica do mercado, segundo a qual dois ou três indivíduos excepcionais são tolerados por seu talento e podem mesmo se destacar de sua origem miserável, ser investidos narcisicamente pelo star system e se oferecer como objetos de adoração, de identificação e de consolo para a grande massa de fãs, que sonham individualmente com a sorte de um dia também virarem exceção. Os integrantes dos Racionais apostam e concedem muito pouco à mídia. “Não somos um produto, somos artistas”, diz KL Jay em entrevista ao Jornal da Tarde (5/8/98), explicando por que se recusam a aparecer na Globo (uma emissora que apoiou a ditadura militar “e que faz com que o povo fique cada vez mais burro”) e no SBT (“Como posso ir ao Gugu se o programa dele só mostra garotas peladas rebolando ou então explorando o bizarro”?). Até mesmo o rótulo de artista é questionado, numa recusa a qualquer tipo de “domesticação”. “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista” (Mano Brown).

O tratamento de “mano” não é gratuito. Indica uma intenção de igualdade, um sentimento de fratria, um campo de identificações horizontais, em contraposição ao modo de identificação/dominação vertical, da massa em relação ao líder ou ao ídolo. As letras são apelos dramáticos ao semelhante, ao irmão: junte-se a nós, aumente nossa força. Fique esperto, fique consciente — não faça o que eles esperam de você, não seja o “negro limitado” (título de uma das músicas de Brown) que o sistema quer, não justifique o preconceito dos “racistas otários” (título de outra música). A força dos grupos de rap não vem de sua capacidade de excluir, de colocar-se acima da massa e produzir fascínio, inveja. Vem de seu poder de inclusão, da insistência na igualdade entre artistas e público, todos negros, todos de origem pobre, todos vítimas da mesma discriminação e da mesma escassez de oportunidades. Antes dos Racionais, muitos grupos se apresentaram no Anhangabaú neste 1º de maio. A impressão que se tinha é que eram todos protegidos dos manos mais velhos, que aceitaram tocar sob condição de abrir espaço para os menos conhecidos. Quando um começo de vaia recebeu a apresentação do Apocalypse 16, os meninos não se intimidaram. Com voz de criança, o líder desta banda cujos componentes não aparentam mais do que 14, 15 anos, chamou a atenção da platéia, conclamou à união, à “atitude consciente”, lembrou que eram todos manos; calou a vaia e terminou seu pequeno discurso com: “Apocalypse 16, armados de consciência!” — depois tocaram. Sem muito sucesso, mas tocaram.

Os rappers não querem excluir nenhum garoto ou garota que se pareça com eles.

“Eu sou apenas um rapaz latino-americano/ apoiado por mais de cinqüenta mil manos/ efeito colateral que o seu sistema fez”, canta Mano Brown, líder dos Racionais (“Capítulo 4, Versículo 3”.) À diferença das bandas de rock pesado, não oferecem a seu público o gozo masoquista de ser insultados por um pop-star milionário fantasiado de outsider. A designação “mano” faz sentido: eles procuram ampliar a grande fratria dos excluídos, fazendo da “consciência” a arma capaz de virar o jogo da marginalização. “Somos os pretos mais perigosos do país e vamos mudar muita coisa por aqui. Há pouco ainda não tínhamos consciência disso” (KL Jay).

A que perigo Jay se refere? A julgar por algumas declarações à imprensa e a maior parte das faixas dos CDs dos Racionais, há uma mudança de atitude, partindo dos rappers e pretendendo modificar a auto-imagem e o comportamento de todos os negros pobres do Brasil: é o fim da humildade, do sentimento de inferioridade que tanto agrada à elite da casa grande, acostumada a se beneficiar da mansidão — ou seja: do medo — de nossa “boa gente de cor”. “Quando vocês falam com um cara, o que esperam que aconteça depois?” (Raça) — Brown: “Levantar a cabeça, perder o medo e encarar. Se tomar um soco, devolve”. “E o que aconteceria (Raça) se todo negro da periferia agisse assim?” — “O Brasil ia ser um país mais justo”. As mensagens dos Racionais para o pessoal que ouve e compra seus CDs são as seguintes: “Gostaria que eles se valorizassem e gostassem de si mesmos” (Mano Brown); “Ideologia e autovalorização” (KL Jay); “Dignidade deve ser o seu lema” (Ice Blue); “Que escutem os Racionais, é lógico; E paz!”(Edy Rock) (entrevista para DJ Sound n.15, 1991).

Eles apelam para a consciência de cada um, para mudanças de atitude que só podem partir de escolhas individuais; mas a autovalorização e a dignidade de cada negro, de cada ouvinte do rap, depende da produção de um discurso onde o lugar do negro seja diferente do que a tradição brasileira indica. Daí a diferença entre os Racionais e outro jovem músico negro, outro Brown, este baiano. “Tem gente que fala que o rap de São Paulo é triste (Raça). O Carlinhos Brown falou que isto é não saber reinar sobre a miséria” — Mano Brown: “Na Bahia os caras têm que esconder a miséria que é pro turista vir, pra dar dinheiro pros caras lá, inclusive o Carlinhos Brown. São Paulo não é um ponto turístico. E esse negócio de reinar sobre a miséria, você não pode é aceitar a miséria. Mas acho válido o que ele faz pela sua comunidade.”

Acontece que os Racionais não estão interessados nem em reinar sobre a miséria (o que seria isto? uma forma mais sedutora de dominação?), nem em esconder a miséria para inglês ver. Seu público-alvo não é o turista — são os pretos pobres como eles. Não, eles não excluem seus iguais, nem se consideram superiores aos anônimos da periferia. Se eles excluem alguém, sou eu, é você, consumidor de classe média — “boy”, “burguês”, “perua”, “babaca”, “racista otário” — que curtem o som dos Racionais no toca-CD do carro importado “e se sente parte da bandidagem” (KL Jay). Ou seja: não estão vendendo uma fachada de malandragem para animar o tédio dos jovens de classe média.

Assim, fica difícil gostar deles não sendo um(a) deles. Mais difícil ainda falar deles. Eles não nos autorizam, não nos dão entrada. “Nós” estamos do outro lado. Do lado dos que têm tudo o que eles não têm. Do lado dos que eles invejam, quase declaradamente, e odeiam, declaradamente também. Mas, sobretudo, do lado dos que eles desprezam.

Como gostar desta música que não se permite alegria nenhuma, exaltação nenhuma? Como escutar estas letras intimidatórias, acusatórias, freqüentemente autoritárias, embaladas pelo ritmo que lembra um campo de trabalhos forçados ou a marcha dos detentos ao redor do pátio, que os garotos dançam de cabeça baixa, rosto quase escondido pelo capuz do moleton e os óculos escuros, curvados, como se tivessem ainda nos pés as correntes da escravidão? Por onde se produz a identificação através de um abismo de diferenças, que faz com que adolescentes ricos ouçam e (por que não?) entendam o que estão denunciando os Racionais, e uma mulher adulta de classe média receba a bofetada violenta do rap não como um insulto mas como um desabafo compartilhado, não como uma provocação pour épater, mas como uma denúncia que a compromete imediatamente com eles?

Se eles não me autorizam, vou ter que forçar a entrada. A identificação me facilita as coisas; aposto no espaço virtual, simbólico, e portanto inesgotável, da fratria e me passo para o lado dos manos, sem esquecer (nem poderia) a minha diferença — é de um outro lugar, do “meu” lugar, que escuto e posso falar dos Racionais MC’s. É porque eles falam diretamente não apenas à minha má consciência de classe média esquerdista, mas ao mal-estar que sinto por viver num país que reproduz diariamente, numa velocidade de linha de montagem industrial, a violenta exclusão de milhares de jovens e crianças que, apesar dos atuais discursos neoliberais que enfatizam a competência e o esforço individual, não encontram nenhuma oportunidade de sair da marginalização em que se encontram. Milhares de crianças e jovens cujas vidas correm o risco de ser apenas o “efeito colateral que o seu (meu!) sistema fez” (“Cap. 4, Versículo 3” — Mano Brown). É a capacidade de simbolizar a experiência de desamparo destes milhões de periféricos urbanos, de forçar a barra para que a cara deles seja definitivamente incluída no retrato atual do país (um retrato que ainda se pretende doce, gentil, miscigenado), é a capacidade de produzir uma fala significativa e nova sobre a exclusão, que faz dos Racionais MC’s o mais importante fenômeno musical de massas do Brasil dos anos 90.

A FRATRIA ÓRFÃ

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já
sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia,
3 são negras. Nas universidades brasileiras, apenas
3% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem
negro morre violentamente em São Paulo.

Brown, Cap. 4, Versículo 3

Quem prestar atenção nas letras quilométricas do rap, provavelmente vai se sentir mal diante do tom com que são proferidos estes discursos. É um tom que se poderia chamar de autoritário, mistura de advertência e de acusação. A voz do cantor/narrador dirige-se diretamente ao ouvinte, ora supondo que seja outro mano — e então avisa, adverte, tenta “chamar à consciência” —, ora supondo que seja um inimigo —, e então, sem ambigüidades, acusa. Diante de uma voz assim tão ameaçadora, de um discurso que nos convida a “trocar uma idéia” mas não troca nada, não negocia nada de seu ponto de vista e de sua posição (posição sempre moral, mas não necessariamente moralista — veremos), cabe ao ouvinte indagar: mas como ele se autoriza? Quem ele pensa que é?

O Brasil é um país que se considera, tradicionalmente, órfão de pai. Não prezamos nossos antepassados portugueses; não respeitamos uma elite governante que não respeita nem a lei, nem a sociedade, nem a si mesma; não temos grandes heróis entre os fundadores da sociedade atual, capazes de fornecer símbolos para nossa auto-estima. Nossa passagem do “estado de natureza” (que é como, erradamente, simboliza-se as culturas indígenas) ao “estado de cultura” não se deu com a chegada de um grupo de puritanos trazendo o projeto de fundar uma comunidade religiosa, como no caso dos Estados Unidos, mas pelo despejo, nessas terras, de um bando de degredados da Coroa portuguesa. Não vieram para civilizar, mas para usufruir e principalmente, usurpar. Pelo menos é assim que se interpreta popularmente, com boa dose de ironia, a chegada dos portugueses ao Brasil.1 Fundou-se assim o mito da “pátria-mãe gentil” (que Caetano Veloso acertadamente chamou “mátria”, pedindo a seguir: “quero fratria”!) que tudo autoriza, tudo tolera, “tudo dá”.

É óbvio que o mito da abundância fácil produziu exploração, concentração de riquezas numa escala que nos coloca em primeiro lugar no ranking da vergonha mundial e miséria. É óbvio que a orfandade simbólica produziu não uma ausência de figuras paternas, mas um excesso de pais reais, abusados, arbitrários e brutais como o “pai da horda primitiva” do mito freudiano. O que falta à sociedade brasileira não é mais um painho mandão e pseudo protetor (vide ACM, Getúlio, Padre Cícero, etc.), mas uma fratria forte, que confie em si mesma, capaz de suplantar o poder do “pai da horda” e erigir um pai simbólico, na forma de uma lei justa, que contemple as necessidades de todos e não a voracidade de alguns.

Mas, numa sociedade acostumada ao paternalismo autoritário, também para as formações fraternas, em sua função criadora de significantes e de cidadania, coloca-se uma questão: como evitar que, do ato de coragem coletivo que elimina a antiga dominação do pai onipotente e institui um novo pacto civilizatório, produza-se um novo usurpador na figura do herói? Por outro lado, como manter, na ausência do herói concentracionário da fala coletiva (lembrar Roland Barthes: “o mito é uma fala roubada”), um discurso consistente que suporte e legitime as formações sociais produzidas na horizontalidade das relações democráticas? Como sustentar, na expressão de Jacques Rancière, a “letra órfã”, as novas formas de linguagem produzidas nas trocas horizontais e que tentam comunicar, de um semelhante a outro, experiências que façam sentido, que produzam valor, que sugiram um “programa mínimo” para uma ética da convivência?

As falas dos Racionais oscilam; passam do lugar comunitário dos manos ao lugar do herói exemplar, escorregando dali para o lugar da autoridade, falando em nome de um “pai” que sabe mais, que pode aconselhar, julgar, orientar. Por que “Racionais”? — perguntou o repórter da revista Raça. Edy Rock responde: “Vem de raciocínio, né? Um nome que tem a ver com as letras, que tem a ver com a gente. Você pensa pra falar.” (grifo nosso). Brown: “Naquela época o rap era muito bobo. Rap de enganar, se liga, mano? Não forçava a pensar”. Mais adiante, Brown (respondendo a uma questão de por que o rap é político): “Você já nasceu preto, descendente de escravo que sofreu, filho de escravo que sofreu, continua tomando ‘enquadro’ da polícia, continua convivendo com drogas, com tráfico, com alcoolismo, com todos os baratos que não foi a gente que trouxe pra cá. Foi o que colocaram pra gente. Então não é uma questão de escolha, é que nem o ar que você respira. Então o rap vai falar disso aí, porque a vida é assim.”

Vejamos um dos muitos trechos de letras que ilustram esta dupla inscrição do sujeito, que, por um lado, “pensa pra falar” — produz uma fala própria, destacada dos discursos do Outro —, mas, por outro lado, não poderia falar de outra coisa, “porque a vida é assim”, ou seja, não confunde sua autonomia pensante e crítica com uma arbitrariedade de referências, como o delírio de auto-suficiência típico da alienação subjetiva das sociedades de consumo. O distanciamento necessário para se pensar antes de falar vem de um mergulho na própria história (“somos descendentes de escravo que sofreu…”) e de uma aceitação ativa, não conformista, da própria condição, do pertencimento a um lugar e uma coletividade que, ao mesmo tempo que fortalece os enunciados, recorta um campo a partir de onde o sujeito pode falar, dificultando o escape na direção de fantasias de adesão a fórmulas imaginárias de aliciamento ou de consolação.

“Eu não sei se eles/ estão ou não autorizados/ a decidir o que é certo ou errado/ inocente ou culpado retrato falado/ não existe mais justiça ou estou enganado? Se eu fosse citar o nome de todos os que se foram/ o meu tempo não daria para falar mais…/ e eu vou lembrar que ficou por isso mesmo/ e então que segurança se tem em tal situação/ quantos terão que sofrer pra se tomar providência/ ou vão dar mais um tempo e assistir a seqüência/ e com certeza ignorar a procedência./ O sensacionalismo pra eles é o máximo/ acabar com delinqüentes eles acham ótimo/ desde que nenhum parente ou então é lógico/ seus próprios filhos sejam os próximos (…) Ei Brown, qual será a nossa atitude?/ A mudança estará em nossa consciência/ praticando nossos atos com coerência/ e a conseqüência será o fim do próprio medo/ pois quem gosta de nós somos nós mesmos/ tipo, porque ninguém cuidará de você/ não entre nessa à toa/ não dê motivo pra morrer/ honestidade nunca será demais/ sua moral não se ganha, se faz/ não somos donos da verdade/ por isso não mentimos/ sentimos a necessidade de uma melhoria/ nossa filosofia é sempre transmitir/ a realidade em si/ Racionais MC’s” (“Pânico na zona Sul”).

Nos últimos versos de “Júri Racional” o grupo condena um negro “otário” que “se passou para o outro lado”, recusando a identificação com os manos em troca da aceitação dos playboys.

“Eu quero é devolver nosso valor, que a outra raça tirou./ Esse é meu ponto de vista. Não sou racista, morou?/ E se avisaram sua mente, muitos de nossa gente/ mas você, infelizmente/ sequer demonstra interesse em se libertar./ Essa é a questão, autovalorização/esse é o título da nossa revolução./ Capítulo 1:/ O verdadeiro negro tem que ser capaz/ de remar contra a maré, contra qualquer sacrifício./ Mas no seu caso é difícil: você só pensa no próprio benefício./ Desde o início, me mostrou indícios/ que seus artifícios são vícios pouco originais/ artificiais, embranquiçados demais./ Ovelha branca da raça, traidor! Vendeu a alma ao inimigo, renegou sua cor” Refrão: “Mas nosso júri é racional, não falha/ por quê? não somos fãs de canalha! Conclusão: “Por unanimidade/ o júri deste tribunal declara a ação procedente/ e considera o réu culpado/ por ignorar a luta dos antepassados negros/ por menosprezar a cultura negra milenar/ por humilhar e ridicularizar os demais irmãos/ sendo instrumento voluntário do inimigo racista./ Caso encerrado”.

O viés autoritário desses versos, a nosso ver, tem pelo menos três determinantes. Primeiro, a certeza de que uma causa coletiva está em jogo. Trata-se de estancar o derramamento de sangue de várias gerações de negros, de barrar a discriminação sem recusar a marca originária. Nada de abaixar a cabeça, fazer o “preto de alma branca” que a elite sempre apreciou. Trata-se de produzir “melhoria” na vida da periferia. Mas para isto — aí vem a segunda razão — é necessário “transmitir a realidade em si”. Isto porque a maior ameaça não vem necessariamente da violência policial, nem da indiferença dos “boys”. Vem da mistificação produzida pelos apelos da publicidade, pela confusão entre consumidor e cidadão que se estabeleceu no Brasil neoliberal, que fazem com que o jovem da periferia esqueça sua própria cultura, desvalorize seus iguais e sua origem, fascinado pelos signos de poder ostentados pelo burguês. É aí, dizem as letras de Brown, que ele se perde:

“Você viu aquele mano na porta do bar/ ele mudou demais de uns tempos pra cá/ cercado de uma pá de tipo estranho/ que promete pra ele o mundo dos sonhos./ Ele está diferente, não é mais como antes/ agora anda armado a todo instante/ não precisa mais dos aliados/ negociantes influentes estão ao seu lado./ Sua mina apaixonada, linda e solidária/ perdeu a posição, ele agora tem várias… (…) Ascenção meteórica, contagem numérica/ farinha impura, o ponto que mais fatura/ um traficante de estilo, bem peculiar/ você viu aquele mano na porta do bar?” (…) “A lei da selva é assim, predatória/ clic, clec, BUM, preserve sua glória/ transformação radical, estilo de vida/ ontem sossegado, e tal/ hoje homicida/ ele diz que se garante e não tá nem aí/ usou e viciou a molecada daqui”… (“Mano na porta do bar” — Brown e Rock).

Aqui entra a terceira determinação, que justifica que o discurso predominantemente moral dos Racionais não se confunda com moralismo, já que não fala em nome de nenhum valor universal, além da preservação da própria vida. O tom autoritário das letras está avisando os manos: onde reina a “lei da selva” a pena de morte já está instalada, sem juízo prévio. Diante da vida sempre ameaçada, não se pode vacilar.

“Você está vendo o movimento na porta do bar?/ tem muita gente indo pra lá, o que será? /(…) Ouço um moleque dizer, mais um cuzão da lista/ dois fulanos numa moto, única pista/ eu vejo manchas no chão, eu vejo um homem ali/ é natural para mim, infelizmente./ A lei da selva é traiçoeira, surpresa/ hoje você é o predador, amanhã é a presa./ Já posso imaginar, vou confirmar/ me aproximei da multidão e obtive a resposta/ você viu aquele mano na porta do bar?/ ontem ele caiu com uma rajada nas costas”…

O terror, e não o poder, dá o tom exasperado a essas falas. O crime e a droga são uma tentação enorme, agravada ainda pela falta de alternativas. O rap não oferece, evidentemente, nenhuma saída material para a miséria; também não aposta na transgressão como via de auto-afirmação, como é comum entre os jovens de classe média (exemplo disso é o sucesso do grupo Planet Hemp). Muito menos no confronto direto com a principal fonte de ameaças contra a vida dos jovens, que a julgar pelo rap, é a própria polícia. Conformismo ou sabedoria? Provavelmente um pouco de cada um, se é que se pode considerar conformista o ceticismo dos manos quanto à possibilidade de enfrentamento com as instituições policiais no Brasil. O que o rap procura promover são algumas atitudes individuais fundamentadas numa referência coletiva. “Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal/ por menos de um real, minha chance era pouca/ mas se eu fosse aquele moleque de touca/ que engatilha e enfia o cano dentro de sua boca/ de quebrada, sem roupa, você e sua mina/ um, dois, nem me viu! já sumi na neblina./ Mas não! permaneço vivo, eu sigo a mística/ 27 anos contrariando a estatística (grifo nosso)./ Seu comercial de TV não me engana/ eu não preciso de status, nem fama./ Seu carro e sua grana já não me seduz/ e nem a sua puta de olhos azuis./ Eu sou apenas um rapaz latino-americano/apoiado por mais de cinqüenta mil manos (grifo nosso)/ efeito colateral que seu sistema produz…” (“Capítulo 4, Versículo 3”).

FUNÇÃO DO PAI, INVENÇÕES DOS MANOS

Os “cinqüenta mil manos” produzem um apoio — mas onde está um pai? Qual o significante capaz de abrigar uma lei, uma interdição ao gozo, quando a única compensação é o direito de continuar, “contrariando as estatísticas”, a lutar pela sobrevivência? Surpreendentemente, Mano Brown “usa” Deus para fazer esta função. Embora em nenhum momento fale em nome de igreja nenhuma, Deus é lembrado — mas para quê? “Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor/ pelo rádio, jornal, revista e outdoor./ Te oferece dinheiro, conversa com calma/ contamina seu caráter, rouba sua alma/ depois te joga na merda sozinho,/ transforma um preto tipo A num neguinho./ Minha palavra alivia sua dor,/ ilumina minha alma, louvado seja o meu Senhor/ que não deixa o mano aqui desandar,/ ah, nem sentar o dedo em nenhum pilantra./ Mas que nenhum filho da puta ignore a minha lei./ (“Capítulo 4, Versículo 3”).

Deus é lembrado como referência que “não deixa o mano aqui desandar”, já que todas as outras referências (“rádio, jornal, revista e outdoor”) estão aí para “transformar um preto tipo A num neguinho”. Deus é lembrado como pai cujo desejo indica ao filho o que é ser um homem: um “preto tipo A”. Pela primeira vez, fez sentido para mim a frase “Jesus te ama”, que vejo freqüentemente colada nos vidros dos carros (embora naqueles casos, a meu ver, o sentido propagandístico, voltado ao aliciamento e à domesticação do outro, predomine sobre o sentido de auto-ajuda da utilização de Deus feita por Mano Brown); pois é preciso que o Outro me ame, para que eu possa me amar. É preciso que o Outro aponte, a partir do seu desejo (que não se pode conhecer, mas a cultura não cessa de produzir pistas para que se possa imaginar), um lugar de dignidade, para que o sujeito sinta-se digno de ocupar um lugar.

Não me atrevo a interpretar a religiosidade pesssoal, íntima, dos componentes do grupo. Mas sugiro que o Senhor que aparece em alguns destes raps (junto com os Orixás! ver “A fórmula mágica da paz” — Mano Brown: “agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei para trás”), além de simbolizar a Lei, tem a função de conferir valor à vida, que para um mano comum “vale menos que o seu celular e o seu computador” (“Diário de um detento”, Brown e Jocenir, este último prisioneiro da casa de Detenção de São Paulo). No que depender da lei dos homens, estes jovens já estão excluídos, de fato, até do programa mínimo da Declaração dos Direitos do Homem. A alternativa simbólica moderna, imanente, a Deus, seria “a sociedade” — esta outra entidade abstrata, abrangente, que deveria simbolizar o interesse comum entre os homens, a instância que “quer” que você seja uma pessoa de bem, e em troca lhe oferece amparo, oportunidades e até algumas alternativas de prazer.

A sociedade — temos mais de 200 anos de Iluminismo nas costas! Mas será que o Iluminismo alguma vez falou para a ralé? — é uma instância superior a Deus do ponto de vista da emancipação dos homens, já que existe no reino deste mundo, organizada a partir — supõe-se — das necessidades e acordos estabelecidos entre semelhantes, e maleável na medida das transformações destas necessidades. Mas, do ponto de vista dos manos, a sociedade é hostil ou, no mínimo, indiferente. A sociedade “não se importa”, não vai alterar seu sistema de privilégios para incluir e contemplar os direitos deles. A regressão (do ponto de vista filosófico) a Deus faz sentido, num quadro de absurda injustiça social, considerando-se que a outra alternativa é a regressão à barbárie.

Vale lembrar — estarei sendo otimista, interpretando a partir de meu próprio desejo? — que o Deus de Brown não produz conformismo, esperança numa salvação mágica, desvalorização desta vida em nome de qualquer felicidade eterna. Deus está lá como referência simbólica, para “não deixar desandar” a vida desses moços nada comportados que falam numa revolução aqui na terra mesmo (“Deus está comigo, mas o revólver também me acompanha.” Ice Blue ao JT, s/d) e lembram sempre: “Quem gosta de nós somos nós mesmos” (“Pânico na Zona Sul”).

Mas que não se confunda este “gostar de nós” com uma afirmação de auto-suficiência, de um individualismo que só se sustenta (imaginariamente!) nos casos em que é possível se cumprir as condições impostas pela sociedade de consumo — a posse de bens cuja função é obturar as brechas da “fortaleza narcísica” do eu, a alienação própria da posição do “senhor”, que não lhe permite enxergar sua dependência quanto ao trabalho do “escravo”, e a disponibilidade do dinheiro como fetiche capaz de velar, para o sujeito, a consciência de seu desamparo. O mandato “goste de você” emitido pelos Racionais não poderia ser uma incitação ao individualismo mesmo se quisesse, já que estas condições estão muito longe de se cumprir dada a situação de permanente desamparo e falta no real, da vida na periferia — a não ser, é claro, em sua face bárbara, a do tráfico e consumo de drogas.

O traficante representa, nas letras de Brown e Edy Rock, a face bárbara do individualismo burguês: o cara que não está nem aí pra ninguém, que só defende o dele, que não tem escrúpulos em viciar a molecada, expor crianças ao perigo fazendo avião para eles. A outra face é a do otário, o “negro limitado” (título de música — Brown e Rock), a quem falta “postura”, “atitude”, que se ilude pensando que pode se destacar entre seus semelhantes recusando a raça, etc. “Não quero ser o mais certo/ e sim o mano esperto”, responde Brown ao mano “limitado”. Mais uma vez, uma postura moral se funda sobre a ameaça extrema do extermínio. O “mano esperto” é o que sabe que a opção da alienação — que na miséria da periferia precisa da droga para se sustentar — está sujeita à pena de morte, à lei da selva da polícia brasileira ou destes capitalistas selvagens que são os donos do tráfico: “A segunda opção é o caminho mais rápido/ e fácil, a morte percorre a mesma estrada, é/ inevitável./ Planejam nossa restrição, esse é o título/ da nossa revolução, segundo versículo/ leia, se forme, se atualize, decore/ antes que racistas otários fardados de cérebro atrofiado/ os seus miolos estourem e estará tudo acabado./ Cuidado!/ O Boletim de Ocorrência com seu nome em algum livro/ em qualquer arquivo, em qualquer distrito/ caso encerrado, nada mais que isso” (“Negro Limitado”).

A insignificância da vida, o vazio que nossa passagem pelo mundo dos vivos vai deixar depois de nossa morte — nós que apostamos sempre em marcar nossa presença deixando uma obra, uma palavra, uma lembrança imortal —, isto que a psicanálise aponta como a precariedade da condição humana e que um neurótico de classe média precisa trabalhar tanto para suportar, estão dados no dia-a-dia, na concretude da vida no “inferno periférico”(Edy Rock) de onde eles vêm. Portanto, a possibilidade do delírio narcísico-individualista está excluída, a não ser que se encare as conseqüências da opção pelo crime. “Não tava nem aí, nem levava nada a sério/ admirava os ladrão e os malandro mais velho/ mas se liga, olhe ao redor e diga/ o que melhorou da função, quem sobrou, sei lá/ muito velório rolou de lá pra cá/ qual a próxima mãe a chorar/ já demorou mas hoje eu posso compreender/ que malandragem de verdade é viver (grifo nosso)/ Agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei para trás”… (“Fórmula Mágica da Paz”— Mano Brown).

A outra opção — a primeira, aliás, nos versos da música “Negro Limitado” — é o apelo ao outro como parceiro na construção de outras referências, na invenção de espaços simbólicos que possibilitem alguma independência em relação à sedução do circuito crime-consumismo-extermínio. Assim, o “goste de você” não soa como comando ao isolamento, a um fechar-se sobre si mesmo como resposta para todos os problemas. Ao contrário, a frase soa como apelo ao outro para que reconheça e valorize a semelhança entre eles.

O apelo ao reconhecimento é geralmente endereçado ao pai. O irmão, o semelhante, será destinatário deste apelo apenas quando o pai dá as costas? Pensamos que não; o reconhecimento paterno, fundamental para que o sujeito constitua uma certeza imaginária sobre “quem ele é” (para o desejo do pai), pode gerar também um aprisionamento narcísico. O sujeito só começa a se mover de sua posição no triângulo edípico, entre o olhar da mãe que seduz e o do pai que interdita e se oferece à identificação (e ao ideal), quando da entrada de um outro, um irmão (consangüíneo ou não), que abre para a alteridade, para a constatação, em espelho, de sua própria insignificância; mas também para a infinidade de possibilidades subjetivas que se abrem ante a descoberta da semelhança na diferença.

O outro funciona também como parceiro e cúmplice nas moções de transgressão em relação à interdição paterna — e então, de duas, uma. Ou a interdição não se sustenta mais — pense-se no caso de um pai perverso, por exemplo, capaz de manter uma posição autoritária, mas incapaz de simbolizar a lei e sujeitar-se a ela —, e neste caso os irmãos escapam à função paterna, fazendo sua própria versão do desejo do pai (a père-version a que se refere Lacan) e fundando, na delinqüência, uma gangue; ou a lei se mantém cumprindo sua função mínima de interditar o gozo (aos filhos, mas também ao pai!), mas a aliança fraterna possibilita que os sujeitos explorem e ampliem suas margens, relativizando o discurso da autoridade encarnado pela figura do pai real. É a constatação da semelhança na diferença que se dá com a entrada do “pequeno outro”, que permite ao sujeito separar a lei simbólica — diante da qual todos se equivalem — da figura real do pai encarnado naquele sujeito frágil, arbitrário, limitado e desejante que, mesmo quando se faça respeitar, é incapaz de apagar as diferenças significantes entre todos os filhos que levam o mesmo nome, o seu nome.

Fizemos esta longa passagem para dizer que a fratria não é convocada a operar só na falta do pai. Mas, quando ninguém nessa vida encarna o pai, quando é preciso apelar ao “Senhor” para imaginar que “alguém” (no eixo vertical da constituição subjetiva) me ama e me proíbe abusos, o reconhecimento entre irmãos se torna essencial. Até mesmo para sustentar a existência deste Deus, aliás, que se não fosse o significante de uma formação simbólica (portanto coletiva), seria o elemento central de um delírio psicótico. Além disso, na falta do reconhecimento de um pai, é a circulação libidinal entre os membros da fratria que produz um lugar de onde o sujeito se vê, visto pelo olhar do(s) outro(s). Prova disto é a grande importância que a criação de apelidos adquire nos grupos de adolescentes, por exemplo, como indicativos de um “segundo batismo”, a partir de outros campos identificatórios por onde os sujeitos possam se mover, ampliando as possibilidades estreitas fundadas sobre o traço unário da identificação ao ideal paterno. As identificações horizontais talvez permitam a passagem da ilusão de uma “identidade” (em que o sujeito se acredita idêntico a si mesmo, colado ao nome próprio dado pelo pai) à precariedade das identificações secundárias, a partir de outros lugares que o sujeito vai ocupando entre seus semelhantes, e que o apelido dado pela turma é capaz de revelar.

Quando os Racionais apelam a que os manos se identifiquem com a causa dos negros, estarão propondo um campo identificatório — com sua diversidade de manifestação singulares — ou a produção de uma identidade, com sua camisa-de-força subjetiva? “Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee,/ Zumbi, um grande herói, o maior daqui./ São importantes pra mim, mas você ri e dá as costas/ então acho que sei de que porra você gosta:/ se vestir como playboy, freqüentar danceterias/ agradar os vagabundos, ver novela todo dia,/ que merda!/ Se esse é seu ideal, é lamentável/ é bem provável que você se foda muito/ você se autodestrói e também quer nos incluir/ porém, não quero, não vou/ sou negro, não vou admitir!/ De que valem roupas caras, se não tem atitude?/ e o que vale a negritude, se não pô-la em prática?/ A principal tática, herança da nossa mãe África/ a única coisa que não puderam roubar!/ se soubessem o valor que a nossa raça tem/ tingiam a palma da mão pra ser escura também!” (“Júri racional” — Mano Brown). A questão é complicada. Uma vez, indagado sobre sua identificação ao judaísmo, Freud respondeu que se não existisse anti-semitismo, não faria questão nem de circuncidar os próprios filhos; mas diante do preconceito, não tinha outra opção senão a de se afirmar como judeu. Talvez se possa interpretar desta forma a convocação dos Racionais a uma “atitude” que sustente o amor-próprio entre os negros contra o sentimento de inferioridade produzido pela discriminação, o que passa pela afirmação da raça — este significante tão duvidoso, que produz discriminação ao mesmo tempo que indica a diferença.

Mas, quem sabe se possa mesmo ultrapassar esta limitação imaginária, este suporte físico — cor da pele — que produz simultaneamente a identificação e a discriminação racial? Quem sabe a multidão de admiradores dos grupos de rap não estará tentando dizer, como os estudantes parisienses em maio de 68, quando o governo tentou expulsar Daniel Cohn-Bendit sob a alegação de não ser um cidadão francês: “somos todos judeus alemães”!, e explodir a fronteira da raça pela via das identificações com as formações culturais: somos todos manos negros da periferia? Finalmente, está claro por que posso me autorizar a falar de, ou mais, a falar com, os manos dos Racionais. Pois, se a afirmação dos campos identificatórios (estou recusando propositalmente o termo identidade) não produzir laços sociais, afinidades eletivas que incluam o semelhante na diferença (tornando obsoletos os traços da raça, ou do sexo, por exemplo), há sempre de produzir isolamento entre os grupos e, num sentido ou no outro, discriminação. Que a auto-estima e a dignidade dos rapazes negros da periferia não dependam da aceitação por parte da elite branca, não significa que não produzam outros laços, outras formas de comunicação, inclusive com grupos mais ou menos marginais a esta própria elite. Neste caso, a identificação que começou pela cor da pele, ampliou-se para abrigar outros sentidos: exclusão, indignação, repúdio à violência e às injustiças, etc. Não somos “todos” pretos pobres da periferia, mas somos muitos mais do que eles supunham quando começaram a falar.

O CÉU CHEIO DE PIPAS

Caralho, que calor, que horas são/ posso ouvir a pivetada
gritando lá fora/ hoje acordei cedo pra ver/ sentir a brisa da
manhã e o sol nascer./ É época de pipa, o céu tá cheio/ quinze anos
atrás eu tava ali no meio./ Lembrei de quando era pequeno, eu e os
caras./ faz tempo — diz aí! — o tempo não pára…

Brown, Fórmula mágica da paz

Este trecho, quase no final de a “Fórmula mágica da paz”, é dos poucos — senão o único — em que o rap dos Racionais permite alguma sublimação dos sentidos, algum sentimento de elevação ou de alegria. Afinal, não é isto que o “ritmo e poesia” deveriam nos proporcionar?

Mas não. Nenhuma exaltação, nenhuma referência sublime é possível a uma arte que tem por principal função tentar simbolizar um cotidiano que se depara todo o tempo com o nó duro do real, no sentido que a psicanálise lacaniana atribui à palavra: o indizível, o que está além da capacidade de elaboração pela linguagem, o que nos escapa sempre.

O real domina a vida da periferia. É disto que falam os versos de Mano Brown e Edy Rock. São os últimos pensamentos de um homem que acaba de ser baleado, depois de seguir a carreira de um amigo no crime e ter sido acusado, pelo resto do bando, de entregá-lo à polícia.2 É o último dia na vida de um ex-presidiário que tenta se readaptar e criar o filho dignamente, mas acaba sendo acusado injustamente de um roubo nas redondezas e é executado pela polícia que invade sua casa na madrugada.3

É a história de um mano gente fina: “Você viu aquele mano na porta do bar? jogando bilhar, descontraído e pá/ cercado de uma pá de camaradas/ da área uma das pessoas mais consideradas/ ele não deixa brecha, não fode ninguém/ adianta vários lados sem olhar pra quem/ tem poucos bens, mais que nada/ um fusca 73 e uma mina apaixonada”… (“Mano na porta do bar” — Brown e Rock. Citada na p.7). Mas que começa a mudar, cercar-se de “tipos estranhos” que lhe prometem “o mundo dos sonhos”; o mano entrou no tráfico, matou a sangue-frio, “usou e viciou a molecada daqui” e tem o fim previsível: “Você tá vendo o movimento na porta do bar? / tem muita gente indo pra lá, o que será? (…) Você viu aquele mano na porta do bar? Ontem o cara caiu com uma rajada nas costas…”

O real domina a vida da periferia, em suas faces extremas: a droga e seu gozo mortífero; a violência do outro — freqüentemente a polícia — 4 com quem é impossível qualquer diálogo, qualquer negociação; a miséria, que segundo Hanna Arendt nos exclue da condição humana porque nos faz prisioneiros da necessidade; e acima de tudo, a morte. O real se manifesta na figura do destino inexorável: hoje a pivetada vai para a escola, empina pipas na rua, joga bola — logo mais estarão traficando, viciados no crack, a caminho da morte certa. As letras de Brown e Edy Rock falam de um verdadeiro extermínio dos jovens de periferia; como acontece com os relatos dos sobreviventes dos campos de concentração, não há lugar para o sublime aqui.

Também não há muito lugar para o prazer, a alegria, a brincadeira. A droga e o álcool oferecem uma possibilidade de gozo. Os sonhos de consumo, de apropriar-se dos fetiches burgueses, “moto nervosa/ roupa da moda/ mina da hora”, parecem oferecer um certo semblant de felicidade (assim como para os consumidores ricos, aliás), mas ficam inacessíveis a não ser que o cara enverede pelo crime. Não há beleza na paisagem da periferia. Nada de sombra e água fresca; nada de “área de lazer” — “Aqui não vejo nenhum centro poliesportivo/ pra molecada freqüentar nenhum incentivo/ o investimento no lazer é muito escasso/ o centro comunitário é um fracasso/ mas se quiser se destruir está no lugar certo/ tem bebida e cocaína sempre por perto”… (“Fim de semana no parque” — Brown e Rock). A inveja da vida dos ricos, dos bairros burgueses, dos privilégios, é inevitável: “Olha só aquele clube, que da hora/ olha aquela quadra, aquele campo, olha/ quanta gente/ tem sorveteria, cinema, piscina quente/ olha quanto boy, olha quanta mina/ afoga aquela vaca dentro da piscina/ tem corrida de kart, dá pra ver/ é igualzinho ao que eu vi ontem na TV./ Olha só aquele clube, que da hora/ olha o pretinho vendo tudo do lado de fora”…

Apesar desta inveja, os manos tentam afirmar sua diferença. A periferia que se valorize; os negros que tratem de bancar sua cultura, seus valores — este é o antídoto contra a alienação, contra a sedução promovida pela propaganda, pela tevê, arautos da sociedade de consumo. “Na periferia a alegria é igual/ é quase meio dia a euforia é geral/ é lá que moram meus irmãos, meus amigos/ e a maioria aqui se parece comigo./ E eu também sou o bam-bam-bam e o que manda/ o pessoal desde as 10 da manhã está no samba/ preste atenção no repique, atenção no acorde…”(“Fim de semana…”).

O real é a matéria bruta do dia-a-dia da periferia, é a matéria a ser simbolizada nas letras do rap. Uma tarefa que, como todo trabalho de simbolização, depende de um trabalho de criação de linguagem que só pode ser coletivo. É como se os poetas do rap fossem as caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar o real da morte e da miséria; por isso eles não deixam a favela, não negam a origem. “Essa porra é um campo minado/ quantas vezes eu pensei em me jogar daqui/ mas aí, minha área é tudo o que eu tenho/ a minha vida é aqui e eu não consigo sair/ é muito fácil fugir, mas eu não vou/ não vou trair quem eu fui, quem eu sou” (“Fórmula mágica da paz” — Brown).

Este sentimento de pertinência e de dívida simbólica para com a origem e o semelhante lembram a diferença estabelecida por Alain Renault entre indivíduo e sujeito. O primeiro, tributário do ideal individualista de independência — centramento em si mesmo, negação da dívida, valorização narcísica do eu; o segundo, herdeiro do princípio humanista de autonomia — emancipação em relação a qualquer autoridade divina, transcendente, mas reconhecimento do laço social como fundamento do que é propriamente humano em cada um. Sujeitos autônomos, e não indivíduos independentes, os manos apelam a seus semelhantes para refazer o assassinato do pai abusivo, opressor, e recriar uma lei que proteja a todos do desamparo, que permita alguma alternativa ao real.

Enquanto isso, alguns raros momentos de contemplação são contrabandeados pelas brechas de uma vida que não oferece nada de graça. Acordar cedo, sentir a brisa, ver o sol nascer. O céu está cheio de pipas: como uma madeleine dos pobres, a visão dos quadradinhos coloridos lá no alto evoca a infância, o tempo perdido, a inocência que ficou para trás.

Mas as pipas são também a criação de um espaço virtual para a beleza, neste “campo minado” sem pontos de luz. As pipas obrigam o olhar a se manter acima da miséria, na direção de um céu que não é o céu da morte, de Deus e das almas; é o céu dos vivos. O céu que as crianças enfeitam com poucos recursos, cola, papel-de-seda e linha; céu da linguagem, céu humano. O céu cheio de pipas da periferia é uma interferência estética sobre a miséria e a recusa da desumanização que ela promove. Como a música, que só precisa das ondas do ar para existir e repercutir, como os versos quilométricos do rap, as pipas da molecada representam a ultrapassagem do reino da necessidade e do puro tempo imediato, sem passado e sem futuro, a que a necessidade nos reduz. No poema de Brown, o céu cheio de pipas surge como evocação da infância e projeção para um tempo futuro (“diz aí! — o tempo não pára”), um “fora daqui/aqui mesmo”, um real tornado manso pela força da cultura.

Mas é no tempo presente, saindo do barraco para sentir a brisa da manhã, que o poeta/narrador de “Fórmula mágica…” obtém sua rápida epifania, seu curto instante de contemplação. A beleza, como se sabe, não exige grandes pompas para exercer seu poder transtornador; razão pela qual, apesar das diferenças de escolaridade, existem tantos poetas na periferia quanto em qualquer outro lugar. Termino propondo uma ponte, tão arbitrária quanto uma associação livre pode ser, entre a poesia de Brown e a prosa de Jean Genet, seu primo distante, numa das muitas passagens do Diário de um ladrão em que este escritor surpreendente estabelece uma relação entre a criação estética e uma atitude moral:

“A emoção muito especial que, ao acaso, chamei de poética, deixava em minha alma uma espécie de rastro de intranqüilidade que ia se atenuando. O murmúrio de uma voz, de noite, e no mar o barulho de remos invisíveis, naquela situação estranha, me haviam transtornado. Conservei-me atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar à procura de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente. Quando o encontram, param: o poeta esgota o mundo. Mas, se ele propõe outro, só pode ser da sua própria reflexão. Quando, na Santé, comecei a escrever, nunca foi com o intuito de reviver minhas emoções ou de comunicá-las, mas para que, da expressão delas imposta por elas, eu compusesse uma ordem (moral) desconhecida (de mim mesmo, em primeiro lugar)” (Genet, 1983:163).

É possível se concordar com Genet, quando ele afirma que a emoção estética produz uma ordem moral? O rap seria moral só por fazer “ritmo e poesia”, independente do conteúdo ideológico de sua pregação? Talvez sim, nos casos em que a emoção estética seja capaz de produzir uma fala nova e promover uma experiência, “desconhecida de mim mesmo em primeiro lugar”, isto é: revelar uma dimensão oculta do sujeito para ele mesmo e propor outro mundo (Genet), que “só pode ser o da sua própria reflexão”. Ética e estética podem coincidir quando esta última tiver o poder de abrir uma brecha na pedra dura do real, adiando temporariamente nosso confronto inevitável com a morte.

FÓRMULA MÁGICA DA PAZ
Mano Brown

Essa porra é um campo minado
Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui
mas aí, minha área é tudo que eu tenho
a minha vida é aqui e eu não consigo sair,
é muito fácil fugir mas eu não vou, não vou trair quem eu fui e
quem eu sou.
Gosto de onde estou e de onde eu vim,
ensinamento da favela foi muito bom pra mim.
Cada lugar é um lugar, cada lugar uma lei,
cada lei uma razão e eu sempre respeitei.
Qualquer jurisdição, qualquer área,
Jardim Santo Eduardo, Grajaú, Missionária
Funxal, Pedreira e tal, Joaniza
eu tento adivinhar o que você mais precisa.
Levantar sua goma ou comprar uns panos
um advogado pra tirar seu mano.
No dia da visita você diz
que eu vou mandar cigarro pros malucos lá no X.
Então como eu estava dizendo, sangue bom,
isso não é sermão, ouve aí, eu tenho o dom.
Eu sei como é que é, é foda parceiro
é a maldade na cabeça o dia inteiro.
Nada de roupa, nada de carro, sem emprego
não tem Ibope, não tem rolê, sem dinheiro.
Sendo assim, sem chance, sem mulher,
você sabe muito bem o que ela quer,
encontre uma de caráter se você puder,
é embaçado ou não é,
ninguém é mais que ninguém, absolutamente,
aqui quem fala é mais um sobrevivente.
Eu era só um moleque, só pensava em dançar,
cabelo black e tênis All Star.
Na roda da função mó zoeira,
tomando vinho seco em volta da fogueira,
a noite toda e só contando história,
sobre o crime, sobre as tretas da escola.
Não tava nem aí, nem levava nada a sério
admirava os ladrão e os malandro mais velho,
mas se liga, olhe ao seu redor e me diga,
o que melhorou da função, quem sobrou, sei lá,
muito velório rolou de lá pra cá,
qual a próxima mãe que vai chorar,
já demorou muito mais hoje eu posso compreender
que malandragem de verdade é viver.
Agradeço a Deus e aos Orixás,
parei no meio do caminho e olhei prá trás.
Meus outros manos todos foram longe demais:
Cemitério São Luís aqui jaz.
Mas que merda meu oitão tá até a boca,
que vida louca, porque é que tem que ser assim,
ontem sonhei que um fulano se aproximou de mim,
agora eu quero ver, ladrão, pá.pá.pá,
fim; é sonho, é sonho, deixa quieto,
sexto sentido é um dom, eu tô esperto.
Morrer é um fator, mas conforme for,
tem no bolso uma agulha e mais cinco no tambor.
Vai, joga o jogo, vamos lá,
pá, caiu a 8 eu mato a par
eu não preciso muito pra me sentir capaz
de encontrar a Fórmula Mágica da Paz.
(Refrão) Eu vou procurar, sei que vou encontrar, eu vou
procurar, eu vou procurar,
você não bota uma fé mas eu sei que vou atrás
da minha Fórmula Mágica da Paz.

Caralho, que calor, que horas são,
posso ouvir a pivetada gritando lá fora.
Hoje acordei cedo pra ver,
sentir a brisa de manhã e o sol nascer.
É época de pipa, o céu tá cheio,
quinze anos atrás eu tava ali no meio,
lembrei de quando era pequeno,
eu e os cara; faz tempo, diz aí, o tempo não pára.
Hoje tá da hora o esquema prá sair,
mano não demora, mano chega aí,
cê ouviu os tiro? ouvi de monte, então:
diz que tem uma pá de sangue no campão.
Ih, mano, toda mão é sempre a mesma idéia junto,
treta, tiro, sangue, aí! muda de assunto!
traz a fita pra eu ouvir porque eu tô sem,
principalmente aquela lá do Jorge Ben.
Uma pá de mano preso chora a solidão,
uma pá de mano solto sem disposição,
penhorando por aí,
rádio, tênis, calça, acende num cachimbo, virou fumaça.
Não é por nada não, mas aí, nem me ligo a hora,
a minha liberdade eu curto bem melhor,
eu não estou nem aí pro que os outros fala,
quatro, cinco, seis pretos num Opala.
Pode vir, gambé, paga pau, tô na minha moral na maior,
sem goró, sem pacau, sem pó, eu tô ligeiro
eu tenho a minha regra, não sou pedreiro, não fumo pedra.
Um rolê com os aliados já me faz feliz,
respeito mútuo é a chave do que eu sempre quis,
me diz, procure a sua, a minha eu vou atrás, até mais, na
Fórmula Mágica da Paz.

Refrão: Eu vou procurar…etc.
Choro e correria num saguão de hospital,
dia das crianças, feriado indo pro final,
sangue e agonia entram pelo corredor;
– ele está vivo? pelo amor de Deus, doutor!
Quatro tiros do pescoço pra cima,
puta que pariu, a chance é mínima.
Aqui fora revolta e dor, lá dentro estado desesperador.
Eu percebi quem eu sou realmente,
quando ouvi o meu subconsciente:
aí, Mano Brown cuzão, cadê você,
seu mano tá morrendo, o que você vai fazer?
pode crê, eu me senti inútil, me senti pequeno,
mais um cuzão vingativo, vai vendo.
Puta desespero, não dá pra acreditar,
que pesadelo, eu quero acordar,
não dá, não deu, não daria de jeito nenhum,
o Delei era só mais um rapaz comum.
Daqui a poucos minutos, mais uma dona Maria de luto.
Na parede o sinal da cruz,
que porra é essa? que mundo é esse? onde está Jesus?
Mais uma vez um emissário
não incluiu o Capão Redondo em seu itinerário.
Corro, eu tô confuso, preciso pensar
me dá um tempo pra eu raciocinar,
eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá,
minha ideologia enfraqueceu,
preto, branco, polícia, ladrão ou eu,
quem é mais filha da puta eu não sei, aí fodeu,
fodeu, decepção nessas horas,
a depressão quer me pegar, vou sair fora.
Dois de novembro era Finados,
eu parei em frente ao São Luís do outro lado
e durante meia hora eu olhei um por um,
e o que todas as senhoras tinham em comum:
a roupa humilde, a pele escura,
o rosto abatido pela vida dura,
colocando flores sobre a sepultura,
podia ser minha mãe, que loucura.
Cada lugar uma lei, eu tô ligado,
no extremo sul da Zona Sul tá tudo errado,
aqui vale muito pouco a sua vida,
a nossa lei é falha é violenta é suicida,
se diz que me diz que, não se revela,
parada pro primeiro na lei da favela,
legal, assustador é quando você descobre
que tudo deu em nada e que só morre o pobre.
A gente vive se matando, irmão, por quê?
não me olhe assim, eu sou igual a você,
descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho
porque no trem da malandragem meu Rap é o trilho.

* Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista, poeta nas horas vagas e escritora. Autora de, entre outros: Sobre ética e psicanálise(Companhia das Letras, 2002),Ressentimento (Casa do psicólogo, 2004), Deslocamentos do feminino (Imago, 1998, 2a. edição em 2009), O tempo e o cão – atualidade das depressões(Boitempo, 2009).

NOTAS

Ao Luan, que me apresentou os Racionais MC’s.

1 Veja-se a respeito o artigo de Contardo Calligaris (1991).

2 “Tô ouvindo alguém me chamar” (Mano Brown) — “Tô ouvindo alguém gritar meu nome/ parece um mano meu, é voz de homem/ eu não consigo ver quem me chama/ é tipo a voz do Guima/ não, não, o Guima tá em cana/ Será? ouvi dizer que morreu, não sei. (…) Parceria forte aqui era nós dois./ Louco, louco, louco e como era/ cheirava pra caralho, vixe! sem miséria!/ todo ponta firme/ foi professor no crime/ também, maior sangue frio, não dava boi pra ninguém!/ Puta, aquele mano era foda!/ só moto nervosa/ só mina da hora/ só roupa da moda”…

3 “O homem na estrada”(Mano Brown) — “O homem na estrada recomeça sua vida/ sua finalidade, a sua liberdade, que foi perdida,/ subtraída/ e quer provar a si mesmo que realmente mudou/ que se recuperou, que quer viver em paz/ não olhar prá trás, dizer ao crime nunca mais/ pois sua infância não foi um mar de rosas não/ na Febem, lembranças dolorosas então (…) Equilibrado num barraco incômodo, mal acabado e sujo/ porém seu único lar, seu bem e seu refúgio/ cheiro horrível de esgoto no quintal/ por cima ou por baixo, se chover será fatal/ um pedaço do inferno aqui é onde estou…”

4 “Não confio na polícia, raça do caralho!/ se eles me acham baleado na calçada/ chutam minha cara e cospem em mim/ e eu sangraria até a morte, já era, um abraço/ por isso minha segurança eu mesmo faço” (“Homem na estrada” — Mano Brown).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, R. “O mito como linguagem roubada”. In: Mitologias. São Paulo, Difel, 1975, p.152-158.

CALLIGARIS, C. “Função paterna”. In: Hello Brasil. São Paulo, Escuta, 1991, p.59-81.

DOR, J. O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

FREUD, S. “Totem y Tabu”. In: Obras Completas, v.II. Madri, Biblioteca Nueva, 1976.

GENET, J. Diário de um ladrão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.

KEHL, M.R. A mínima diferença. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996.

______. Processos primários (poemas). São Paulo, Estação Liberdade, 1996.

______. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1998.

RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro, Editora 34, 1999.

RENAULT, A. O indivíduo. São Paulo, Difel, 1998.

 

Cultura e consciência: a “função” do Racionais MC`s | de Jorge Nascimento

1- INTRODUÇÃO

Ainda existem discordâncias quanto aos conceitos de raça e etnia. De uma maneira abrangente, poderíamos dizer que tais termos foram moldados a partir da nomeação do diferente. A dificuldade de apreensão da diferença, ou da diferença não-catalogada, das culturas ditas minoritárias, é uma constante em práticas conservadoras e/ou colonialistas. Segundo Lívio Sansone 2 , no Brasil: “Se a identidade étnica não é entendida como essencial, é preciso concebê-la como um processo, afetado pela história e pelas circunstâncias contemporâneas e tanto pela dinâmica local como pela global.”

E, hoje, as Culturas Oficiais e os próprios veículos de comunicação de massa ainda apresentam dificuldades ao se relacionarem com as culturas chamadas periféricas. A inserção das minorias independentes no sistema de representação simbólico-cultural na sociedade há de ser feita através da crítica e requer uma prática que privilegie o papel constitutivo da diferença na formação cultural de uma comunidade. Assim sendo, o papel da chamada cultura de massas como veículo das dispersas vozes sociais é um fator de importância fundamental em nossa forma de pensar os discursos dispersos na sociedade. Vejamos algumas ponderações do professor Muniz Sodré 3:

Da sociedade global das nações ricas excluíram-se os povos das sociedades colonizadas. O movimento de integração (…) é excludente em termos de economia e política. Mas também de cultura: ao perder a singularidade de sua diferenciação e reduzir-se às constantes repetitivas de sua experiência, a cultura perde a vitalidade do encontro com o outro e de regeneração de si mesma.

O processo de marginalização da cultura é um filtro ideológico já gasto, mas ainda muito eficiente, porém, os novos meios estão aí, as informações burlam sistemas de vigilância e guetização, circulam. Se temos um histórico elitista, excludente e colonialista, sabemos hoje das potencialidades das ditas culturas minoritárias e suas manifestações artísticas. Vamos citar dois exemplos datados de como a mídia oficial – no caso dois jornais de grande circulação – pode ser tendenciosa, ou melhor, preconceituosa. No primeiro texto, o autor se refere a um processo ambíguo de abrasileiramento ou latino-americanização como uma maneira de assunção da barbárie ibérica novomundista, ou seja, de distanciamento do paradigma saudável, através da contaminação das ondas caribenhas que vêm do norte do país. Há a enumeração das características negativas que parecem apoderar-se de um paradigma utópico mineiro-britânico, o que, inclusive, embranquece civilizadamente o nosso Machado de Assis. Vejamos:

Aos poucos o Brasil vai se tornando mais uma grande república do Caribe, outro México, uma inchada e paciente Jamaica ou Guatemala de dimensões continentais. Vem do Norte uma crescente e irresistível onda que vai lambendo o país, tomando de assalto sua cultura, sua política. (…) Estaria nascendo, enfim, um novo Brasil mais brasileiro, vale dizer, mais latrino-americano, cucaracho, caliente, orgulhoso e assumidamente negróide, cubano (…) A mineiridade, o humor quase britânico (civilizadíssimo) de Drummond e Machado já eram (…) Dois Brasis: um país, digamos, cone sul (…) e outro caribenho (…)4

O segundo fragmento trata de uma demonstração dos nossos governantes de seu equivocado populismo, quando deixam de tratar de um assunto moderno, civilizado, em troca de um apoio a uma digna representante da barbárie afro-brasileira. É interessante notar o aspecto evolucionista na abordagem da diferença. Partindo da máxima de que o Brasil é um país de contrastes, e utilizando um behaviorismo conservador, o articulista traça uma antítese entre uma tradição pré-civilizatória e a informatizada modernidade latente.

O Brasil é um país de contrastes. Enquanto diplomatas do Itamarati pretendiam explicar aos americanos do Departamento de Estado como funcionava a reserva de mercado de informática, políticos ilustres (…) reuniram-se num ato público impressionante: o enterro de Mãe Menininha do Gantois (…) era a mais famosa sacerdotisa de cultos espíritas de origem africana (…) A importância exagerada dada a uma sacerdotisa de cultos afro-brasileiros é a evidência mais chocante de que não basta ao Brasil ser catalogado como a oitava maior economia do mundo, se o País ainda está preso a hábitos culturais arraigadamente tribais (…) Enquanto o mundo lá fora desperta para o futuro, continuamos aqui presos a conceitos que datam de antes da existência da civilização5.

Sem entrar no mérito da discussão dos objetivos dos textos, já que temos fragmentos, é importante notar o nível de autodepreciação nos argumentos apresentados, e se digo que é um processo auto-referente é porque o autor põe em questão a ideia de homogeneização já tão fora de propósito nos anos 80, e mais ainda hoje no chamado mundo globalizado. Sete anos depois, o mesmo jornal é envolvido na discussão acerca de uma campanha publicitária sobre o lançamento do novo, bonito e moderno projeto gráfico de seu Caderno 2. No filme publicitário, um reconhecido ator branco faz elogios à beleza do periódico e compara com a forma gráfica do “outro” jornal e ergue uma folha com a foto de Tião Macalé, ator negro, sem dentes, de programas humorísticos (Nojento!!!). Sobre o veículo, os exemplos demonstram sua “linha editorial”, mas quanto ao pretenso discurso isento da propaganda, o texto mostra como ele vai lidar com esse tipo de ridicularização, ou estigmatização, de uma diferença que é a identidade de muitos. Segundo Mario Vítor Santos:

Sabe-se de algumas peças publicitárias (…) caracterizam-se por apelar aos preconceitos adormecidos, explorar com “habilidade” e sutileza seu potencial de despertar empatia (…) se o comercial do “Estadão” fosse veiculado nos EUA, por exemplo, o “Estadão”, a agência e até o ator teriam dificuldades políticas e comerciais. A tolerância da sociedade brasileira é tal que um jornal de expressão chega a julgar que um anúncio desse tipo possa contribuir para sua imagem.6

Acreditamos que, passados os anos, o discurso “politicamente correto” afeta os meios de comunicação. Pretendem-se cotas para negros nas universidades e nas novelas televisivas, políticas de reparação são discutidas, os negros inseridos no mercado, hoje, já são considerados uma fatia importante do bolo. Porém, na prática das relações sociais, parece-nos que o preconceito continua presente. Vejamos: os jovens atores (negros) do filme Cidade de Deus foram acusados de vândalos e expulsos de um shopping, em São Paulo, quando operavam uma máquina de banco. Sabemos o quanto a sociedade brasileira delegou aos negros somente representações artísticas tidas como aquém da produção de elevado valor simbólico. O compositor Carlos Cachaça, fundador da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, dá seu testemunho.

Antigamente tinha a censura do Getúlio Vargas, o DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda. Eu fiz o samba campeão de 1933 e disse (…) que era muito temeroso sair com aquele samba que falava de Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias. A polícia não ia gostar (…) Naquela época era muita ousadia a negrada contar a história do Brasil em samba (…) era até motivo de ganhar porrada.7

Nos anos 40, a revista Cultura Política, elogiava as ações do governo, através do DIP. Os sambas associados à malandragem eram execrados, a linguagem, as gírias – a desvalorização do trabalho – eram tidas como exemplos de uma prática poética popular que ia contra as ideias trabalhistas de Getúlio Vargas. Nas rádios, maior meio de difusão da música popular na época, a prática da censura e a imposição de letras ideologicamente condizentes com a política eram procedimentos que tentavam inibir a índole popular que sempre, ironicamente, questiona as normas de condutas sociais impostas:

No Brasil, a Divisão de Rádio do Departamento de Imprensa Propaganda vem realizando, sem desfalecimentos, uma obra digna de encômios. Proíbe o lançamento das composições que, aproveitando a gíria corruptora da linguagem nacional, fazem o estúpido elogio da malandragem. E, não querendo limitar a sua ação ao campo da censura, distribui pelas estações dos Estados gravações de música fina, com noticiário de interesse coletivo.8

Se em outras partes, o racismo tem um histórico arianista que diz que as relações entre raças são condenáveis, baseando-se no axioma de que a mistura de raças é pior que os malefícios causados pelas sub-raças isoladas, no Brasil tal postura convive com a forma do racismo hierarquizado étnica e socialmente. Um samba, composto por Haroldo Barbosa e Janet de Almeida nos anos 40, brinca com os males causados pelo samba, que afligem tanto à Madame:

Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
Madame diz que o samba tem pecado
Que o samba, coitado, devia acabar

Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor

Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que o samba é vexame
Pra quê discutir com Madame?

A ironia da letra é a resposta a uma visão eurocêntrica, aristocrática (a Madame), conservadora e excludente. A Madame não pode gostar da inserção no clima democrático do samba: mistura de raças e cor e, consequentemente, mistura social e, logicamente, execra a cachaça irmã. Assim, ironicamente se revela o movimento de troca e simbiose – perniciosos – contidas no espaço simbólico do samba. Nos últimos decênios do século passado, a partir da década de 70, uma reação à composição ideológica da cultura branca surge, no rastro dos movimentos afirmativos norte-americanos, e, principalmente, através do movimento black power. Em 1988, nos festejos em “comemoração” aos 100 anos da Lei Áurea, a escola de samba Unidos de Vila Isabel venceu o desfile com o enredo Kizomba: festa da raça, idealizado por Martinho da Vila. O samba-enredo, composto por Jonas, Rodolpho e Luiz Carlos da Vila, traz o afro-profano como força geradora e veículo da festa-mensagem, faz-se enquanto grito afirmativo e desejo que reivindica o fenômeno Palmares e a figura de Zumbi como propulsores da Liberdade, conceito acima das leis dos homens. A festa (Nossa kizomba) é nossa Constituição – era o ano da Assembleia Nacional Constituinte. Os valores ancestrais, forças de deuses são postos em cena, jogo de cintura, cultura, bravura, sublimação daquilo que poderia ser anedótico ou grotesco, segundo a tradição excludente brasileira.

E é como fruto da exclusão e logicamente como busca de espaço afirmativo que vai se constituindo o movimento Hip Hop brasileiro e o RAP, herdeiro dos cantos falados por jamaicanos e americanos dos bairros pobres, surge como um movimento estético popular que se desenvolveu, ganhou a mídia americana e, consequentemente, o mundo. Surge saído da precariedade, do pouco, utilizando velhos toca-discos que são transformados em produtores de ritmos sobre as quais epicamente constituem-se rimas, frases e histórias.
A grande mídia brasileira tardou a dar importância à produção de jovens negros, com suas “letras” gigantescas e simples, que tratavam de temas comuns à população das periferias das grandes cidades. Aí surgem os Racionais MC’s 9 que, mesmo sem tocar nas rádios populares, lotavam galpões e centros comunitários e que, em 1997, conseguem a proeza de vender em torno de 500.000 cópias (originais e piratas) de um disco independente. Segundo Regina Novaes, em seu artigo Hip-Hop: o que há de novo:

Há muito que investigar para saber como e por que a periferia tornou-se um produto altamente vendável. O depoimento da antropóloga Marta Jardim é instigante. Ela fala de um contexto em que os jovens das periferias das grandes cidades também se tornam criadores de moda e estilo incorporados por muitos jovens de classe média. Não são estilos que buscam diluir a condição social periférica com uma roupa insuspeita do centro. Ao contrário, acentuam os traços socialmente associados à marginalidade, fazendo da roupa uma espécie de denúncia, de caricatura da imagem associada à periferia. Certamente, a diferença, imagens e falas fora do lugar, têm valor comercial no mercado.

E é como fruto desse mundo/mercado, saída das frestas sociais, que surge a palavra poética de jovens de periferia que (por estilo) sorriem pouco, falam com a linguagem cifrada provinda de penitenciárias e favelas, e que reivindicam bens de consumo questionando a ética conservadora antiga do “mais vale ser mendigo que ladrão”. Porém, a própria relação com o “mercado” é questionada. A postura político/ideológica os faz esquivos, reticentes. As aparições em TVs são raríssimas, e há o episódio da saída de uma gravadora multinacional em que um integrante da banda foi questionado sobre a oferta em dinheiro oferecida e recusada: “Você sabe de quanto dinheiro estamos falando.” “Sei, mas não quero”. Sem falsos purismos, há algo de diferente, estética e eticamente falando10 . Acreditamos que o movimento Hip Hop e especificamente, o RAP brasileiro seriam exemplos daquilo que hoje se discute: a absorção de modelos culturais globais juntamente com a incorporação de temáticas e práticas locais. Assim sendo, alguns grupos, mesmo utilizando formas muito parecidas com as norte-americanas, essencialmente tratam de assuntos típicos de nossas sociedades e, além de tudo, incorporam posturas políticas próprias.

Porém, o que fundamentalmente nos interessa é como vozes periféricas, palavras proferidas por jovens negros conseguem, pouco a pouco, burlar uma das maiores formas de exclusão social, principalmente nas nossas sociedades urbanas constituídas de cidades partidas: o estigma 11. Sabemos que o termo estigma compõe-se numa duplicidade de sentidos potencializadores da exclusão daquele que é desacreditável e desacreditado. Porém, muitos Manos e Minas estão ligados, ouvem as mensagens provindas de vozes que lhes parecem familiares, em maior ou menor grau.
É ilustrativo um fato veiculado na mídia impressa quando das eleições para presidência, em que o então candidato à reeleição Fernando Henrique Cardoso teria comentado sobre uma foto do então adversário Lula junto aos integrantes do grupo de RAP: de que não entendia o porquê de uma foto de um candidato ao lado de “jovens com ares de marginais”12 . O sociólogo, que também se autoproclamou como “tendo um pé na cozinha”, ignorava que aqueles jovens com aparência de marginais eram, essencialmente, a voz de mais de “cem mil manos”, representavam a exteriorização dos anseios, dúvidas e críticas de uma parcela importante do eleitorado, ou melhor, do voto tão desejado
Como vozes de estigmatizados conseguem romper barreiras e redefinir sujeitos emissores de discursos que pulam muros que tão fortemente separam ideias e visões de mundo? Temos conhecimento das barreiras impostas a discursos que teimam em manter uma essencialidade utópica. Pois tal busca utópica e, para muitos, anacrônica, de pureza e a consciência de ser um produto rentável, porém independente, a princípio afastou esse tipo de produção dos meios de comunicação. Porém, a força das histórias cantadas pelos rapazes criou seu público, redefiniu parâmetros básicos da indústria cultural.

2 – A FALA
Uma apreciação completa das dimensões estéticas de um rap exigiria não só que o escutássemos, mas que também o dançássemos, sentindo seus ritmos em movimento. (Richard Shusterman)

Vamos agora pensar analiticamente o RAP dos Racionais MC`s através apenas da poesia feita palavra escrita, o que representa mais que um risco, pois parte-se já de um pressuposto parcial que, inegavelmente, transforma uma manifestação complexa em texto. O RAP é fundamentalmente uma forma de estetização do real na qual à polifonia discursiva somam-se efeitos sonoros, rítmicos e as vozes, com suas entonações e formas expressivas provindas da fala. A palavra cantada ou canto falado do RAP possui, por si só, efeitos significativos que expandem e realizam o texto através de outras possibilidades que revigoram performaticamente os vocábulos. O RAP é palimpsesto, há camadas significativas a serem descobertas e posteriormente assimiladas para que, num conjunto em que forças expressivas irradiam possibilidades em ondas de diversas camadas, os fragmentos de sonoridades múltiplas produzam algo em que as partes signifiquem o todo.

Outro problema pode ser pensado como um agravante: como interpretar textos orais que brotam de poetas pouco escolarizados? Com que ferramentas podemos trabalhar? Se o aparato conceitual acadêmico é moldado para pensar manifestações poéticas tradicionais, cultas, como podemos encarar a produção popular e massiva produzida por artistas periféricos de um país periférico como o Brasil? Tal problemática foi, de certa forma, abolida pelos chamados Estudos Culturais, mas o ranço acadêmico ainda perdura. Na pesquisa deparamos com um bom número de trabalhos que abordam o RAP, mas, comumente, por via das Ciências Sociais e, em menor, número, pela Análise do Discurso. Aqui pensamos, de forma transdisciplinar, abordar o RAP como fenômeno literário, mas também como produto da cultura de massa e como manifestação cultural na qual o estético e o político dialogam. O RAP trabalha a palavra e, dessa forma, já emerge com um potencial de possibilidades interpretativas e analíticas inerentes ao próprio ser do discurso, Borges já disse que não há palavras simples, pois todas postulam o Universo, cujo atributo maior é a complexidade. O RAP, além de “apresentar um desafio às condições artísticas”, apresenta-se como um desafio duplo, pois também desafia uma outra condição: é poesia que deseja ter uma participação ativa dentro dos espaços socioculturais. Como pondera Shusterman 13:

Devemos sentir o poder artístico e estético de uma obra impressionar nossos sentidos e nossa inteligência. (…) Mas a justificação teórica pode ajudar a criar este espaço e ampliar os limites da arte pela assimilação de formas antes rejeitadas na categoria honorável da arte. Uma estratégia incontestável para tal assimilação é mostrar que, apesar do evidente afastamento em relação às convenções estabelecidas, uma forma expressiva ainda atende aos critérios mais decisivos para garantir o reconhecimento de sua legitimidade artística ou estética.

Entendemos que pontes entre o RAP e a crítica literária e cultural é possível. Enquanto expressão poética performática, essa manifestação estética popular contemporânea é digna de um olhar atento no qual suas possibilidades expressivas e suas carências ou virtudes formais e estilísticas possam ser analisadas a partir de diversos campos teóricos do saber. A própria constituição da poética do RAP é baseada num ethos no qual o posicionamento discursivo cria personas ficcionais tão próximas dum real pleno da periculosidade que tanto amedronta. A caracterização de uma poética bélica, juntamente ao fato de se assumirem como “guerreiros da selva de pedra”, já nos traz uma forma de compreensão do real que só pode ser considerada como um processo de estetização do mesmo, ainda que, fundamentalmente, pautado pela experiência da violência. Insistir numa conexão arte e vida pode parecer um disparate se tomarmos como base as doutrinas de não-interferência de uma certa pós-modernidade. Mas o movimento Hip Hop se espalhou pelo mundo, provocou intervenções na música pop mundial e, fundamentalmente, em muitos casos, manteve aceso o facho, pois pensa em trabalhar consciências a partir da palavra e das atitudes. Diz o próprio Mano Brown: “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma, sou terrorista.” A frase, radical, utópica, revela a ideia da posse de um poder que a palavra comporta que pode parecer risível aos espíritos pós-utópicos com seus ares blasé. Para Shusterman 14, ocorre uma aproximação entre a visão e prática do RAP e o pragmatismo:

A teoria da catarse, de Aristóteles, embora focada na piedade e no medo, apresenta a solução estética padrão: a arte é valiosa porque permite que emoções perigosas, contudo gratificantes, sejam desfrutadas, mas depois exorcizadas por expressá-las em mundo seguro, pois fictício, de mimese; um reino claramente distinto do real. Aristóteles, mesmo defendendo a arte, junta-se a Sócrates, Platão e à principal tradição da estética que opõe arte à vida real e procura mantê-la em um reino à parte. Pragmatismo e a estética do RAP não podem aceitar essa solução, uma vez que insistimos na profunda conexão da arte com a vida, seu uso como instrumento para a construção da ética e do estilo de vida de uma pessoa, um meio de engajamento político para aumentar a consciência e promover mais liberdade.

Luiz Tatit, situando historicamente o aparecimento do RAP no Brasil, após o rock dos anos 80, revela uma relação interessante entre forma e função social da música popular, vinculando o primeiro à orfandade que vitimou a juventude, traçando o caminho para a abertura de outras possibilidades dialógicas entre a música popular brasileira e a música pop norte-americana:

Enquanto isso, o espaço de rebeldia da juventude excluída, órfã do rock de “atitude”, começa a se recompor em torno de um canto que radicalmente eliminava as durações vocálicas próprias da face melódica da canção, anunciando assim um rompimento com as formas de expressar lamúrias e desventuras amorosas. Nem passional, portanto, nem propriamente temático, esse canto recuperava a entoação pura, não pelo breque do samba nacional, mas pelo break da cultura hip hop oriunda de Nova York. Na verdade, as articulações entrecortadas e ritmadas do rap brasileiro inauguravam uma outra via de aproximação com a sonoridade norte-americana: em vez da influência pop habitual, mantida desde os tempos de Frank Sinatra, agora na exposição crua de toda canção popular: a fala.15

Dessa forma, ou seja, privilegiando o que se fala no RAP, podemos então abordar essa manifestação poética popular que possui ancestrais antigos nas formulações expressivas do homem. Os narradores benjaminianos aqui vêm travestidos de experiências vivenciadas na luta urbana e inclusive afirmam: “Eu ontem era caça e hoje, pá! Sou o predador” (Otus 500). Sua fala é plena de autoridade. Aqui, então, será privilegiada a palavra oral, transformada em signo para que assim possamos, de alguma forma, apreendê-la, mesmo com todas as ressalvas expostas. Mas a palavra oralizada, potencializada tecnologicamente, aqui possui um “alcance social” e, mesmo privada de seus outros atributos perfomáticos, possui ainda, em nosso entendimento, uma força comunicativa que desvela interessantes revisões da realidade. Como observa Paul Zumthor: “habituados que somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar nele.” Concordamos, mas note-se, porém, que aqui lidamos não com o escrito, mas com o transcrito, ou seja, trabalhamos com palavras que foram proferidas, e aqui utilizamos o verbo proferir de forma ampla, também em seus sentidos primários de “estender para diante, exercer publicamente”. Sabemos que tais palavras só se tornaram notação gráfica simbólica por obra da própria indústria e pelos meios de comunicação digitalizados. Diríamos que o RAP seria um estilo oral performático, mas trataremos da palavra que, diríamos, brotou letra falada, mediada agora pela escrita. Resumindo: vamos nos ater no texto e não na obra, já que, ainda segundo Zumthor, o texto “designa uma seqüência mais ou menos longa de enunciados, e a obra seria tudo que é poeticamente comunicado”.

Em uma entrevista recente16 , o escritor/cantor/compositor Chico Buarque expõe algumas considerações sobre o fenômeno do RAP no Brasil. Vejamos um trecho da entrevista:

Folha – Você parece estar descrevendo um esgotamento histórico…
Chico – A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito. E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo – e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum’n’bass. Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o RAP, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não.

Folha – E o RAP? Sem abusar das relações mecânicas, parece que estamos diante de uma música que procura dar conta, ou que reage a uma nova configuração social, muito problemática.
Chico – Eu tenho pouco contato com o RAP. Na verdade, ouço muito pouca música. O acervo já está completo. Acho difícil que alguma coisa que eu venha a ouvir vá me levar por outro caminho. Já tenho meu caminho mais ou menos traçado. Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do RAP muito interessante. Não só o RAP em si, mas o significado da periferia se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social, as marchinhas de Carnaval meio ingênuas, aquela história de “lata d’água na cabeça” etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de classe média. O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas letras e na forma que a gente vê no RAP. Esse pessoal junta uma multidão. Tem algo aí.

Não se sabe se o RAP vem definir uma nova tipologia artística que substituiria o que se conhece por canção popular no Brasil, o próprio Chico somente especula sobre a questão, mas é notório que, além das temáticas, o fenômeno apresenta uma nova configuração do que seriam letras e músicas das canções. Usando várias espécies de apropriações de bases sonoras, com suas “letras” quilométricas, e o estilo mais recitado que cantado – o canto falado –, o RAP revela-se como caminho de acessibilidade das populações periféricas das cidades para uma forma de expressão estética produzida a partir do próprio lugar. Utilizando-se da tecnologia mais facilmente disponibilizada atualmente, os pobres incultos estão dando um salto entre o seu mundo violento e problemático e o mundo das mídias. O tradicional “versar” soma-se às possibilidades de corte e colagem de sonoridades diversas – eletrônicas, além dos tradicionais vocais – e criação de formas expressivas próprias. A voz do rapper é a voz poética que traz um ethos discursivo marcante, que reitera o lugar do discurso e o faz sensível ao ouvinte decodificador, que “lê” as palavras proferidas numa ambientação na qual se mesclam elementos vários, criando um clima que o insere num mundo representado, que é a simulação de dados de uma realidade que lhe é familiar. Podemos tomar como exemplo o início do cd duplo Nada como um dia após o outro, a faixa introdutória Sou + você. As primeiras sonoridades são: uma freada de carro, rajadas de tiros, latidos de cães, mais tiros, som de uma motocicleta pondo-se em movimento, depois de uma pequena pausa silenciosa, um galo que canta, som de pássaros, ruído de um despertador digital, então iniciam-se acordes musicais e, finalmente, entra o chamamento, através da voz de Mano Brown, como se iniciassem as transmissões de um programa radiofônico:

Bença, Mãe
Estamos iniciando nossas transmissões,
essa é a sua rádio Exodus
Vamo acordá, vamo acordá, porque o sol não espera
demorô, vamo acordá, o tempo não cansa
ontem à noite você pediu, você pediu….
uma oportunidade, mais uma chance,
como Deus é bom, né não nego?
Olha aí, mais um dia todo seu
que céu azul loko hein?
Vamo acordá, vamo acordá
agora vem com a sua cara
sou mais você nessa guerra
a preguiça é inimiga da vitória
o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar
Não vou te enganar, o bagulho tá doido
ninguém confia em ninguém, nem em você
os inimigos vêm de graça, é a selva de pedra
ela esmaga os humildes demais
você é do tamanho do seu sonho
faz o certo, faz a sua
vamo acordá, vamo acordá
cabeça erguida, olhar sincero
tá com medo de quê?
Nunca foi fácil, junta os seus pedaços e desce pra arena
mas lembre-se: aconteça o que aconteça
nada como um dia após o outro dia.

Neste RAP introdutório estão presentes, de certa forma, muitas das temáticas características presentes na poética dos Racionais: o caráter pedagógico, a religiosidade como apoio, a exortação ao enfrentamento positivo da realidade da selva de pedra que esmaga e inferioriza os “humildes demais”, o chamado para a atividade, para a luta. Essa poetização energética e bélica é uma tônica (ou um tônico), processo de ritualização suburbana (ou periférica) da realidade, do dia-a-dia. E aqui utilizamos a palavra exortação em mais de uma acepção, abrindo o campo semântico que passa por encorajamento, estímulo, incitação, mas também conselho, advertência, além da conotação jurídica do termo como “apelo que o juiz faz aos jurados para que tomem suas decisões de acordo com a própria consciência e com os ditames da justiça”. Pois dentro da guerra diária redefinida na poética dos Racionais é primordial a ideia de que a consciência (o quarto elemento da cultura Hip Hop) é um dado fundamental perante os tribunais humanos e divinos (Em outro RAP – Vida Loka II – está dito que “O promotor é só um homem, Deus é o juiz”). Assim sendo, na introdução desse livro sonoro que é o cd, há a convocação de um processo de passagem: a saída da passividade sonolenta para a entrada na atividade guerreira do enfrentamento das vicissitudes. Esse despertar para um novo dia – Vamo acordá –, para os ouvintes da Radio Exodus é como um despertar de atitudes que venham trazer a possibilidade desse utópico dia solar, depois da noite de tiros que podem retirar de circulação alguns guerreiros. Um dado então é primordial: a importância dos relógios, ou seja, da marcação do tempo, que não é mais o tempo vulgar, mas o tempo em que se deve acordar – lembro de um esboço de centro cultural da Cidade de Deus chamado “Acorda crioulo”. Segundo Shusterman17 , referindo-se ao RAP dos Estados Unidos:

Certamente as verdades e as realidades que o hip hop revela não são as verdades transcendentais e eternas da filosofia tradicional, mas antes fatos mutáveis do mundo material, histórico e social. Mesmo assim, a ênfase dada à mudança temporal e à natureza maleável do real (refletidas nas datações das músicas de rap e na expressão “saber que horas são”) representa uma posição metafísica respeitável, em concordância com o pragmatismo americano.

Ainda segundo o filósofo, “essa é a noção é o tema central do disco de Kool Moe Dee, ‘Do you know what time is it?’, e encontra uma expressão no vestuário de Flavor Flav, do Public Enemy: um imenso relógio que ele usa como colar”. Sabendo da admiração dos integrantes dos Racionais pelo grupo norte-americano, inclusive fizeram abertura do show do Public Enemy em São Paulo, podemos inferir que tal filiação temática faz parte de uma forma de persuasão para que os pretos e pobres saiam da passividade e comecem a agir, ou seja, é uma característica filosófica e política do RAP “socialmente engajado” ao qual o grupo paulista é filiado. Em outros RAPs a questão da hora, do despertar para tomar conhecimento dos fatos – independente da natureza ou do âmbito a que eles se referem – está presente direta ou indiretamente.
Retomando o discurso poético de Sou + você, notamos a presença de formas verbais – demorô, iniciando, (o sol não) espera, (o tempo não) cansa, (agora) vem – que nos trazem a percepção de ações que possuem marcada dimensão temporal, tais formas verbais juntam-se a marcadores temporais – noite, dia, agora, sol – e definem a temporalidade como intrinsecamente ligada à pragmática da atividade cotidiana, porém reafirmada como discurso metafórico que clama aos seus ouvintes que o agora é o tempo de mudanças e que o mais importante é a sobrevivência em meio à “selva triste”…
Segundo Amarino Oliveira de Queiroz :18

A tradição das narrativas orais e de outras formas poéticas da oralidade, flagradas através do trabalho desenvolvido por diversos escritores africanos contemporâneos vem se constituindo, em maior ou menor grau, num dado significativo que se alia ao processo de elaboração das literaturas escritas produzidas naquele continente. Tomando-se o exemplo de alguns países africanos de língua portuguesa, poderíamos sugerir que a retomada dessa oratura e, conseqüentemente, sua reelaboração através da palavra fixada pela escrita ou performatizada pela associação entre voz, gesto, movimento, encenação e traço, como ocorre no rap, tem consistido num importante elemento capaz de viabilizar não apenas uma mais completa assimilação dessas modalidades expressivas, mas também uma contribuição efetiva no sentido de afirmar positivamente as identidades culturais daqueles países. (…)

Segundo o que se depreende do artigo, o tradicional canto falado dos africanos é um dos pilares fundadores do RAP contemporâneo, num processo de expansão e de retorno à África, através da mundialização da cultura Hip Hop, processo circular de trocas e hibridismos constantes que veio redefinir parâmetros das chamadas culturas tradicionais, fundamentalmente por intermédio na cultura massiva:

Em meados dos anos 60 do século passado, alimentando-se do canto falado da África, o discurso sobre bases musicais eletrônicas emergidos nos bailes da periferia de Kingston, Jamaica, amplificou-se, reeditando o contador/cantador tradicional em outra versão: o toaster. Este, por sua vez, acabaria por desdobrar-se no DJ e no poeta rapper dentro da cultura Hip Hop que se aproximava. No início da década seguinte, o que hoje identificamos como rap daria um outro salto: a crise econômica no Caribe, desencadeadora de novo processo diaspórico, faria com que o ritmo & poesia dos toasters chegasse ao ambiente urbano da metrópole pós-industrial estadouniudense, ali se infiltrando e a partir dali de difundindo pelo mundo inteiro, até marcar presença na África contemporânea.19

Os antecedentes da oralidade na composição do que chamamos aqui de RAP é um fator preponderante na sua formação, as relações com práticas orais tradicionais são tidas como fundamentais na própria formação do gênero nos guetos20 norte-americanos, assim, provindo da Jamaica, o canto falado, já presente no reggae tradicional, migrou para os EUA e ambientou-se numa fusão com outros estilos da black music. Segundo Goetz :21

Nos Estados Unidos, o hip hop é freqüentemente mitologizado em termos de uma dureza quase sobrenatural sustentando o “gangsta RAP” ou um passado ancestral distante envolvendo o “Griot”, um contador de histórias das sociedades africanas. Os rappers, supostamente informados por essa tradição oral africana e vocalizando os ressentimentos de afro-americanos subalternos, são transformados em uma autêntica força política de uma diáspora africana. Além do mais, o hip-hop é ligado ao destino de afro-americanos que vivem em dificuldade no cinturão de ócio urbano abandonado por uma sociedade pós-industrial.

3 – RAP: Negro drama contemporâneo

Há toda uma discussão acerca das verdadeiras fontes tradicionais do RAP, porém, acreditamos que o que ocorre é um processo de absorção de tradições transformadas histórica e geograficamente, somadas às mutações possibilitadas pela tecnologia e por particularidades e especificidades culturais localizadas. Segundo Douglas Kellner :22

O rap também depende de virtuosismo tecnológico, e o DJ, que manipula os sons eletrônicos, é parte importante da equipe. Portanto trata-se de uma forma que combina tradições orais afro-americanas com sofisticadas modalidades tecnológicas de reprodução de som. Além disso, os sons do rap muitas vezes são transgressivos, infringindo as regras de correção e do discurso aceitável. Trata-se freqüentemente de sons desordenados, com ruídos de carros de polícia, helicópteros, tiros, vidros quebrando e agitação urbana. Os sons do rap são especialmente perturbadores quando tocados no último volume em espaços públicos, anunciando que o inimigo está dentro, que a sociedade está dividida e enfrenta conflitos explosivos.

Um exemplo desses procedimentos que fundem tradição e contemporaneidade foi dado claramente no filme Sou feia, mas tô na moda, um documentário de Denise Garcia que trata, fundamentalmente, do chamado funk sensual produzido por mulheres, principalmente na Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Ainda que tratando na maior parte do tempo da produção das mulheres, no filme há mostras do funk mais antigo, dos anos 80 e 90. Em forma de improviso, numa roda, as pessoas batem palmas substituindo as percussões eletrônicas e “mandam” os seus versos. O que se observou foi que, longe da parafernália tecnológica de bases e samplers, e sem a presença do produtor, o que havia era um grupo de jovens – quase todos negros – celebrando triste, alegre ou ironicamente a vida, cantando sobre situações coletivas e individuais.
A partir dessa observação e de outras feitas em contato com funkeiros cariocas (e através do filme Fala, tu 23 ), notamos a proximidade com o samba de roda, o jongo, ou as rodas de partido alto, além de ecos cariocas dos próprios terreiros de umbanda e candomblé. Embora, para um especialista em música, essas observações possam parecer demasiadamente simples e reducionistas, o que se percebeu foi a revitalização de procedimentos que estão presentes em culturas tradicionais, principalmente de origem tribal e da qual as populações pobres em geral são depositárias. No Brasil, a formação circular de pessoas marcando o ritmo com as mãos, dançando, lamentando ou celebrando, é forma tradicional de congregação e essas raízes se fazem presentes como substrato cultural latente e como forma de manifestação estética, corporal e ideológica 24. Inclusive o RAP brasileiro está absorvendo cada vez mais sonoridades locais, principalmente do samba com suas diferentes cadências. Como já foi dito, aqui não se está fazendo um tratado sobre música, não se tem conhecimento técnico do assunto e nem é nossa intenção. Porém, sabendo-se do caráter extremamente coletivo e grupal dessas manifestações e da precariedade dos meios para produzi-las tecnologicamente, notamos como as raízes sonoras das comunidades tradicionais estão presentes, inclusive no próprio RAP. Finalizando essas considerações acerca das características mais ou menos essencialistas do RAP, podemos trazer para a discussão as palavras de Regina Novaes 25, sobre o movimento Hip Hop, no qual o RAP se insere:

Além do RAP (com seus DJs e MCs) e do break, há também o grafite26 , compondo a trilogia sagrada de um fenômeno social que é chamado pelos próprios participantes de movimento ou cultura hip-hop. Sabe-se que nos EUA há grupos violentos, financiados pelos traficantes. Mas há também os grupos de caráter pacífico que se propõem a substituir a violência das brigas entre grupos pela competição na música, na dança e no grafite. No Brasil os grupos que se tornaram conhecidos são contra as drogas e pregam a paz. Essa postura favorece conexões entre os grupos do movimento hip-hop com instâncias governamentais, organizações não-governamentais e igrejas. (…) O hip-hop não é, portanto, um movimento orgânico que produz grupos homogêneos. Ao contrário, existem várias correntes, linhas e ênfases que os diferenciam em países, cidades, bairros e estilos, já que a circulação de bens culturais não se faz nunca em uma direção unilateral. Assim sendo, a discussão sobre as origens nunca vai acabar. Essa é uma controvérsia constitutiva do hip-hop. Na verdade, ao reafirmar ou negar raízes do passado, os grupos estão se posicionando sobre questões do presente, estão fazendo escolhas e construindo alianças e identidades.

O fato dos negros, em suas diferentes etnias, servirem à colonização como força de trabalho escravo é um dado fundamental para a introdução em qualquer assunto relativo à exclusão e ao racismo no Brasil. Buscando a brevidade, trataremos de alguns pontos considerados como relevantes para o desenvolvimento das análises, ou seja, como se instauram o discurso e a prática racistas na sociedade brasileira.
A primeira observação refere-se ao fato de o tratamento mais violento dado aos negros escravizados haver ocorrido nas colônias. Porém, o dado da exclusão se fez sempre presente. Na sociedade ibérica renascentista, as práticas excludentes refletem o ideário de formação da identidade nacional. Segundo escritos datados dos começos do s. XVI, aos negros deveria ser assegurada: “una vida soportable y humana”. Mas, ainda assim, na Espanha, a exclusão legalizada teve de ser posta em prática; aos negros e gitanos eram reservados os piores ofícios. Como exemplo, temos o caso de um

moreno que puso una modestísima escuela de niños en la Laguna, fue requerido a que mostrase la carta de examen expedida por los veedores, y el susodicho responsable la no tenía, por cuya razón, el señor teniente Mayor le notificó cierre de la escuela y no enseñase muchachos, pena de que será castigado.27

O texto oficial nos dá informações interessantes: além da liberdade e cidadania relativas, revela o discurso humanista que intervém e impede a ação de um “trabalhador não-qualificado”, o que ajudaria na manutenção de excluídos não-escolarizados. Negros poderiam (e deveriam) ser cristãos, mas não poderiam ser sacerdotes; poderiam (como impedir?) aprender, mas não estavam legalmente aptos a ensinar. O fato da exclusão legal, em confronto com a exclusão não-oficial, será uma constante nas relações inter-raciais até nossos dias. Para os negros, então: “la única via de integración total eran las uniones sucesivas que iban emblanqueciendo su piel”. Na Sevilha renascentista começa a ser posta em prática a teoria da mulatização: extinção natural do negro. Há as etapas do processo, uma tabela é, cientificamente, elaborada. Tal tabela considera como “gente blanca” o filho da sexta geração de mulato que se unisse sempre com branco. Mas o caso se complica na América com as possibilidades combinatórias entre “puros” e “mestiços”. No Brasil, tal teoria de homogeneização sociorracial desfez-se na modernidade, ou melhor, revestiu-se da capa parda da pobreza, já citada por Caetano Veloso e redefinida nos versos dos Racionais: “mais um filho pardo, bastardo sem pai”. Dada a impossibilidade de absorção do negro nos modos de produção pós-escravagistas e da inserção de brancos pobres, surge uma outra fase de relacionamento inter-racial na América, que se agravou na América Católica.

Como observa Roberto da Matta, o racismo brasileiro vem de fontes eruditas que, por sua vez, provinham das teorias evolucionistas de s. XVII, e toma forma acabada no s. XIX:
como instrumento do imperialismo e como uma justificativa “natural” para a supremacia dos povos da Europa Ocidental sobre o resto do mundo (…) Gobineau colocava a tese de que a sociedade brasileira era inviável porque possuía uma enorme população mestiça, produto indesejado e híbrido do cruzamento de brancos, negros e índios.28

As teorias raciais e racistas sempre buscaram apoio nos discursos e práticas legais, religiosas 29e científicas. Porém, no Brasil, diferentemente dos EUA, a hierarquização legalista ibérica, à qual nos referimos, funciona como no esquema discutido por Foucault, em que há exclusão dentro do próprio sistema social. A particularidade do racismo brasileiro – que se nega internamente, anti-ideológico – nos traz a figura simbólica da mulatização, que se desfaz na exclusão. A ideologia social do racismo brasileiro se renova na crise contemporânea, clímax e acúmulo de mais uma: a impossibilidade de modernização neoliberal em confronto com representações sociais tênues, característica de uma sociedade heterogênea e centralizadora de riqueza.

Se fizemos essa pequena introdução histórica de uma evolução das teorias racistas que convivem com a formação do Brasil, desde a herança humanista ibérica e das modernas e científicas teorias modernas, foi para situar o ponto focal neste momento: a relação entre racismo e violência policial. Se a violência policial no Brasil é constante contra a população em geral, o fato se complica tratando-se de pobres e pretos. Casos de violência associada à prática do racismo são constantes. A imagem do negro/pobre estigmatizado como potencial risco à sociedade é parte integrante de uma visão que, se por um lado é apoiada pelas estatísticas, por outro sugere e redefine um caráter lombrosiano 30 que mascara a complexidade de um processo histórico de exclusão social do qual os negros e seus descendentes são as maiores vítimas. As formas de estigmatização dos negros evoluem e se adaptam às próprias revisões de parâmetros sociais que se redefinem historicamente, os discursos e visões evoluem, mas as práticas discriminatórias e racistas persistem como substrato latente dos indivíduos e da sociedade. Se o discurso biológico não dá conta, redefinem-se novas formas de manutenção dos processos estigmatizantes e excludentes, como afirma Stuart Hall :31

A diferença genética – o último refúgio das ideologias racistas – não pode ser usada para distinguir um povo do outro. A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.

Mas, segundo Milton Santos : 32

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais.

Ora, sabemos que a violência da polícia brasileira é voltada, fundamentalmente, àqueles que historicamente têm de ser postos em seu devido lugar, e “lugar de preto é na senzala”, diz um velho dito irônico. Ou seja, a manutenção dos excluídos em seus nichos habitacionais – subnormais, confinados e promíscuos, segundo a definição do geógrafo – é a tônica de políticas e práticas sociais cristalizadas, normatizadas ou assumidas por poderes oficiais e paralelos. Assim, as periferias urbanas brasileiras apresentam diversas similitudes com os guetos norte-americanos, habitados por seres humanos que foram etiquetados como underclass, subcidadãos que sobrevivem em meio à patologização social e individual. Segundo Wacquant :33

Esse “grupo” pode ser supostamente identificado como por uma série de características intimamente interligadas – desordem: uma sexualidade fora de controle, famílias chefiadas por mulheres, altas taxas de absenteísmo e reprovação nas escolas, consumo e tráfico de drogas, além da propensão ao crime violento, “dependência” persistente em relação a auxílio público, desemprego endêmico (devido, de acordo com algumas versões, à rejeição ao trabalho e à recusa em ajustar-se às estruturas convencionais da sociedade), isolamento em áreas com alta densidade de famílias problemáticas etc.

Ou seja, parece que aqui vemos comprovada a máxima dos Racionais: “periferia é periferia em qualquer lugar”, pois as descrições acima, somadas à questão dos quatro elementos de guetização vistos anteriormente – preconceito, violência, segregação e discriminação – reforçam a conceituação do gueto urbano contemporâneo feito pelo sociólogo francês, com o agravante de que os benefícios sociais brasileiros para tal “categoria” é escasso e/ou insuficiente. Então, no Brasil, com o advento, instituição e crescimento do tráfico de drogas e a consequente guetização e assunção belicista desses territórios o fato se complica, pois assim há o respaldo para o tratamento dado aos habitantes desses locais marginalizados, estigmatizados, onde comumente a única relação com o poder público – salvo a presença de candidatos em campanha eleitoral – se dá através da presença de forças policiais que acabam “se integrando” de maneira conflitante e violenta ao dia-a-dia de tais comunidades.

Para concluir, partimos então em uma direção que pretende ser desembocadura para nossa argumentação, ou seja, como o movimento Hip Hop e, no caso específico, o RAP dos Racionais MC’s insere-se como forma contemporânea de questionamento das formas de exclusão e estigmatização presentes na sociedade brasileira contemporânea, fazendo parte de um processo de tomada de consciência racial radical: o RAP transforma pardos em negros. Segundo Munanga (2004) : 34

Os movimentos negros brasileiros contemporâneos, nascidos na década de 70, retomaram a bandeira de luta dos movimentos anteriores representados pela Frente Negra, substituindo o anti-racismo universalista pelo anti-racismo diferencialista. Sob a influência dos movimentos negros norte-americanos, eles tentam dar uma redefinição do negro e do conteúdo da negritude no sentido de incluir neles não apenas as pessoas fenotipicamente negras, mas sobretudo os mestiços e descendentes de negros, mesmo aqueles que a ideologia do branqueamento já teria roubado.

No Brasil, geralmente, o RAP é tido como uma forma essencialista de expressão artística, nos mesmos modelos, porém apresentando especificidades que o afastaram do RAP consumido hoje nos Estados Unidos. Se, no início, as bases, samplers, sonoridades eram típicas dos EUA, comumente adaptações de bases de hits da black music, houve também a procura de outras referências, sendo buscadas inferências de músicos e ritmos brasileiros, um caso típico de releitura, movimento de hibridização de fontes externas a partir da mescla com sonoridades e temáticas localizadas.35
Pensando especificamente no RAP dos Racionais, trata-se de um discurso que se pretende prática vital. Para os rapazes de São Paulo, o RAP não é jogo, é guerra, e os rappers, conscientes de sua missão, são considerados guerreiros (várias são as passagens em que as metáforas bélicas são utilizadas como confirmação de que existe uma batalha que está sendo perdida pelos Manos). Sobre o termo Mano, é interessante notar que é uma forma de aglutinação fraterna de sujeitos que estão agrupados em um sentido de autoconsciência de sua função: buscar os espaços de cidadania negados pelo “sistema”. Tal categoria seria uma apropriação e ampliação de um conceito que não já tinha razão de ser no Brasil: o brother “negro” dos EUA. O Mano será, então, uma categoria que ultrapassa fronteiras raciais ou étnicas, porém que é formada, em sua grande maioria, por descendentes de negros e de migrantes. Em uma das canções, Negro drama, com seu caráter autobiográfico, está dito sobre o nascimento do personagem: “Família brasileira/ dois contra o mundo/ mãe solteira/ de um promissor vagabundo (…) O bastardo/ mais um filho pardo/ sem pai”. Ao se assumir como “pardo”, denominação genérica dada aos seres híbridos comuns no Brasil, o discurso rejeita o embate negro x branco. Ao internalizar a nominação pejorativa daquilo que não é bem definido enquanto cor da pele, o discurso poético vai agir na direção que aponta para o Mano, ou seja, para um ser sem cor, fruto do processo de exclusão social. Embora conscientes de que a marca epidérmica é fundamental, no RAP dos Racionais o embate já migrou, o inimigo não é o sujeito branco – embora ele possa aparecer assim em diversas situações – mas sim o “sistema” branco capitalista que empurra para os guetos urbanos 36 toda uma série de pessoas que poderiam ser definidas, inclusive, como “os brancos quase pretos de tão pobres”, tão poeticamente pintados por Caetano Veloso e Gilberto Gil no Rap-lamento Haiti. Porém, nos RAPs dos Racionais, o fato de possuir a pele escura sempre é agravante ao problema da estigmatização e consequente exclusão e vitimação por parte dos organismos estatais de controle e dos tentáculos do poder – policiais, seguranças, gerentes de lojas etc. Sabemos, porém, que o tratamento dado ao negros é diferenciado, em todos os níveis de relações sociais. Após análises estatísticas, a professor Marcelo J. P. Paixão37,chegou à seguinte conclusão que, de certa forma, conclui nossas observações:

O que essa plêiade de indicadores demonstra é a existência de uma coerência entre dados no seguinte sentido: i) seja qual for o indicador escolhido para analisar as desigualdades raciais, em todos eles os negros encontram-se em uma situação pior que a dos brancos; ii) seja qual for a região do país, os indicadores sociais e demográficos dos negros são menos favoráveis que os indicadores dos brancos; iii) mesmo quando se desagregam estes dados por gênero, o que se vê é que os homens brancos estão em melhor situação que as mulheres brancas, que estão em condições mais favoráveis que os homens negros, que estão em uma situação menos grave que as mulheres negras. Sendo assim, verifica-se que os argumentos de que no Brasil ser branco ou ser negro é indiferente do ponto de vista da estratificação social não são verdadeiros, ou, antes, pode-se argumentar que o problema social brasileiro possui um evidente e nítido componente social.

O RAP dos Racionais, fundamentalmente nos últimos dois trabalhos (Sobrevivendo no Inferno, de 1997 e Nada como um dia após o outro, de 2003) passou dos resquícios de uma visão racial com ecos do movimento norte-americano, para uma visão local interessante, em que o fundamental é a interação do pobre favelado a um processo de conscientização e busca da cidadania. Segundo Maria Rita Kehl : 38

Alguma coisa mudou na atitude de Brown e seus manos depois de Sobrevivendo no inferno, onde eles demarcavam o território do rap excluindo os “filhinhos de papai” que se faziam passar por malandros escutando os Racionais MC`s no rádio do carro. Em 2002, os músicos mais populares do hip hop paulista entenderam que a potência de seu “rythm and poetry” ultrapassa barreira de classe e de raça. Ninguém consegue impedir que os jovens do Jardim América 39 se identifiquem com o discurso produzido pelos moradores do Jardim Ângela.

Porém, o sabemos, como nos fala Kebengele Munanga, que o processo de “branqueamento físico da sociedade brasileira” fracassou e os abismos sociais estigmatizantes perduram, se os playboys assumem roupas, gestos e falas, o que se pode fazer? Mas no próprio cd está incluída a sintomática Da ponte pra cá, um enfático e irônico grito de exclusão dos playboys.

quero sua irmã e seu relógio Teg Heuar
Um conto se pá, da pra catar
ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar
Um triplex para a coroa e o que malandro quer
não só desfilar de Nike no pé
Ô, vem com a minha cara e o din-din do seu pai
mas no role com nóis “ce” não vai
Nóis aqui vocês lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? Se a vida é assim, tem culpa eu

Brown continua afirmando que não tem nada pra dizer para “os classe média”. Enquanto produto da indústria cultural, o RAP pode ser consumido por quem quer que seja, mas sabemos que o público-alvo, termo que aqui cai muito bem, continua sendo os moradores das periferias das cidades brasileiras. Como elemento integrante da cultura Hip Hop, o RAP dos Racionais é estetização e também parte de um ideário político que se conjuga com uma série de orientações que reivindicam direitos e melhorias estruturais e culturais para as comunidades pobres. A maioria dos shows ocorre ainda em espaços que não são os destinados aos pop stars. As aparições na TV escassearam ainda mais, porém as redes de comunicação se ampliam e a fala poética que reverbera os anseios de pretos, pobres, favelados se consolida como uma poética popular que busca, através da palavra, a conscientização daqueles que historicamente estiveram sempre à margem dos mínimos direitos do cidadão.

Vamos agora nos ater mais detalhadamente a um dos RAPs mais famosos dos Racionais, Negro Drama, que estruturalmente está dividido em duas partes principais, nas quais duas vozes poéticas e performáticas falam da dificuldade de sobrevivência de quem vive entre o sucesso e a lama ou entre a lama e a fama. Há variações do verso-mote, Negro drama, que oscila para negro trama, ou sente o drama, algumas aliterações que enriquecem a sonoridade das rimas. Na letra constam três gêneros narrativos tradicionais que são negados: “Não é conto, nem fábula, lenda ou mito”. E aqui transparece uma característica que foi sendo depurada na poética dos Racionais. Como afirmou Mano Brown, no início da carreira as letras produzidas usavam em maior quantidade de versos, um vocabulário mais elaborado, técnico, poderíamos dizer, mas que, segundo o próprio rapper, parecia linguagem de sociólogo. Em Sobrevivendo no inferno (1997), a oralidade – com gírias, onomatopéias, referência da linguagem publicitária, entre outras formas – foi explorada com efeitos surpreendentemente expressivos, mas também havia a introdução de referências que ultrapassam o léxico do dia-a-dia e do gírio (como Cidadão Kane). No disco duplo de 2003, Nada como um dia após o outro dia, as referências da cultura letrada aparecem com uma frequência maior, como as citadas acima (conto, fábula, lenda e mito). O enunciador poético se declara um Poeta entre o tempo e a memória, verso que nos remete ao caráter ambíguo da genética do próprio RAP que possui em sua formação heranças arcaicas e que se move dentro da temporalidade histórica do agora. Em Estilo cachorro, irônica saga de um rolê noturno, o personagem é “pontual como o Big Ben, quatro anos assim, nem Shakespeare imaginaria um fim”, ou seja, o “clássico” junta-se ao popular e ao trivial. Se pensarmos no caráter pedagógico do RAP dos Racionais, podemos cogitar que tal presença de referências da cultura “oficial” pode servir como forma de levar os ouvintes a buscarem o significado e produtividade de tais referentes na mensagem poética do RAP.

Em Negro Drama nota-se a afirmação discursiva de que raízes culturais, raciais e ideológicas seriam mais fortes que o poder dado aos ídolos pops, posição contrária à aculturação sofrida, por exemplo, pela personagem descrita no RAP Qual mentira vou acreditar que se transforma de uma linda negra passista em uma vaca nazista que condena o tipo e as atitudes de pessoas de sua mesma origem.

O tema da pressão sofrida pela ambiguidade de ser um Mano e um artista reconhecido também se faz presente nos últimos dois trabalhos dos Racionais, tal fato relaciona-se com todas as implicações relativas às relações de poder e a “patrulha ideológica” sofrida, além da também ambígua relação com o tráfico e o consumo de drogas, pois as letras do grupo são firmes na crítica à alienação em todas as suas formas.

Em Negro Drama, a introdução, falada, nos introduz ao sentido narrativo da história pessoal, ou seja, reivindica o direito à palavra que possui a verdade, pois é um discurso poético (ficcional) autenticado pelo seu emissor. Não se trata de apenas contar mais uma história, o caso agora é dar um depoimento vital, de um testemunho que dota, poeticamente, o discurso da verticalização necessária de uma história vivenciada, daí o caráter exemplar épico ser trazido através da tecnologia: o cd traz a voz do gueto para o mundo digital: tradição e modernidade que criam possibilidades outras de revisão dos paradigmas da cultura pop.

Na segunda parte do RAP, inicia-se a outra parte da narrativa poética de uma história que não será contada por nenhum Forest Gump, pois nesse RAP busca-se a verdade que “daria um filme”, então a reminiscência autobiográfica apresenta o personagem e a cena: “Uma negra, uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”. Então evidencia-se a negativa anterior, ou seja, os versos dizem a verdade, não estamos lidando, ouvintes/leitores, com conto, fábula, lenda ou mito. Nos versos posteriores, contundentes e perspicazes, está dito o seguinte:

Eu sou problema de montão
de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, sou leão
sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto.

Esses versos, de certa forma, propulsionaram nossa pesquisa, e neles se concentra um tipo de enfrentamento que estimulou, por exemplo, as observações de Maria Rita Kehl sobre o possível trânsito entre a mensagem do Capão e o mundo dos playboys. Porém, acreditamos que a ironia dessa pequena “vitória” contra o Senhor de engenho funciona, através da reversibilidade irônica, como afirmação da ética e da estética da favela, exemplificada na auto-valorização dos jovens e da quebrada (o bairro, a favela) que ocorre, por exemplo, em Da ponte pra cá. Finalizando, há, sabemos, uma discussão que perpassa o tipo de pesquisa que aqui se apresenta, ou seja, sobre a qualidade literária do corpus em questão, debate que evidencia valorações sobre cultura e arte preferenciais. E aqui apresentamos algo que é descrito por um de seus autores como som de preto, sem massagem. Estamos lidando com uma prática discursiva, performática, estilística, ou seja, poética, produzida por quem sempre esteve abaixo da linha indelével que separa e define padrões culturais e delimita espaços territoriais e simbólicos, ou seja, lidamos com ética e estética, formas estas conjugadas em algo distinto. Mas, talvez, para quem o RAP se dirige preferencialmente, ele seja algo muito maior, seja prática política, ponte entre Arte e Vida, ou simplesmente alento vital, ou seja, Ritmo e Poesia.
APÊNDICES

I – Da ponte pra cá

A lua cheia clareia as ruas do capão,
Acima de nós só Deus humilde né não? né não?
Saúde: plin, mulher e muito som,
Vinho branco para todos um advogado bom
Cof,cof, ah, esse frio tá de fuder,
Terça feira é ruim de role, vou fazer o que
Nunca mudou nem nunca mudará
O cheiro de fogueira vai, perfumando o ar
Mesmo céu, mesmo cep no lado sul do mapa,
Sempre ouvindo um rap para alegrar a rapa
Nas ruas da sul eles me chamam brown,
Maldito,vagabundo, mente criminal
O que toma uma táça de champagne também curte
Desbaratinado, tubaína, tutti-frutti.
Fanático, melodramático, bom-vivant,
Depósito de mágoa quem esta certo é o saddam, ham…
Playboy bom é chinês, australiano,
Fala feio e mora longe não me chama de mano
“- e aí brother, hey, uhuuul, ” pau no seu c…aaaíí,
Três vezes seu sofredor odeio todos vocês
Vem de artes marciais que eu vou de sig sauer,
Quero sua irmã e seu relógio tag heuer
Um conto se pá, dá pra catar,
Ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar.
Um triplex para a coroa é o que malandro quer,
Não só desfilar de nike no pé
Ô vem com a minha cara e o din-din do seu pai,
Mais no rolé com nóis ?ce? não vai
Nóis aqui, vocês lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? se a vida é assim, tem culpa eu?
Se é o crime ou o creme, se não deves não teme,
As perversa se ouriça e os inimigo treme
E a neblina cobre a estrada de itapecirica…
Sai, Deus é mais, vai morrer para lá zica

Não adianta querer, tem que ser tem que pá,
O mundo é diferente da ponte pra cá
Não adianta querer ser tem que ter para trocar,
O mundo é diferente da ponte pra cá

Outra vez nóis aqui vai vendo,
Lavando o ódio embaixo do sereno
Cada um no seu castelo, cada um na sua função,
Tudo junto, cada qual na sua solidão
Hei, mulher é mato a Mary jane impera,
Dilui a rádio e solta na atmosfera
Faz da quebrada o equilíbrio ecológico,
Distingüe o judas só no psicológico
Hó, filosofia de fumaça analise,
E cada favelado é um universo em crise
Quem não quer brilhar, quem não? mostra quem,
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém
Quantos caras bom, no auge se afundaram
Por fama
E tá tirando dez de havaiana
E quem não quer chegar de honda preto em banco de
couro,
E ter a caminhada escrita em letras de ouro
A mulher mais linda sensual e atraente,
A pele cor da noite, lisa e reluzente
Andar com quem é mais leal e verdadeiro,
Na vida ou na morte o mais nobre guerreiro
O riso da criança mais triste e carente,
Ouro, diamante, relógio e corrente
Vem minha coroa onde eu sempre quis pôr,
De turbante, chofer uma madame nagô.
Sofrer pra que mais se o mundo jaz do maligno,
Morrer como homem e ter um velório digno
Eu nunca tive bicicleta ou video-game,
Agora eu quero o mundo igual cidadão Kane,
Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola,
Minha meta é dez, nove e meio nem rola
Meio ponto a ver, hum e morre um,
Meio certo não existe truta o ditado é comum
Ser humano perfeito, não tem mesmo não,
Procurada viva ou morta a perfeição
Errare humanus est, grego ou troiano,
Latim, tanto faz pra mim: fi de baiano
Mas se tiver calor, quentão no verão,
Ce quer da um rolé no capão daquele jeito,
Mas perde a linha fácil, veste a carapuça,
Esquece estes defeitos no seu jaco de camurça
Jardim Rosana, Três estrela e imbé,
Santa Tereza, valo velho e dom José.
Parque chácara, lídia, vaz,
Fundão muita treta com a Vinícius de Moraes

Refrão

Mas não leve a mal tru, ce não entendeu,
Cada um na sua função, o crime é crime e eu sou eu.
Antes de tudo eu quero dizer, pra ser sincero
Que eu não pago de quebrada mula ou banca forte.
Eu represento a sul, conheço loco na norte,
No 15 olha o que fala, perus, chicote estrala
Ridículo é ver os malandrão vândalo,
Batendo no peito feio e fazendo escândalo
Deixa ele engordar, deixa se criar bem,
Vai fundo, é com nóis, super star, superman, vai…
Palmas para eles digam hey, digam how,
Novo personagem pro Chico Anísio show
Mas firmão né, se deus quer sem problemas,
Vermes e leões no mesmo ecossistema
Ce é cego doidão? então baixa o farol!
Hei hou, se qué o quê com quem diow?
Tá marcando, não dá pra ver quem é contra a luz
Um pé de porco ou inimigo que vem de capuz
Hey truta eu tô louco, eu tô vendo miragem,
Um bradesco bem em frente a favela é viagem
De classe “a” da “tam” tomando jb
Ou viajar de blazer pró 92 dp
Viajar de GTI quebra a banca,
Só não pode viajar com os mão branca
Senhor guarda meus irmão nesse horizonte cinzento,
Nesse capão redondo, frio sem sentimento
Os manos é sofrido e fuma um sem dar goela,
É o estilo favela e o respeito por ela
Os moleque tem instinto e ninguém amarela.
Os coxinha cresce o zóio na função e gela
Qual mentira vou acreditar
São apenas dez e meia, tem a noite inteira
Dormir é embaçado, numa sexta-feira
TV é uma merda, prefiro ver a lua
Preto, Edy Rock, Star, a caminho da rua
hã… sei lá vou pruma festa, se pam
se os cara não colar, volto às três da manhã
Tô devagar, tô a cinqüenta por hora,
ouvindo funk do bom, minha trilha sonora.
A polícia cresce o olho, eu quero que se foda
Zona Norte, a bandidagem curte a noite toda.
Eu me formei suspeito profissional,
bacharel pós-graduado em “tomar geral”.
Eu tenho um manual com os lugares, horários,
de como dar perdido… ai, caralho..

Prefixo da placa é MY
sentido Jaçanã, Jardim Ebron
Quem é preto como eu já tá ligado qual é,
Nota Fiscal, RG,polícia no pé
escuta aqui: o primo do cunhado do meu genro é mestiço,
racismo não existe, comigo não tem disso,
é pra sua segurança
Falou, falou, deixa pra lá.
Vou escolher em qual mentira vou acreditar.
Tem que saber mentir, tem que saber lidar
em qual mentira vou acreditar?

A noite é assim mesmo, então… deixa rolar.
Em qual mentira vou acreditar?
Tem que saber mentir, tem que saber lidar.
Em qual mentira vou acreditar?
Pó, que caras chato, o!
Quinze pras Onze,
eu nem fui muito longe e os “home” embaçou.
Revirou os banco, amassou meu boné branco,
sujou minha camisa do Santos.
Eu nem me lembro mais pra onde eu vou.
E agora, que será que ligou
“Espere na atração, eu tô na Zona Sul,
eu chego rapidinho,assinado: Blue”.
Pode crer, naquele lado de Santana,
conheço uns lugar, conheço umas fulana.
Juliana? Não. Mariana? Não. Alessandra? Não. Adriana?
O nome é só um detalhe, o nome é só um nome.
953… hum, esqueci o telefone.
“Ôrra, demorou, heim?!”
E aí, Blue, como é?
Isso aqui é um inferno, tem uma pá de mulher,
trombei uma pá de gente, uma pá de mano,
tô há quase uma hora te esperando.
Passou uma figura aqui e deu idéia,
disse que te conhece e pá, chama Léa.
Cabelo solto, vestido vermelho,
estrategicamente a um palmo do joelho.
Os caras comentaram o visual,
“oz bi”, que tal, pagando o maior pau.
Ninguém falou, ah! ah! mas eu ouvia
meio mundo xingando por telepatia
(filha da puta!).
Economizava meu vocabulário,
não tinha o que falar, falava o necessário
meio assim, é claro, será qual é que é, truta
é o que não falta, mina filha da puta.
Tudo comigo, confio no meu taco,
versão africana “Don Juan de Marco”,
tudo muito bom, tudo muito bem,
sei lá o que é que tem, idéia vai, idéia vem,
ela era princesa, eu era o plebeu,
quem é mais foda que eu, espelho, espelho meu.
“Tipo Taís de Araújo ou Camila Pitanga?”.
Uma mistura. Confesso: fiquei de perna bamba.
Será que ela aceita ir comigo pro baile?
Ou ir pra Zona Sul ter um “Grand Finale”?
Amor com gosto de gueto até às seis da manhã,
me chamar de “meu preto” e me cantar “Djavan”.
Ninguém ouviu, mas… puta que pariu!
Em fração de segundos meu castelo caiu!
A mais bonita da escola, rainha, passista,
se transformou numa vaca nazista!
Eu ouvindo James Brown, pá, cheio de pose,
ela pergunto se eu tenho… o quê? Gun’s Roses?
Lógico que não! A mina quase histérica,
meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica.
Como é que ela falou? Só se liga nessa,
que mina cabulosa, olha só que conversa:
que tinha bronca de neguinho de salão (não…)
que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí não…).
Aí não, mano! Foi por pouco,
Eu já tava pensando em capotar no soco
Disse pra mim não falar gíria com ela,
pra me lembrar que não to na favela.
Bate-boca, maior goela, será que é meia-noite, já?
A Cinderela virou bruxa do mal.
Me humilhar não vai, vai tirar o caralho
levanta o seu rabo racista e sai!
Eu conheço essa perversa há maior cara
correu a banca toda de uns “pleiba” que cola lá na área.
Pra mim ela já disse que era solitária
que a família era rígida e autoritária
Tem vergonha de tudo, cheia de complexo
que ainda era cedo pra pensar em sexo

REFRÃO

Ih! Caralho! Olha só quem tá ali?
O que que esse mano tá fazendo aqui?
E aí, esse maluco veio agora comigo,
Ligou, que era até seu amigo,
que morava lá na sul,irmão da Cristiane,
dei um “cavalo” pra ele no Lausane.
Ia levar um recado pra uns parente local
, da Igreja Evangélica Pentecostal.
Desceu do carro acenando a mão
“Na paz do Senhor!”.
Ninguém dava atenção.
Bem diferente do estilo dos crentes.
Um bom “jaco” e touca, mas a noite tá quente.
Que barato estranho, só aqui tá escuro.
Justo nesse poste não tem luz de mercúrio.
Passaram vinte fiéis até agora,
dá cinco reais, cumprimenta e sai fora.
Um irmão muito sério, em frente à garagem
outro com a mão na cintura em cima da laje.
De vez em quando a porta abre e um diz:
“tem do preto e do branco?” e coça o nariz.
Isso sim, isso é que é união!
O irmão saiu feliz, sem discriminação!
De lá pra cá veio gritando, rezando:
“Aleluia, as coisas tão melhorando!”.
Esse cara é dentista, sei lá…
diz que a firma dele chama “Boca S.A.”.
Será material de construção? Vendedor de pedras?
Lá na zona sulera patrão.
Ih! patrão o caralho! Ele é safado
Fugiu do Valo Velho com os dias contados
A paranóia de fumar era fatal
Arrombava os barracos, saqueava os varal
Bateu na cara do pai de um vagabundo.
Hum… tá fazendo hora extra no mundo
A noite tá boa, a noite tá de barato
mas puta, gambé, pilantra é mato

Tem que saber mentir
tem que saber lidar.
Em qual mentira vou acreditar?
A noite é assim mesmo, então deixa rolar
Em qual mentira vou acreditar?

Negro Drama
NEGRO DRAMA
entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama
NEGRO DRAMA
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura
NEGRO DRAMA
Tentar ver e não vê nada
A não ser uma estrela
Longe, meio ofuscada

Sente o drama,
O preço, a cobrança
No amor, no ódio
A insana vingança

NEGRO DRAMA
Eu sei quem trama
E quem tá comigo
O trauma que eu carrego
Pra não ser mais um preto fodido

O drama da cadeia e favela,
Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia
que sobrevive em meio às honras e covardias
Periferias, vielas, cortiços
Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso

Desde o início, por ouro e prata
Olha quem morre, então, veja você quem mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural
Histórias, registros e escritos
Não é conto, nem fábula, lenda ou mito
Não foi sempre dito que preto não tem vez
Então, olha o castelo e não
foi você quem fez, Cuzão

Eu sou irmão dos meus truta de batalha
Eu era a carne, agora sou a própria navalha

Tim…Tim…
Um brinde pra mim
Sou exemplo de vitórias,
Trajetos e Glórias

O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela
São poucos que entram em campo pra vencer
A alma guarda o que a mente tenta esquecer

Olho pra traz, vejo a estrada que eu trilhei
Mó cota
Quem teve lado a lado e quem só ficou na bota
Entre as frases, fases e várias etapas
Do quem é quem, dos Mano e das Mina fraca

Hum..
NEGRO DRAMA de estilo
Pra ser, se for tem que ser
Se temer é milho
Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Que sou homem e não um covarde
Que Deus me guarde
Pois eu sei que ele não é neutro
Vigia os rico, mas ama os que vêm do gueto
Eu visto preto por dentro e por fora
Guerreiro, Poeta entre o tempo e a memória
Ora, nessa história, vejo o dólar
E vários quilates. Falo pro mano
Que não morra, e também não mate
O Tic Tac
Não espera, veja o ponteiro
Essa estrada é venenosa
E cheia de morteiro
Pesadelo, hum, é um elogio
Pra quem vive na guerra
A paz nunca existiu
Num clima quente
A minha gente soa frio
Vi um Pretinho
Seu caderno era um Fuzil.

NEGRO DRAMA
Crime, futebol, música. Carai!
Eu também não consegui fugir disso aí
Eu sou mais um
Forest Gump é mato
Eu prefiro contar uma história real
Vou contar a minha….

Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olhe outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro sem rosto e coração
Hey, São Paulo, terra de arranha-céu
A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel
Família brasileira, dois contra o mundo
Mãe solteira de um promissor vagabundo
Luz, câmera e ação: gravando a cena vai
O bastardo, mais um filho pardo, sem pai
Hey, Senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num güenta
Sozinho cê num güenta a pé
Cê disse que era bom, e as favela ouviu
Lá também tem uísque e Red Bull
Tênis Nike, Fuzil
Admito, seus carro é bonito
Hé, e eu não sei fazer
Internet, vídeo-cassete, os carro loko
Atrasado eu tô um pouco, sim, tô, eu acho
Só que tem que
seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão
de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, sou leão
sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto
Esse não é mais seu, hó, subiu
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu
Nós é isso, aquilo. Quê? Cê não dizia
Seu filho quer ser preto, rá, que ironia
Cola o pôster do Two-Pac aí
Que tal? Que cê diz?
Sente o negro drama
Vai, tenta ser feliz
Hey, bacana
Quem te fez tão bom assim
O que cê deu, o que cê faz
O que cê fez por mim
Eu recebi seu Tik, quer dizer Kit
De esgoto a céu aberto e parede madeirite
De vergonha eu não morri
Tô firmão, eis-me aqui
Você não, você não passa
Quando o Mar Vermelho abrir
Eu sou o Mano
Homem duro do gueto, Brown, Obá
Aquele loko que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamante?
Da lama
Valeu, mãe
Negro drama
Aí, na época dos barraco de pau lá na pedreira
onde vocês tavam?
o que vocês deram por mim ?
o que vocês fizeram por mim ?
agora tá de olho no dinheiro que eu ganho
agora tá de olho no carro que eu dirijo
demorou, eu quero é mais
eu quero é ter sua alma
aí, o rap fez eu ser o que sou
Ice blue, Edy rock e KL Jay, e toda a família
e toda geração que faz o rap
a geração que revolucionou
a geração que vai revolucionar
anos 90, século 21é desse jeito
aí, você saí do gueto
mas o gueto nunca saí de você, morou, Irmão
você tá dirigindo um carro
o mundo todo tá de olho em você, morou
sabe por quê?
pela sua origem, morou Irmão
é desse jeito que você vive
é o negro drama
eu não li, eu não assisti
eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama
eu sou o fruto do negro drama
aí dona Ana, sem palavra, a senhora é uma rainha, rainha
mas aí, se tiver que voltar pra favela
eu vou voltar de cabeça erguida
porque assim que é
renascendo das cinzas
firme e forte, guerreiro de fé
Vagabundo nato.
* Jorge Nascimento formou-se em Letras pela UFRJ, onde cursou graduação, mestrado e doutorado em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas. Desde 1993 é professor da Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na graduação e no mestrado em Estudos Literários, desenvolvendo pesquisas sobre literatura hispano-americana e brasileira. Atualmente pesquisa o RAP dos Racionais MC`s e Literatura Marginal.
Contato: jorgelizn@gmail.com

 

 

1 Entre o pessoal do RAP, o termo função é utilizado como trabalho, atividade, “correria”.

2 SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra no Brasil. Salvador: EdUFBA, São Paulo: Pallas, 2003. (p.12)

3 SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. (p. 22)

4 PEDREIRA, Fernando. In: Jornal do Brasil 12/05/93.

5 Fantasmas primitivos e superstições cibernéticas. Editorial de O Estado de S. Paulo, 17/08/86.

6 O “Estado” contra Tião Macalé. Folha de S. Paulo, 05-09-93.

7 Entrevista concedida a Alexandre Medeiros e Tim Lopes. Jornal O Dia, 31-01-94.

8 Cit. In: PARANHOS, A. Os desafinados do samba na cadência do Estado Novo. Revista Nossa História. Ano 1, n.4, fev., 2004. (p. 21)

9 Formado em 1990, por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, o grupo Racionais Mc’s destacou-se na coletânea “Consciência Black”, lançada pela gravadora Zimbabwe Records, com os sucessos: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”. Em 1992, lançaram seu primeiro LP “Holocausto Urbano” que vendeu cerca de 50 mil cópias. Nos anos 90 e 91 trabalharam com shows por toda a capital e interior, receberam o Prêmio de Melhor Grupo de RAP do Ano e participaram da abertura do Show do Public Enemy no Ginásio do Ibirapuera. Em 1992 deram um importante passo, e fizeram shows na Febem e deram palestras para alunos nas escolas públicas. Em 1993, foram a atração no Teatro das Nações, com o projeto Música Negra em Ação. O sucesso total veio com o CD “Raio X do Brasil”. Conquistaram o maior Prêmio da Música Popular Brasileira o “Prêmio Sharp”, Mano Brown ganhou como compositor revelação com a música “Homem na Estrada”. No final de 1997, com seu próprio selo (Cosa Nostra), lançaram o CD “Sobrevivendo no Inferno”, que vendeu mais de 500mil cópias, sem contar os CDS piratas. No ano de 1998, lançaram dois videoclips “Diário de um Detento” e “Mágico de Oz”. Em agosto do mesmo ano foram os vencedores do Vídeo Music Brasil, promovido pela MTV, recebendo os prêmios “Melhor Grupo de Rap” e “Escolha da Audiência”. Em 2003 lançaram o CD “Nada como um dia depois de outro dia”. (Fonte:http:// www.capao.com.br)

10 É melhor não aparecer nestes programas que tiram sarro dos grupos. Não iríamos vender nosso som para estes caras. Não somos produto, somos artistas. (Edy Rock, Racionais, Jornal da Tarde, 4/8/98).

11 Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma parar se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos. (GOFFMAN, I. Estigma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1975. p. 11).

12 (Revista Isto É, 21 de outubro de 98).

13 SCHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Editora 34, 1998. Trad. Gisela Domschke. (pp. 164-165)

14 SCHUSTERMAN, Richard. Estética rap: violência e a arte de ficar na real. In: DARBY, Derrick; SHELBY, Tommie. Hip Hop e a filosofia. São Paulo: Madras, 2006. Trad. Martha Malvezzi Leal. (pp. 68-69)

15 TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê, 2004. (p. 243)

16 A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico. Jornal Folha de S. Paulo, 26/12/04. Disponível em:http://www.chicobuarque.com.br/texto/entrevistas/entre_fsp_261204c.htm
Idem (p. 160).
Cf. Griots, cantadores e rappers: do fundamento do verbo às performances da palavra. In: DUARTE, Zileide (org.). Áfricas de África. Recife: Programa de Pós-graduação em Letras / UFPE, 2005. (p. 11-12)

17 Idem (p.13)

18 O gueto norte-americano, o único que veio à luz do outro lado do Atlântico – os brancos de diversas origens, inclusive judeus, conheceram apenas bairros étnicos, de recrutamento essencialmente voluntário e heterogêneo, e que, mesmo miseráveis, sempre permaneceram abertos para o exterior por meio de pequenos canais de comunicação com uma sociedade branca norte-americana compósita -, representa a realização hiperbólica dessa lógica de dominação etnorracial imposta por um poder exterior. Nascido nas primeiras décadas do século passado sob o impulso das grandes migrações de negros dos estados do Sul, descendentes de escravos libertos. (WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008. Trad. Paulo César Castanheira. p. 18)

19 OTTMANN, Goetz. Entre a fluidez e a unidade: o que é local no Hip-Hop brasileiro. Disponível em http://www.imaginario.com.br/artigo/a0061_a0090/a0085.shtml

20 KELLNER, Douglas. A voz negra: de Spike Lee ao rap. In: —. Cultura e mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. Trad. Ivone C. Benedetti. (p. 232)

21 Macarrão, 33 anos, apontador do jogo do bicho, duas filhas, morador do morro do Zinco e torcedor do Fluminense. Toghum, 32 anos, vendedor de produtos esotéricos, budista e morador de Cavalcante. Combatente, 21 anos, moradora de Vigário Geral, frequentadora da Igreja do Santo Daime e operadora de telemarketing. Durante 9 meses, entre 2002 e 2003, uma equipe filmou o dia-a-dia destes três cariocas da Zona Norte, que batalham e sonham em fazer da sua música, o RAP, o seu ganha-pão. O resultado é uma crônica composta pelo cotidiano, letras e dramas deste três personagens. (Sinopse do filme disponível em: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/fala-tu/fala-tu.htm)

22 Podemos pensar no padre Bartolomé de las Casas, citado por Borges, que afirmava que era um pecado escravizar índios, já que havia negros que serviriam melhor a tal prática.

23 Este artigo está publicado em Proposta – Revista Trimestral de Debate da FASE, Ano 30. 90: 66-83. Disponível emhttp://www.redemulher.org.br/generoweb/rnovaes.htm

24 Um quarto elemento é considerado pelos militantes do movimento é a Consciência.

25 Cit. In: SANTA CRUZ GAMARRA, D. El negro en iberoamérica. CUADERNOS HISPANOAMERICANOS. Madrid: n. 451-452., jul.-oct., 1988.

26 MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

27 Podemos pensar no padre Bartolomé de las Casas, citado por Borges, que afirmava que era um pecado escravizar índios, já que havia negros que serviriam melhor a tal prática.

28 Cesare Lombroso foi um professor universitário e criminologista italiano, nascido a 6 de novembro de 1835, em Verona. Tornou-se mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia, ou a relação entre características físicas e mentais. Lombroso tentou relacionar certas características físicas, tais como o tamanho da mandíbula, à psicopatologia criminal, ou a tendência inata de indivíduos sociopatas e com comportamento criminal. Assim, a abordagem de Lombroso é descendente direta da frenologia, criada pelo físico alemão Franz Joseph Gall no começo do século XIX e estreitamente relacionada a outros campos da caracterologia e fisiognomia (estudo das propriedades mentais a partir da fisionomia do indivíduo). Sua teoria foi cientificamente desacreditada, mas Lombroso tinha em mente chamar a atenção para a importância de estudos científicos da mente criminosa, um campo que se tornou conhecido como antropologia criminal. A principal idéia de Lombroso foi parcialmente inspirada pelos estudos genéticos e evolutivos no final do século XIX, e propõe que certos criminosos têm evidências físicas de um “atavismo” (reaparição de características que foram apresentadas somente em ascendentes distantes) de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais primitivos da evolução humana. Estas anomalias, denominadas de estigmas por Lombroso, poderiam ser expressadas em termos de formas anormais ou dimensões do crânio e mandíbula, assimetrias na face, etc, mas também de outras partes do corpo. Posteriormente, estas associações foram consideradas altamente inconsistentes ou completamente inexistentes, e as teorias baseadas na causa ambiental da criminalidade se tornaram dominantes. (Disponível em: http://www.cerebromente.org.br)

29 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. (p. 62-63)

30 Ser negro no Brasil hoje. Disponível em:http://www.ige.unicamp.br/~lmelgaco/santos.htm

31 Idem p. 44.

32 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2004 (p.137).

33 O rap entrou no Brasil repertório da mídia nacional hoje, ou em 1998 pelo menos, depois de dez anos de presença na periferia. (…) O gosto dos playboys pelo rap dos Racionais, seu consumo tolerante de discursos antagônicos a seus interesses e a conseqüente integração do rap à cultura de massa hegemônica seria a atitude de quem se encontra em posição de superioridade hierárquica. (…) Enquanto os Racionais MCs fazem poesia a partir de sua percepção do racismo branco e da resistência negra, colocam em cena e – mais importante – em música, a onipresença muda no Brasil da opressão e da violência. A popularidade repentina do rap brasileiro, sua participação na cultura hegemônica brasileira, talvez seja a evidência de uma nova elaboração da autoconsciência brasileira. Essa reelaboração enfatiza o fato de que a segurança física está ao alcance de poucos, e a guerra civil de baixa intensidade entre os “excluídos” e as autoridades, envolvendo traficantes de drogas e a polícia, é parte permanente do cenário contemporâneo. Junto com a cordialidade que parece imperar nas relações entre grupos díspares e antagônicos e que permite que a classe média afirme carinhosamente “nóis sofre, mas nóis goza”, outros valores sociais regem o cotidianos. O consumo branco do rap implica, portanto, uma nova apreensão das relações sociorraciais. Em suma, esse consumo é uma forma de afirmar a violência das relações sociais; siginifica identificar-se com uma espécie de música de protesto. Música de protesto nos lembra os anos 60 e aí podemos afirmar (…) que o consumo do rap pela classe média branca talvez seja um substituto para a ação. Mas Francisco Carlos Teixeira (…) disse que cantar uma música de protesto em circunstâncias de perseguição policial pode, sim, ser ação política. Os rappers, cujos primeiros shows na periferia sofriam de repressão policial, certamente sabem do que ele estava falando. (SOVIK, Liv. What a wonderful world: música popular, identificações, política anti-racista. In: RAMOS, Sílvia (org.). Mídia e racismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. p. 103-104)

34 Utilizamos o termo gueto, pois acreditamos que as favelas brasileiras se relacionam com a seguinte definição. Gueto é uma forma urbana específica que conjuga os quatro elementos do racismo repertoriados por Michel Wierviorka – preconceito, violência, segregação e discriminação. (WACQUANT, p. 18)

35 PAIXÃO, Marcelo J. P. Desenvolvimento humano e relações sociais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. (p.80)

36 KEHL. M. R. Quem tem moral com os adolescentes? (Duas hipóteses sobre a crise na educação no século XXI). Texto apresentado no IV Colóquio do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais/LEPSI- USP. Oct. 2002. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/

37 Um bairro rico da cidade de São Paulo.

 

Fronteiras cruzadas – A ficção no jornalismo e a reportagem na literatura | de Cristiane Costa

Sinônimo de neutralidade e oposto à subjetividade, espaço tradicionalmente reservado à ficção, o conceito de objetividade jornalística vem sendo minado desde o século passado pela propaganda política fascista (que mostrou como era possível manipular qualquer fato ou número), pelas teorias psicanalíticas (que demonstraram o quanto o inconsciente influencia nossa interpretação do mundo) e até mesmo pela própria capacidade de simulação da literatura realista. Mas foi preciso que um novo surto de jornalismo-mentira, a partir dos anos 80, revelasse sua fragilidade, mostrando que a objetividade jornalística é antes de mais nada um artifício. Os vários escândalos que abalaram a credibilidade da imprensa levaram o público a perceber, na prática, que o status de ficcional ou factual depende de um contrato implícito. No caso do jornalismo, o de narrar um fato verdadeiro. No da literatura, o de privilegiar a imaginação e a concepção estética.

Ficou claro que a convenção que determina a exclusão de conteúdos não-ficcionais da literatura e de elementos subjetivos da reportagem interfere profundamente na forma de recepção de um texto. Às vezes, basta mudar seu suporte material. Uma reportagem pode ganhar status literário quando impressa em livro. Ou um texto ficcional simular uma reportagem a ponto de enganar jurados experientes de prêmios como o Pulitzer.

Isso faz com que se coloque em jogo a própria distinção entre o que é jornalismo e o que é literatura, seus graus de separação e contaminação. O fato é que, historicamente produzidas, e devidamente naturalizadas, as definições de objeto literário e objeto jornalístico têm variado ao longo do tempo, conforme as convenções narrativas. Isso acontece porque os diferentes graus de separação entre jornalismo e literatura correspondem à divisão em dois modos distintos de produzir, publicar, difundir, ensinar, ler e criticar os textos, baseados nos mitos da objetividade da imprensa e o da autonomia da ficção como uma categoria estética. Essa divisão instaura convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo, estabelecendo um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos. São essas convenções que regulam o estatuto social do escritor, a forma de consumo e os critérios estéticos para apreciação de um texto.

A principal convenção que rege o jornalismo contemporâneo certamente é o compromisso com a realidade. Convencionou-se que a narrativa jornalística trata de um fato real e não imaginário. Já à literatura, o critério de veracidade não se aplicaria. Um segundo critério distinguiria os dois gêneros: a linguagem. Em oposição ao discurso literário, o jornalismo daria ênfase ao aspecto utilitário da linguagem, sua transitividade, voltada para a compreensão do leitor, e em sua transparência, o meio pelo qual as informações são passadas da forma mais objetiva possível. Esse efeito é produzido na medida em que o narrador jamais intervém, apagando as marcas de sua subjetividade. Mas seria a escolha do pronome pessoal apenas um álibi retórico, um artifício literário como outro qualquer?

Não se quer aqui negar as diferenças entre um gênero e outro. Nem defender a volta do jornalismo mentira. Mas discutir se estas diferenças estariam baseadas em estruturas profundas, formas universais. Ou seriam “apenas depósitos de cultura (ainda que pareçam muito antigos)”, como sugere Roland Barthes: repetições, não fundamentos; citações, não expressões, estereótipos, não arquétipos?

É necessário, portanto, levantar quais são as “mitologias” que vão regular os critérios críticos e os modos de produção, difusão e consumo de um texto. E até mesmo o valor comercial ou intelectual de seu autor. A partir de que momento as categorias literatura e jornalismo são naturalizadas e a fronteira entre os dois campos definida? O fato é que, se as fronteiras entre jornalismo e literatura foram construídas _ a partir de valores bipolares como realidade e imaginação, objetividade e subjetividade, linguagem utilitária e expressiva, significante e significado _ ou se fazem parte da essência dos dois gêneros, o fato é que elas são visíveis.

A ideia de objetividade jornalística, que prevê a separação radical entre real e ficcional, levou tanto o jornalismo quanto a literatura contemporâneos a um impasse. De um lado, os romances apelam para o formato de making of, que relata o processo de apuração de uma reportagem, misturando realidade e imaginação, dados objetivos e impressões subjetivas, como é o caso de Nove noites, de Bernardo Carvalho, Inveja, de Zuenir Ventura, e Santa Evita, de Tomás Eloy Martinez. De outro, ressurge o chamado “jornalismo ficcional”, conceito criado a partir da onda de reportagens falsas que abalaram a credibilidade da imprensa mundial a partir dos anos 80.

Autor do livro Hiroshima, a reportagem editada na revista New Yorker, em 1946, que se tornou um dos maiores clássicos do jornalismo literário, John Hersey definiu a principal diferença entre ficção e não-ficção. “Há uma regra sagrada no jornalismo. O repórter não pode inventar”, afirmou num ensaio publicado em 1980. Para Hersey, a legenda implícita da imprensa deveria ser: “Nada disso foi criado”. Foi a primeira reação pública a uma série de denúncias que, a partir do início da década de 80, iria minar a credibilidade dos jornais.

O primeiro caso diagnosticado foi o da repórter Janet Cooke, autora de uma grande reportagem publicada no jornal The Washington Post, intitulada “Jimmy’s world”, sobre o dramático cotidiano de um garoto de 8 anos de classe média viciado em heroína. Janet Cooke descreveu em detalhes seu rosto de anjo, assim como as marcas das picadas em seu braço. E não poupou o leitor de cenas chocantes, como quando o namorado da mãe de Jimmy, um traficante de drogas, injeta heroína em suas veias. A reportagem correu mundo e mobilizou uma força especial de policiais e assistentes sociais de Washington para localizar o garoto, que a repórter se negava a identificar, alegando respeito às fontes. A verdade só veio à tona quando ela ganhou o Pulitzer e sua biografia foi divulgada. Boa parte do currículo de Janet Cooke tinha sido inventada, assim como a história de Jimmy.

A jornalista poderia ter conquistado o Pulitzer de ficção, mas, em vez disso, foi execrada. O affair Janet Cooke repercutiu em todo mundo, por ter destruído um dos pilares do jornalismo contemporâneo: o compromisso com a realidade. Apesar de exemplarmente condenada pelos colegas e pela opinião pública, casos semelhantes proliferaram na imprensa americana, ameaçando virar uma epidemia. Em 1981, o jornalista Christopher Jones publicou uma reportagem de capa no jornal The New York Times, em que narrava sua experiência de conviver durante um mês, nas selvas do Camboja, com guerrilheiros do Khmer Vermelho. Choveram cartas de leitores e experts no assunto, apontando erros factuais e geográficos grosseiros na reportagem, a ponto de um personagem feminino supostamente entrevistado ser descrito como um homem. Após checar todos os dados, o NYTconcluiu que Jones não esteve com os rebeldes cambojanos nem entrevistou as pessoas citadas. O jornal Village Voice foi mais além: demonstrou que o repórter não tirou a reportagem do nada. Surpreendentemente, parte dela foi plagiada da literatura, mais exatamente de um romance de André Malraux, de 1930.

Outros casos foram relatados, em jornais de menor importância, até que o affairJason Blair veio à tona. Em 2003, mesmo escaldado pelo caso Jones, o New York Times acabou publicando quatro páginas com correções das reportagens de Blair. O escândalo teve várias consequências, entre elas a saída do diretor-executivo do jornal. “Eu menti, menti e menti um pouco mais. Eu menti sobre onde estive, eu menti sobre onde obtive as informações, eu menti sobre como escrevi reportagens”, confessou o repórter, na primeira página de seu livro Burning down my master`s house: my life at The New York Times.

O livro foi lançado em março de 2004 com uma campanha de marketing digna dos maiores autores de best-sellers: tiragem inicial de 100 mil exemplares (que, insuficiente, exigiu uma segunda, de 20 mil, na semana seguinte), audiobook, entrevistas nos principais programas da televisão americana e um adiantamento de US$ 500 mil. Seu autor não procurou se defender das acusações de falta de ética profissional. Simplesmente contou toda a “verdade” sobre suas mentiras e explicou como, afinal, nem o maior jornal do mundo é capaz de garantir a veracidade de suas notícias.

Enquanto o jornalismo reage ultrajado ao descumprimento de seu mandamento número 1, o compromisso com o real, fonte de toda a sua credibilidade, o conceito de literatura também vem sendo relativizado, dissolvendo a oposição entre ficção e não-ficção numa nova ordem de discursos. Se a crise da narrativa, expressa pela teoria literária pós-moderna, mina a noção romântica do texto como uma obra de arte que expressa a subjetividade do autor como uma persona literária coerente, por parte do jornalismo ela faz o caminho inverso, destruindo a ilusão de uma objetividade isenta de contaminações, como em experiências de laboratório que jamais se reproduzem na vida real. No mundo contemporâneo, a morte do autor como um ser casto e incorruptível corresponde à morte do repórter como produtor de verdade.

A literatura, especialmente a partir dos anos 90, também se dedicou a embaralhar as categorias de ficção e não-ficção. Um dos melhores exemplos é o premiado romance Nove noites, do jornalista Bernardo Carvalho, uma espécie de making ofde uma grande reportagem. Híbrido, o livro eventualmente se aproxima da reportagem e da biografia, inventariando documentos, arquivos e depoimentos reais, misturados a personagens e cartas imaginadas e às próprias lembranças do autor e sua relação problemática com o pai. O formato making of está presente, ainda, em Inveja: o mal secreto, de Zuenir Ventura; Santa Evita, do jornalista argentino Tomaz Eloy Martinez, e O ladrão de orquídeas, da jornalista americana Susan Orlean, entre outros jornalistas escritores.

Na forma de cruzar as fronteiras entre literatura e jornalismo, o modelo do making of se distancia completamente de experiências como o romance-reportagem, que ficcionaliza a informação, e mesmo do new journalism, que injetou técnicas literárias no texto jornalístico. Ao colocar em cena os bastidores da apuração, sua construção em forma de tentativa e erro, o modelo acaba por mostrar ser impossível separar fato de ficção, real de imaginação, dados objetivos da subjetividade do autor, o repórter do escritor moldado por suas influências literárias.

Mas há grandes diferenças entre o velho romance realista _ quase sempre na terceira pessoa, impessoal, cujo projeto é esconder do leitor o ato deliberado de construção literária _ e o novo _ desconstrucionista, na primeira pessoa, que revela não só os andaimes da imaginação, mas o processo de apuração do jornalismo. A função objetiva (embora nem sempre consciente) do romance making of é minar a ilusão de verdade. Mostrar que o fato também é uma construção discursiva, uma ilusão referencial. A tensão que provoca entre os aspectos jornalísticos e literários introduz ambiguidades e dúvidas na narrativa, levando o leitor a se confundir sobre o que é factual e o que é ficcional. E mostra como ele pode ser facilmente iludido.

Convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo estabelecem um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos. São essas convenções que regulam o estatuto social do escritor, a forma de consumo e os critérios estéticos para apreciação de um texto que precisam ser rediscutidas.

A confusão provocada por crossover texts, como o jornalismo ficcional e o making of literário, revela que essas convenções narrativas têm uma autoridade muito maior do que aparentam, como produtoras de real. No caso da imprensa, não é apenas o poder de declarar a verdade sobre os acontecimentos, mas de ditar até mesmo a forma como um discurso pode ser lido como verdadeiro. Uma vez naturalizada, essa tecnologia cognitiva pode ser facilmente manipulada. E, com isso, a obsessão pela objetividade dos meios de comunicação ser usada para esconder, por exemplo, o uso do jornalismo como veículo de propaganda, disfarçado pela voz imparcial, neutra, da terceira pessoa do singular.

Jornalismo e literatura teriam raízes em comum ou duas genealogias distintas? Para compreender isso, é preciso voltar ao ponto em que news (notícias) e novels (romances) se separam, dando origem a campos diferentes. E levantar quando surge a definição da literatura como um discurso exclusivamente ficcional, origem do modelo de romance moderno. Segundo Raymond Williams, o processo de especialização literária é quem vai provocar uma distinção de outros tipos de escrita – filosofia, ensaio, história e jornalismo – que podem ou não possuir mérito literário (significando que, além de seu intrínseco interesse específico, eles são bem-escritos). Mas que não são normalmente descritos como literatura, que pode ser entendida como “livros bem-escritos de um tipo imaginativo ou criativo”.

Sob a Renascença, o sentido de “litterae humanae” distinguia os textos seculares dos religiosos. Mas com a crescente especialização da literatura em direção à ficção, a um texto produzido exclusivamente pela imaginação, foi lançada uma das bases do romantismo: a consagração da figura do autor. Hoje, para se desconstruir esse processo, o conceito fechado de literatura deve ser abandonado em prol de outros mais abertos, como texto, escritura ou discurso, “que tentam recobrar o senso mais ativo e geral que a extrema especialização parece ter excluído”.

A percepção do leitor sobre o que é literatura e o que é jornalismo é dada, antes de mais nada, por categorias discursivas que pouco a pouco entraram para o senso comum, como objetividade e subjetividade. Algo socialmente construído, mais do que naturalmente dado pelo texto em si. Portanto, não é à toa que seja justamente na fronteira entre os dois campos que estão sendo realizadas algumas das mais interessantes experimentações narrativas da contemporaneidade.

BIBLIOGRAFIA

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WILLIAMS, Raymond. Keywords: a vocabulary of culture and society. New York: Oxford University Press, 1985.

 

* Cristiane Costa é doutora em Comunicação e Cultura pela Eco-UFRJ, onde é professora adjunta de jornalismo. Foi editora do Caderno Ideias, o suplemento literário do Jornal do Brasil, do Portal Literal e da Revista Nossa História, além de uma das curadoras do evento “Laboratório do Escritor”, do Centro Cultural Banco do Brasil. É autora de Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil – 1904/2004 (Companhia das Letras).

 

Os clóvis inventam o contemporâneo carioca | de Marcus Vinícius Faustini

Em uma sequência do documentário
Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha, o
líder da Turma do Pânico apresenta à
câmera o tema dos sete pecados capitais
que irá nortear todos os desenhos das
fantasias de sua turma.
Para representar o tema eles escolheram
os personagens da Disney. Segue-se
um pequeno plano–sequência, acompanhado
da voz em off do líder da turma,
em que a câmera observa em vários
desenhos pendurados numa corda as representações
dos pecados: para a luxúria,
eles escolheram uma Minnie em expressão
levemente maliciosa e cercada
pelos esquilos.
Essas imagens podem parecer, ao
juízo de alguns, um forte argumento para
caracterizar a prática contemporânea da
manifestação dos clóvis na periferia do
Rio de Janeiro como algo de baixa cultura,
sintoma da invasão da indústria
cultural, ou até mesmo alienante.
É um fim de tarde de um final de semana
próximo do carnaval e estamos em
cima de uma laje onde mais de 30 integrantes
da turma acompanham as filmagens.
No entorno, Marechal Hermes
pode ser vista e reconhecida como subúrbio
carioca de pungente significado.
Depois que a câmera é desligada, todos
os membros da equipe de filmagem são
convidados para participar do churrasco
do grupo, que se seguiria.
Nesta pequena descrição de um momento
do processo fílmico do documentário
em questão, reside toda a natureza
teórica possível que faz, em minha opinião,
da prática contemporânea da manifestação
dos clóvis na periferia carioca
um importante elemento para compreendermos
a complexidade de uma
cidade muito cantada nos sambas e nas
marchinhas de carnaval, mas pouco experimentada
fora do eixo Centro–Zona
Sul. Durante nossa pesquisa para iniciar
as filmagens, encontramos mais de
70 turmas em atividade que articulam
uma expressão estética capaz de pegar
elementos da sociedade de consumo
(Disney, Nike, etc.) e dar-lhes novos significados,
criando também uma dinâmica
econômica que envolve várias redes
e códigos éticos que se constroem em
torno da territorialidade. A capacidade
de gerar procedimentos estéticos livres
de conceitos limitadores é tão instigante
que as turmas criam, sem nenhum constrangimento,
seus hinos em cima de bases
funk.
Minha aproximação e desejo de me
relacionar com essa expressão vão além
da observação intelectual sobre determinado
tipo de manifestação. Nas férias de
minha infância, entre as casas de minha
avó, no Jacarezinho, das tias, na
Baixada Fluminense, e minha própria
casa, em Santa Cruz, sempre presenciei
as turmas de mascarados que invadiam
as ruas e tentavam assustar a molecada,
que se vingava cantando que o Bate-Bola
apanhava de mulher. Com o passar dos
anos, comecei a perceber que aquela era
uma manifestação desconhecida por
grande parte da cidade e que só saía de
sua invisibilidade por meio de um processo
de criminalização muito presente
na mídia durante os carnavais. O filme
usa como estratégia uma aproximação
com as ações dos personagens e os acontecimentos
para dar uma resposta a esse
outro olhar jornalístico distanciado, descrito
acima, que de maneira bastante
nebulosa reduz a prática cultural dos
Clóvis a uma dinâmica de vandalismo e
descontrole juvenil.
O procedimento que usamos para essa
estratégia foi a conversa no lugar da
entrevista, a observação das imagens que
apareciam no lugar de uma tese pré-determinada
que busca nas imagens suas
justificativas. Por outro lado, no processo
de montagem do filme, percebendo a
força social e a expressividade estética
dos clóvis e ao mesmo tempo singularidades
territoriais que diferenciavam em
muitos aspectos as turmas, resolvemos
partilhar o filme territorialmente também,
em seu espaço fílmico. De Marechal
Hermes até Santa Cruz as turmas
vão ganhando diferenças nas estratégias,
procedimentos e práticas que obrigam
uma possível tarefa de radiografia
a ter que ser atenta e não generalizante.
Entretanto, o procedimento que acredito
ter sido mais importante na construção
da diegese do filme foi a utilização
do dispositivo de só filmar as turmas
durante sua preparação para o carnaval
de 2005, e não a inclusão de um
intelectual organizando teoricamente a
manifestação em qualquer sistema de
folclore ou cultura popular. O que vemos
ao longo de todo o filme são os próprios
membros das numerosas turmas
discorrendo sobre suas práticas, estratégias,
afetos e memórias de uma manifestação
que tem na emoção uma de suas
bases principais. Dois momentos me
parecem importantes para demonstrar
esse aspecto da emoção. Durante a preparação
da saída da Turma do Cobra,
que se esconde dentro de uma garagem,
para que ninguém veja sua fantasia, a
rua vai ficando cheia de moradores da
comunidade do entorno, e no momento
da saída os quase 100 integrantes da turma
vão para a rua ao som de fogos ininterruptos
e batem suas bexigas no chão
com uma encenação de fúria que, para
desconhecidos, pode ser interpretada
como manifestação de violência, mas
que toda a comunidade vê como belo e
entusiasmante, o que fica bem definido
na voz de uma senhora que passa naquele
momento e diz para a câmera: “são
os nossos meninos, eu estou muito feliz!”.
O que temos diante de nós é um
gesto de significação contemporânea,
pois o que vimos flerta diretamente com
a idéia de performance muito presente
em trabalhos de artistas dos mais
instigantes de nossa época. Outro procedimento
bastante interessante e que
pode, desta vez aos olhos de intelectuais
insensíveis a essas expressões, provocar
um olhar preconceituoso e crítico,
é a incorporação do tênis de marca
nas fantasias: Nike, Adidas, em modelos
que ao serem molhados expelem
imediatamente a água, são agregados à
fantasia sem nenhum sentimento de culpa
associado a noções como consumismo
ou descaracterização da prática cultural
em questão. No momento da história do
capitalismo em que este deixa de ser
fordista e passa a ser cognitivo, procurando
se apropriar e colocar na roda do
capital produções imateriais, ver uma
manifestação popular evocando algumas
das marcas mais importantes desse capitalismo,
e a sensação imaterial que ele
quer nos render, é uma provocação no
mínimo interessante, pois o tênis nesse
momento deixa de representar sua função
primária (calçar) e também sua função
na lógica do capital (o reconhecimento
como aquele que usa aquela marca)
e passa a ser incorporado como mais
um elemento da fantasia. É como se eles
dessem o seguinte recado: Esse tênis
caro e difícil, nós podemos ter em grandes
quantidades, e podemos usá-lo até
em nossas brincadeiras, como quisermos,
e não apenas como os comerciais
anunciam.
Esse elemento do tênis somado à
enorme quantidade de pano necessária
para fazer a fantasia e seu custo total
trazem à cena a necessidade de redes e
estratégias econômicas que as turmas
realizam durante o ano inteiro para produzir
a tão esperada saída no sábado de
carnaval. É uma rede econômica complexa,
com vários atores executando vários
papéis. O filme acompanha principalmente
o policial Leonardo, que faz
pinturas para as fantasias de várias turmas.
A sutileza e a sofisticação são tantas
que até as máscaras têm pinturas singulares
e pessoas específicas que realizam esse trabalho.
Nos aproximamos de mais um carnaval no Rio de Janeiro e mais uma
vez as turmas estarão presentes nos territórios colocando em questão,
com sua prática, a ideia de centralidade e representação da cultura.
Por fim, quero ressaltar a presença
das crianças nessas turmas, que no
meio de homens já ensaiam a continuidade
dessa história. O intrigante é pensar
que esses meninos, invisíveis para
grande parte da cidade e da sociedade,
colocam máscaras para serem vistos.

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* Marcus Vinícius Faustini é cineasta, diretor teatral, escritor, atual Secretário de Cultura de Nova Iguaçu e lançou nos cinemas o documentário Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha no ano de 2006. O filme recebeu menção honrosa da 11a Mostra do filme etnográfico e participou de vários festivais no Brasil, India e Itália.