Editorial
Tempo de leitura estimado: 5 minutos

CRÍTICA E CURADORIA

O declínio da crítica considerada em sua dimensão pública, como forma privilegiada de mediação entre público e artistas, talvez não implique exatamente numa lacuna ou exaustão, como querem afirmar alguns observadores recentes das relações entre arte e sociedade, mas antes numa reconfiguração. Pois à baixa das ações da crítica parece corresponder, nas últimas décadas, o crescente prestígio atribuído a uma outra forma de recepção e publicização das obras de arte: a atividade curatorial. Nessa transformação em que se poderia ver apenas uma forma de captura (mais uma) da cultura pelo mercado – redução do debate à divulgação, da interpretação ao endosso promocional, do juízo reflexivo à dica de consumo – este dossiê sugere estar em jogo, mais bem, uma reconfiguração das fronteiras entre os termos implicados na discussão: crítica, curadoria, criação artística. A seleção de temas e trabalhos a serem postos em pauta, o estabelecimento de relações entre diferentes obras e artistas, assim como de modos de acesso a eles, por meio da elaboração de uma determinada estratégia expositiva – esses e outros aspectos do trabalho curatorial são pensados aqui menos como diferentes etapas de um saber especializado do que como um repertório de procedimentos que guardam um potencial crítico próprio e são, ao mesmo tempo, indispensáveis à compreensão das práticas artísticas contemporâneas.

Crítica e criação se aproximam na figura emblemática do cineasta Quentin Tarantino e em sua poética citacional, tal como analisada por Rodrigo Fonseca, atravessada por modos diversos de reciclagem e alusão à história do cinema. Também em torno de questões de citação e daquilo que chama de “escrita de segunda mão” se situam as reflexões de Leonardo Villa-Forte sobre o projeto Paginário, mural urbano feito de fragmentos de obras literárias escolhidos por meio de processos curatoriais coletivos. A encarnação mais recente do projeto, em Lisboa, como parte das comemorações pelo Dia Mundial da Língua Portuguesa, enseja uma revisão crítica e atualizada, em chave pós-colonial, dos debates já clássicos sobre pastiche e paródia no capitalismo tardio.

A ideia da montagem como forma de desconstrução do arquivo colonial é o ponto de partida da leitura empreendida por Jânderson Albino Coswosk do filme Frantz Fanon: Black Skin, White Mask, de Isaac Julien, que se desdobra ainda numa discussão sobre masculinidade negra e relações de gênero na obra de Fanon. Na seara literária, Antonia Costa de Thuin encontra no livro A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, um arquétipo feminino de cuidado e criação (a Aranha-mãe) que orienta sua investigação de mulheres e espaços de curadoria voltados à criação e manutenção de redes de apoio a novos artistas e escritores no continente africano. Já Raphael Ribeiro da Silva propõe a elaboração de um conceito de “curadoria da desconstrução”, a partir da experiência de uma oficina realizada em sala de aula e propondo o que chama de uma “coreografia ontológica”. E Cristine Carvalho faz um levantamento histórico da curadoria para sugerir caminhos por meio dos quais os museus podem se tornar “laboratórios de produção de conhecimentos novos, novas narrativas e novas representações cênicas”. Por fim, reproduzimos vídeo de importante comentário da pesquisadora e crítica Flora Süssekind, que comenta a crise contemporânea da crítica em sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty de 2023.

Inês Cardoso e Miguel Conde
Curadores do Dossiê

Além do dossiê, este número publica uma homenagem de Luis Eduardo Soares ao professor e poeta Italo Moriconi e um artigo em que Osmundo Pinho identifica e discute uma poética da masculinidade negra na obra de quatro autores: Solano Trindade, Lande Onawale (Ori), Davi Nunes e Fábio Mandingo. São publicadas também resenhas dos livros No vestígio: negridade e existência, de Christina Sharpe (2023), por Eduardo Leal Cunha, e Sempre Susan, de Sigrid Nunez (2023), por Beatriz Resende.

O número termina com uma importante entrevista com a diretora, curadora e encenadora Bia Lessa, que comenta sua relação com a crítica e o processo de transposição de Grande Sertão: Veredas para o teatro e a tela, e com a republicação, na seção Vale a Pena Ler de Novo, de “Repensando a História Literária”, seminal texto de crítica feminista de Ria Lemaire.

Este número da Revista Z Cultural marca uma nova fase da revista, com a modernização de seu aspecto gráfico, que agora torna a leitura mais fluente, inclusive em dispositivos móveis.

Beatriz Resende
Lucas Bandeira

Editores da Revista Z Cultural

Dossiê
Tempo de leitura estimado: 43 minutos

CRÍTICA E CURADORIA NA ESCRITA DE SEGUNDA MÃO E NA EXPERIÊNCIA DO PAGINÁRIO CPLP

Quais cartas levar ao Largo do Correio-Mór

Em 2023, como parte das comemorações do Dia Mundial da Língua Portuguesa[1], fui convidado a elaborar um mural da série Paginário em Lisboa. O projeto havia sido criado por mim em 2013, no seio de um momento de crise política materializado de maneira dramática nas manifestações nacionais desencadeadas em junho daquele ano, e desde então tivera em torno de 70 realizações de norte a sul do Brasil, a maior parte instalada no espaço público, além de encarnações em Porto, Coimbra, Oeiras e Madri. Em comum entre esses vários Paginários, o conceito básico de montagem de murais compostos de fotocópias de páginas de diferentes livros a partir de uma curadoria coletiva, às vezes seguindo um tema específico, outras vezes trabalhando com o gosto pessoal dos participantes; além da noção de percurso de leitura como criação, e da proposta de uma obra visual se vista de longe e convidativa à leitura se vista de perto.

Pós-moderno em sua valorização das apropriações, descontinuidades, deslocamentos e agrupamentos de diferenças, o Paginário guarda também resquícios de uma visada utópica, por ser uma forma de arte na qual uma noção de educação das sensibilidades se relaciona intimamente com uma proposta de mudança na cidade ou na nação. No horizonte utópico do projeto, estão a inserção da leitura de literatura como possibilidade aberta no circuito das ruas, o circuito urbano; a exposição da leitura (o que toca um outro durante a leitura, e que ele seleciona e sublinha) como meio de contato com o desconhecido; e por último, a expressão de uma relação desabusada com livros, ou seja, menos preenchida por um respeito receoso e distanciador, e mais próxima, física, manual, concreta, cotidiana e simbólica – dado que o espaço da rua não anuncia distinções ou hierarquias em suas paredes e muros.

A principal referência para o projeto encontra-se em espaço público, a céu aberto: a Escadaria Selarón, situada entre o bairro da Lapa e o de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Assim como o Paginário, a Escadaria pode ser pensada como uma instalação, que de acordo com o pensamento de Boris Groys, seria uma obra feita de curadoria, uma obra feita de diversas outras obras. A reunião dessas foi concebida pelo pintor chileno Jorge Selarón, que recebia azulejos enviados por pessoas de todo canto do planeta. Essa relação de parentesco com uma obra composta de azulejos animou o projeto Paginário CPLP no sentido de especularmos uma conversa com toda uma tradição, dado o lugar central que o azulejo ocupa na cultura portuguesa desde o século XIV e a sua anterior utilização por povos árabes no Antigo Egito e na Mesopotâmia, na Antiguidade.

Em conversas com o Departamento Cultural da Missão Brasil junto à Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), setor que havia feito a mim o convite para realizar o Paginário em Lisboa, decidimos, após algumas trocas de fotografias e medições de espaços, que o lugar a hospedar o mural seria o paredão do Largo do Correio-Mór, imediatamente em frente à sede da CPLP, entre os bairros de Alfama e Castelo. Definido o local – que terá sua relevância, geográfica e histórica para o projeto, comentada mais adiante neste artigo –, o processo de elaboração do novo Paginário CPLP se tornou também, para mim, um momento de revisão das bases conceituais do projeto, concebido uma década antes.

Nesse artigo, vou buscar precedentes e referências a partir do modernismo brasileiro (seção 3) e faço uma recapitulação de como o projeto veio articulando arte, literatura e política enquanto trabalhava determinados modelos de curadoria, crítica e criação (seção 4). Na sequência, escrevo mais concentradamente sobre o mural realizado em Lisboa (seção 5), dando foco a como curadoria, crítica e criação se modularam em nosso processo coletivo de seleção de textos, na proposta de trabalhar o pluricentrismo da língua portuguesa – discuto desafios e forças deste tema –, nos motivos para o projeto de formas, imagens e cores do mural, e na maneira como o trabalho dialoga com características do local onde foi instalado. Mas antes desenvolvo uma revisão (seção 2) de alguns conceitos muito utilizados, por mim e outros pesquisadores, em artigos e livros que recentemente trabalharam o tema da escrita e da textualidade produzidas por meio da reciclagem e rearranjo de escritos pré-existentes.

Contexto e revisão de termos: a escrita de segunda mão

Tradicionalmente, a curadoria é o trabalho de pensar, selecionar e colocar obras de arte dentro do espaço da exposição. Essa atividade se difere da atividade do artista no seguinte sentido: ao contrário do curador, o artista pode trabalhar para expor objetos que não são considerados objetos de arte. Ou seja, ao artista é reservado o direito de propor que objetos que não são arte se tornem arte, enquanto o curador seleciona, desses objetos então propostos como arte, quais deles farão parte de um determinado espaço e tempo. Naturalmente, é claro, a curadoria atua assim como quem confere força institucional à afirmação questionadora proposta pelo artista. A rigor, no entanto, dessa maneira, a criação seria considerada primária e a seleção, secundária, tendo cada uma dessas atividades um determinado potencial crítico.

O que estamos vendo acontecer nas últimas décadas é uma crescente flexibilização das fronteiras entre curador e artista, a qual vem se dando por um movimento de mão dupla: pelo lado do curador, a liberdade para disposição espacial das obras, agindo na dimensão relacional delas entre si, ou com o tempo, ou com o espaço, e a força de proposição de temas e narrativas, bem como a de orientar a produção de artistas (especialmente aqueles mais voltados para galerias e museus), alargaram o espectro de ação do curador até um ponto em que nos perguntamos sobre o estatuto do seu gesto, e se não seria ele mesmo um produtor de efeitos potencialmente artísticos. Pelo lado do artista, na verdade, desde Marcel Duchamp, desde o início do século XX, o ato de selecionar pôde se tornar artístico – obviamente, a depender do que é selecionado e do contexto em que é apresentado. Esta proposta foi adquirindo mais espaço na segunda metade do século XX, devido à institucionalização (por parte de museus, universidades, e novas gerações de artistas) das vanguardas como verdadeiras escolas de arte. Este borrar de fronteiras se intensificou ainda mais com a ascensão da arte da instalação. Para Boris Groys,

Pelo menos desde os anos 1960, os artistas têm criado instalações para demonstrar suas práticas pessoais de seleção. As instalações, no entanto, não são nada mais que exposições curadas pelos artistas, nas quais objetos feitos por outros podem ser – e são – representados tão bem quanto aqueles feitos pelo artista. Assim, os curadores também estão livres da obrigação de exibir somente os projetos pré-selecionados pelos artistas. Os curadores, hoje, sentem-se livres para combinar objetos de arte selecionados e assinados por artistas com objetos retirados diretamente da “vida”. Resumindo, uma vez que a identidade entre criação e seleção estiver estabelecida, os papéis do artista e do curador também se tornam idênticos. Uma distinção entre a exposição (curada) e a instalação (artística) ainda é comumente feita, mas é essencialmente obsoleta. (Groys, 2015, p.120)

Assim, observamos uma identificação entre criação e seleção. Quando falamos em arte verbal, poesia, literatura, e o assunto é a relação entre o uso de textos pré-existentes e a proposição de texto novo, nas últimas décadas ganhou espaço a expressão “escrita não-criativa”. Surgida entre fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 nos Estados Unidos como uncreative writing para apontar o fenômeno do aparecimento de uma boa quantidade de obras textuais produzidas por meio de deslocamento (seleção e edição) de textos pré-existentes, ou áudios pré-existentes que seriam transcritos, a maioria dessas obras apresenta propostas de leitura desafiadoras. É um fenômeno ligado intrinsecamente a um tempo histórico de aprofundamento do capitalismo tardio, e é por isso que ele tem seu nome próprio. Fora as vantagens de disseminação advindas da língua inglesa e de um mercado editorial mais robusto, se os vetores que engendram o fenômeno com suas marcas contemporâneas são produzidos anteriormente, em termos materiais, nos EUA (computador, digital, consumo, oferta), é natural que pesquisadores daquele país tenham realizados diagnósticos e debates que logo chegassem a acordos entre conceitos ou nomenclaturas.[2] Este tempo produzido é um tempo marcado, no âmbito da circulação de bens, pela digitalização e a quantidade assombrosa de ofertas de tudo que for possível, as quais nos alcançam sem pedir licença – como se, sufocados, já fosse difícil encontrarmos o que se convencionou chamar de “voz própria”. No mercado editorial, as oficinas de escrita criativa floresceram e geraram certos padrões de escrita, que ocupam as prateleiras e lojas online – produzindo também uma atmosfera de avanço e profissionalização que, pelo retrovisor, anunciava certo esgotamento. No campo artístico, ganhou mais proeminência um contexto de troca intensa das outras artes com a literatura, como as instalações, vídeos de montagem e a música eletrônica, tudo isso dentro de um ambiente cultural em que as máquinas eletrônicas pessoais e o ambiente digital produziram uma situação de fácil manipulação dos objetos verbais, além de uma valorização da “interação” – marcada, no conceito de Marjorie Perloff, pela ideia de moving information.[3]

Como nos Estados Unidos a própria categoria de escrita criativa está enraizada nas instituições, tanto de cursos livres quanto universitárias, pareceu aos poetas e pesquisadores Craig Dworkin e Kenneth Goldsmith que seria necessário cunhar um termo que se mostrasse radicalmente oposto a esse estado de coisas. A radicalidade de boa parte das obras praticadas e estudadas pelos dois, majoritariamente estadunidenses, advém de publicarem intervenções ou deslocamentos em/de apenas uma fonte, por vezes gratuitos ou obtusos, encarando processos de proposição de ready-mades textuais mais do que a artesania de misturas, colagens e montagens que na América do Sul marcaram a obra de Valêncio Xavier e Juan Luís Martinez a partir dos anos 1970, e depois, especificamente no Brasil, Ana Cristina Cesar, Waly Salomão, Paulo Leminski, Sebastião Nunes, e contemporaneamente Leonardo Gandolfi, Alberto Pucheu, Angélica Freitas, Nuno Ramos, Veronica Stigger, e, para usar três casos em outra variante de língua portuguesa, Rui Pires Cabral, Adília Lopes e Pedro Eiras, em Portugal.

Em 2014, o pesquisador e poeta Alberto Pucheu chegou a usar a nomenclatura “escrita não-criativa” para se endereçar à poesia de caráter citacional feita por Leonardo Gandolfi. Mas este é apenas um dos modos que o pesquisador e poeta usou na ocasião, e cada uma das expressões ressalta um aspecto da prática gandolfiana. Pucheu também a descreve como “pós-poesia”, devido à utilização de matérias de fora da literatura, trazendo para a poesia o que não seria específico dela, como trechos de letras de Roberto Carlos e diálogos de filmes de espião. O termo proposto por Pucheu ainda é útil para descrever uma espécie de humor da poesia gandolfiana, de poucos acentos, sem grandes arroubos, uma poesia em tom menor que não teria no espanto – para Pucheu, o afeto-fonte da tradição poética ocidental – o seu disparador ou motivo, o que leva o poeta e pesquisador a caracterizar tal produção tanto como pós-poesia como “poesia do pós-espanto”, marca de uma época em que as sensibilidades foram tão estressadas que ela virou o seu avesso, a insensibilidade, a falta de espanto. A respeito da poesia de Gandolfi, Pucheu diz que o procedimento da “descriação”, ou do gesto “não original”, faz com que o poético e o não poético convivam:

retirando, conjuntamente, ao máximo, a força de criação autoral, que, paradoxalmente, retorna de um novo jeito, já que em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita, ainda que desejosamente fragilizada. (Pucheu, 2014, p. 43- 44)

Essa seria uma das chaves para pensarmos tais autorias que são tecidas por meio de autorias anteriores – ou de materiais sem autoria, ao qual darão caráter artístico, como que por um segundo uso. De maneira que o descriativo é retirar-se do ato tradicional de criação, fazendo “a menos”, e não fazendo “a mais” – mas obviamente resulta em obras criativas. Assim com a escrita não-criativa, como já vimos, nomenclatura oriunda de ambiente institucional, também, quando bem feita, resulta em obras criativas. De maneira que, talvez, para privilegiar menos a oposição ou a diferença, possamos dar destaque à relação, à posição, à diferença dentro da reprodução, e à fisicalidade do gesto: uma escrita de segunda mão. Recordemos que aqui não falamos de um jogo de signos em constante atuação na sociedade, ou de artigos que são escritos como respostas a ideias anteriores, mas sim da própria materialidade da escrita, ou seja, falamos de intervenções e jogos de duplicações, reproduções e deslocamentos textuais materialmente detectáveis. Não é um leitor ideal ou abstrato que de maneira metafórica reúne as leituras em si, mas a encarnação dessa figura como quem se retira da origem de uma escrita para lançar-se a um gesto que produz, para fora da consciência do leitor-autor, um rastro do outro em um objeto visível.

Heranças da potência crítica da paródia modernista antropofágica

Dos anos 2000 para cá vimos propostas de escritas de segunda mão ganharem voz em diversos lugares. No México, com as necroescrituras de Cristina Rivera-Garza, na Argentina, com a obra El Aleph engordado, de Pablo Katchadjian, a qual podemos compreender a partir do artigo “A nova escritura”, de Cesar Aira, no Uruguai, com o neoconceitualismo de Carlos Almonte e Alan Meller, na Espanha com parte da obra de Agustin Fernandez-Mallo, entre outros.

Do ponto de vista brasileiro, e a partir de um recorte temporal do moderno, as recentes escritas de reciclagem de Veronica Stigger, Angélica Freitas, Roy David Frankel, Nuno Ramos, Giselle Beiguelman, Luiz Ruffato, Daniel Arelli, Leonardo Gandolfi, e até Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa, derivam como possibilidade de projeto, da devoração antropofágica proposta pelos modernistas nos anos 1920. Diferente das iniciativas europeias que lhe serviram de impulso, como o dadaísmo e o futurismo, as quais formando uma imagem de futuro praticaram uma crítica de negação, avessa aos critérios então tradicionais da arte, os modernistas brasileiros, ao mesmo tempo em que propunham novas sintaxes, assim como o reconhecimento de um novo ritmo das artes e da vida e uma valorização da oralidade, recorreram ao passado nacional em busca de referências temáticas. Mesmo que inevitavelmente banhados pelo ponto de vista de uma origem burguesa, então em decadência, seus membros promoveram uma escavação renovadora do passado brasileiro e, por consequência, da presença indígena, europeia e africana em nosso território.[4]

O desejo de renovação artística guardava uma vontade não de abandono ou recomeço do zero, mas de reinterpretação ou releitura dos discursos historicamente estabelecidos para colocá-los em seus então supostos devidos lugares. Uma espécie de gesto que, na nomenclatura atual, poderia ser pensado como anticolonial, e que modulou o Brasil para um movimento de tomar posse de si mesmo – uma espécie de segunda mão que seria ela mesma uma tentativa de investigar e plasmar a verdadeira cultura nacional, apagada pela primeira mão do colonizador.

Se há um primeiro autor na literatura brasileira que se propôs a produzir uma fricção entre a literatura então pensada como universal e a literatura periférica (em termos globais), usando textos pré-existentes, reescrevendo ou reelaborando a literatura em seu corpo textual, e assim praticando uma curadoria com finalidade crítica, é Oswald de Andrade. Um dos recursos mais praticados pelo escritor paulista foi a paródia como releitura histórica, o que vemos no poema “As meninas da gare”, publicado no livro Pau-Brasil, de 1925:

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
(Andrade, 1925, p. 26)

Oswald se vale de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro documento textual de que se tem notícia no Brasil. O poema de Oswald justapõe, em nossa imaginação, o texto de Caminha que versa sobre a chegada dos navegadores portugueses ao Brasil à visão de alguém que se aproxima de prostitutas, que costumavam trabalhar na gare (em francês, uma estação de estrada de ferro) na São Paulo do início do século XX. Na carta original, enviada para Dom Manuel I em Portugal no dia 1º de maio de 1500, diz Pero Vaz de Caminha:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (Caminha, sem data, p. 4-5)

Enquanto o escrivão português trata de como os navegadores não sentem vergonha de olhar para as vergonhas das indígenas porque elas mesmas seriam muito inocentes, no texto de Oswald os homens não sentem vergonha de olhar para as vergonhas daquelas mulheres porque elas são prostitutas tentando conquistar clientes. O poema associa – com finalidade crítica – a imagem das indígenas à de prostitutas e a imagem dos navegadores a homens em busca de sexo. Por meio da paródia, Oswald questiona o primeiro olhar que os navegadores portugueses lançaram sobre a população nativa, e os primeiros contatos. Assim, de certa forma ele desnuda o ar civilizador do colonizador e pergunta, por meio do texto do “civilizado”: afinal, quem são os verdadeiros selvagens?

A estratégia resulta na criação de uma dialética. O gesto de Oswald dá à Carta de Pero Vaz de Caminha um novo ente com o qual conversar. A paródia, vista como sobreposição, faz com que o texto original sofra uma fricção: há um ruído entre a visão expressa na carta de Caminha e a sua crítica expressa em “As meninas da gare”. Assim, a função crítica é colocada em funcionamento a partir do gesto da seleção e da reescrita. Tal devoração crítica envolveria, nos termos de Haroldo de Campos, uma “transvaloração”, ao inserir novos valores, critérios e olhares por dentro da tradição, como um invasor que ao mesmo tempo a abraça, mas para lhe dar uma complexidade desagradável, dura de engolir pelos olhos da tradição. Para o poeta e tradutor brasileiro, com a antropofagia oswaldiana, “tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal” (Campos, 1992, p. 234). Por isso, podemos pensar o movimento antropofágico como a primeira iniciativa a elaborar, como programa estético, político e ideológico, no Brasil, uma revisão das relações entre centro e periferia, metrópole e colônia, original e derivado, e uso paródico de texto pré-existente como recurso crítico-dialético.

Se essa condição de território secundário, onde se cultiva uma cultura derivada, sofreu alterações em sua dimensão e projeção pelo mundo ao longo do século XX e do XXI, com o Brasil superando Portugal em matéria de capacidade de influência externa, ao mesmo tempo tal condição se manteve internamente, em razão da força dos fundamentos históricos na nação e sua inquebrantável permanência, mesmo que atacada, perfurada, inquirida, matizada. É esta a condição – alargada para todo um continente, o qual, seja onde se fala a língua portuguesa ou a espanhola, tem na Europa o seu referencial primevo – que levou o escritor e teórico brasileiro Silviano Santiago a caracterizar, em 1971, o que chamou de “o entre-lugar do discurso latino-americano”:

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana. (Santiago, 200, p.26)

A proposta de releitura da cultura brasileira, para Oswald de Andrade, passava pelo reconhecimento de que estávamos aprisionados na Carta de Pero Vaz de Caminha, que para ele se torna assim alvo de agressão – não se trata de celebração ou irmandade, mas de crítica e oposição. É devoração, não é diluição.

A posição, descrita por Santiago, requer do latino-americano a ocupação de um espaço que de origem, é do outro (a língua, a escrita, os símbolos), em um misto de tomar o que há de possibilidade no outro para si, enquanto ao mesmo tempo, produz um cruzamento, propondo a sua diferença ao habitar desordeiramente (para o olhar dos outros) o terreno consagrado (por outros). Isto não é tanto uma ação específica, calculada, que certo escritor pode operar ou não. É mais uma condição da qual se parte.

Identificação entre seleção e criação: curadoria ampliada ou criação reduzida

No processo de cada encarnação do Paginário, a curadoria realizada por mim e pelos colaboradores é tão afetiva ou celebratória quanto desrespeitosa. Não escolhemos uma obra de arte para exibir. Nós seccionamos obras de arte, reconhecendo o valor de sua parte, para experimentá-la em diálogo com outros seccionamentos. Este fragmento criado é de suma importância para quem o escolhe, sendo assim um gesto de reconhecimento e de mutilação – que será ofertado ao passante na rua. Mas aqui cabe ressaltar uma diferença para a intervenção, o seccionamento, a destruição de símbolos evocada nas vanguardas do início do século XX. Enquanto nas vanguardas a destruição ou intervenção era um gesto de abandono do conteúdo ou imagem original, para que fosse produzida a imagem de sua rasura e proposta uma outra imagem sobreposta àquela, aqui o que motiva a intervenção ou a secção do original é o reconhecimento de seu valor. O livro sofre intervenção, simbolicamente (pois na prática é fotocopiado), em nome do valor que pode haver mesmo em uma pequena parte dele, e de seu poder de atrito ou ressonância ao lado de outras pequenas partes que podem ter também seu próprio valor – umas atritando ou ressoando as outras. Existe uma valorização da herança literária. Uma valorização do gesto do leitor como afirmação de um eu. E existe o reconhecimento do espaço público como a afirmação do coletivo social. É a criação de uma triangulação entre o texto do autor, o texto do leitor e o texto da rua. O projeto opera, assim, a partir de uma ideia de arte não autônoma, tanto socialmente quanto materialmente e esteticamente. Portanto, o que ocorre não é um esvaziamento oriundo das práticas de celebração da diferença e do pluralismo, mas sim uma procura da inserção da diferença por um conjunto de efeitos estéticos, mas também, principalmente nos murais a céu aberto, sociais.

Exceção feita o desenho (formas e cores) do trabalho, que não se encontra nos textos originais usados, sendo portanto um “acréscimo de criação” – é quando seccionamos obras de arte para nos servir de uma pequena parte de cada uma, que a ideia de exercer uma curadoria se problematiza, pois aí agimos “demais” sobre a obra para que o ato seja pensado como uma curadoria típica. Não fazemos nem como o curador, que protege as obras inteiras, levando-as para o museu ou galeria que julgar interessante, nem como o artista, que recolhe objetos mundanos ou estranhos, que não são obras de arte, e, em seu ateliê, cria alguma diferença neles ou com eles, a qual se aceita por um curador como arte, arte se tornará. Um fragmento de uma obra de arte é o quê? Não é nem a obra de arte nem um objeto fora da arte. É mais que um objeto fora da arte e é menos que uma obra de arte. Curadoria ampliada, criação reduzida.

Figura 1: Foto de Líbia Florentino do mural Paginário em Lisboa.

Instalação de um mural “lusófono” da série Paginário em Lisboa

Nessa penúltima parte do artigo pensarei mais diretamente a relação entre curadoria, crítica e criação a partir da experiência do Paginário CPLP, principalmente por meio de quatro elementos. 1. O tema e a pesquisa para seleção de textos. 2. Efeitos da forma mural. 3. Função crítica nas cores e imagens. 4. O lugar como parte da obra e o potencial crítico de seu uso. É necessário dizer que, do ponto de vista em que me encontro, como quem esteve imerso em sua criação e desenvolvimento, embora depois de 10 anos consiga alguma distância de observação, o projeto se trata justamente de diferentes meios trocando saberes entre si – a poesia, a ficção, a escrita, a arte visual, a arte urbana, o artesanato, a performance, a colagem, a escadaria de azulejos, o remix, a história, a arquitetura e a geografia, o urbanismo… – mas, para pensar o projeto, facilitará quebrá-lo em diferentes camadas ou características (e haveria outras a pensar ainda, como o processo de montagem e aquilo que pudemos observar da recepção do público).

Figura 2: foto ampliada das fotocópias de páginas de livros no mural do Paginário.

O tema e a pesquisa para seleção de textos

Decidi junto ao Departamento Cultural da Missão Brasil que o tema do mural seria a variação linguística da língua portuguesa em cada um dos países que falam oficialmente o idioma. A literatura – principalmente ficção, poesia e ensaios – seria, obviamente, o canal a expressar esta variação. A afirmação dessa variação, sendo realizada em Portugal, de imediato ganha contornos críticos, pois coloca a variação de origem não acima das outras, mas lado a lado dela, expondo tanto o que ela é quanto (em maior quantidade, somando todas as outras) o que ela não é. Atualmente, há um debate sobre a possibilidade de chamarmos a variação linguística do português no Brasil de “pretuguês”, para marcar as diferenças locais para a variação de Portugal, principalmente aquelas advindas das línguas africanas que chegaram em território brasileiro por meio do sequestro de africanos que foram escravizados, e que hoje estariam nas origens de mais de metade da população brasileira. É uma ideia interessante e que merece maior estudo da minha parte. No entanto, até o momento, parece-me ainda mais interessante, politicamente, não se isolar em uma língua oficialmente apenas sua e de nenhum outro país, e sim disputar a categoria “língua portuguesa”, impondo a variação brasileira como tão valorosa e legítima como qualquer outra. Provavelmente, pela sua diversidade de absorções, ainda mais rica do que a variação praticada na ex-metrópole.

Para que esta variação fosse mais bem expressa, propus que fosse formada uma equipe de colaboradores. Assim, a curadoria seria dividida entre quem conhece melhor cada variação local. O mural ao todo recebeu 900 páginas feitas de entre 400 e 450 fragmentos de textos duplicados. Essas foram selecionadas por 31 pessoas, contando comigo. A equipe formou-se com pessoas de oito países: professores, escritores, pesquisadores, poetas, diplomatas, artistas, jornalistas, slammers e membros de algumas unidades do Instituto Guimarães Rosa sediadas em países membros da CPLP.[5]

A premissa para a decisão temática é a de que a língua portuguesa é uma língua pluricêntrica – a noção de que a língua portuguesa é praticada em diversos centros, cada um com suas características e nenhum com prevalência sobre o outro. Esta premissa, após o início das pesquisas, foi desafiada pela realidade. Se temos o conceito de um mural formado por fotocópias de páginas de livros, já tomamos uma decisão que é tanto estética quanto política – trabalhar a partir da palavra escrita, e perturbando a sua forma tradicional de veiculação, o livro. Se no início do projeto Paginário, em 2013, este critério era visto em função de trazer à rua um tipo de texto que lá não estava, nem pela oralidade das batalhas de slam, nem pelos traços do grafite ou do pixo, nem pelo texto escrito em si, disputando o espaço com publicidade e informação de direção ou lugar, neste Paginário CPLP ficou mais aparente não só o que acrescentamos à rua, mas também aquilo que ficaria de fora do mural. Ao operarmos a partir do lugar latino-americano entre a submissão ao código e a transgressão ao mesmo, acabamos por conhecer outros lugares, de língua portuguesa, que vivem situação semelhante como povo colonizado, mas nos quais as relações com o código da palavra escrita, e em português, encontram-se em outras situações. O mercado editorial é incomparavelmente mais pujante no Brasil e em Portugal, em relação a como funciona em Angola, Cabo Verde, Moçambique, e onde ainda é mais incipiente, Timor Leste, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe. Se o trabalho tivesse como meio oralidades gravadas, nada impediria uma igualdade de participação na obra final, mas como nosso recorte é a literatura escrita, é inevitável que as diferenças se façam materialmente presentes na obra. Tal diferença de presença política e cultural, a favor de Brasil e Portugal, nas ações de promoção da língua portuguesa, leva alguns linguistas a questionarem a ideia desta língua como pluricêntrica, afirmando que, na realidade, seria uma língua bicêntrica, com a população brasileira a praticando sob determinadas normas e todas as outras populações a praticando sob normas cuja ingerência é de Portugal – o que, ao mesmo tempo, como reação a uma “ameaça” mais clara e impositiva e oficialmente mais duradoura, produziu uma sólida resistência à língua portuguesa e um cultivo das línguas crioulas nos países africanos que não encontra paralelo no Brasil.

Aliás, a partir do contato direto por telefone ou mensagem com os 31 colaboradores, tornou-se mais notável a necessidade de mais iniciativas de intercâmbio cultural direto entre Brasil e os países africanos ou asiáticos de língua portuguesa, sem passar por Portugal. É claro que a situação está melhorando, como podemos perceber pelos departamentos de literaturas africanas ou lusófonas. Mas, em geral, nossa ignorância em relação a tais países é imensa e causa até embaraço ver a defesa de línguas crioulas em países como Cabo Verde, por exemplo, ante a falta de circulação das línguas autóctones no Brasil. Conversando com o pesquisador, e colaborador neste Paginário, Dênis Rubra, brasileiro que realiza doutorado na Universidade de Lisboa, onde é orientado por Ana Paula Tavares, professora e escritora angolana, soube que de todos os autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, apenas um não foi publicado (ou seja, mercadologicamente testado) antes em Portugal. E todos os outros, publicados em Portugal depois no Brasil, foram em Portugal publicados por um concentrado de apenas três ou quatro editoras). De maneira que, apesar das melhoras, ainda mantemos a ex-metrópole como um farol para orientar nossas trocas culturais.

Se limitamos o escopo do trabalho para literatura publicada em livros, inevitavelmente privilegiamos a participação das variantes brasileiras e portuguesas no mural. Não houve como contornar essa questão. Criamos gradações. Do mural que foi finalizado com aproximadamente 900 páginas de texto (fotocopiadas em folhas A4) e 25 metros de comprimento por quase 3 metros de altura, ficaram em torno de 20% destas medidas para a literatura do Brasil, 20% para de Portugal, 12,5% para Angola, 12,5% para Cabo Verde, 10% para Moçambique, 10% para São Tomé e Príncipe, 10% para Guiné Bissau e 5% para Timor Leste. Deparamo-nos com o fato de que, embora presente na CPLP, Guiné Equatorial tem o espanhol como língua majoritária, e não encontramos literatura nativa deste país publicada em língua portuguesa, de maneira que sua presença no mural ocorreu – como uma gambiarra – com o texto do seu hino nacional em uma versão traduzida por nós mesmos para português. Por isso, cabe dizer que seria necessário pesquisa mais longa do que a feita para este artigo para dizermos se a ideia de bicentrismo é a mais acertada. O que podemos dizer, no momento, é que o fato desta desigualdade se refletir em nosso trabalho devido à escolha por uma determinada materialidade não indica, em absoluto, que a ideia de pluricentrismo estaria incorreta.

Figura 3: foto ampliada das fotocópias de páginas de livros no mural do Paginário.
Figura 4: Língua Lengua, poesia retirada do livro Pesado demais para a ventania, de Ricardo Aleixo.

Efeitos da forma mural

É notável que, quando Flora Süssekind formula, em 2013, seu pensamento sobre objetos verbais não-identificados, que seriam distinguidos por uma literatura-coral, a pesquisadora mencione não somente textos, mas também instalações e performances textuais. Estas se apresentariam como um coro, um aglomerado de vozes que se avolumam, se pronunciam, somem, retornam, como um registro de emissões de diferentes origens.

Coralidades nas quais se observa, igualmente, um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário, fazendo dessas encruzilhadas meio desfocadas de falas e ruídos uma forma de interrogação simultânea tanto da hora histórica, quanto do campo mesmo da literatura. E que não à toa conectam este campo a outras áreas da produção cultural. (Süssekind, 2013, p. 2)

O risco de todo projeto que pretender trabalhar a noção de agrupamento e simultaneísmo, ainda mais quando o trabalho envolve texto – por ser um meio que exige mais tempo do que uma imagem para ser decodificado –, é o bloqueio da profundidade em favor de uma sequencialidade formada por descontinuidades, ou seja, a dispersão. Aqui, lembro da crítica de Antonio Candido a Marco Zero, obra em dois volumes de Oswald de Andrade, apresentada pelo autor como romance-mural. O crítico considerou o tema do livro o melhor possível, qual seja, resumidamente, diversos membros de diferentes classes sociais, às vésperas da revolta de 1932, comportando-se de maneira cada vez mais extremada e, portanto, de maneira a impedir qualquer compatibilidade ou convivência harmonizada entre si. Porém, quanto à forma, Candido escreveu:

Quantas vezes não paramos no meio da leitura d’A revolução melancólica para tomar fôlego, cansados de esperar uma solução literária para as perspectivas que o romancista vai abrindo a pequenos golpes. A impressão é de rodada em falso, movimento que não progride. Na poeira das pinceladinhas, Oswald de Andrade vai largando tintas de muitas cores, e não parece que elas consigam dispor-se conforme o afresco que ele intentou. Mesmo porque (palpite de leigo) não creio que o pontilhismo seja a técnica mais indicada para os murais. (Candido, 2017, p.24).

Esta é uma crítica que podemos usar para pensar o formato mural em diálogo com texto. No caso do mural, estas descontinuidades e novos começos são assumidos – e caberá ao visitante leitor estabelecer continuidades ou não. Saímos de uma organização pela sequencialidade para uma organização pela constelação. A dispersão, no entanto, pode ser combatida, ou suavizada, pelos temas dos murais, como curadores determinam temas de exposições. Assim, as ligações entre os fragmentos são facilitadas e se tornam mais consequentes. Isto certamente se deu no Paginário CPLP.

A colocação lado a lado de textos nos mais diferentes portugueses historiciza a língua portuguesa. Distribui-a em seus variados sotaques. Amplia a visão do que é a língua portuguesa. Isto, ao ser realizado no coração da capital do centro irradiador da língua portuguesa, parece-me ter uma força crítica. Espacializa a língua portuguesa, como uma dobra da sua dimensão territorial, sendo caracterizada, diferente do espanhol ou do inglês, por exemplo, por uma quantidade considerável de países sem que nenhum deles guarde fronteira terrena com o outro. Nessa maneira de se apropriar, não é um texto que é justaposto a outro simbolicamente, como fazia Oswald. O texto é colocado lado a lado com outro, e um texto não foi feito diretamente como resposta ao outro. A dialética, neste caso, não se dá entre o original e o derivado (e por isto não se trata de paródia crítica ao estilo modernista), mas entre diversos textos, nenhum mais original do que o outro, implicando assim, visual e metaforicamente, em igualdade de condições. Materialmente, todos os textos são fotocópias, de modo que o texto da ex-metrópole e os textos das ex-colônias não se diferenciam de imediato. Não há nada em suas aparências que os tornem distintos dos outros. Só com a leitura será indicada a procedência – até porque inscrevemos nome de autor, título de livro e país de origem em cada uma das folhas (operando com a multiplicidade característica do ímpeto democrático e a fluidez característica do digital, mas sem a perda de referência geográfica e histórica). A fotocópia é uma tecnologia vista como suja, precária, barata, sem duração – é a gambiarra puxando pra baixo, ao nível do chão, o que preferia ficar acomodado em uma prateleira alta. É uma espécie de grande conversa ao mesmo tempo que é uma grande conversa muda – a troca de palavras entre os elementos só acontece a partir da ativação do visitante que, ao percorrer a leitura espacialmente, também as conjuga uma à outra no tempo.

Figura 5: poema Os livros, retirado do livro Como se desenha uma casa, de Manuel António Pina Portugal.
Figura 6: poema Em que língua escrever, retirado do livro Entre o ser e o amar, de Odete da Costa Semedo.
Figura 7: fragmento retirado do livro A estética do oprimido, de Augusto Boal.
Figura 8: fragmento retirado do livro Owé/Provérbios, de Mãe Stella de Oxóssi.
Figura 9: fragmento retirado do livro Poesia para encher a laje, de Renan Inquérito.
Figura 10: poema Expresso-me, retirado do livro Menino da Tabanca, de Seco Silá.

Função crítica e simbolismo nas cores e imagens

Em relação às cores do Paginário CPLP, elas decorrem de um cálculo em torno de quais são as cores mais frequentes nas bandeiras dos países membros da CPLP, e suas vivacidades funcionam como uma espécie de positividade a atrair para a negatividade tanto das imagens que formam quanto da releitura histórica. As cores são vivas, alegres, e formam uma embarcação. Até que, ao final, há uma cruz pegando fogo. Com esta imagem, pretendi, criticamente, sugerir o legado das navegações: a colonização mental e corporal pelo cristianismo. Tal é a herança deixada para trás, ao fim do barco, que já se dirige a outro ponto, para, possivelmente, fazer o mesmo com outro povo. Em uma segunda camada, pretendi deixar ambivalente a imagem da cruz em fogo. Ela é tanto a “batata quente” que os portugueses deixam nas mãos das ex-colônias, que com ela precisam se virar, uma espécie de cavalo de Tróia sem a necessidade de guerreiros, e assim é muito mais eficaz, e ao mesmo tempo ela é a cruz atacada, a cruz incendiada pelos povos que a recebem em sua terra. Ou seja, é tanto opressão quanto reação, recusa, negação, contra-ataque. Este complexo de imagens – assim como a convivência entre textos que naturalizam a escrita em português e outros que não o fazem – poderia ser pensado como herdeiro do barroco, ao trazer em um complexo a afirmação e a negação, uma determinada alteridade (as navegações, a embarcação) e a sua condição alterada (a chaga, a violência implicada na imposição de um sistema de crenças e sagrados). Ao comentar a prática de transcriação de Haroldo de Campos, o pesquisador e professor Álvaro Faleiros diz que, para o poeta concreto,

a manipulação irônica está no centro da “razão antropofágica” que perpassa o Barroco e que implica numa “desconstrução do logocentrismo”. Os procedimentos utilizados para esse fim seriam a “malandragem” e a “carnavalização”, compreendidos como “espaço lúdico da polifonia e da linguagem convulsionada”. (Faleiros, 2019, p. 30-31)

No caso do Paginário, não se trata de criar um duplo que resulte em dialética, não se trata de penetrar no discurso do outro para transfigurá-lo, mas sim de seccioná-lo para que ele deixe de ser um ente isolado em si mesmo (não abstratamente, mas materialmente) e passe a conviver com novas proximidades – ou seja, trabalhar com esta carnavalização compreendida como espaço lúdico de polifonia. Conectar bordas, como dizia Hélio Oiticica. Ou melhor, rasgar bordas onde elas não existem, para que assim passem a existir, para desnaturalizar a unidade romântica de um todo homogêneo – no caso, a língua portuguesa. De maneira que, especialmente neste Paginário CPLP, haja conflitos, como aquele que pretendemos ao colocar em fogo a cruz, instrumento simbólico de poder para exercer influência orientada para a conversão.

Figura 11: foto do mural do Paginário em Lisboa, o qual reproduz a função crítica por meio de suas cores e imagens.
Figura 12: foto do Largo do Correio-Mor, o qual contém o mural do Paginário em Lisboa.

O uso do lugar como parte do potencial crítico da obra

Quando tratamos de arte pública, o trabalho começa pela escolha do lugar. Precisamos considerar textura da parede, sua cor e sua altura; a sua localização, se ele será visto por mais ou menos pessoas, quem são as pessoas que por lá passam e como se relacionam com aquele espaço; e a história do local, que colocará o trabalho em relação com o tempo. De certa forma, a escolha do espaço já nos coloca numa posição crítica em relação a pré-determinações e expectativas. Um trabalho em um museu ou galeria é imediatamente reconhecido como arte. Um trabalho na rua – e ainda mais feito de material perecível – é algo indistinto demais para proporcionar uma categorização tão imediata. Isto, em si, parte de uma crítica em relação à facilidade com que algo pode ser alvo de um olhar que o considere artístico, bastando para isso o encontramos dentro de uma galeria ou museu. A intenção de fazer um trabalho de arte público é também uma crítica à noção moderna da total autonomia da arte. A histórica do local não foi criada pelo Paginário. O critério de escolha para o local é que, sim, propôs-se como algo que favoreça o desdobramento de sentidos do trabalho. A curadoria da rua, por assim dizer, pode resultar em gestos iconoclastas – caso o local seja um ambiente de memória, um ambiente celebrado. Foi o caso aqui. Missão Brasil junto à CPLP e eu escolhemos nos inserir dentro de uma teia de relações históricas.

O Largo do Correio-Mór é espaçoso, arejado, arborizado, com bancos para sentar – perfeito para um mural, exceto pela sua parede curva. Mas o mais interessante é que este largo tem este nome porque ele fica de frente para o Palácio do Correio-Mór, na freguesia de Santa Maria Maior. Nas suas estruturas de base, que datam de antes do século XVI, foi instalado o Correio Superior, oficial responsável pelas comunicações (inclusive escritas, como cartas) dentro do reino. Na sequência, em 1520, a função passou a ser chamada de Correio-Geral do Reino (ou Correio-Mór), por meio de proposta de Dom Manuel I, confirmada por Dom João III. Na primeira metade do século XVII foi construído, sobre as estruturas de base da construção anterior, o palácio de fato, o qual ganhou o nome de Palácio do Correio-Mór. Nele funcionou esta função até o ano de 1797, pois, durante o reinado de Dona Maria I, a função foi incorporada pela Coroa. Como compensação pela perda de sua função, Manuel José da Maternidade da Mata Sousa Coutinho, o último homem a exercer o cargo, recebeu o título de Conde de Penafiel e o palácio passou a ser sua propriedade sendo transmitido, na sua morte, em 1859, para a filha Maria da Assunção da Mata de Sousa Coutinho, a 1ª Marquesa de Penafiel – motivo pelo qual atualmente ele é mais conhecido como Palácio de Penafiel. Ao longo dos anos a família arrendou partes do Palácio para novos moradores, como ministros e embaixadores, até que em 1919 o Palácio foi adquirido pelo Estado Português, tendo servido ao longo do século XX, como sede da Direção-Geral dos Caminhos de Ferro e o Conselho Superior de Obras Públicas. Dessa maneira, notamos que o local é marcado historicamente por atividades de correspondência, comunicação, transporte e planejamento urbano. É bem possível que nos arredores do largo tenham passado cartas e outros tipos de comunicações oficiais que orientaram e definiram, por séculos, o destino de oito países além-mar. E do próprio Portugal. São esses países que, simbolicamente, por meio de sua literatura, por meio das escolhas de seus pesquisadores, habitantes ou nativos, fazem o movimento oposto: ao invés de serem lidos e comunicados, leem e comunicam-se. Como se a cidade fosse um texto e uma outra leitura a invadisse. Como se a cidade fosse um texto escrito que pede ajustes de uma segunda mão.

Figura 13: foto de Joana Ruth do mural do Paginário em Lisboa.
Figura 14: foto de Joana Ruth de participantes do projeto confeccionando a arte do mural Paginário.

Conclusão

Em. Los muertos indóciles: Necroescrituras y desapropiación, a pesquisadora e escritora mexicana Cristina Rivera-Garza, após trabalhar o tema da apropriação de textos em obras literárias contemporâneas, propõe que olhemos o gesto também pela via da desapropriação: “O que aconteceria se, ao invés do nome de um poeta, ou de um autor, aparecessem nas capas destes livros dialógicos, destes livros escritos, de fato, na mais estrita das coautorias, os nomes de todos os envolvidos? Que tal se não aparecesse nenhum?”[6] (Rivera Garza, 2013, p. 91). Aqui, ela sugere que o deslocamento de texto também o desloque para fora de um sistema de nomenclatura que serve ao mercado, à propriedade, ou seja, um sistema que torna as coisas próprias de cada um. Rivera Garza imagina como poderiam ser se as coisas fossem de todos ou de ninguém. Deixo isto para a imaginação do leitor enquanto me aproprio do termo proposto por Rivera Garza para sugerir uma noção semelhante de desapropriação: aquela que acontece quando, ao nos inserirmos em determinado discurso, invadindo um espaço, retrabalhando, editando, recontextualizando sua materialidade, estamos desapropriando esse objeto (na falta de palavra melhor) de seu lugar único, instaurando uma conversa aonde antes havia um monólogo – e assim ele deixa de ser o único em posição apropriada para versar sobre determinado assunto.

Atuar no Largo do Correio-Mór, região central de Lisboa, é conferir ainda mais historicidade tanto ao local quanto ao projeto. Afirma-se, assim, uma outra forma de curadoria, dado que a curadoria não é somente aquela que coloca as obras dentro do museu ou galeria, mas também dentro da história, não permitindo que cada ação soe pairando isolada, como uma criação isolada de contexto.

Figura 15: foto de visitantes no Largo do Correio-Mór, onde se encontram as obras expostas a céu aberto.
* Leonardo Villa-Forte é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e doutor em Letras pela PUC-Rio.
Referências bibliográficas
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CAMPOS, Haroldo de. “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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FALEIROS, Álvaro. “Antropofagia modernista e perspectivismo ameríndio: considerações sobre a transcriação poética em Haroldo de Campos”. Traduções canibais. Uma poética xamânica do traduzir. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2019.

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PUCHEU, Alberto. Do tempo de Drummond ao (nosso) de Leonardo Gandolfi; da poesia, da pós-poesia e do pós-espanto. Rio de Janeiro: Azougue, 2014.

RIVERA-GARZA, Cristina. Los muertos indóciles. Necroescrituras y desapropiación. México, D.F.: Tusquets, 2013.

RESENDE, Beatriz. “O escritor latino-americano e a nação: um problema”. Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Sistema de Informação para o Património Arquitectónico. “Palácio Penafiel / Palácio do Corrreio-Mor”. Atualização por Margarida Elias (Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design – CIAUD-FA/UTL), 2014. Acessado em 16 de fevereiro de 2024: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4003.

SÜSSEKIND, Flora. “Objetos verbais não-identificados”. Rio de Janeiro: O Globo, 2013. Acessado em 16 de fevereiro de 2024:  https://pdfslide.net/documents/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-suessekind-prosa.html?page=1
Notas
[1] A partir de uma resolução do Conselho de Ministros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a Unesco oficializou o 5 de maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Segundo a Ata da Conferência, a escolha de um dia para celebração mundial desta que se tornou a língua mais falada do hemisfério sul, justifica-se, entre outros motivos, devido à “contribuição da língua portuguesa na preservação e difusão da civilização e da cultura humanas”, assim também como devido às “garantias oferecidas pelos Estados que têm o português como língua oficial, em relação à salvaguarda, à conservação e à celebração desse idioma, assim como seu compromisso ativo em favor da promoção de um dia mundial da língua portuguesa e da participação nele”. Tradução livre de documento da 207ª sessão da UNESCO, item 43 da agenda de 13 de setembro de 2019. Acessado em 16 de fevereiro de 2024: https://en.unesco.org/sites/default/files/accord_unesco_langue_portuguaise_conference_generale_eng.pdf

[2] No Uruguai, esta situação começou a ser apontada, não apenas teoricamente, mas por meio de publicações de poemas de segunda mão, em 2001. Mas nada disso foi traduzido para o Brasil, as tiragens foram muito baixas já no Uruguai, não chegaram a livrarias brasileiras, não ganharam resenhas ou postagens, e a produção de pensamento não ganhou o volume de comentários e artigos que ganhou nos EUA.

[3] Necessário é lembrarmos que a noção de moving information tem dupla função: apontar tanto a característica de facilitação da manipulação dos conteúdos, na era digital, quanto sugerir que a informação que selecionamos e da qual nos servimos é algo que nos toca, que nos move, que nos mobiliza.

[4] Vale lembrar que a crise financeira que eclode mundialmente em 1929, e a migração em massa, no Brasil, do campo para as cidades durante os anos 1920, fizeram com que as diferenças e contradições sociais ficassem mais aparentes, e os escritores, de certa forma, fossem empurrados a reconhecer realidades antes pouco visadas pelos membros de uma classe social de posses.

[5] São estes, seguidos do país sobre cuja literatura o convidado se debruçou: Dênis Rubra, Joice Zau, Kaio Carmona (Angola). Ana Paula Barbosa, Cida Pedrosa, Felipe Marcondes, Isadora Xavier, João Marcelo Costa Melo, Leonardo Villa-Forte, Lucas Litrento, Luciany Aparecida (Brasil). Edyoung Lennon, Maria do Céu Baptista, Naduska Mário Palmeira, Simone Caputo Gomes (Cabo Verde). Dany Wambire, José dos Remédios, Virgília Ferrão (Moçambique). Janaína Vianna da Conceição, Jéssica Lima, Ivanick Lopandza, Lauro Cardoso (São Tomé e Príncipe). Afonso Cruz, Alice Neto Sousa, Bruno Ministro, Fernando Aguiar, Mafalda Lalanda (Portugal) Eliseu Banori, Ticiana Souza Santos (Guiné-Bissau) Hérica Jorge Pinheiro, Suillan Miguez Gonzalez (Timor Leste).

[6] Tradução livre.
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A crise da crítica, por Flora Süssekind [vídeo]

Nesta fala, recorte de sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty de 2023, a professora, pesquisadora e crítica Flora Süssekind comenta a crise contemporânea da crítica. A intervenção se deu na mesa “Um teatro, um precipício”, que contou ainda com a dramaturga francesa Marion Aubert e a mediação da professora Natalia Brizuela. Para ter acesso a íntegra do evento, acesse: https://youtu.be/nuSrydkI0PQ

Dossiê
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CURADORIAS CONTEXTUAIS DE (DES)OCUPAÇÃO NA TERRA EM EROSÃO

Na proposta de refletir sobre as práticas curatoriais e as metodologias que ensaiamos nos últimos anos com o projeto de arte e pesquisa ambiental “Casaduna: Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona”, decidimos elaborar uma reflexão em torno da noção de (des)ocupação, a partir de alguns exemplos de moradores de Atafona que lidam de maneira inventiva com o processo de perda de suas casas, e de um evento produzido no ano de 2022. Vamos nos referir a experiências de ribeirinhos como Dona Belita e o pescador Fernando, mas também a experiências de moradores oriundos da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes, que construíram casas de veraneio em Atafona. É o caso da Sônia Ferreira, empresária aposentada, filha do falecido Alair Ferreira, influente político da região.

Na antiga casa da moradora Sônia Ferreira, semanas antes da demolição do imóvel construído por seu pai nos anos 1960, onde ela habitava, realizamos o evento (DES)OCUPAÇÃO. Na ocasião, coincidentemente, realizávamos uma residência artística[1] quando Sônia nos disse que planejava pôr abaixo sua moradia pois o mar já havia derrubado o muro e começava a erodir o solo que sustentava sua casa. Anos antes, Sônia havia compartilhado conosco um álbum com fotos feitas por ela em 2008. Foram meses fotografando a queda do prédio do Julinho. Espectadora privilegiada, Sônia viu o prédio ruir pela força da erosão da varanda de seu quarto. Ela tirou fotos diárias e conseguiu flagrar o momento exato da queda, material com o qual realizamos o filme Mar Concreto, finalizado em 2021.

Para construirmos nossa reflexão, vamos retomar alguns momentos anteriores, fundamentais para a elaboração de uma reflexão ética, estética e política em nossas práticas no território, desde a proposta inicial do projeto, iniciado em maio de 2017. Nesta reflexão, vamos abordar temas ligados ao campo da teoria estética, das políticas culturais e patrimônio, operando em campo transdisciplinar e trans-histórico. Nesse sentido, propomos a noção de (des)ocupação como um gesto ao mesmo tempo sociológico (táticas de adaptação ao processo de erosão costeira), artístico (estéticas da existência) e político (porque ele indica uma mudança necessária nas formas de pensar as políticas culturais e uma rearticulação da noção de patrimônio histórico).

O gesto curatorial que criamos através do projeto CasaDuna: Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona inicia-se justamente com a nossa mudança da capital do Rio de Janeiro para o município de São João da Barra, no extremo norte do estado. Esse gesto se efetiva a partir do momento em que alugamos uma casa de veraneio na praia de Atafona, cujo terreno havia sido invadido por uma duna. Um dos muros que protegiam os limites do terreno da propriedade havia sido derrubado por uma enorme duna, fenômeno que era parte do processo de erosão marinha que atinge a praia desde os anos de 1950. Portanto, esse gesto curatorial é também um gesto de habitar um território instável, conviver com um ambiente em franco processo de erosão, enfim, habitar o que passamos a chamar de ruínas vivas, isto é, casas que, apesar de ainda estarem preservadas e em condições razoáveis para habitar, apesar das goteiras persistentes, já estão afetadas pelo processo erosivo. Isso significa assumir uma habitação temporária que necessariamente vai exigir, mais cedo ou mais tarde, a (des)ocupação da moradia. Portanto, não se trata aqui de ruínas de uma cidade ou civilização que desapareceu, mas de uma cidade que está em processo de desaparição e, ao mesmo tempo, a cidade não para de se reconstruir e se adaptar, ocupando e desocupando os espaços. Portanto, este primeiro gesto implica em uma alteração consciente no nosso modo de vida, uma escolha que foi pensada também de um ponto de vista crítico, a partir da compreensão da crise política que se instalava no país a partir do golpe jurídico-parlamentar que destituiu a então presidenta Dilma Rousseff em 2016. Compreendemos naquele momento que viveríamos uma erosão política e social no Brasil, a erosão ecológica já estava em curso no mundo. Atafona nos parecia assim uma metonímia poderosa do momento histórico, uma parte isolada que oferecia a imagem do todo. Nas mansões em ruínas na orla da praia de Atafona víamos o solo das instituições políticas e do modelo civilizatório colonial sendo revirado pelo avesso.

A partir desse gesto de habitar, passamos a gesto de co-habitar, abrindo nossa casa para artistas interessados em vivenciar o território de Atafona, contemplando nessas vivências outras camadas além da visualidade. Camadas históricas, políticas, geopolíticas, etnográficas, afetivas, estéticas que pudessem abrir novos caminhos de reflexão sobre o contexto local. Esse era um importante objetivo das residências artísticas, nas quais criamos roteiros que incluíam caminhadas pelas ruínas e dunas da orla, visitas a estaleiros de barcos artesanais, conversas com moradores, passeios de barco pelo rio Paraíba do Sul, entre outras atividades. Neste sentido, a ideia de arte contextual foi um dos conceitos orientadores da metodologia do trabalho. Estipulamos parâmetros éticos do trabalho e frentes de ação no território além das residências, que incluíam pesquisa acadêmica, organização de cineclubes e produção audiovisual, a criação de um grupo de teatro, o Grupo Erosão,[2] a realização de uma exposição coletiva inaugural de nosso projeto: Atafona: Museu em Processo (2017).

Outro gesto importante em nossa prática curatorial foi a constituição de um acervo de fotos, vídeos e livros sobre a região. Hoje possuímos um acervo com mais de 300 fotos históricas e cerca de 2 terabytes de fotos e vídeos produzidos por nós desde que nos mudamos para Atafona em maio de 2017. Além disso, constituímos uma hemeroteca digital com reportagens de jornal sobre Atafona recortadas e reunidas por Dona Marilda Soares. Esse trabalho de digitalização foi realizado em parceria com a professora Lilian Sagio Cezar, com a Unidade Experimental de Som e Imagem (UESI) e o Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA), com a professora Simonne Teixeira e o GT Officina do Patrimônio Cultural, ambos do Programa de Políticas Sociais – UENF.

Pesquisamos a viabilidade de práticas curatoriais a partir de metodologias de pesquisa-ação e arte contextual que possam ser idealizadas e produzidas em relação com as demandas, as possibilidades e os interesses locais. Uma vez que esta metodologia se exerce, percebemos que se coloca em xeque a própria ideia de “comum” e outras noções tradicionalmente caras, como a do “artista”, da “originalidade”, em prol da produção de múltiplas vozes em modos de criar sentido e resistência com a destruição.

Apresentaremos brevemente a pequena praia de Atafona, no litoral norte do estado do Rio de Janeiro, margem sul da foz do rio Paraíba do Sul, ponto extremo de uma grande planície formada ao longo de cinco milênios por sedimentos do rio. Outrora habitada pelos bravos guerreiros goitacás, exímios nadadores, caçadores de tubarão, os donos da restinga, dos brejos e manguezais. Povo que foi cruelmente massacrado em guerras desleais promovidas pela invasão colonial europeia. Até o final do século XIX, a praia tinha poucos habitantes. A maior parte da comunidade de pescadores vivia nas ilhas da Convivência e do Pessanha. Com a chegada da estrada de ferro e depois da rodovia, o local passou a ser de interesse de veranistas vindos principalmente da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes. Esses construíram, ao longo do século XX, centenas de casas sobre restingas, brejos e mangues da região. Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento do modelo de ocupação urbana, a maior parte da mata ciliar do rio Paraíba do Sul foi eliminada, indústrias foram construídas em suas margens e, na década de 1950, foi feito um desvio brutal de dois terços de suas águas para o rio Guandu abastecer a região metropolitana do Rio de Janeiro. Em decorrência, a erosão iniciada na década de 1960 já destruiu mais de quinhentas construções na região e segue em curso, ameaçando as casas de pescadores e veranistas.

Atafona não é um caso isolado, outros balneários no Brasil e no mundo também sofrem com o avanço do mar. No entanto, a perspectiva das mudanças climáticas e do colapso ambiental promovido pelo avanço industrial dos últimos dois séculos alerta para o fato de que a erosão costeira poderá se tornar um fenômeno comum no mundo inteiro, obrigando centenas de milhares de pessoas ao abandono de suas casas. Portanto, nos parece que essa reflexão sobre a ação de (des)ocupação é urgente e de interesse global.

Neste texto, não debateremos as causas da erosão local, nem possíveis soluções ou prognósticos futuros. Interessa refletir sobre essa experiência singular de habitar as ruínas de Atafona e especialmente sobre os modos de (des)ocupação. Esses processos de ocupação e (des)ocupação implicam em deslocamento de escombros da praia e composições com agenciamentos marinhos que fazem dançar as estruturas e revirar os fundamentos das casas, mas também os dos conceitos nas práticas curatoriais, nas políticas culturais e em demais produções artísticas e acadêmicas. Interessa pensar as possibilidades da arte como instrumento neste contexto, bem como os alcances da universidade e as micropolíticas que operam nestas estruturas, podendo, eventualmente, promover infiltrações.

Curadoria do patrimônio erodido

A referida realidade no plano macropolítico faz da experiência de viver em Atafona paradoxal: a paisagem real, concreta, se dobra no plano metafórico. Além disso, esse cenário de ruínas está cercado por paisagens belas e aprazíveis, o vento nordeste, a foz do rio Paraíba, as casuarinas, as dunas e o céu da planície litorânea criam uma cama que amortece o caos visual provocado pela imagem das ruínas das casas, com seus destroços, escombros e vergalhões ameaçadores. O resultado é uma paisagem ao mesmo tempo bela, melancólica e selvagem.

Habitar Atafona é uma forma de habitar ruínas, não porque a cidade esteja em ruínas, mas pela intensidade de seu processo – tanto o de arruinamento como o de adaptação. Este não é um fenômeno restrito a Atafona, mas o modo como ele se dá aqui é inteiramente singular. Um espelho quebrado de toda cidade em processo de urbanização no atual regime capitalista global. Uma espécie de cidade semimítica do novo milênio, ou ainda a cidade vanguarda na fronteira da transgressão marinha que apenas se inicia na era do chamado Antropoceno. Uma das primeiras cidades náufragas do segundo milênio da era cristã. “Jesus está voltando”, anunciam os crentes em escritos nas ruínas. “Praia do apocalipse”, “tsunami homeopático”, “terceiro melhor clima do mundo”, “portal para o universo”, “região de contato com óvnis”, multiplicam-se os epítetos e as lendas sobre esta paisagem complexa, cruzamento de rio, mangue, restinga, mar, vento e seres humanos e não humanos. Estranha configuração rústica e aprazível da imaginação apocalíptica de futuro. Nem futuro, nem passado, nem distopia, nem utopia, mas “heterotopia”. Lugares heterotópicos são aqueles que, existindo, fazem que contestemos todos os outros em suas disposições espaciais e funcionais.

[…] as heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham […]. Eis por que as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias […] dissecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática. (Foucault, 2007, p. XVIII)

Lugares que abalam o sentido de nossa organização semântica do habitual. Acreditamos que a heterotopia de Atafona possui um diferencial ontológico pois ela se constitui como tal justamente deixando de existir, pelo descontrole de todo propósito e planejamento humano. Um espaço que, sendo habitado, existe enquanto processo de (des)ocupação.

No processo acelerado de esgotamentos de biomas, mangues mortos, rio seco, poluído, sem força, salinização de lençóis freáticos e avanço do mar, surgem brechas para a invenção de modos de vida resistentes, adaptativos e inventivos em meio às ruínas. Neste aspecto é importante determo-nos, pois ele participa da concepção de nosso modo de trabalho ao optar por habitar o território para compreender as dinâmicas de adaptação e agenciamento nos modos de vida, convivendo com o arruinamento e a recriação cotidiana.

Pudemos perceber isso na própria vivência dos últimos anos e também ouvindo relatos de antigos moradores. Conviver com a erosão não se resume a uma vida penosa e precária, ainda que o seja em grande medida, ainda assim há inventividade, alegria, dignidade, coragem e perseverança. Temos exemplos de pessoas que convivem com a erosão em Atafona e fazem dessa vida uma vida plena, íntegra e bela. É o caso, como veremos, de Dona Belita, que resistiu, vivendo na Ilha da Convivência até o fim de sua longa vida, permanecendo lá mesmo depois de perder sete casas para o mar. Mas também de Nenel, Fernando, Seu Paulo, Miri Carla, Gilson, Neno, Benilda, Nelite, o Ronaldo Não Me Viu, Almir Largado, Nico e tantas outras pessoas, pescadores, caranguejeiras, marisqueiras, sobreviventes que tivemos a oportunidade de conhecer e que continuam habitando a região próxima à foz. São vidas ancoradas em embarcações e não em terra firme. Parte destas histórias pudemos registrar em uma atividade de museologia social produzida em 2020, na qual levamos nosso acervo de imagens antigas para lugares específicos da comunidade, montando um museu itinerante, o Museu Ambulante, no qual a comunidade narra histórias dos territórios onde habitavam, décadas atrás, e que já foram levados pelo mar. Vemos vidas habituadas a naufrágios, a adaptações climáticas e, por isso mesmo, vidas que podem ser consideradas vidas filosóficas. Modos de vida que instauram espaços heterotópicos, vidas outras.

O que significa habitar ruínas e desocupá-las, como um gesto ao mesmo tempo estético e filosófico? Para responder esta pergunta, partimos de um breve depoimento da última moradora da Ilha da Convivência, Dona Belita, que viveu até o fim de sua longa vida centenária nessa ilha. Mesmo depois de perder sete casas para o mar e ver toda a sua comunidade migrar para o continente, seguiu convivendo com a presença ameaçadora do oceano que avançava ano a ano sobre seu território. Ela nos descreve com tranquilidade a ação devoradora do mar de Atafona.

“Eu me conformo com tudo. Nunca disse uma má palavra. O mar comeu as casinhas minhas numa situação feroz, feroz, só Deus!”

As habitações na zona limite da erosão nos ensinam sobre modos de vida adaptativos, pois são vidas que se constituem em constante diálogo com forças ambientais. Ao mesmo tempo se utilizam obrigatoriamente das sobras geradas pelo avanço civilizacional. Não se trata aqui de romantizar essa situação, há certamente ausências graves por parte do poder público e faltam políticas sociais que sejam capazes de compreender as necessidades dessas pessoas que moram em áreas de risco ambiental. No entanto, quando nos aproximamos de algumas dessas pessoas, notamos que elas não se sentem pobres, nem frágeis ou vulneráveis. Elas dificilmente trocariam suas casas na beira da erosão por outras no meio da cidade e longe do mar. Assimilam em seus cotidianos a experiência sublime do mar que “ameaça a tudo engolir”, mas que também oferece o sustento. Eis aí uma forma de teimosia na inconstância, na impermanência.

Entendemos a importância de uma prática engajada, preocupada em contribuir com uma reflexão mais ampla, que incorpore a crítica não apenas no discurso, mas no modo de produção, abrindo brechas e criando problemas para os circuitos institucionais das artes e as políticas culturais governamentais. Nesse sentido é que propomos esta reflexão sobre a noção de (des)ocupação como uma forma de imaginação para curadorias, criações artísticas e políticas culturais e patrimoniais em contextos de crise ambiental. Política cultural, segundo a definição de Canclini (apud Rocha e Brizuela, 2019, p. 14), é o conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, pelas instituições civis e pelos grupos comunitários organizados, a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social. A pesquisadora Isaura Botelho observa a importância de notar diferentes dimensões da cultura e quando se trata da elaboração de políticas públicas, distinguindo “a cultura do plano cotidiano daquela pertencente ao circuito institucionalizado” (Botelho, 2016, p. 19).

Nas definições das políticas culturais, para além dos instrumentos legais e das decisões técnicas, no caso do patrimônio, deve-se ter em mente que esse é um campo de disputas envolvendo identidades, memórias e territórios. A palavra patrimônio é de origem latina, derivado de pater, pai. Segundo Chauí (2004:15), não se trata do genitor (do latim genitor), senão de uma figura jurídica, onde pater, o pai, é o dono e senhor da terra e de tudo que nela há. Deste modo, originalmente o patrimônio é aquilo que pertence ao pai e se configura como herança paterna, ou seja, os bens transmitidos de pai para filho. O termo também é usado como herança familiar, mas tem seu sentido ampliado para patrimônio cultural, referindo-se à herança sociocultural.

A noção de patrimônio histórico e artístico resulta de um longo debate até seu sentido atual, mais amplo, de patrimônio cultural, que inclui o aspecto relacionado à natureza e ao meio-ambiente nela inerente. Este é o sentido que nos interessa para pensar a noção: “o conjunto dos elementos arquitetônicos, urbanísticos, arqueológicos, paleontológicos, ambientais, ecológicos e científicos que indiquem e referenciem a identidade social de um grupo e de um meio geográfico específico” (Assunção, 2003:87). Ou ainda:

O Patrimônio Cultural é composto por monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico. Incluem obras de arquitetura, escultura e pintura monumentais ou de caráter arqueológico, e, ainda, obras isoladas ou conjugadas do homem e da natureza. São denominadas Patrimônio Natural as formações físicas, biológicas e geológicas excepcionais, habitats de espécies animais e vegetais ameaçadas e áreas que tenham valor científico, de conservação ou estético excepcional e universal. (Iphan)

Acreditamos que a situação de Atafona apresenta grandes desafios ao campo do patrimônio, em uma esfera para além da recuperação, manutenção e educação dos centros históricos e áreas de proteção ambiental. Essa praia traz em sua imagem uma dinâmica ambiental que, como vimos, tende a se ampliar, levando a uma necessária ressignificação da relação entre memória e território, erodindo a materialidade do patrimônio.

No Brasil, a valorização do patrimônio imaterial foi uma significativa conquista como estímulo e instrumento para que possam ser revividas ou atualizadas antigas tradições em uma comunidade. Comunidade entendida enquanto um acordo, historicamente situado por um território, entre humanos e não humanos. Neste sentido, desde o século XX, agências internacionais vêm incentivando o trabalho de projetos voltados ao turismo cultural, “experiências” e ao desenvolvimento sustentável. Não raro tais iniciativas acabam promovendo a exclusão das populações residentes nessas áreas. O desafio consiste justamente em incorporar este imaginário que se cria na convivência com as realidades ambientais, sem reproduzir metodologias de trabalho, seja nas práticas artísticas seja nas políticas de preservação, que sejam alienadas do território e das forças vitais que nele se produzem. Algumas regiões e grupos podem reinventar suas performatividades tradicionais e modos diferenciados de ocupar um espaço que confira sentido em uma comunidade imaginada.

Estéticas e práticas de si: Atafona e o sublime no cotidiano

É curioso que Kant, quando se refere à experiência estética, use fenômenos naturais para indicar o evento. Inclusive a imagem do mar revoltoso que ameaça nos engolir. É pouco provável, no entanto, que o prussiano tivesse imaginado, ainda que com sua incrível imaginação, conceber algo parecido com a visualidade do cotidiano de Atafona. A curiosidade está em ouvir o discurso de Dona Belita, que, relatando sua vida na Ilha da Convivência, descreve igualmente o mar como um ser feroz que não só ameaça, como de fato engole as suas casas. No entanto, estas duas experiências com o mar revolto referem-se a contextos muito distintos.

Para compreender esta diferença, propomos uma reflexão a partir da noção de “exercícios espirituais”, noção da filosofia antiga retomada por Pierre Hadot e que Michel Foucault utilizou em suas reflexões sobre “técnicas de si” e “estética da existência”. Esses dois filósofos franceses se interessam pela filosofia prática da antiguidade greco-romana, como um conjunto de técnicas com as quais os indivíduos alteravam a sua própria percepção do mundo, e com isso buscavam se preparar para os acontecimentos adversos da vida. Segundo Hadot, os exercícios espirituais “correspondem a uma transformação da visão de mundo e uma metamorfose da personalidade” (Hadot, 2002, p. 21). Mais interessado na postura estoica e epicurista, Hadot observa os textos antigos de Sêneca e Marco Aurélio, entre outros, e propõe uma associação entre estas práticas filosóficas antigas e a teoria da percepção estética na filosofia moderna e contemporânea, passando por Kant e Merleau-Ponty. Segundo ele, esses pensadores entendiam a experiência estética como uma forma de ampliação da percepção do mundo e uma ruptura com a percepção comum, em nossa experiência cotidiana e utilitária.

Ocorre que, entre os gregos, havia uma escola filosófica que propunha um reviramento desta concepção da filosofia como “suspensão” de um estado de consciência cotidiana. Tratava-se justamente da filosofia cínica de Diógenes de Sinope, uma escola que, segundo Foucault, era o “espelho quebrado” da filosofia grega, onde todas as principais correntes filosóficas da época se viam ao mesmo tempo afirmadas e invertidas. Com Diógenes, vemos a filosofia não só como uma arte de viver, mas como um meio de sobrevivência. As práticas de Diógenes não visam a uma “suspensão” da percepção cotidiana. Mas, ao contrário, trata-se de uma prática que intensifica a atenção ao cotidiano, com intuito de eliminar dos hábitos tudo aquilo que seja desnecessário e artificial e não crucial para a sobrevivência e a satisfação das necessidades.

Uma filosofia que vai para o campo da prática gestual, performativa, cênica. Como vemos com Goulet-Cazé e Branham (2007):

De fato, a expressão mais poderosa da vitalidade do cinismo no início e no apogeu do mundo moderno provavelmente não está no domínio da filosofia per se, mas numa tradição literária de fantasia e diálogos satíricos.

É por isso que Diógenes quebra a sua própria caneca ao ver uma criança bebendo água da fonte com as mãos entrelaçadas em forma de concha. Aqui também há uma alteração na percepção do mundo, mas essa alteração não está dissociada da vida utilitária. Pelo contrário, Diógenes parece indicar que a percepção só muda realmente quando mudamos os hábitos mais elementares de nossa existência.

Mas o que seria o sublime no cotidiano? O sublime em gestos simples de beber água, se alimentar, defecar ou de se masturbar? Todos estes gestos vinculados às necessidades mais básicas do corpo fazem parte do repertório gestual da filosofia cínica. Nas histórias que se contam de Diógenes, ele é visto realizando cada um desses atos em público. Nesse caso, o sublime não pode ser concebido como um sentimento metafísico. O sublime aqui é gerado pelo impacto com a natureza em sua nudez. Não se trata do confronto com uma natureza grandiosa que nos ultrapassa e com a qual nos reconectamos em sentido cósmico, trata-se da percepção mais crua da natureza irredutível de nosso próprio corpo.

Para o cínico, não se trata de pensar o cosmos como compreensão da verdade última do universo, mas sim de percebê-lo no corpo, nas necessidades mais básicas, e buscar não as dissimular, não criar artifícios, desvios, ou subterfúgios para assumi-las na sua nudez e crueza. E é essa natureza do cinismo enquanto a banalidade do sublime que espanta e é escandalosa. O sublime não está apenas na visão extasiante de um mar revolto, está também nas ações que realizamos cotidianamente e que são justamente passagens de substâncias diversas do exterior para o interior de nosso corpo e vice-versa.

Cabe aqui retomar brevemente a questão do sublime em Kant, a fim de contrastar com a experiência do sublime escandaloso do cínico, que pode também ser pensado enquanto um antisublime. Hadot refere-se ao sublime de Kant como uma entre outras teorias que se referem à experiência estética como uma forma de alteração da percepção capaz de nos retirar da percepção cotidiana utilitária da vida. Na abordagem de Hadot, Kant aparece ao lado de outros pensadores e artistas tais como Merleau-Ponty, Bergson, Paul Klee, Cézanne. Hadot observa que as abordagens sobre o fenômeno estético de cada um desses autores são muito distintas, mas todas indicam a ruptura com a percepção cotidiana. Ele nos indica que a percepção estética do mundo é uma espécie de modelo da percepção filosófica, e esta parece ser também a visão do próprio Hadot.

Vejamos então a passagem sobre o sublime em Kant:

Em 1790, na Crítica da faculdade de julgar, Kant opõe, ele também, percepção estética e conhecimento científico. Para perceber o oceano como sublime, não é necessário analisá-lo por meio de associações a conhecimentos geográficos e meteorológicos, mas “é preciso aceder a visão do oceano, somente – como fazem os poetas, unicamente segundo aquilo que se mostra ao olhar, logo que ele é contemplado, seja em repouso, tal um claro espelho d’água, que não é limitado pelo céu, seja quando ele está agitado como um abismo que ameaça a tudo engolir”. (Hadot, 2002, p. 349)

Para Kant, a experiência estética pressupunha uma postura desinteressada do mundo, isto é, livre de qualquer pulsão de interesse ou apetite. Uma experiência, portanto, inútil para a vida ordinária, mas fundamental para experiência da alma. E, pelo menos nesta passagem citada por Hadot, tratava-sede uma percepção ligada principalmente à contemplação visual. Nessa passagem, o elemento escolhido por Kant para descrever o sublime é o mar, e o mar representado ora como calmaria na placidez de um espelho d’água infinito, ora como um ser abismal e devorador, que ameaça nos engolir. Como vimos, esta segunda imagem é muito semelhante à descrição do mar de Atafona feita por Dona Belita.

O sublime de Dona Belita é o cotidiano, não é uma experiência de arrebatamento contemplativo com o mar, mas uma relação cotidiana com o mar que, se, por um lado, a ameaçava, por outro, lhe dava o sustento. O sublime nesta relação é a experiência cotidiana, a vida simples, mas não menos filosófica, isto é, não menos sábia. Dona Belita é um exemplo de uma vida desvinculada do valor monetário, da influência política, ou da produtividade. O valor desta vida está justamente em sua autonomia com relação ao capital, isto é, uma vida que escapa quase completamente ao circuito econômico do capital, uma vida de valor outro.

Haveria assim uma experiência do sublime como um fenômeno perceptivo ou sensorial que nos arrebata completamente os sentidos, indicando a existência de forças cósmicas que nos ultrapassam, isto é, a existência de um outro mundo ao qual podemos apenas acessar por intuições. E, por outro lado, haveria também esta experiência do sublime no cotidiano, algo que nos indicaria uma passagem para uma existência radicalmente outra, isto é, uma vida outra (Naidin, 2021) resultante de uma mudança de percepção. Aqui, nos permitam essa imaginação conceitual, podemos pensar em uma (des)ocupação existencial, isto é, para criarmos e habitarmos novos mundos, precisamos desocupar os modos normativos de existir.

A arte ambiental do pescador Fernando

Quando um pescador diz que o mar é vivo, ele abre uma dimensão da existência que é inconcebível para a nossa consciência particular enquanto sujeitos racionais e que escapa à consciência individual do sujeito, mas que é comum a todo ser vivente. É ela que permite que o pescador Fernando afirme que o mar é vivo, mesmo sem saber explicar por quê. É verdade que em geral esses pescadores acabam por resumir estas forças numa única entidade, isto é, no final tudo “é coisa de Deus”. Mas na prática observamos uma percepção aguda das forças ambientais por parte dessa população que convive diariamente com o processo erosivo. Antes de resumir tudo a Deus, eles caracterizam e diferenciam cada entidade da paisagem e são capazes de perceber os humores e as intenções do ambiente em que vivem.

Barreira construída pelo pescador Fernando, foto de Fernando Codeço, 2021

O modo como o pescador Fernando lida com o com o processo de (des)ocupação de suas residências atingidas pelo processo erosivo poderia ser descrito como uma espécie de obra ambiental processual. Fernando vive na localidade conhecida como Baixada, área urbana extrema do delta do rio Paraíba do Sul, uma pequena vila construída sobre um antigo mangue que hoje está morto. Terreno mais vulnerável à erosão, enchentes e alagamentos em Atafona. Constrói cotidianamente uma barreira com troncos, cordas, sacos de areia, redes de pesca, colchões, tábuas e outros materiais que ele coleta na praia e na cidade, uma barreira que tem o objetivo de retardar a erosão que ameaça a sua casa, mas, segundo ele mesmo diz, “o mar pode vir e destruir tudo em menos de meia hora”. Essa construção do pescador Fernando pode ser lida também como uma carta, escrita com os materiais da erosão. Ele sabe que a barreira não vai impedir que o mar avance sobre sua casa, talvez no máximo retardar um pouco, mas ele a constrói com toda a sua arte, inventando uma arquitetura improvável. Uma obra de arte ambiental naïf? Uma arte ambiental canibal. Uma arte que surge do agenciamento erosão-pescador. Fernando constrói sua barreira como quem instala um mastro em um barco furado. Ele cria, com a linguagem da navegação, os nós, as madeiras, as lonas de um veleiro, tudo construído sobre a terra firme que afunda lentamente. Quando perguntamos a ele se ele considerava a sua construção uma arte, a resposta foi afirmativa. Ele também disse que era uma forma de se comunicar com o mar, ou com Deus. Uma arquitetura espiritual, uma carta sobre o destino naufrágio de seu território. Sua obra é resultado de um esforço físico cotidiano, ele trabalha sozinho deslocando dezenas de toras de madeira que são lançadas pelo mar na praia; trabalha com ajuda de alavancas e do próprio mar nas marés cheias; movimenta ao longo dos meses toneladas de madeira e areia. Todo este trabalho produz uma barreira frágil, quase simbólica. A sua potência não está na capacidade de impedir o avanço do mar, mas sim em seu agenciamento com o processo erosivo, é a maneira que ele encontrou de dar sentido a esse processo que cedo ou tarde vai destruir a sua casa. A barreira é também uma forma de comunicação com as forças ambientais, mensagem escultural que se direciona simultaneamente a seres humanos e não humanos. Uma obra de arte que não se separa da vida, da convivência cotidiana com o mar revoltoso, uma obra efêmera que se constitui na vivência do sublime no cotidiano.

(DES)OCUPAÇÃO – curadoria e pedagogia do agenciamento

Desde 2017, quando começamos a trabalhar em Atafona, tínhamos a ideia de arte contextual como conceito orientador de trabalho em que cada ação proposta seria definida e elaborada a partir do contexto no qual se dava, das condições ambientais e humanas disponíveis em cada caso. Em 2018, Sônia nos apresenta um material de arquivo particular no qual ela acompanhava, fotografando, a queda do único prédio que chegou a ser construído na praia. O “prédio do Julinho”, que se localizava na frente de sua residência e que, antes mesmo de ficar plenamente pronto, já começou a receber os impactos da erosão e não chegou a ser finalizado. Ainda assim, concentrava parte do comércio e do lazer da comunidade em torno de um pequeno centro comercial que formou. Dona Sônia acompanhou o processo de erosão no prédio com uma máquina fotográfica e conseguiu capturar com as fotografias o momento final da queda do prédio. Esse momento foi um marco para Sônia. Sua casa seria a próxima a ser destruída pela erosão. As fotos da queda datam de 2008. Dez anos depois, recebemos como contribuição para nossos arquivos o álbum fotográfico de Sônia, e com ele produzimos um curta metragem documental Mar Concreto (finalizado em 2020) como um modo de trabalharmos com esse arquivo improvável. O filme foi exibido em diversos festivais nacionais e internacionais, recebeu prêmios e é utilizado nas atividades acadêmicas, pedagógicas e artísticas que promovemos.

Quando Sônia, em 2022, nos avisa que vai antecipar-se ao mar que já tinha derrubado parte do muro de sua residência e, por questões de segurança, ia demolir a própria casa, sabíamos do impacto material e simbólico desse gesto em sua vida e na vida da comunidade. Uma casa grande, com belas escadas de madeira, muito vidro e pedras, que impressionava os passantes, a casa foi construída por seu pai, antigo político influente na região, no início dos anos 1980. Na ocasião, estávamos realizando uma residência artística com um grupo de oito artistas em nossa casa, seguindo uma agenda de atividades previamente planejada. No entanto, a iminência da destruição planejada por Sônia apontava para um outro tipo de agenciamento e de produção de sentido. Abrimos um diálogo sobre a situação com as/os artistas residentes e propusemos para Sônia a realização de um evento de despedida de sua casa, que poderíamos produzir juntas, no qual seriam realizadas projeções de filmes, intervenções contextuais, exibição de imagens históricas, venda de seus objetos antigos, encontros inusuais. Decidimos montar uma ocupação artística na casa que já estava esvaziada.

Optamos por realizar a projeção do filme Mar Concreto no muro da casa de Sônia, que aparece no filme por meio das imagens feitas da varanda da casa, prestes a ser demolida. Optamos também por exibir na sequência o curta do Museu Ambulante, um documentário feito a partir de uma atividade de museologia social homônima na qual levamos às ruas de Atafona um museu manipulável e itinerante, cuja expografia participativa ativa o campo das memórias dos cotidianos, dos afetos e da contação de histórias sobre um lugar que não existe mais, mas que existe para aquelas pessoas que viveram e perderam em comum.

Montamos uma estrutura de projeção em seu jardim, iluminação na praia, e registramos o evento. Percebemos que foi uma oportunidade de encontro em torno de um elemento comum, uma experiência em comum, da iminência da perda em meio a todo dissenso entre uma comunidade imaginada. Muitos tinham curiosidade de ver como era aquela casa por dentro, outros foram para se solidarizar, outros para ver os filmes, outros para ouvir histórias, levar lembranças para casa, muitos amigos, alguns melancólicos apaixonados.

Ao longo dos últimos anos, realizamos diversas produções e curadorias que se deram pelo crivo do agenciamento contextual possível ou necessário. Assim como as atividades mencionadas, como o Museu Ambulante, a realização do filme Mar Concreto, a produção constante de arquivo em seus diferentes suportes, o grupo de teatro de rua, entendo o evento (DES)OCUPAÇÃO exemplar por alguns motivos, principalmente: a urgência com a qual teríamos que realizar; o uso heterotópico do espaço, criando uma dobra na própria heterotopia; projetar o antigo Prédio do Julinho na parede da frente de sua ruína iluminada que, em poucos dias, também viria a se tornar ruína. Exibi-lo junto com o Museu Ambulante, um trabalho de memória idealizado como material que pudesse também ser absorvido em atividades com escolas na comunidade; o convite aos artistas para que participassem, tanto da ocupação com obras quanto do evento da (DES)OCUPAÇÃO, conforme cada vontade e possibilidade de cada um; a percepção de que em nossas atividades e propostas curatoriais o foco principal não é a exibição de obras visando a uma eventual absorção pelo mercado de arte, mas a produção de trabalhos, ou situações, co-criados a partir dos agenciamentos imprevisíveis que o contexto de Atafona nos apresenta, em um trabalho delicado de escuta, cuidado e adaptação.

Curadoria não somente como seleção de artistas e obras, mas como produção de agenciamentos e de polifonias, refletindo também sobre o modo de levar a arte para o mundo. Não trabalhamos em condições ideais, trabalhamos em processos adaptativos tanto no sentido conceitual quanto performativo. Não se trata de pôr-se em algum dos polos, “o gênio do artista”, ou “a materialidade da obra” , ou pelo menos não só isso. Mas no caso deste projeto específico, essencialmente territorial e geosituado, trata-se de pensar também em uma perspectiva crítica de seus modos de produção e de circulação. Que, antes, propõe, por uma metodologia relacional e ambiental, um tratamento das imagens que não se restrinja ao campo de um slogan que garantiria aceitação em um determinado nicho cultural e econômico. Como reproduzir imagens de destruição? Como trabalhar sobre traumas alheios?

Ou seja, não estamos no terreno do idealismo ou da representação individual, e sim na tentativa de infiltração na ordem das coisas concretas e dos acontecimentos possíveis. Contexto designa “o conjunto de circunstâncias em situação de interação. O ‘contexto’, etimologicamente, vem da base latina contextus de contextere, tecer com” (Ardenne, 2002, p.17). A atenção se volta para o mundo tal qual ele se apresenta, buscando criar a emergência de práticas artísticas que questionem um habitual, alterando significados e imaginários. Ou seja, criar experiências contextuais, pedagogias inesperadas, que sejam capazes de confrontar os paradigmas habituais nos modos de produzir imagens no mundo.

Esta posição é tomada a partir de situações concretas nas quais pudemos perceber reprodução de usurpação no sentido material e simbólico, nas produções artísticas que reencenam performatividades que se pretendem salvadoras ao mesmo tempo que desvinculadas de qualquer preocupação com a escuta socioambiental, que produzem um esvaziamento tanto de inventividade na linguagem como de intervenção na materialidade em função do ego do artista (assim como do curador/produtor/acadêmico, etc.).

Vemos que existe um componente agregador associado à noção que incorpora conteúdos de memória, identidade e território partilhados, vivências que definem solidariedades e compartilhamento. Ao mesmo tempo, contra qualquer romantismo, sabemos que a inteligibilidade das relações de um povo com seu território depende da posição de onde estamos para abordá-la. As metodologias de pesquisa tradicionais, ou a “avaliação social” dos impactos ambientais, muitas vezes representam uma perspectiva profundamente distanciada e desconectada da realidade local, promovendo efeitos devastadores, especialmente, ao que nos dedicamos neste momento, o desalojamento da memória que está ancorada na paisagem. Acreditamos em abordagens poéticas e corporificadas que conectam a erosão ao princípio transformador do humano e do mais-que-humano. Diante da perda inevitável, interessa como podemos usar a poesia e a imaginação como espaço de luto, mas também de reinvenção e produção de memória coletiva. Com a ideia de (des)ocupação, trazida nestes diferentes modos de relação com o espaço, mantemos algumas perguntas que sempre são recolocadas: como podemos repensar nossa maneira de viver e modos de agenciamento a partir de uma paisagem em constante mudança? E qual o lugar do cidadão e do fazer artístico nesse processo de renegociação?

Registro do evento (DES)OCUPAÇÃO, foto de Manu Campos, 2022
* Fernando Codeço faz pesquisa de pós-doutorado pela Parceria de Encontros Hemisféricos, organizada pela York University, Laboratório de Crítica e pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e apoiado pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá (SSHRC). Julia Naidin faz parte do Programa de Pós-Doutorado em Políticas Sociais, do GT do Observatório do Patrimônio Cultural da Universidade Estadual do Norte Fluminense, com Bolsa FAPERJ/CNPQ.
Referências bibliográficas
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Sites pesquisados:

Iphan: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218.>

CasaDuna | Arte – Pesquisa – Memória | Museu Ambulante: https://www.casaduna.org.
Notas
[1] Tratava-se da residência artística “Caos Cais Cosmos” realizada em parceria com o artista e curador Daniel Toledo onde participaram as/os artistas Isabela Roriz, Pamela Jean Croitorou, Clóvis Levi e Manu Campos.

[2] O grupo foi fundado em 2017 pelo diretor Fernando Codeço, as atrizes Julia Naidin, Lucia Talabi, Jailza Mota e o cenógrafo Rafaela Sánchez. Também integram o grupo hoje as atrizes Rachell Rosa, Mariana Moraes e o bailarino e diretor de movimento Guilherme Mattos. Mais informações no site: https://www.casaduna.org/duna-em-cena.
Dossiê
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TECER REDES: ARANHAS E MULHERES, CURADORIAS NO CONTEXTO AFRICANO

O livro A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, foi lançado em 2021 e, em meio a uma longa homenagem à literatura, à criação e aos criadores, há uma série de personagens ligados, de forma diferente, ao continente africano. Aranha-mãe, principal personagem feminina, inspirada em Ken Bugul, escritora senegalesa que hoje mora no Benim, é também escritora e tem entre seus escritos romances semiautobiográficos que falam de sexo e poder. A personagem é amedrontadora, exótica, sexualizada, mas também maternal e tradicional, cantando em serer, idioma falado na região do Sahel. Apesar das semelhanças entre as duas existe uma diferença marcante, a Aranha-mãe do livro não volta para o continente africano, permanecendo solteira e na Europa, enquanto Ken Bugul retorna, se casa com um marabout – espécie de iman tradicional senegalês – e chega a trabalhar no governo.

A aranha entra nesse texto, nessa visão ampliada da curadoria e de suas práticas de tecer relações entre criadores e espaços de criação, e entre os diversos espaços do continente. Visão ampliada porque a profissão de curador se inicia com os primeiros museus no Ocidente, sendo, inicialmente, um guardador, um cuidador de acervos, em grande parte antropológicos. A partir dos anos 1960, há uma virada nesse processo e o curador deixa de ser apenas um guardador de acervos para se tornar também um contador de histórias, alguém que, a partir de um acervo, é capaz de mostrar um lado, algo que se extrai desse acervo. Essa virada se coloca, em parte, a partir dos processos de independência no continente africano e pedidos de restituição das obras aos museus arqueológicos europeus.

A partir desse momento e da construção de teorias pós-coloniais, de estudos culturais e decoloniais, o museu se vê face a uma necessidade de mudança na forma como exibe e trata o material de seu acervo. Ao colocar em questão certezas patriarcais, raciais e coloniais, o papel do arconte, como fala Jacques Derrida em seu Mal de arquivo (2001), é colocado em xeque. O curador passa, então, a ter sua função de consignar valorizada, mas valorizada no que ela possui de recriar e retransformar os signos. No século XXI, ele assume papéis que lhe eram vedados anteriormente, ao mesmo tempo que, fora do espaço das artes, o curador se torna sinônimo de selecionador. Nas redes sociais, por exemplo, vemos multiplicar perfis de “curadoria de conteúdo”, que abordam informações sobre assuntos mil, de engenharia a restaurantes, passando, é claro, pelas artes e pela literatura.

Esse processo, ainda nos anos 1960, em seu começo, abre caminho para a existência de exposições, festivais e curadores dentro do continente africano. Quando a Europa e o Ocidente, como únicos centros de produção de arte e saber, são desafiados, a emergência de festivais de arte e cultura negra faz parte desse processo, acontecendo nos anos de 1966 e 1973 em Dakar e Lagos, respectivamente, para onde afluíram africanos e diaspóricos de todo o mundo. Os dois primeiros abrem as portas para uma série de festivais, focando em uma ou mais artes, ao longo do continente. A Bienal de Dacar é um exemplo, assim como o Festival au Désert, a Bienal de Bamako e tantos outros. A força dos festivais vem de sua intenção política e da pluralidade de grupos e povos por eles acolhidos, tudo isso ocorre nessa virada dos anos 1960, em que outros atores passam a participar dos sistemas de artes e literatura ao redor do mundo. A descentralização do poder e as independências das colônias são, dessa forma, parte da entrada de novos saberes e atores no sistema arte.

Esse processo, em sua continuação, legitima outras formas de inserção no mercado artístico e leva, no fim do século XX, o nome de Okwui Enwezor, curador nigeriano, falecido em 2019, como curador da Documenta 11 e da Bienal de Veneza, nos anos 2000. Enwezor, que tinha uma carreira construída nos Estados Unidos e na Europa, abre o caminho para uma história da arte não europeia, que inclui artistas do mundo inteiro, não apenas do Ocidente, na curadoria que apresenta em suas duas grandes mostras. Seu trabalho também é importante para abrir espaço para novos curadores do continente africano, que se fortalecem e começam a aparecer no circuito internacional. Nomes de mulheres, especificamente, começam a surgir e ganhar importância por seu trabalho, no continente e fora dele, com a construção não apenas de trabalhos curatoriais, mas também de ensino, crítica e criação de memória.

Uma dessas mulheres é Koyo Kouoh, marfinense, curadora, responsável pela criação da Raw Material Company, em Dacar. Sua trajetória começa ainda na faculdade, na Europa, quando passa de uma formação em economia para trabalhar em espaços artísticos. Decide retornar ao continente, mas não para a Costa do Marfim e sim para o Senegal, segundo ela por ser mais cosmopolita e por se interessar pelo Islã – o Senegal é país de maioria sunita. Em 1995, começa a trabalhar no Instituto Gorée, e em 2001, como co-curadora dos Encontros de Fotografia de Bamako, no Mali, importante festival de fotografia mundial, com frequência bienal. Em 2008, Kouoh funda a Raw Material Company, espaço em Dacar voltado para a curadoria e a formação em artes. Esse local compreende biblioteca, sala de exposição e espaço para as formações, que ocorrem uma vez por ano. Nas formações, pensadores e artistas do continente se encontram para discutir o tema do ano. Kouoh exerce a função, que acredita ser importante, de criar novos espaços institucionais de arte, não governamentais, e permanece nesse papel ao se afastar de Raw em 2019, passando a ser a primeira curadora chefe do Zeitz Mocaa, na Cidade do Cabo, museu de arte contemporânea africana.

No espaço Raw são organizados seminários de pesquisa também, e há memória desses seminários, em livros e publicações, dessa forma o espaço cumpre uma função de arquivo e geradora de redes da aranha. Raw Material Company é parte da Arts Collaboratory, grupo de 25 espaços de arte do Sul Global, interessados em criar solidariedades Sul-Sul e redes de criação e colaboração. O trabalho de Koyo Kouoh, assim, se coloca em diálogo com o trabalho de outros curadores e artistas em espaços não ocidentais, e Kouoh trabalha também na importância de construção dessas redes, com as palavras dela em artigo originado de um dos seminários da Raw Academy:

A Raw Material Company surgiu da necessidade de se criar um espaço de compartilhamento de conhecimento. Sua motivação principal foi estabelecer um espaço de educação e aprendizado alternativos. Um local que permita o acesso à teoria artística contemporânea e, em retorno, gere discurso, ideias e práticas com ênfase primária em África e questões relacionadas à África, ao mesmo tempo incluindo uma gama mais ampla de origens e escolas intelectuais. O nome Raw Material Company se refere à África como uma fornecedora tradicional de matérias primas (raw material) para a indústria global. Também se refere à arte e intelectualidade como uma matéria prima para o desenvolvimento humano. Company representa uma abordagem empreendedora para a produção artística e também para um sentido colaborativo de estar junto (Kouoh, 2013).[1]

Em uma das coletivas que curou, Body Talk: Feminism, Sexuality & The Body, Kouoh cita Okwui Enwezor e Chika Okeke-Agulu para falar de corpo, sexo e arte feita por mulheres no continente africano. A centralidade do corpo, como espaço de batalha, é trazida por esses curadores a partir de um evento de resistência de mulheres igbo, etnia nigeriana, contra o colonialismo. As mulheres da região que trabalham em um mercado, após a cobrança de um imposto em tal mercado, se manifestaram indo ao mercado despidas. O corpo nu da mulher tem força, ele é tabu e aparece causa de desconforto e mudança. A centralidade desse corpo na arte feita por mulheres é apresentada por Kouoh como também parte de uma resistência a um modo colonial, machista e racista de dominação, presente em todo o continente.

A artista Zoulikha Bouabdellah, argelina, apresenta seus quadros, com imagens de quadros renascentistas ocidentais, como que partidos em motivos de grafismos árabes, superpostos com outras imagens. A aranha, que aparece na obra, é uma homenagem à obra de Louise Bourgeois e cada perna representa um estilo arquitetônico diferente não ocidental. A aranha aqui também é corpo, é a presença e união dos estilos, a manutenção em pé de uma mulher. Ela acolhe e nos mostra que as mulheres ao redor são objetos transformados pelas possibilidades de corpo.

Figura 1: Obras de Zoulikha Boabdellah. Fonte: Contemporary Art Archive.

Como a Aranha-mãe mencionada, Kouoh faz de sua curadoria espaço de criar elos entre pessoas, histórias, espaços, possibilitando o acolhimento de diferentes pessoas nas exposições que organiza, como no Zeitz Mocaa, onde assumiu a curadoria e a responsabilidade de organizar o acervo de um museu dedicado à arte contemporânea africana. Koyo Kouoh nos mostra uma faceta dessa curadoria ampliada, promove a criação de redes e acervos, a curadoria que conta uma história além de mostrar uma obra. Estabelece uma questão e a analisa por meio das obras dos artistas.

Outra faceta dessa curadoria ampliada pode ser percebida nas curadorias dos diferentes festivais literários do continente, como Aké, na Nigéria. A criadora e uma das primeiras curadoras do Aké Festival, o maior festival literário da África Ocidental, Lola Shoneyin, hoje faz parte do seu Conselho Curador. Aké é um festival que aborda variados tipos de artes, não só a literatura, inclusive projetou escritores premiados e reconhecidos que hoje são publicados dentro e fora do continente. Ano passado, Wole Soyinka e Abdulrazak Gurnah, os dois prêmios Nobel de literatura africanos, estiveram presentes no festival, falando sobre seus novos livros.

Lola criou o Aké a partir da constatação da falta de festivais interessados na literatura produzida no continente em sua região, apesar de haver outros festivais literários de menor porte. Organizado a partir da elite literária local, Aké se destaca ao longo de seus onze anos de história por ter colocado junto diversos pontos de vista literários do continente, mantendo as edições online durante a pandemia, com discussões sobre feminismo africano e religião, comandadas por Mona Eltahawy, feminista egípcia, e Chris Abani, escritor e professor nigeriano. Na edição de 2023, o festival destaca uma questão central desde sua criação: o mercado literário na África e suas dificuldades, apesar de alguns nomes furarem essa bolha, chegando à Europa ou aos EUA, e em geral a tradução dos livros não é bem feita. Por isso, foi criado o TARF, espaço dentro do festival para facilitar a venda de direitos autorais de autores do continente, que tem sua primeira edição em 2023.

Lola mantém, assim, a ideia e a força do começo do festival, quando pretendia criar espaço para africanos discutirem o continente em seu próprio solo. Ao longo dos anos, vozes dissonantes se apresentaram, falaram, discutiram. Aké se tornou um espaço de criação de redes e compartilhamento de experiências. A curadoria aqui se faz também como o espaço de saber no intuito de construção desses diálogos. E Lola Shoneyin criou espaço onde o diálogo é desejado e bem-vindo, onde o acolhimento acontece desde a preocupação com a explicação sobre o visto nigeriano em sua página da internet. Com Lola, vemos outra curadoria, a dos festivais, que acredita na diversidade e multiplicidade também de formas de arte – cineastas, artistas visuais e músicos têm participado de forma constante do festival – e apesar do espaço ampliado, ele também é focado nas redes e na ampliação da comunicação dentro do continente, além de compreender as questões inerentes a essa África geográfica e expandida – eventualmente, autores diaspóricos também são chamados a participar.

O evento participa também de redes de festivais literários pelo mundo e mantém fellowships com eles, ampliando a sua inserção em outros espaços literários, e o interesse pelo espaço africano que outros espaços podem vir a ter. As fellowships também contribuem para a construção de um sistema literário internacional, com a inserção de autores e editoras africanos.

Quando Aké começa a se fortalecer, Lola cria a iniciativa Book the Buzz Foundation, que tem o objetivo de promover a leitura na Nigéria, se tornando, assim, uma parte de um sistema maior. Book the Buzz promove outros eventos durante o ano, sobretudo com crianças em idade escolar, com o intuito de ampliar a população leitora do país. Cria bibliotecas e espaços de leitura, tendo como intuito, também, o arquivo. A curadoria exemplificada aqui reforça a necessidade da memória e da leitura – em suas diversas acepções – como formas necessárias de compreensão do mundo. A aranha tece sua teia com o acolhimento e fortalecimento de novos autores e editores, a criação de conversas, a discussão de tabus e diferenças culturais em espaços africanos. Lola, como Koyo Kouoh, apesar de nascer na Nigéria, teve sua educação básica no Reino Unido, retornando para seu país após a prisão de seu pai pela junta militar no poder. A visão de um retornado aqui é importante pela percepção do que deseja e quer construir. E como pretende fazê-lo.

Figura 2: Página inicial do website de Aké Festival

O terceiro exemplo que coloco é o do coletivo Le 18, no Marrocos. Misto de galeria e espaço de criação coletivo, o espaço Le 18 foi fundado em 2013, por Laila Hida, fotógrafa local. A proposta do espaço é ser uma residência artística e espaço de cursos, biblioteca, um espaço de trocas. A partir de seu segundo ano, a ideia do coletivo e da participação voluntária se impõe, ampliando a organização para um grupo de seis pessoas. Os múltiplos interesses tornam a programação do local variada, indo de cursos de fotografia a performances, de sessões de cinema a residências.

Em 2022, fazem uma “Documenta paralela”, indo a Kassel para promover a discussão com artistas e coletivos por fora das mostras oficiais, um espaço de acolhimento, conversa e construção de redes. O espaço funciona, ampliando para fora de Marrakech práticas de conversas e exposição que já aconteciam dentro da galeria.

Laila decide ampliar o grupo também por entender que o coletivo estaria mais próximo de alcançar o que pretendia com a galeria, de criação de redes e acolhimento de outras formas de se fazer arte, dentro de um espaço em que há censura estatal e em que a influência europeia é perceptível no dia a dia. O trabalho de Laila como fotógrafa também busca o caminho do coletivo, partindo de diferentes visões de espaços e cidades, e trabalhando na criação e seleção de imagens em suas exposições – seu trabalho se aproxima de uma curadoria mais tradicional.

O coletivo tem, entre seus participantes, Soumeya Ait Ahmed e Nadir Bouhmouch, que criaram o ciclo Awal – palavra no idioma amazigh, povo minorizado do Marrocos – e que tive a oportunidade de entrevistar quando vieram para a inauguração da 35ª Bienal de São Paulo, em 2023. Dentro do ciclo Awal, iniciado em 2020, há um fortalecimento da história e poesia oral do povo amazigh, minorizado desde a colonização, ficando à margem dos processos decisórios do país. O povo amazigh tradicionalmente é ligado a territórios nas montanhas e a um modo de vida nômade. Com a colonização, foram forçados a se urbanizarem, muitas vezes ficando as mulheres como mantenedoras das tradições e histórias orais nos espaços urbanos. Com o projeto Awal, o objetivo é a retomada, recuperação e retrabalho da história e literatura oral do povo amazigh, bem como de outros povos minorizados, convidando para o centro da galeria artistas e autores que trabalham com essas expressões.

Nadir e Soumeya trouxeram à Bienal de São Paulo em 2023 um trabalho que tem inspiração nesse começo de ciclo Awal. A inquietude deles é, sobretudo, a possibilidade de registrar e manter viva uma série de manifestações culturais que se tornam marginalizadas e expulsas do corpo da cidade. Assim, trazem para o pavilhão da Bienal uma instalação composta de dois espaços separados. Em um, atrás de uma cortina de tela preta em forma circular, com dois bancos dentro, uma tela de televisão passa um filme que acompanha os agricultores no plantio e manejo de maçãs no monte Atlas. As músicas de trabalho são legendadas em inglês e português, enquanto vemos todo o processo de plantio, colheita e beneficiamento dos frutos. O espaço ao lado consiste em bancos dispostos de forma circular com tapetes e almofadas em tons de bege. Em mesas intercaladas com os bancos, pequenos livretos, parecidos com cordéis, com as poesias amazigh. Na parede, trechos de textos criados pelos dois artistas, que falam sobre monocultura e apagamento cultural.

Figura 3: Detalhes da instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.
Figura 4: Detalhes da instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.

Com o trabalho, a ideia de Awal permanece. Uma recuperação e manutenção de um passado que também é presente dos dois artistas, que são amazigh, os primeiros da família a cursarem ensino superior. As músicas de trabalho, imperativo cultural do grupo, se reduzem ao se reduzir o número de culturas existentes no espaço do monte Atlas. Se não há variedade de plantação, não há variedade de trabalhos ou de músicas. O fim de uma cultura é o fim de todo um ecossistema cultural ao seu redor. Quando vemos o vídeo, a monotonia da maçã como única cultura se torna real. Os minutos passam e o mesmo som e as mesmas imagens se sucedem. O frio, a neve, o degelo, as maçãs, o rio, o caminho se sucedem como que sem fim. A música segue sempre a mesma. No lado de fora, no espaço, um convite a sentar, ler e descansar. Ao diálogo com outros que passam, para que se torne uma verdadeira “Assays”, a praça central da cidade no idioma amazigh, local de trocas e possibilidades.

Figura 5, 6 e 7: Detalhes da Instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.

Na abertura, foi feita uma ativação com os artistas do espaço, que infelizmente não puderam estar na segunda ativação, pois voltaram ao seu país com as notícias do terremoto no Atlas. Na ativação, os artistas reforçam a necessidade do diálogo e nos convidaram a falar dessa oralidade tão desprezada pelo Ocidente, diálogo esse que podemos perceber até no formato de cordel escolhido por eles para apresentar os textos orais de sua região, decidido após passarem uma temporada no Brasil em 2022, interessados também por uma imigração forçada amazigh para o norte/nordeste do país, realizada pelos portugueses. O trabalho deles na Le 18, no entanto, como falaram na entrevista, talvez tenha chegado a um fim. Estão buscando novos espaços e novas possibilidades de realizar residências e formações, privilegiando pessoas que, como eles, são da primeira geração que chega ao ensino superior, pessoas de espaços minorizados em sua região.

Três diferentes curadorias, três diferentes propostas e formas de encarar a curadoria ampliada. Mas os três exemplos trazem em comum uma possibilidade de acolhimento e uma vontade de ampliação e criação de redes. Como a Aranha-mãe de Mohamed Mbougar Sarr, fazem o caminho de buscar os que pertencem a esse espaço de criação e unir a um propósito em comum. Siga D, o nome da personagem da Aranha-mãe, é uma mulher que se perde e se encontra diversas vezes, sem conseguir voltar ao continente africano. Nisso os exemplos diferem da personagem. Se permanecem sendo o elo e usando a memória como parte da construção da criação, não tiveram a necessidade de se isolar do local de produção de suas memórias para isso. Voltam e permanecem em solo africano, produzindo novas memórias e combatendo a monocultura.

Assim, a curadoria, que começa com o objetivo de guarda, de cuidado com um acervo, passa a ser um trabalho de seleção e contação de histórias e termina tendo um sentido ampliado, de trabalho com artes. O cuidado, que era com um acervo, passa a ser também a criação desse acervo, a criação de redes que permitam o cuidado e a ampliação do acervo e da história do fazer artístico. Como uma Aranha-mãe, o curador ocupa esse espaço de acolhimento e de aterrorizar, o medo da seleção e o medo da memória estão presentes nele. E os três exemplos aqui demonstram facetas dessa nova forma de lidar com esse espaço. O curador, em sua práxis diária em espaços não estatais de cultura, cria condições para a discussão maior dentro da sociedade a respeito de questões ligadas ao universo artístico e ao mundo literário.

* Antonia Costa de Thuin é doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Atualmente faz pós-doutorado na UFABC, ligado ao projeto “Do coração das guerras a poéticas da plasticidade: criação e engajamento no pensamento artístico em contextos africanos dos anos 1980 a nossos dias”, 2022/05923-9, com o projeto “A produção artística e a curadoria em espaços não ocidentais, formas de lidar – CCA Lagos, RAW, Le 18, Inema Arts Center”, 2023/08981-2, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Referências bibliográficas
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LE 18 [site da galeria]. Disponível em https://www.le18marrakech.com/. Visualizado em 20/11/2023.

MICHEL, Nicolas. Prix Goncourt 2021: Mohamed Mbougar Sarr, la littérature et la vie, Jeune Afrique 2021. Disponível em https://www.jeuneafrique.com/1233697/culture/prix-goncourt-2021-mohamed-mbougar-sarr-la-litterature-et-la-vie/.

RAW [site da instituição]. Disponível em http://www.rawmaterialcompany.org/. Visualizado em 21/11/2023.

SARR, Mohamed Mbougar. La plus Sécrète Mémoire des Hommes. Paris: Philippe Rey, 2021.
Notas
[1] Raw Material Company was born out of the necessity to create a space for the sharing of knowledge. Its core motivation was to establish a space for alternative education and learning. A place that provides access to contemporary artistic theory, and in return generates discourse, ideas and practices with a primary emphasis on Africa and African related matters, all the while including a broader range of origins and intellectual schools.
Dossiê
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CURADORIA DE ARTE EM MUSEUS: UMA HISTÓRIA DE REPRESENTAÇÃO E LEGITIMIDADE

A relevância e a legitimidade da curadoria estão vinculadas ao papel dos museus e das galerias como plataformas culturais que constroem narrativas por meio da seleção, apresentação e interpretação de obras de arte. É o cânone da história da arte que avalia a relevância e a distinção das obras com base em sua qualidade estética, sua influência histórica ou cultural, ou seu impacto duradouro sobre a sociedade. No entanto, ainda que obedeça ao cânone, a curadoria de exposições também reflete mudanças sociais, culturais e políticas exercendo um papel de autoridade sobre o que deve ou não ser exposto em meio a disputas no campo das artes.

Este artigo propõe-se a analisar o papel do curador em contextos históricos específicos e o resultado da correlação de forças que sustenta o status quo no mundo das artes. As narrativas modernas operadas pelo Museu do Louvre em Paris no século XVIII e o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) no século XX são observados como exemplo. Em contraste, é visto como, a partir da década de 1970, os curadores de exposições temporárias desafiaram as estruturas ocultas de legitimação do mundo das artes, buscando expandir os formatos expositivos para incluir novas possibilidades e questões propostas por novas formas de arte.

No século XXI, alguns curadores de exposições temporárias têm respondido às vanguardas artísticas conceituais e às questões sociais de seu tempo trazendo artistas de países do sul global, negros, indígenas e mulheres, que disputam narrativas estéticas e representações sociais. No entanto, esses esforços não têm alcançado a legitimidade canônica necessária e os artistas em questão muitas vezes permanecem à margem das grandes exposições de museus. Assumindo muitas vezes o papel da crítica, torna-se fundamental que os curadores continuem a desafiar as normas e a ampliar as fronteiras da arte, garantindo que as exposições sejam representativas e inclusivas a uma variedade de perspectivas e experiências.

Arte, patrimônio e narrativas civilizatórias em Salões, Gabinetes e Museus

O entendimento contemporâneo do conceito de curadoria está relacionado ao cuidado de artefatos da cultura material e tem suas bases nas experiências do mecenato renascentista entre séculos XIV e XVII, quando a Igreja, a nobreza e a aristocracia se mantinham como importantes patrocinadores das artes. Objetos considerados “artísticos” desempenhavam um papel crucial na expressão da fé e na educação religiosa, meios de expressão do gosto pessoal e educação refinada do seu proprietário que reforçavam sua elevada posição nas relações sociais; no caso da nobreza, competindo com outras cortes (Magalhães e Costa, 2021). No contexto francês, a distinção social era identificada por meio de hábitos de “etiqueta” e o privilégio do acesso à arte exercia a função simbólica de prestígio de classe (Bourdieu, 1996). Como observa Norbert Elias (2001), os gestos produzidos por meio do campo das artes teriam mais significado do que os indivíduos eles mesmos.

Figura 1: Quatro horas no encerramento do Salão da exposição anual de pintura na Grande Galeria do Louvre. Pintura de François Auguste Biard (1798-1882), 1847.

Ao lado dos Salões, outra prática de coleção, organização e exibição fundamental na história das exposições acontece entre os séculos XV e XVII nos “gabinetes de curiosidades”, onde se mantinham itens exóticos, principalmente aqueles estranhamente “curiosos”, trazidos em expedições exploratórias e guerras de “descobrimento” no Novo Mundo. Nestes espaços, os visitantes endossavam uma cultura aristocrática, e o conhecimento das “curiosidades” e “maravilhas” servia para a identificação de homens bem sucedidos e cultos; isto porque, “no caso específico dos gabinetes, as instruções ao público davam conta da importância social de admirar objetos ‘realmente’ curiosos, maravilhosos e, portanto, raros” (Amorim & Gonçalves, 2012, p. 226).

Figura 2: Gabinete de curiosidades do Museum Wormianum (1655). Fonte: Richards, Sabrina (2012). The World in a Cabinet, 1600s, The Scientist. Disponível em https://www.the-scientist.com/foundations/the-world-in-a-cabinet-1600s-41184.

No avançar dos ideais iluministas, os gabinetes configuravam-se como espaços de reunião de pessoas eruditas interessadas em abstrair o valor de uso dos objetos em sua função original a favor da ciência, da economia ou da sua própria cultura.

Enquanto apresentavam os itens de seus gabinetes a seu grupo de amigos visitantes, os colecionadores exerciam o papel que exercem ainda hoje: pesquisador, curador a educador (Cintrão, 2010, p. 20). Como cientistas em laboratórios, experimentavam critérios de seleção e catalogação baseados em diferenças e semelhanças entre os seres (indivíduos) e a natureza (macrocosmo)[1]. A raridade, associada à perspectiva infinita da coleção (universalizante), oferecia motivos pelo qual determinados itens deveriam ser preservados e mantidos.

Os gabinetes, assim como os Salões Reais refletiam mais do que erudição, refinamento cultural e posição social na nobreza e da aristocracia. Acima de tudo eram guardiões da ideologia destes grupos privilegiados. Como ambiente de produção de conhecimento, na busca pelo domínio da maior extensão possível do que estava ao seu redor, das maravilhas terrenas às impressões artísticas, o gabinete expressava a cultura e poder dos colecionadores que “se tornavam os guardiões da memória, aqueles que estavam em condições especiais e favoráveis para que o entendimento do processo da criação fosse entendido e, consequentemente, dominado” (Possas, 2005, p. 156).

Se nos gabinetes preocupava-se mais com a produção de conhecimento sobre os itens, nos Salões Reais foram buscadas medidas de segurança, preservação e conservação para controlar o acesso  de um público cada vez mais interessado nas obras-primas dos maiores mestres da arte europeia, riquezas de preço infinito, desconhecidas ou indiferentes à curiosidade dos estrangeiros pela impossibilidade de ver (Alain Roy, 1977) quando restritas aos palácios da monarquia. Técnicas de conservação, organização e exibição foram desenvolvidas por mestre e artistas da Academia que assumiram a função de décorateur dos Salões. As obras recebiam molduras douradas, eram fixadas nas paredes do chão ao teto a uma distância muito próxima entre si, ainda sem a pretensão de chamar a atenção do espectador para características particulares de cada uma delas. Preocupavam-se em padronizar a prática de instalar as obras da melhor maneira de modo que garantisse sua segurança, no entanto, buscavam apresentar desenvolvimentos históricos e similaridades temáticas (Obrist, 2014).

A ideologia que orientava o que deveria ou não ser exposto não deixava de estar em disputa, e a emergência de uma elite burguesa e de novos artistas colocava os Salões como importante meio de conquistar e valorizar a obra de um “gênio criativo” da época (Hauser, 1951). Nos Salões eram abertos espaços a discussões sobre o desenvolvimento de correntes artísticas e a formação do gosto que influenciariam a opinião pública e o mercado das artes. Era evidenciada uma mudança de rota no entendimento do campo artístico com influência do pensamento iluminista representado na crítica de arte. Tal qual a prática crítica empreendida nos gabinetes, nos Salões também é desenvolvida a capacidade e habilidade de examinar, avaliar minuciosamente e finalmente julgar e categorizar. Portanto, a forma como as obras eram dispostas nos Salões indicava a emergência de um sistema de fundamentos construídos para legitimar o que é ou não relevante.

Ainda que a Academia e os ditames da História da Arte mantivessem a reputação dos Salões, as informações sobre as obras de um colecionador deveriam circular pelo mercado das artes e os especialistas, artistas, jornalistas e críticos de arte deveriam preocupar-se com a aprovação pública. Denis Diderot (1713-1784), graduado mestre em Artes pela Universidade de Paris, frequentava os Salões e produzia cartas e ensaios criticando os métodos da Academia em uma escrita que narrava a experiência dos Salões in situ, muito próxima ao espectador que descobre, observa, descreve, analisa e julga as obras de arte expostas (Petitdemange, 2021).

Quando os Salões do Louvre se abrem ao público como Museu Central das Artes da República, após a Revolução Francesa em 1793, o caráter “circulante” das informações sobre as obras de arte operado pelos críticos passa a operar no sentido da educação do público. Buscou-se democratizar o acesso à arte cumprindo o “interesse público” de preservar o patrimônio e orientar a compreensão histórica da sociedade a partir do referencial nacionalista francês. A história narrada ao longo de suas galerias reunia as coleções de obras de Arte antes restritas aos Salões a artefatos retirados de territórios dominados em guerras napoleônicas. As obras e artefatos em exposição serviam de estandarte da soberania francesa, fornecendo os modelos normativos de cidadania, gosto, educação, progresso, etc. (Bennett, 2013; Preziosi & Lamoureux, 1997).

Além da preservação do patrimônio contra a deterioração causada pelo tempo, manuseio do público e o risco de violência ou roubo sob responsabilidade do conservateur de musée, as obras e artefatos eram submetidos a processos técnicos e científicos no que se denominava “cura” (Bruno, 2008). Isso envolvia a seleção, coleta, registro, análise, organização, armazenamento e divulgação desses objetos com o propósito de identificá-los, interpretá-los e prepará-los para exposição. Tais processos envolvem, ainda nos dias atuais, procedimentos presentes na curadoria.

A diversidade de objetos, a necessidade de ordenamento e a exibição levaria a especialização do Museu em disciplinas, inclusive artísticas, e a construção de narrativa histórica a partir da exposição. A organização do acervo do Louvre, no final do século XVIII, buscava responder a categorias universalizantes, separando os elementos a partir do que os diferencia e os reunindo a partir de semelhanças, conforme prescrito nos gabinetes de curiosidades. Os artefatos eram apresentados conforme alinhamento à uma perspectiva de história singular e linear (tempo darwiniano), apresentando as obras em sua totalidade, em caráter enciclopédico e permanente, o que lhe atribuiria o status de “patrimônio” e reforçaria a função pedagógica em direção ao progresso.

Ao analisar o modo de funcionamento dos Museus Nacionais no século XVIII, os historiadores de arte Preziosi & Lamoureux (1997) identificam o desejo de compartilhar certas características comuns e propriedades únicas  quanto à forma ou princípios de formação no que se refere ao indivíduo, nação, grupo étnico, classe, gênero ou raça tal qual as ideologias do nacionalismo romântico. Os autores compreendem que as exposições em museus podem ser vistas como histórias fictícias, artefatos para a criação da narrativa moderna. Os artefatos e obras de arte, utilizados pela história da arte e museologia como objetos de estudo, delineiam aspectos significativos do personagem, nível de civilização, ou grau de conhecimento social, cognitivo ou ético eles representam as histórias de pessoas, mentalidades e povos a partir de evidências convincentes das relações causais do passado com o presente, certos tipos de relacionamentos desejáveis entre nós e outros, encenam narrativas para demonstrar avanço ou declínio de um indivíduo ou nação.

Os Museus de História não são repositórios passivos de artefatos; em vez disso, moldam ativamente a forma como entendemos e interpretamos o mundo. São, portanto, instrumentos sociais – dispositivos orientados à fabricação e à manutenção da modernidade por meio da produção de conhecimento: tecnologias epistêmicas, tal como qualquer outra ferramenta ou aparelho utilizados para compreender e navegar no mundo (Preziosi, 2012). São constituídos, no entanto, por uma rede de elementos em um jogo de poderes e de saberes que, por vezes, incorporam sentidos variados, construindo gêneros de uma ficção imaginativa moderna.

Ainda que os museus tenham empreendido esforços de acessibilidade ao conhecimento erudito produzido e exibido em suas exposições, no século XX as suas narrativas ainda obedeceriam a estereótipos e hierarquias linguísticas. Enquanto tecnologia epistêmica, são operadas por determinados agentes que lutam pela manutenção de suas narrativas e de seus privilégios.

A pesquisa sobre os públicos de museus europeus empreendida por Bourdieu & Darbel (2007) nos anos 1960 indicam que diferentes públicos orientam sua experiência nos museus a partir linguagem simbólica (relativa) traduzida a partir de “um arsenal de palavras que permitem dar nome às diferenças e constituí-las ao nomeá-las (…) Com certeza, é possível amar de paixão, à primeira vista; mas, isso só acontece depois de ter lido muito, sobretudo, em relação à pintura moderna” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 82).

Os discursos expositivos tradicionalmente reproduzem os códigos mantidos pelos conservadores, pessoas provenientes de camadas privilegiadas da sociedade, “escolhidos por cooptação, segundo o jogo das relações pessoais e das tradições familiares (…) Eram, quase sempre, amadores de arte afortunados aos quais o museu não garantia carreira, nem retribuição (ou, então, somente no plano simbólico)” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 145). Não atuavam como administradores ou como pesquisadores, tampouco assumiam o papel de pedagogos, voltando sua prática ao “público que lhe parece digno de sua vocação”. Como uma  ‘sociedade’ (no sentido restrito do termo), reuniam personalidades em relações de interconhecimento bastante estreitas e intensas. “Eles satisfaziam-se com um status global, ambíguo e, por conseguinte, prestigioso, que lhes permitia aparecer, diante dos criadores, como guardiães da Arte e depositários da Tradição; diante dos universitários, como homens de ação e técnicos da Arte; e diante dos marchands, como estetas desinteressados” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 143). Ou seja, a fruição do público não dependeria da decodificação da obra de arte em si, enquanto autônoma e regido pela estética, mas da posse de determinado capital econômico, cultural, social ou simbólico, como Bourdieu (1996; 2011) viria a afirmar posteriormente.

Arte Moderna e contemporânea em perspectiva

Se deixarmos o cenário europeu e migrarmos nosso olhar para o norte-americano, onde foram criados os primeiros museus voltados à arte moderna no início do século XX, observamos que a reprodução epistêmica de determinados códigos de organização do conhecimento se mantém sob domínio de determinadas classes sociais privilegiadas, embora o próprio conteúdo estético se altere.

O Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA foi fundado em 1929 a partir da iniciativa de três colecionadoras de arte moderna: Abby Aldrich Rockefeller, Lillie P. Bliss e Mary Quinn Sullivan. Seus nomes já as identificam como pertencentes à elite aristocrática norte-americana. O modelo de acervo e exposição construído para o MoMA foi dirigido pelo historiador e crítico de arte Alfred Barr (1902- 1981), que ocupou o cargo até 1943. Formado em Harvard, Barr foi aluno de Paul Sachs, ex-diretor do Fogg Art Museum e considerado o fundador da museologia moderna nos Estados Unidos, primeiro doador de obras ao MoMA. Barr esteve na Europa entre 1922 e 1937, quando conheceu as técnicas expositivas menos acumulativas e, com a preocupação de seguir uma narrativa realizadas por Alexander Dorner[2] no Landesmuseum em Hanover, frequentou a escola de arte e design Bauhaus, onde conheceu a teoria do campo de visão de Herbert Bayer (1946)[3], assim como apreendeu as técnicas de vocabulário visual de Willem Sandberg no Museu Stedelijk, na Holanda (1937-1945). Suas referências pessoais no campo das artes indicam a influencia da Academia em seus conhecimentos adquiridos e a possibilidade de viagens ao exterior, o que o destacam em posições de privilégio e oferecem reconhecimento às suas decisões enquanto diretor artístico do MoMA. Entre elas, Barr implementou o modelo arquitetônico do “Cubo Branco”, que, em contraste com a arquitetura e decoração de interiores de museus históricos, oferecia a ilusão de neutralidade e de autonomia das obras (O’Doherty, 2002). A incorporação e integração de elementos arquitetônicos e requisitos estruturais consideravam as habilidades de percepção dos visitantes e os elementos de comunicação e exibição seriam organizados em uma sequência estrategicamente planejada. Além disso, fez uso de suportes de comunicação visual com textos de parede, catálogos expositivos e anúncios das exposições. Este método ainda é utilizado, nos dias atuais, por museus de arte moderna e contemporânea em diversos países.

Figura 3: Cubismo e Arte Abstrata [MoMA Exh. #46, March 2–April 19, 1936]. Fonte: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/2748?installation_image_index=20.
Segundo Thomas McEvilley (1999), a desejada fruição da arte pretendida pela neutralidade do espaço expositivo do “cubo branco” no MoMA ainda ressaltava o status do museu como local elitista e sagrado para o mundo das artes, que espera uma sensibilidade específica do público, uma atitude do espectador, diferenciado em termos de classe e percurso cultural. A resistência das estruturas de poder inerentes ao cubo branco centra-se em condição “[…] de beleza imorredoura, da obra-prima. Mas na verdade é uma sensibilidade específica, com limitações e condições especiais que é tão glorificada. Ao sugerir a eterna ratificação de uma certa sensibilidade, o cubo branco sugere a eterna ratificação das reivindicações da casta ou grupo que compartilha de sua sensibilidade.” (McEvilley, 1999, p. 9). O museu elevava o objeto artístico a uma obra-prima glorificada interferindo, portanto, nas relações de poder entre a arte e o público.

Além da organização do espaço expositivo em “cubo branco”, Alfred Barr organizava as exposições a partir de correntes artísticas como o “impressionismo”, “cubismo”, entre outras, em ordem lógica e cronológica: “diagrama-torpedo”, que começava em 1875 e seguiria em movimento contínuo através do tempo. O diagrama orientava a compra de obras de artistas vivos e as vendas de obras com mais de cinquenta anos (política atualmente extinta). Apontava assim para um ideal de arte moderna como aquela produzida nos últimos 50 anos, enquanto influenciava também no valor das obras, não deixando de lado os critérios historiográficos aplicados à Arte, a quem respondia a seu grupo social de privilégios. Enquanto as vanguardas artísticas buscavam provocar o cânone da história da arte, Barr implementava uma metodologia de apresentação das correntes artísticas que trouxeram para a história da arte e da curadoria o sentimento modernista de ordem, hierarquia e clareza – visão linear eurocêntrica, em um momento histórico de ascensão do totalitarismo na Europa, que ameaçava a própria noção do modernismo emergente que ele mapeava. Mais uma vez, assim como na França napoleônica, os museus (agora dedicados à Arte Moderna de vanguarda) representavam uma narrativa hegemônica específica.

A partir da década de 1960, após a Segunda Guerra Mundial, embora os museus europeus estivessem debilitados e impossibilitados de receber acervos internacionais de arte moderna, a arte contemporânea ou arte pós-moderna despontava com artistas da vanguarda que traziam outras formas, conteúdos e funções. A desmaterialização que marca a Arte Conceitual provocava o afastamento dos objetos físicos em direção a processos, conceitos e experiências como formas válidas de expressão artística (Lippard, 1973)[1] – pop art, arte conceitual, arte minimalista, arte performativa, arte de rua – que não cabiam em narrativas lineares e progressões históricas previstas nos espaços arquitetonicamente programados de museus (Danto, 2006). Na busca por explorar sensações e compartilhar a crítica ao tempo presente, mais do que criar obras, os diretores artísticos passaram a trabalhar muito próximos desmistificando os museus e as galerias como espaços de legitimação das Artes.

Segundo Seth Siegelaub (1969), enquanto projeto político empreendido na época, os curadores, através de formatos expositivos expandidos e receptivos a novas possibilidades e questões propostas por novas formas de arte, seriam potencialmente capazes de desmistificar as estruturas ocultas  do mundo das artes: o papel dos museus, do colecionador e da produção da obra de arte. Em entrevista a Paul O’Nell, Siegelaub (2006) afirmou que os museus e galerias da década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos não atendiam, necessariamente, os desejos e ideias impostas pela própria natureza dos trabalhos artísticos em termos físicos e espirituais. Não se tratava apenas de espaço em termos físicos, mas quanto a ideia de um tipo de espaço sagrado, “semi-religioso” que as pessoas conhecem e visitam regularmente, “espaço de arte”. Afinal, o caráter mitológico do ambiente dedicado à “inspiração” construído como museu na antiguidade transformara-se em espaço canônico exclusivo para ter a existência artística conceitual assegurada. Ainda que alterasse o conteúdo, o público e mesmo as estruturas arquitetônicas ao longo da história, os museus e galerias mantinham essa aura sagrada.

Em um período em que os diretores artísticos de exposições temporárias assumiam uma assinatura criativa – e mesmo artística, autoral – dos eventos artísticos, e seu protagonismo era alvo de críticas pela interferência no efeito das obras de arte sobre o público, não apenas a função dos museus estava em disputa, mas dos artistas, do curador, dos colecionares e críticos.

Desde os Museus Modernos e Bienais de Arte Contemporânea, os sistemas de arte pretendem oferecer uma maior aproximação com os interesses dos artistas e do público oferecendo espaços para a manifestação de novos conceitos e novas narrativas de representatividade com menos códigos elitistas de linguagem.

A crítica de arte também se reposiciona no contexto da arte contemporânea. O filósofo e crítico Luiz Camillo Osório acredita que a crítica deva adaptar-se a novos espaços de produção e circulação para a arte, estar mais próxima do fazer artístico e do tempo da experiência artística nas exposições. Como “testemunha, que deve estar atenta aos fatos para poder trazê-los a público”, deve se deslocar do papel tradicional de um juiz do gosto sobre o objeto artístico. A escrita de um texto crítico não seria “sobre a obra”, a fim de “representar um sentido da obra analisada” –, mas uma “escrita com as obras” – que envolveria uma parcela de criatividade, “para [a crítica] se assumir de modo mais exploratório, participando do processo aberto de criação de sentido” (Osório, 2005, p.15-16).

Segundo o historiador e crítico de arte Terry Smith (2012), menos óbvios no discurso até o momento, mas igualmente importantes para o futuro, são as questões sobre como repensar a plateia, envolver os espectadores como co-curadores e o desafio de curar a própria contemporaneidade – em suas formas presentes, passadas e futuras (Smith, 2012, p.19).

À guisa de conclusão

Até que ponto o sujeito moderno, chamado a participar das experiências conceituais das exposições contemporâneas, como das transformações de design expositivo de Museus Modernos ou mesmo nas orientações pedagógicas de Museus Históricos esteve representado nas estruturas que legitimam as obras de arte?

A produção de narrativas artísticas e históricas existem, mas a direção da sua exposição e, principalmente, seu alcance, são determinadas pelo acúmulo de capital simbólico de grupos sociais em posições de poder dentro e fora das suas instituições. A história ocidental vem sendo contada a partir de narrativas expositivas em museus e exposições que orientaram um ideal de modernidade e procuraram manter determinada forma de compreender a pluralidade de vozes produzidas em diversas partes do mundo. No contemporâneo, no entanto, a direção destas narrativas em museus e exposições são pressionadas pela vanguarda artística, pela crítica e por ativistas sociais que reivindicam uma nova estética, novas categorias críticas e uma nova ética, colocando as remanescentes simbólicas do “sistema das artes” em confronto com o momento histórico.

Na contemporaneidade, a curadoria de exposições de arte tem se mostrado como um campo progressista de entendimento dessas novas experiências de mundo como visto principalmente em eventos “globais”, como as Documentas de Kassel, que abrem caminho a vozes dissidentes, saberes dos povos originários e afrodiaspóricos, além de levarem em conta questões de gênero e sexualidade. Uma disrupção que exige criatividade inovadora, fabulação, novas formas de interpretação do mundo, imaginação e valorização do sonho. A curadoria, assim como a crítica, tem se mostrado muito mais um trabalho coletivo do que uma ação individual.

A figura do curador está associada à intelectualidade e seus múltiplos campos de saberes, isso o capacita a nomear, classificar, validar e também criticar dentro de um arranjo curatorial. Se a curadoria ocupou o espaço da crítica produzindo conhecimento dentro do campo das artes, podemos destacar que, de fato, no contemporâneo algumas exposições são explicitamente críticas e podem aparecer como questionamentos aos produtos artísticos, a criatividade, a fatos históricos e até a injustiças sociais.

Os entendimentos tradicionais acerca da curadoria, de forma geral, podem compreender o espaço expositivo enquanto desenho arquitetônico que prestigia, eleva e mitifica determinadas representações. No entanto, ao assumir o cenário de disputa contemporâneo, os museus, ainda enquanto tecnologia epistêmica, podem se tornar laboratórios de produção de conhecimentos novos, novas narrativas e novas representações cênicas.

* Cristine Carvalho é doutoranda no Programa de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ com bolsa CAPES e foi pesquisadora visitante da Universidade de Miami com bolsa CAPES PRInt em 2022. Atua em projetos de pesquisa voltados à economia criativa e inovação social.
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Notas
[1] Categorizados em Artificialia – objetos criados ou modificados por humanos, Naturalia – criaturas e objetos naturais (com um interesse particular para monstros), Exoticas – plantas e animais exóticos; e Scientifica – instrumentos científicos.

[2] Dorner promove mudanças no pensamento expositivo através da reorganização de quadros, de um modo menos acumulativo e com a preocupação de seguir uma narrativa. Cria, também, material impresso com dados das obras e das exposições e, ainda, etiquetas fixadas ao lado das produções artísticas com informações pertinentes à autoria, por exemplo (Cintrão, 2010).

[3] Bayer (1946) desenvolve a Teoria do Campo de Visão por onde se compreende a exposição como design/desenhos no espaço.
Dossiê
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ERA UMA VEZ UM CRÍTICO QUE FILMAVA: QUENTIN TARANTINO E A ARTE DE ANALISAR FILME

Empenhado em finalizar sua carreira como realizador com a marca de dez longas-metragens, numa carreira iniciada em 1992, com Cães de Aluguel, Quentin Jerome Tarantino abriu 2024 compondo o elenco de um projeto chamado The Movie Critic. Brad Pitt foi o astro escalado para assumir um papel central na trama sobre um crítico cinematográfico, de verve mordaz, que, na Califórnia da década de 1970, assinava uma coluna de resenhas numa revista pornô. “Ele fez carreira escrevendo sobre produções mainstream”, anunciou o cineasta, em depoimento colhido pelo site Indiewire.com, referindo-se ao fato de que o objeto da análise de seu protagonista são produções de grande orçamento e de larga penetração em circuito. “Ele é cínico como o inferno e seus textos são uma combinação do que o jovem Howard Stern (radialista americano famoso por polêmicas) e Travis Bickle (papel de Robert De Niro em Taxi Driver, de 1976) fariam se criticassem longas-metragens”. A declaração ilustra uma perspectiva desmistificadora sobre a arte de criticar obras fílmicas na mirada do diretor laureado com a Palma de Ouro de 1994, dada a Pulp Fiction, um thriller que mudou a forma de se escrever roteiros, desafiando linearidades e usando falas e fatos da cultura de massa em seus diálogos. Para o realizador que fez o sistema métrico dos sanduíches do McDonald’s ser assunto de uma conversa entre matadores de aluguel (o famoso Royale With Cheese, dito por John Travolta, no supracitado longa de 94), a persona do crítico carrega um simbolismo pop, e sua produção intelectual é capaz de transgredir padrões do que é obra-prima e do que é descartável.

Figura 1: Cena do filme Pulp Fiction
(Fonte: Pulp Fiction, 1994).

Após uma série de ataques sofridos pela imprensa europeia durante a exibição de Jackie Brown na competição pelo Urso de Ouro na Berlinale de 1998, Tarantino destilou ódio contra resenhas que reduziam seu cinema à violência e demonstrou repúdio em relação a críticas que se recusam a “conversar” com a proposta estética trazida por um filme:

“No dia em que um cineasta chamar um crítico pelo nome, seja de que forma for, por uma crítica negativa que escreveram contra seu trabalho, esse será o dia mais feliz da merda da vida desse resenhista. E eu nunca darei a um crítico que me tenha atacado o dia mais feliz da sua maldita vida”, disse o diretor ao site Deadline em entrevista de 21 de novembro de 2022, concedida ao repórter Mike Fleming Jr. Nessa conversa, ao admitir que “rouba” referências de tudo o que viu e vê, o realizador de Os Oito Odiados (2015) explica que, ao revistar clássicos e cults, em suas paráfrases e homenagens, ele se comporta como um crítico. Um crítico que filma. Faz crítica na ótica da dimensão genealógica que a crítica tem, como apontou José Carlos Avellar (1936-2016) em seu O Chão da Palavra, editado pela Rocco, em 2007:

A crítica que influi e contagia uma geração – e as gerações seguintes – é feita não só por profissionais, que escreviam com regularidade em jornais e revistas, como também pelo espectador. De certo modo, desenvolvemos nas Américas uma espécie de crítica de espectador, aquele que conseguia ver mais filmes e organizava qualquer forma de registro, arquivo ou fichário. Ler a crítica era parte do ritual cinematográfico. Os anos 60 foram o momento em que os filmes eram reflexão e reflexo, debate direto e vivo da realidade e vontade de nos definirmos diante dela. Alguns se bastavam nisso. Outros partiram dessa nutrição trazida pelos filmes para filmar e construir universos. (p.106)

Avellar costumava citar uma frase de Glauber Rocha (1939-1981), diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964): “Diretor é quem dirige filmes; cineasta é quem cria seu universo particular ao dirigir”. Depurava essa sentença do cineasta baiano dizendo: “Crítico é quem desbrava esses universos dos cineastas, rejeitando o lugar comum da epifania demiúrgica da criação, para construir uma semiótica daquele universo particular em busca de traços identitários (ou seja, marcas de autoralidade, registros de uma expressão poética própria, que gere um paradigma) (2007; p.205).

No exercício cotidiano de ver e rever e filmes que adquiriu ainda na infância, Tarantino tenta cartografar esses potenciais caminhos paradigmáticos de que fala Avellar a cada novo longa ou curta a que assiste, mesmo quando se trata de uma produção ignorada pela fortuna crítica. Entende que certos filmes são ignorados ou caem no esquecimento por uma desconexão com os anseios de uma época. “Filmes não podem ser reduzidos à carreira que fazem no fim de semana em que são lançados, pois, no estado de coisas da arte, esse é o período que menos importa em sua vida útil na memória dos cinéfilos”, disse Tarantino, na entrevista ao Deadline, enfatizando o fato de que “alguns longas são soterrados por não se encaixarem em códigos prévios de quem escreve sobre eles”.

Parte do que seriam esses “códigos”, por vezes determinados por sensos impressionistas e, mais tarde, depurados a partir de estudos capazes de dissecar planos fílmicos como linguagem e como narrativa, começaram a ser estabelecidos a partir de 1895, data encarada como marco zero da invenção do cinema como manifestação cultural (e tecnológica). Os códigos para se analisar filmes nascem em artigos publicados em jornais (em especial, no New York Times), em dezembro daquele mesmo ano, em reação à primeira projeção pública do cinematógrafo dos irmãos Louis e Auguste Lumière, na França. Mas eram textos descritivos, que almejavam refletir sobre a sinestesia gerada por filmes como A Saída dos Operários da Fábrica Lumière ou A Chegada de um Trem à Estação, pela fricção gerada por imagens em movimento vistas, pela primeira vez, em preto e branco numa tela. Nos EUA, só em 1908 o escritor Frank E. Woods (1860-1939) viria a se tornar o primeiro crítico a ter um espaço fixo para falar exclusivamente sobre a arte cinematográfica na imprensa americana, publicando no New York Dramatic Mirror, antes de se lançar como roteirista. Woods faz descrições detalhadas dos elementos cênicos e dos acontecimentos retratados nos primeiros filmes feitos em solo americano e inglês, mas consegue, em paralelo, abrir discussões sobre os dilemas morais de seus personagens. É um trabalho pioneiro, assim como o do editor italiano Ricciotto Canudo (1877-1923), fundador da revista Montjoie!, em 1913 (um dos periódicos que mais e melhor promoveram a pintura cubista). Em artigos de 1911, ele foi uma voz pioneira, na intelectualidade europeia dos anos 1910, a enxergar dimensão estética na produção cinematográfica, defendendo que filmes deveriam ser analisados não sob critérios de apreciação de gosto, mas, sim, a partir de uma teoria capaz de dissecar os meandros simbólicos da física por trás de corpos em deslocamento na tela.

O interesse de Tarantino, em seu The Movie Critic, não se detém sobre a cinemática, ou seja, o efeito que um corpo em movimento gera numa tela. Um de seus filmes de maior sucesso, Era Uma Vez… Em Hollywood (ganhador do Globo de Ouro de Melhor Filme de Comédia em 2020), aborda os bastidores da feitura de um longa e sua recepção pelo público mais interessado numa cultura de recepção de bases históricas. Para o diretor de Django Livre (2012):

“Eu gosto da História porque ela parece um filme. Um filme no qual eu posso entender comportamentos a partir de um determinado período e seu ethos. O trabalho de um narrador não é apenas escrever sobre si próprio, mas olhar para o resto da Humanidade e explorar a forma de falar das outras pessoas em seu tempo, de modo a entender as frases que utilizam. Minha cabeça é uma esponja. Ouço o que toda a gente diz, observo pequenos comportamentos idiossincráticos. Quando as pessoas me contam uma piada e eu me lembro dela, essa anedota passa a fazer parte do meu modo de olhar. Quando alguma pessoa me conta um causo interessante da sua vida e eu consigo me lembrar dele, encontro ali matéria de dramaturgia” (declaração do diretor dada ao site The Talk, em 2022).

Em declarações concedidas à imprensa em sua passagem pelo Festival de Cannes de 2023, Tarantino explicou que não concebeu The Movie Critic para fazer um balanço histórico da atividade jornalística ou acadêmica que se debruça sobre filmes em busca de um senso estético. Seu objetivo é dissecar um tempo no qual a opinião de um profissional de mídia poderia redirecionar as atenções do público leitor para um filme.

Não por acaso, o fetiche desse personagem idealizado como eixo dramatúrgico em The Movie Critic é um longa-metragem (real), outrora encarado como um título classe B na produção cinematográfica americana dos anos 1970, e hoje cultuado: A Outra Face da Violência (Rolling Thunder, 1977), de John Flynn (1932-2007). “É a melhor combinação já feita entre estudo de personagem e filme de ação”, escreve Tarantino nas páginas de seu livro Especulações Cinematográficas (2023, p.259), explicando que descobriu esse thriller em 1977, aos 14 anos, numa sessão dupla com Operação Dragão (1973), com Bruce Lee (1940-1973), que prestigiou na companhia de sua mãe.

Figura 2: Capa do livro Especulações Cinematográficas (2023)
(Fonte: Editora ‎Intrínseca, 1ª edição, 11 dezembro 2023).

Na trama escrita por Paul Schrader (roteirista de Taxi Driver e diretor de A Marca da Pantera) e por Heywood Gould (romancista e repórter), o Major Charles Rane (William Devane) regressa da guerra do Vietnã com status de herói, sendo coroado com uma série de condecorações em sua cidade natal. Preso por sete anos numa prisão militar vietcongue em Hanói, ele retorna alquebrado do front. Luta para estabelecer uma nova relação com sua mulher e com seu filho até que sua casa é invadida por criminosos que matam os dois e dilaceram sua mão. Sedento de revanche, Rane substitui seu punho decepado por um gancho e recorre à ajuda de um colega de farda, Johnny Vohden (Tommy Lee Jones), para se vingar dos bandidos, num banho de sangue.

Rodado em San Antonio, no Texas, ao custo de US$ 2 milhões, O Outro Lado da Violência fez carreira em circuito no mesmo ano de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg, e avançou até 1978, quando a Guerra do Vietnã passou a ser abordada, nas telas, como tragédia social, de forma nada romantizada, por dramas de sucesso como Amargo Regresso, de Hal Ashby (1929-1988), e O Franco-Atirador, de Michael Cimino (1939-2016). Perto desses dois longas, ganhadores de Oscar, o filme de Flynn era apenas um exercício comercial de exploração dos traumas dos combatentes estadunidenses, estilizado a partir da figura de um anti-herói com mão de ganho para atrair uma plateia das chamadas grindhouses.

O termo – traduzido no jargão industrial do audiovisual brasileiro como “cinema poeira” – se refere a salas de exibição das periferias das metrópoles onde era possível assistir a dois longas por sessão, com um único ingresso, mais barato do que a média do circuito. A saga do major Rane estava destinada a se notabilizar na plateia dessas salas e, posteriormente, em exibições na TV em horários destinados a filmes-pipoca de apelo violento, como é o caso brasileiro da sessão Domingo Maior, da TV Globo. Porém, algo mudou no lugar histórico desse filme no imaginário cinéfilo.

Essa mudança foi provocada por Tarantino, num devircrítico, não apenas nos artigos do livro Especulações Cinematográficas, mas em palestras que passou a ministrar. A mais importante delas, e mais significativa para o legado de Flynn, aconteceu durante o Festival de Cannes de 2023, quando foi convocado para ministrar uma palestra na mostra paralela Quinzena de Cineastas, antecedida por uma exibição (escolhida e comentada por ele) de A Outra Face da Violência.

Figura 3: Quentin Tarantino como convidado da palestra Quinzena de Cineastas
(Fonte: Divulgação/ Julian Ungano).

Quando concorreu à Palma de Ouro com À Prova de Morte (2007), Tarantino foi visitar a Quinzena a fim de acompanhar uma projeção, na Croisette, da cópia restaurada do outrora maldito Parceiros na Noite (1980), de William Friedkin. Ria de se acabar na poltrona, ao ver a versão estereotipada que o longa (com fama de maldito) trazia da cartilha dos longas de psicopata. Cerca de 17 anos depois, ele voltou lá para ministrar informalmente uma espécie de aula sobre a história do audiovisual. No balneário da Côte d’Azur, pessoas se estapeavam por um ingresso para ouvi-lo sobre sua própria cinefilia – uma história bonita.

Por um soldo de US$ 200 semanais, Tarantino passou o ano de 1985 batendo ponto na Video Archives, uma locadora de Manhattan Beach, Califórnia, onde fez amigos, reais e imaginários, devorando o acervo local, sobretudo o faroeste Rio Bravo (no Brasil o título é Onde Começa o Inferno), de 1959. É do VHS que vem a depuração de sua cultura cinematográfica, reforçada com o DVD, que chega ao convívio dos cinéfilos num momento em que ele já é um diretor de respeito, com o díptico Kill Bill – Vol. 1 (2003) e Vol. 2 (2004) em seu currículo. Mas o universo das fitas rebobinadas do Video Home System foi essencial para ele. A partir do início da década de 1980 quando a tecnologia informática permitiu o advento dos retângulos analógicos do VHS, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919. O VHS alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade – do Presente e do Passado, sobretudo – é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsters não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em Os Intocáveis, um filme de 1987. Ou seja… verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, ou seja, uma meta-vida, onde imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si.

Figura 4: Cena do filme Kill Bill Vol. II
(Fonte: Kill Bill Vol II, 2004)

É isso que ele foi explicar à Quinzena e é disso que se trata seu The Movie Critic, um filme que chega às telas num momento de mudança nas práticas de recepção do cinema, quando o VHS é um suporte defunto, suplantado (na atualidade) pelas plataformas de streaming. Entre o fim dos anos 1990 e meados de 2010, a tecnologia do DVD e do Blu-Ray ainda oferecia a cultura informativa dos extras. Hoje, o saber está diluído, e, na maioria das vezes, sem foco curatorial numa Babel de podcasts e blogs, como aponta Rodrigo Carreiro no artigo História De Uma Crise: A Crítica De Cinema Na Esfera Pública Virtual:

De certo modo, a crítica de cinema contemporânea parece estar migrando de um território (a imprensa clássica) para outro (o ciberespaço), onde reúne condições mais favoráveis para voltar a exercer o papel original que lhe cabia: incentivar um debate estético amplo e horizontal, sem opiniões impostas de cima para baixo, o que por si só já constitui uma atitude de resistência cultural.

Mudaram os suportes, sim, o que leva os Tarantinos do presente a se formarem de outra forma. Porém, a crítica de hoje – inclusive aquela que cineastas como o diretor de Pulp Fiction fazem parafraseando narrativas de colegas mitificados – segue reverente ao Evangelho da Autoria. É um credo que já soma sete décadas, iniciado a partir de 1951, em textos da revista Cahiers du Cinéma, em especial as pesquisas do crítico André Bazin (1918-1958), nas quais nasce o termo “autoralidade” em relação a filmografias que são marcadas por recorrências de engramas estéticos, ou seja, pela reiteração de um tema, ou de uma mesma abordagem formal, ou de um mesmo coletivo de atrizes e atores, ou da mesma investigação filosófica. Exemplo: 1) o recorrente e reiterado investimento da belga Agnès Varda (1928-2019) em devassar a semiótica do feminino na mídia e expor lugares-comuns sexistas; 2) a aposta de Spike Lee em tramas que exponham as vísceras racistas da sociedade americana; 3) a conexão de Luchino Visconti (1906-1976) com pilares da literatura europeia de diferentes fases (Lampedusa, Stendhal, Camus) para extrair da palavra literária o conceito estético de Belo.

Desde o início dos anos 1990, carregando consigo o saber que trouxe de suas fitas VHS, Tarantino se fez autor com sua forma particular de incluir conversas sobre práticas de consumo da cultura de massa em situações inusitadas de tensão, como a sequência de Cães de Aluguel discutem sobre sexualidade num videoclipe de Madonna ou como o clímax de Kill Bil: Vol. 2, no qual o chefão do crime (David Carradine) fala sobre os óculos do Superman. Mais do que isso, Tarantino levou a violência nas telas a um extremo onde ela se fratura como signo. Como diz Jean Baudrillard (1929-2007), “nenhum valor cultural desaparece pela escassez, mas, sim, pelo excesso”.

Na excessiva reação do ator Rick Dalton aos hippies assassinos que invadem sua casa em Era Uma Vez… Em Hollywood – usando um lança-chamas para dizimá-los -, Tarantino espatifa a brutalidade e nos expõe o âmago ridículo de sua prática a cada filme. The Movie Critic deve ter violência também. Sempre tem. Mas o que mais se espera dele é a reinvenção de filmes que seremos capazes de rever… e amar.

Figura 5: Diretor de cinema e roteirista, Quentin Tarantino
(Disponível em: https://mubi.com/pt/cast/quentin-tarantino).
* Rodrigo Fonseca é formado em Produção Editorial pela ECO/UFRJ, com especialização em Literatura Infantojuvenil pela UCAM, crítico de cinema, dramaturgo e roteirista, tendo assinado reportagens no Globo, no Estado de S. Paulo e no Jornal do Brasil, onde ainda é colaborador. Autor do romance “Como Era Triste a Chinesa de Godard” e da biografia de Renato Aragão (“Do Ceará Para O Coração Do Brasil”). Escreveu peças teatrais como Chico Xavier em Pessoa e François Truffaut: O Cinema É Minha Vida. É correspondente do site luso C7nema e repórter e crítico do Correio da Manhã.
Referências bibliográficas
AVELLAR, José Carlos. O Chão da Palavra. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal. São Paulo, Papirus, 1992.

CARREIRO, Rodrigo. História de uma crise: a crítica de cinema na esfera pública virtual.In: Revista Contemporânea, Salvador, BA, v. 7, n. 2, 2009. Disponível em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/viewArticle/362. Acesso em 20.09.2015.

TARANTINO, Quentin. Especulações Cinematográficas. Rio, Intrínseca, 2023.
Dossiê
Tempo de leitura estimado: 21 minutos

DOS BRASIS: A CURADORIA COMO CRÍTICA E A CRÍTICA DA CURADORIA

Curadoria pode ser
– entre outras coisas –
uma vastidão de intenções
Ana Lira

Neste artigo buscarei traçar algumas considerações sobre a relação entre crítica e curadoria a partir da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, em cartaz no Sesc Belenzinho (São Paulo) de 3 de agosto de 2023 a 31 de março de 2024. A exposição tem curadoria geral de Igor Simões, que, além de curador, é professor de História da Arte na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), juntamente com Marcelo Campos, curador-chefe do Museu de Arte do Rio e professor no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Lorraine Mendes, curadora da Pinacoteca de São Paulo. O projeto teve origem em 2018, com a pesquisa desenvolvida por Simões e Hélio Menezes, antropólogo e curador de exposições como Histórias Afro-Atlânticas (MASP, 2018) e da 35ª Bienal de Arte de São Paulo (2023).

É certo que muitas exposições de artes (áudio)visuais hoje têm colocado o foco sobre as temáticas etnicorracial, de gênero e sexualidade – aquilo que poderia ser chamado de “minorias”, o que no sentido usual pode soar um tanto pejorativo e acuado, mas que, no sentido que lhe emprestaram Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997; 2002), é justamente o que, por não ser a maioria, por diferir do Mesmo, das configurações que aprisionam as possibilidades de ser e de existir, têm como imanência a possibilidade de criação de outros modos de vida. No entanto, diante da própria concepção histórica de arte e do cenário social, político e econômico em que vivemos, todos os empreendimentos são necessários para que se promova a arte produzida por artistas negros, negras, indígenas e LGBTQIAPN+ etc. e se dê visibilidade a ela.

Um dos aspectos que mais chamam a atenção em exposições como Dos Brasis é a miríade de suportes que compõem os trabalhos apresentados – entre tapeçarias, pinturas, fotografias, vídeos, instalações e esculturas. A diversidade de suportes dá a ver a riqueza da arte contemporânea produzida no Brasil e como o próprio fazer artístico se relaciona com a produção de conhecimento, dialogando, respondendo ou tensionando a história instituída, branca e hegemônica, que buscou recalcar o racismo histórico e cotidiano no país. Cria-se também uma contrafação à ideia de nacionalidade que se constituiu como uma “‘etnicidade fictícia’ e homogênea que no Brasil firmou-se através do recalque das profundas tensões, separações e violências étnicas e sociais” (Cunha, Bacelar, Alves, 2004).

Daí também a força – que remete à perspectiva curatorial – do título evocando Brasis no plural. Nesse sentido, não se trata de uma crítica em relação à curadoria apenas, como dois âmbitos – crítica e curadoria – que entrassem em oposição, mas da própria curadoria como crítica e como modo de produzir conhecimento e pensamento. Ou, ainda, para usar os termos propostos por Michel Foucault (1990) ao dissertar sobre o que é a crítica, trata-se de perceber um movimento que dá a ver as relações entre saber e poder na manutenção do significado de arte.

O texto de Foucault é evocado aqui na medida em que ele propõe uma genealogia da emergência do que ele vem a chamar de “atitude crítica”. Essa atitude, que se configura como um modo de se colocar diante do mundo e das questões políticas e sociais em uma determinada sociedade, Foucault a localiza na formação do que viriam a ser os Estados-nação, como tensionamento ao fato de ser governado de uma determinada forma e por um determinado grupo social hegemônico. Isso teria, segundo ele, desencadeado o que denominou como uma atitude crítica em resposta a uma atitude coercitiva do poder, e, mais ainda, ao vínculo entre saber e poder: “Justamente no momento em que se põe o problema: como ser governado, vai-se aceitar ser governado desse modo?” (Foucault, 1990). Na ocasião, ele trata desse tema da crítica em uma conferência proferida na Sociedade Francesa de Filosofia em 1978, posteriormente publicada em 1990. O que interessa aqui destacar é justamente o modo como ele articula a emergência de uma atitude crítica à governabilidade e ao exercício de um poder de Estado.

Ler a atitude crítica por essa chave permite ressaltar o modo como a composição de muitas das obras presentes na exposição Dos Brasis, como veremos adiante mais detalhadamente, está imbuída desse gesto crítico, visto que tratam justamente do desacordo em relação a um modo de governabilidade baseado no racismo e na formulação de uma nacionalidade cuja hegemonia política é branca, ainda que fundada sob um ideal de mestiçagem cultural que foi usado como fomento para uma política de embranquecimento social do país. Dessa forma, a produção artística que se apresenta na exposição reencena, na contemporaneidade, algo do que provocou essa atitude crítica: a que se destina o exercício do poder sobre determinados setores da sociedade? Como lidar com o vínculo entre poder e saber quando estes incidem de forma violenta sobre corpos e existências consideradas à margem da humanidade ou, na perspectiva mais recente, à margem de uma cidadania plena? Como lidar com o vínculo entre poder e saber quando estes foram usados para justificar atrocidades como o tráfico escravista, a política de branqueamento e a consequente situação de indigência cognitiva produzida pela precarização das condições de vida da população negra brasileira?

Isso fica evidente, por exemplo, na segmentação da exposição em diferentes núcleos, intitulados, a saber: Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá, como também no aporte teórico-crítico que fundamenta a linha curatorial, amparado em autores e autoras tais como Beatriz Nascimento, Emanoel Araújo, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez e Luiz Gama.

Luiz Gama foi um proeminente advogado baiano que na segunda metade do século XIX liderou o movimento abolicionista, assumindo a defesa jurídica de pessoas escravizadas que se achavam em situação ilegal e em processos de alforria. Foi crítico do regime monarquista e do racismo (na época, preconceito de cor) no Brasil. Também atuou como escritor, tendo publicado em vida o livro Primeiras trovas burlescas, em 1859. É conhecida a sua frase, proferida durante um júri, de que o escravo que mata o seu senhor, seja em que circunstância for, o faz sempre em legítima defesa, o que certamente inspirou o título de um dos núcleos da exposição Dos Brasis.

Alberto Guerreiro Ramos, por sua vez, foi um sociólogo, baiano de Santo Amaro da Purificação, pioneiro na formulação do racismo enquanto uma patologia do branco brasileiro, em livro publicado em 1957 (Sovik, 2009, p. 52). Guerreiro Ramos criticou os estudos do que designou como “negro-tema”, ou seja, estudos realizados por pesquisadores brancos que tomam a população negra como objeto, percebendo sua “contribuição” à nação (mestiça) na forma de música e culinária, mas que ignoravam o “negro-vida”, isto é, não como um objeto estanque e com uma referência ancorada no passado, mas como agente em constante movimento, fundamental para a construção do país. Foi, nesse sentido, um dos pioneiros na formulação do que hoje se constitui como os estudos da branquitude no Brasil.

Beatriz Nascimento foi uma historiadora sergipana, radicada no Rio de Janeiro, que, nos anos 1970 e 1980, propôs desenvolver uma história dos quilombos no Brasil, ou mesmo uma história do Brasil a partir dos quilombos, principalmente através da importância da cultura bantu na formação quilombola e na constituição do próprio país. Em seu projeto, Beatriz Nascimento buscava conceituar a noção de quilombo para além da historiografia, como explicita ao falar sobre as dificuldades e pretensões de sua pesquisa, dentre as quais a demanda por especialistas de outras áreas das ciências humanas, como geografia, antropologia e linguística, bem como de áreas tecnológicas (Nascimento, 2021, p. 148). Dentre as contribuições de Beatriz Nascimento, destaca-se a conceituação do racismo como ideologia e a defesa da formulação de uma história da população negra e do Brasil protagonizada pela população negra, que, segundo ela, ainda estaria por ser feita (Nascimento, 2021, p. 45).

Lélia Gonzalez, historiadora e filósofa mineira radicada no Rio de Janeiro, também teve importante atuação política e intelectual nos anos 1970 e 1980. Dentre suas inúmeras contribuições, destaca-se o modo como articulava a discussão sobre racismo no Brasil às questões de gênero e ao sexismo, percebendo tanto no movimento feminista uma lacuna em relação ao debate racial quanto no movimento negro uma necessidade de se articular ao debate feminista e de desigualdade de gênero. Lélia formulou a ideia da categoria político-cultural de amefricanidade, destacando a relevância do aspecto cultural enquanto força que perpassaria o debate racial e de gênero em diferentes países da América Latina, ou, como ela gostava de chamar, a Améfrica Ladina (Gonzalez, 2020, p. 127). Esta noção cunhada por Lélia Gonzalez inspirou o título do núcleo Amefricanas na exposição Dos Brasis.

Por fim, Emanoel Araújo, artista plástico e curador, baiano de Santo Amaro da Purificação, foi diretor do Museu de Arte da Bahia nos anos 1980 e diretor curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo, até o ano de sua morte, em 2022. Teve uma carreira proeminente no Brasil e no mundo. Em seus trabalhos escultóricos, tinha como referência fundamental a cultura negra, em especial o candomblé. Uma de suas esculturas mais conhecidas chama-se justamente Baobá, nome de uma árvore sagrada de origem africana, que esteve exposta no núcleo de mesmo nome da exposição Dos Brasis, ocupando o lugar central no salão das esculturas (Figura 12).

Nota-se, desse modo, que não só as obras, mas sobretudo o ato curatorial esteve bastante atento às temáticas apontadas acima, ao propor núcleos que respondem e dialogam de formas distintas com questões também distintas entre si acerca do debate racial e da cultura negra nos Brasis, em detrimento de divisões que priorizassem cronologia, estilo ou linguagem. É importante destacar ainda que, além da pesquisa curatorial, houve uma residência artística on-line intitulada “Pemba: Residência Preta”, com mais de 450 inscrições e 150 residentes selecionados, reunindo artistas, educadores, curadores e críticos.[1]

Em um texto sobre a 35ª Bienal de São Paulo, que ocorreu em grande parte paralela à Dos Brasis, Bernardo Carvalho (2023) afirma que, de um modo geral, as obras expostas na Bienal que buscam reparação histórica recusam contradições, salvo o vídeo Uma mulher pensando, de Aida Harika Yanomami.

Muitas na Bienal são obras da vontade (e não da contradição), são asserções, expressão da cultura (e não da dúvida). Não há ruído nem problema entre o que querem dizer e o que dizem; estão do lado do que é justo, do que é consenso entre quem as busca como confirmação. E nesse sentido são moralmente inquestionáveis. (Carvalho, 2023)

Segundo ele, essa “adequação moral” das obras apresentadas estaria de acordo com o “pacto garantido pela cultura” de quem vai à Bienal. Sendo assim, a curadoria da Bienal estaria se afastando de um dos pilares da tradição moderna da ruptura, das elipses e da valorização das contradições, estabelecendo mesmo uma guerra contra as descontinuidades entre arte e vida, o que representa, para ele, uma reciclagem da lógica da moral e dos costumes, ainda que constituam propostas de outra moral e de outros – e novos, mas talvez nem tão novos assim – valores. Esse distanciamento do valor da contradição na arte, e a adequação a um pacto moral, acaba ferindo, para o autor, o princípio crítico de que uma obra não pode ser, ao mesmo tempo, artística e inquestionável, ou seja, de que a função da arte é justamente pôr em dúvida as certezas, por mais idônea que seja a moral de que a obra está imbuída.

No entanto, o que Carvalho parece não levar em consideração é todo um “estado de coisas” em relação ao qual certas obras se constituem. É evidente que o questionamento de uma mulher yanomami sobre a cultura yanomami coloca em xeque a romantização que se faz do outro como ser uno e coerente em relação à sua própria cultura, como uma concepção estanque ideal e desprovida de movimento – problema este levantado por Gayatri Spivak em relação ao pensamento dos “filósofos da diferença” Foucault, Deleuze e Guattari em Pode o subalterno falar?

Essa postura de tomar o “outro” como um sujeito uno, ao passo que se critica a unidade da noção de sujeito erigida na modernidade ocidental, não deixa de guardar um ranço colonial segundo o qual os indígenas não teriam direito à dúvida quanto à sua própria identidade que aparece muitas vezes como boia de salvação para um modelo de sociedade em decadência – e que elege, nessa alteridade idealizada, novas certezas e paradigmas capazes de salvar a humanidade.[2]

Ainda assim, esse questionamento não diminui a força com a qual as obras que recusam expor e explorar as contradições, no que ele chama de uma “moral inquestionável”, interpelam o estado de coisas de um país profundamente conservador e excludente, e cuja realidade social e política ancora-se em princípios racistas, misóginos e fóbicos em relação às expressões dissidentes de gênero e sexualidade. Ao relacionar nacionalidade e cisgeneridade enquanto prática de gênero colonial, a artista e professora Dodi Leal chama a atenção para o modo como os “fluidos corporais são controlados pelo Estado, e o poder de decisão sobre o corpo também. Todas essas formulações do Estado que vão reger nossas corporalidades têm um caráter de definir quem é verdadeiramente da nação” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 15).

Se, na concepção de Carvalho, o público da Bienal de 2023 – e poderíamos igualmente estender à exposição Dos Brasis – é um público que aceita o pacto garantidor da moral apresentada pelas obras – e pela curadoria –, o que por si só já é uma assertiva questionável, isso não diminui a contundência da escolha curatorial – e da crítica empreendida através da curadoria.

Nesse sentido, é importante perceber o papel da curadoria, para além das obras tomadas “individualmente”, e sua maior ou menor adequação ao pacto garantidor da moral. Castiel Vitorino Brasileiro, uma das artistas presentes em Dos Brasis, ressalta, em diálogo com Dodi Leal, a necessidade de “ter mais pessoas negras, trans e indígenas fazendo curadoria, fazendo crítica” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 16). Nesse sentido, o que Dos Brasis apresenta, por exemplo, ao reunir obras de artistas negros e negras que vão do século XVIII ao século XXI, pode ser lido como uma reescrita de boa parte da história da arte no Brasil, uma história que precisa ser revista e refeita continuamente, como destacou Beatriz Nascimento. Uma história da arte que já se faz ao mesmo tempo no presente e no porvir.

O fato de se coadunar com a proeminência e a projeção que vozes e discursos dissidentes da hegemonia branca vêm ganhando nos últimos anos, a despeito de um recrudescimento avassalador do conservadorismo, não significa que a curadoria ou as obras apresentadas estejam isentas de contradições ou, mesmo que estejam, que isso se configure como um aspecto negativo. Assumir essa perspectiva significa reconhecer a importância de uma assertividade que possa abandonar o paradigma das contradições para que se constitua como força de uma história a ser (re)escrita, sobretudo quando se tem em vista o que precisa ser feito em termos de reparação e reconstrução. Retomando mais uma vez os dizeres de Castiel Brasileiro,

A contradição é um encontro de caminhos, e nesse encontro existe a decisão por qual caminho tomaremos, um dos caminhos pode ser a eliminação da contradição, mas também nessa encruzilhada, nesse encontro de caminhos é possível cultuar justamente esse momento onde tudo se desfaz. (Brasileiro; Leal, 2021, p. 11)

Quando pensamos no cenário cultural e político atuais, esse problema surge diante do imenso desafio ético, estético, social e civilizacional que se coloca contemporaneamente.

A primazia que a curadoria ou a figura do/a curador/a assumem a partir dos anos 1970, o que no Brasil se firma a partir dos anos 1980, em detrimento da figura do crítico, conforme aponta Francisco Alambert (2014), parece sugerir uma oposição, estampada no termo que intitula a chamada para o texto de Alambert publicado no portal Sesc SP: Curadoria versus crítica de arte. Segundo ele, o curador, em vez de se limitar ao espaço de “conservador” de obras de arte e de seu acervo, passa a atuar e a ser compreendido como um autor e produtor na medida em que cria um discurso ou um sentido em uma exposição, num processo de mediação entre o mercado da arte e o público.

Essa criação de conexões entre a arte e o público através de um discurso ou de uma curadoria que produz uma exposição com um nexo de significação e valor – ou seja, com um sentido e uma direção captáveis pelo público – parece bastante evidente em Dos Brasis, sobretudo na segmentação em núcleos nos quais diferentes aspectos das relações raciais são trabalhados: Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá. Aspectos como a crítica à percepção da população e da cultura negras como objetos de estudo estanques e solidificados no tempo, o tensionamento com a perspectiva de uma convivência racial harmônica através da asserção e exposição do conflito racial, as organizações político-sociais de combate ao racismo, a valorização de elementos das culturas e religiões negras e afro-diaspóricas como valores civilizacionais e modos de organização social.

No entanto, o que se busca ressaltar aqui é que, a despeito de uma crítica enquanto percepção externa à curadoria, essa atitude curatorial já é por si só uma atitude crítica frente a um discurso – ou a discursos – hegemônicos provenientes da historiografia oficial, ou mesmo de uma história da arte. No caso, em Dos Brasis, a crítica a essa historiografia e à percepção de Brasil se dá já no título da exposição, que opta por tratar um país no modo plural, fazendo emergir no espaço expositivo os embates, as contradições, os tensionamentos.

Nesse sentido, a curadoria e as obras não parecem se adequar a uma nova conformação moral, mas justamente evocam uma inquietação com um estado de coisas, inclusive do próprio modo de funcionamento do mercado da arte. Na exposição, tais provocações se iniciam ainda na parte externa do Sesc Belenzinho, na instalação Sinalização Profética, de Augusto Leal, com placas nas quais se leem os avisos “Curador simpático a 200m”, “Patrocinador imparcial a 600m”, “Produção cultural sensível a 300m” (Figuras 1, 2 e 3). Ou, ainda, no trabalho de Paula Duarte intitulado Nem o sabão é neutro (Figuras 4 e 5), que evoca, para quem leu Stuart Hall (2016) em “O espetáculo do ‘outro’”, os usos e abusos do racismo nas propagandas de sabão que trabalham subjacentemente com o binômio limpo/sujo – e que não se limitam ao sabão Pears e ao período colonial inglês analisado por Hall, conforme demonstram casos recentes na publicidade (Santahelena, 2017; BBC Brasil, 2016).

Castiel Brasileiro, por sua vez, relaciona a questão da limpeza e da sujeira à construção do sujeito moderno como sujeito límpido, segundo a formulação proposta por Denise Ferreira da Silva em A dívida impagável, destacando, ainda, que no contexto brasileiro a busca da limpidez e da higienização se relaciona também com “a eliminação de um passado contraditório” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 23), diante do qual a neutralidade é no mínimo constrangedora, para usar o termo cunhado no sabão por Paula Duarte.

Figuras 1, 2 e 3: Augusto Leal, Sinalização Profética, 2023. Fonte: Arquivo pessoal.

Figuras 4 e 5: Nem o sabão é neutro. Paula Duarte, 2023. Fonte: Arquivo pessoal.

Os livros de Manuel Querino, as esculturas de Mestre Valentim (Figura 6) e o Autorretrato de Wilson Tibério (Figura 7) compõem, junto às intervenções sobre os desenhos de Johann Moritz Rugendas e Jean-Baptiste Debret realizadas por Marcus Deusdedit (Figuras 8 e 9), uma historiografia de arte brasileira a partir da perspectiva negro-africana e diaspórica. Mas não se trata apenas de revisionismo histórico, trata-se da rearticulação de elementos de significação para uma historiografia e para uma configuração de Brasil que demonstram a passagem do negro-tema destacado por Guerreiro Ramos para o “Branco tema” e para o “Negro vida”, como o ferro que remete aos assentamentos de pomba-gira sobre veludo vermelho, que ocupam o espaço inicial da exposição, na obra de Jade Maria Zimbra, Xica Maria, Teu Amor para mim não é Fantasia (Figura 10), e emprestam outro sentido às joias de crioula ao lado das quais a obra se encontra (Figura 11).

Figura 6: Mestre Valentim, Conjunto de três continentes: África, América e Ásia, século XVIII.
Figura 7: Autorretrato de Wilson Tibério, 1941. Fonte: Arquivo pessoal

Figuras 8 e 9: Marcus Deusdedit: Intervenção sobre Moinho de Açúcar, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (2022), Intervenção sobre Mercado de Escravos, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (2022) e Intervenção sobre Retorno de um Proprietário, de Jean Baptiste Debret, 1816 (2022). Fonte: Arquivo Pessoal.
Figura 10: Jade Maria Zimbra, Xica Maria, Teu Amor para mim não é Fantasia, 2021.
Figura 11: Joias de crioula. Fonte: Arquivo pessoal.

Os elementos ligados ao candomblé e à umbanda, bem como o uso de línguas como o iorubá, contribuem também para a percepção de Brasis que coexistem e que tensionam, porque agenciam outras forças capazes de dar sentido e valor ao que seja uma política da verdade no jogo entre poder e saber e na busca por legitimação de sensibilidades que existem à margem da ordem vigente. Modos de vida, por exemplo, que se colocam Entre o obé e o livro (2023), segundo o título de uma instalação de Pandro Nobã, composta por gamelas pintadas em tinta acrílica e uma tela pintada a óleo.

Destaca-se, ainda, como o espaço expositivo contribui para o impacto da exposição e o próprio fazer curatorial, como fica evidente no salão de esculturas, onde se encontra uma réplica da estrutura de madeira feita por Mestre Didi para o Ilê Asipá, terreiro de culto a Egungun no qual ele era sacerdote, debaixo da qual figura o Baobá de Emanoel Araújo (Figura 12).

Figura 12: Espaço expositivo do Sesc Belenzinho na exposição Dos Brasis. Fonte: Arquivo pessoal.

A epígrafe deste artigo é de um texto-poema-comentário acerca do projeto Conversas Críticas sobre Curadoria promovido pelo Instituo Moreira Salles, em que a curadora e artista Ana Lira traz algumas questões e impasses acerca da curadoria, do mercado de arte e da missão cada vez mais desafiadora de descentralizar a circulação da produção artística do eixo Rio-São Paulo. Missão que requer ir a fundo em Brasis nem sempre tão visíveis às curadorias que se encontram nos circuitos hegemônicos de arte. O presente artigo buscou, portanto, contribuir para o debate em torno das relações férteis entre crítica e curadoria tomando como tema a curadoria da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, que se afirma como uma alternativa contundente e compartilhável com o público de crítica tanto à história instituída na hegemonia branca e nacional das artes brasileiras quanto ao racismo histórico e cotidiano no país.

* Felipe Wircker Machado, doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, é bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (PPRER-CEFET/RJ), onde leciona, e desenvolve pesquisa pós-doutoral também no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), através do projeto intitulado “Candomblé, Verger, Bastide e o confronto com o racismo no Brasil”.
Referências bibliográficas
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Audiovisual

Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro [exposição]. Pesquisa de Hélio Menezes e Igor Simões. Curadoria geral de Igor Simões. Curadoria adjunta de Lorraine Mendes e Marcelo Campos. Sesc Belenzinho (São Paulo), 2 de agosto de 2023 a 28 de janeiro de 2024.
Notas
[1] As aulas públicas que fizeram parte do programa da residência estão disponíveis no canal do Sesc Brasil no YouTube: https://www.youtube.com/@SescBrasil.

[2] Castiel Vitorino Brasileiro fala sobre o tema da salvação em diálogo com Dodi Tavares Borges Leal, cf. Brasileiro; Leal, 2021.
Artigo
Tempo de leitura estimado: 31 minutos

NEGRITUDE POÉTICA: MODERNISMO E MASCULINIDADE

“To be alone so long. to see you move
in this varicose country
like silhouettes passing in apprenticeship
from slavery to pimp
to hustler to murder to negro
to nigguhdom to militant to revolutionary
to blackness to faggot with the same
shadings of disrespect covering your voice.”
Sonia Sanchez, “To All Brothers: From All Sisters”, 1984

“Reaja à Violência Racial, Beije sua Preta”[1]

Em 1991, o jornal do Movimento Negro Unificado, histórica organização negra fundada em 1974 em São Paulo, publica na capa foto de Carlos Moura em que vemos um jovem casal (os modelos Nethio e Lucia) no ato de se beijarem. A foto tem como legenda versos do poema “Bandeira”, de Reinaldo Santana, que à época assinava como Ori, e hoje assina como Lande Onawale[2]. O poema tem forma algo inusual e os versos selecionados para a capa ocupam posição singular na estrutura do poema.

Reaja à Violência Racial (II)*
Isso, me bata
Me bata…
Quebre o cacete em minhas costas
Agora… percebe?
Reconhece o meu gemido?
É. Nosso avô gemia assim
No seu tempo era um perigo
Um SUSPEITO negro
Como eu
Hoje não é diferente. Você já se perguntou por que eu sou caça e você caçador
Mas se a esperança demora a morrer, eu só quero crer que um dia você sabendo o que nos une, pode (quem sabe?) hesitar
Não bater com tanta força ou parar pra pensar…
Poderá se libertar das migalhas do opressor
E travar junto comigo a luta de vovô
*beije sua preta em praça pública

A gravura/cartum de Nethio Benguela deixa mais evidente qual o contexto do poema: um policial negro agride um homem negro, suspeito como “eu”, o “eu” do poema apela à consciência do agressor, ele próprio um negro como “eu”, e também como vovô, um “perigo”. Trata-se de reagir à violência racial, slogan muitas vezes repetido e pixado nas ruas de Salvador nos anos 1980. Na gravura, Xangô, de Oxe na mão, intercepta o agressor, o poeta pede que o policial se lembre de tudo o que nos une. E conclui: lute a “luta de vovô” e “beije sua preta em praça pública”. O amor, o afeto, o carinho, o desejo entre iguais, como antídoto para a violência policial. Um apelo que, como muito explícito no poema e no cartum, segue de homem para homem, um homem como “eu”, um homem como Ori, um homem como o policial, um homem, finalmente, como “vovô”.

Figura 1: Capa do número 19 do Jornal do MNU – maio/junho/julho de 1991

O contexto poético, ou significativo, exige ou demanda o posicionamento, ou melhor, encenação de um sujeito, dito ou representado, a “mulher”. Que aparece na fabulação, e esse é argumento implícito desenvolvido aqui, como efeito da necessidade estrutural de subjetivação de uma consciência masculina, que na economia do discurso está fixada como uma posição estrutural, eixo de articulação de uma posicionalidade ontológica, definida de modo categórico em uma estrutura de antagonismos. A figura da mulher, entretanto, aparece como contingencialmente referida a uma experiência histórica, antes definida subjetivamente por uma relação negativa com a própria matéria de sua constituição, e como a matéria através da qual a consciência de si masculina pode esboçar autonomia, ainda que sob as determinações da antinegritude que obliteram, por definição, essa possibilidade. Diante da masculinidade negra estrutural, “espinho no coração do mundo” antinegro, a mulher negra aparece no discurso do homem negro como uma subjetivação plenamente fenomenológica, calcada na experiência, ou “escrevivência” (Fanon, 2008; Evaristo, 2020)[3].

Figura 2: Contracapa do número 19 do Jornal do MNU – maio/junho/julho de 1991

É nesse sentido que acredito que o poema, e mesmo a gravura, servem de introdução adequada ou chave de leitura para discussão proposta abaixo como uma leitura crítica da imaginação da modernidade negra, tal como fabulada sob a forma da masculinidade, ou de uma determinada sensibilidade, forma de subjetivação ou estrutura de sentimento masculina e negra. Interessa particularmente a invenção do sujeito negro moderno e as aporias da subjetividade em articulação conflituosa com as práticas de representação literárias antinegras, e mais que isso, é claro, como o poema deixa evidente, com as próprias formas de textualização de si, confrontadas pela materialidade histórica da antinegritude, determinante das formações sociais, das subjetividades e das formas expressivas ou estéticas.

A consciência de si do homem negro escorre em direção à mulher, como um “duplo vínculo”, double bind, de gênero e raça, como veremos a seguir (Bateson et al., 1956).

Medo e Desejo: Masculinidade e Negritude[4]

Importa considerar a relação entre sujeito e representação, e as necessárias mediações entre estruturas de subjetividade, constituídas no transcurso da experiência histórica, ou seja, em um vetor processual, e formas estéticas, materializadas sincronicamente como estruturas semióticas. O muitas vezes colocado problema da triangulação entre a objetividade das formas históricas, a volatilidade da constituição do sujeito e a objetivação estética como constituição de um si mesmo que de muitas formas e em muitas leituras, está sempre já alienado (Butler, 1997).

Lukács interroga essa determinação recíproca do “ser social” e de suas formas estéticas ao discutir, por exemplo, as oposições entre “narrar” e “descrever”’ como transcrições formais de condições sócio-históricas que definem o ser social em sua relação como a autorreprodução material da sociedade, que não dispensa recursos simbólicos, ou ideológicos. Com privilégio para a narração como forma expressiva de uma sociedade que reconhecia nas instâncias de sua autorrepresentação a historicidade, expressa como teleologia ética, desdobrada para efeitos do argumento estético, mas não apenas como práxis (Lukács, 2010).

Como Frederic Jameson comenta, o que parece ser característico do materialismo histórico é a negação da autonomia do “pensamento”, e a obra de Lukács e de outros autores marxistas busca dessa forma reconciliar formas de pensamento ou estruturas formais e a vida, ou a vida histórica do ser social (Jameson, 1985). O romance, na modernidade burguesa, busca como gênero cumprir essa reintegração, a rigor sempre interditada em nível ontológico, entre “espírito e matéria, entre vida e essência” (Jameson, 1985, p. 136). Uma vez que as amarras do idealismo são pegajosas, no esforço de desvencilhar-se delas, o crítico parece afundar cada vez mais em suas próprias determinações singulares. Elas próprias são também fundamentalmente alienadas. A alienação do trabalhador encontra dessa forma analogia com a alienação do autor. Ambos sujeitos assujeitados na própria alienação intrinsecamente constitutiva de uma generalidade: “No entanto é precisamente nessa terrível alienação que se encontra a força da posição do operário: seu primeiro movimento não é em direção a conhecimento do trabalho, mas rumo ao conhecimento de si como um objeto, em direção a consciência de si” (Jameson, 1985, p. 147).

No mundo antinegro, entretanto, as formas dessa alienação se revestem de atributos particulares. Como poderiam ser transcritas, nesse intervalo instável, definido por uma precariedade que não parece nada contingente, apesar de gratuita (Vargas, 2010)? Trata-se na verdade de situar o sujeito negro no âmbito da modernidade antinegra. Ora, “black subjectivity is a crossroads where vertigoes meet, the intersection of performative and structural violence” (Wilderson, 2011, p. 3). Wilderson define então primeiro o que chama de vertigem subjetiva, é a “vertigem do evento”, realizada como uma dimensão contingente, incidindo sobre a formação de si em um lapso ou transcurso temporal. A percepção de viver em um ambiente perpetuamente desequilibrado, fruto de uma relação estrutural, categórica e atemporal com a violência, uma relação que na perspectiva de Wilderson não possui analogia. A isso ele chama “vertigem objetiva”, “life constituted by disorientation rather than a life interrupted by disorientation” (idem, p. 3). Isto é, estrutural em oposição à violência performativa. A subjetividade negra é, nesse sentido, uma encruzilhada, uma interseção, entre a violência performativa (vertigem subjetiva) e a violência estrutural (vertigem objetiva).

Em seu Prólogo ao Homem invisível, Ralph Ellison esboça uma fenomenologia da masculinidade negra na “vertigem”, definida de modo relacional, como matéria determinante para um específico e insidioso esvaziamento ou invisibilização: “Quem se aproxima de mim vê apenas o que me cerca, a si mesmo, ou a inventos de sua própria imaginação – na verdade, tudo e qualquer coisa, menos eu” (Ellison, 1990, p. 7). Um “fantasma na cabeça dos outros” ou “criatura de pesadelo”, essa é a forma histórica, e estrutural, da identidade de um homem negro, invisível, diante da esmagadora objetividade de sua aparição, a um só tempo inapelavelmente material e fantasmática. A interdição de ser visto, reconhecido, como portador de uma coerência legível entre forma, imago[5], e sujeito é efeito dessa condição de relacionalidade esvaziada do homem negro. Ora, “não ter noção da própria forma é experimentar a morte” (idem, p. 10). O homem invisível em busca de si faz perguntas aos outros, a estes mesmos que não o enxergam e que quando o veem se defrontam apenas como a sombra distorcida de uma imaginação pervertida que todos parecem conhecer: “sou um homem invisível”. E sua própria forma é a forma “perdida” da morte social.

Com o poeta baiano Davi Nunes vemos que essa invisibilidade é muito material e faz equivaler a vida do homem negro a um mergulho “cosmogônico” na morte social.

Uma áurea cosmogônica sobre a minha cabeça
O vazio do crânio em formato de esqueleto
Uma pistola com o fogo autoritário de deus
As minhas mãos que se levantam inúteis
Uma voz de cão esbravejando ódio no gueto
O olhar do algoz ao meu agônico
Uma bala que se entranha como um pequeno sol em meu cérebro
O fim que tinge os pensamentos com o sangue da morte

Assumindo o ponto de vista de quem é alvejado por uma bala, “fogo autoritário de deus”, o poeta formaliza o momento final da experiência agônica da morte, como um “sol” que finalmente ilumina a conexão do sujeito com sua verdade final, sua práxis vertiginosa, definida por essa negação, renúncia mais profunda, de ser aceito e reconhecido. A mesma modalidade de morte em vida, de intimidade com a violência, o medo, a desorientação, a angústia, a falta de si e da própria imagem. Apenas na morte podemos encontrar reconhecimento, ser para si no momento, estrutural e performático, do confronto com nosso “algoz”. Creio que vemos aqui, uma vez mais, elementos de estruturação, objetivação textualizada, de determinada estrutura de sentimento articulada como a incidência definida da violência e da ruptura categórica essencial com a própria imagem.

Em “Marxismo e Literatura”, Raymond Williams (1979) define estrutura de sentimento no âmbito da discussão sobre a definição do sentido para a “época”, como algo transitando entre o “residual” e o “emergente”. A percepção dessas variações se dá na relação com a articulação explícita de formas sociais como “produtos acabados”, desiderato da objetivação da experiência histórica. Ora, “o que estamos definindo é uma qualidade particular da experiência social” que deve ser tomada desde o início como “experiência social” que sinaliza modificações entre o residual e o emergente, e tais modificações podem ser definidas justamente como modificações nas “estruturas de sentimento” (Williams, 1979, p. 134). Dessa forma, estas podem ser descritas como formas estéticas na arte e na literatura, tomadas como indícios de uma nova estrutura. Mas ora, se essa nova estrutura estiver ela própria definida por uma interdição ou impossibilidade, por uma aporia ou contradição, antagonismo insuperável? O residual, a escravidão, não se dissolve. O emergente não pode se constituir objetivamente em novas formas, que pressupõem um sujeito histórico, por definição negado ou invisível. Não é assim que Fred Moten em Na Quebra parece sugerir ao dizer que:

Na transição do trabalho escravo para o trabalho livre, o local ou força ou ocasião do valor é transferido do trabalho para a força do trabalho (…) Essa transferência e transformação é também uma desmaterialização – novamente uma transição do corpo, mais plenamente da pessoa do trabalhador, para um potencial que opera no excesso do corpo, no desaparecimento de uma certa responsabilidade do corpo. Isso vai se cristalizar, mais tarde, na figura impossível da mercadoria que emerge como que do nada, a figura que é essencial àquela modalidade possessiva e despojada de subjetividade que Marx chama de alienação (Moten, 2023, p. 354).

Como comenta Spivak, a diferença entre o “residual” e o “emergente” pode ser também a diferença entre “uma forma radical e uma forma conservadora de resistência a dominante [cultural]” (Spivak, 2022, p. 365). Ou como transcreve poeticamente Davi Nunes:

Quando senti sob meus pés
pela primeira vez
o corpo gigantesco desta terra
afundei até o pescoço
era um solo movediço – a escravidão

Na introdução a Filho nativo, “Como nasceu Bigger”, Richard Wright descreve a gênese estética, para-sociológica, de Bigger Thomas, protagonista de seu romance, o jovem homem negro “desorientado”, que assassina uma jovem branca. Como ele diz então muito textualmente, o romance é “uma exteriorização imensamente íntima por parte de uma consciência expressa em termos dos eventos mais objetivos” (Wright, s.d., p. 9). E conclui: “as emoções são subjetivas, e ele somente consegue comunicá-las ao transvesti-las com um disfarce objetivo” (idem, p. 9).

Como então ele aponta, sempre existiram muitos Biggers, cravados na própria experiência do autor e em seu horizonte de referência. Ele se recorda da infância e juventude e dos Biggers que conheceu. Ora, como diz Wright, a natureza do meio ambiente que produziu esses homens os produziu como o “homem de confusão” de que nos fala Huey Newton em To Die for the People (2009), torturado e, na verdade, fabricado pelos próprios pecados. Representando para si mesmo, de modo “objetivo”, uma aproximação inferior de humanidade, malograda ou vivida malogradamente, no “solo movediço” de uma historicidade, ou “época” que prolonga a escravidão como sua vida póstuma (Hartman, 1997). Uma historicidade objetivamente subjetivada como medo e vulnerabilidade, em virtude de sua “singular posição” na vida, vivida como uma redução a uma coisa, um animal, uma nulidade (nonentity). As leis de autoconstituição da sociedade, da pólis, como uma negociação no âmbito da sociedade civil, estão fechadas para ele (Vargas, 2012). As leis do homem branco e sua moralidade – ou mesmo ética – autotransparente aparecem para ele como um duro código que age sobre ele, mas não para ele. Ora, pergunta Newton, com quem, com o que, pode ele, um homem, identificar-se? A sociedade não o reconhece como tal, ele, “um consumidor e não um produtor”. Quem afinal ele é? “Is he a very old adolescent or is he the slave he used to be? What did he do to be so black and blue?” (Newton, 2009, p. 79)[6].

De certo ponto de vista, desse ponto de vista “singular”, definido pela centralidade da morte social e da violência gratuita como gramática operativa da singularidade negra no mundo antinegro, vemos que esse mundo, horizonte sem sentido de um sentido histórico para a violência estrutural, só pode ser definido distopicamente como uma devastação ininterrupta. O afropessimismo, como apresentado por Frank Wilderson, pretende estabelecer uma aproximação para uma ontologia política (a rigor impossível ou obliterada) e uma linguagem abstrata, filosófica, conceitual, para expressar a violência da escravização e de suas formas alongadas na duração e na correlação categórica, estrutural e performativa, que em sua dimensão “gratuita” materializa a obstrução ao reconhecimento ou integração para o negro e para o homem negro em particular. É nesse sentido que o afropessimismo entende o significado da negritude como uma posição estrutural de incomunicabilidade, na verdade definida por modalidades de acumulação e fungibilidade, e não de exploração e alienação (Wilderson, 2010). Como parece textualizar a obra de Fabio Mandingo, entre a oralidade de uma “gramática” antinegra das ruas e um repertório linguístico pré-formado, em meio ao qual poderíamos divisar certas transformações. Para Jober Pascal, Mandingo toma a “substância controvertida” da experiência – fenomenologia histórica e subjetiva – das ruas e de suas contradições e violências, estruturantes da própria paisagem urbana em Salvador da Bahia, lócus diegético em sua obra, como “escolhas estéticas”. Ou como “um fluxo de violências que explode pelo triunfo da comunicação” (Pascal, 2018, p. 336).

O caos urbano e distópico, que é o reverso de uma imagem paradisíaca para cidade de Salvador, presentifica uma geografia antinegra, uma topografia do horror racial (Alves, 2013), em que o homem negro vive intensamente a expulsão dilacerante da cena moderna de reconhecimento e interação comunicativa, o que seria esfera pública, mas transita de modo ladino, amefricano ou fugitivo, eu diria, no interstício tumultuoso de uma socialidade interrompida a bala. “Barulho ensurdecedor ferindo os ouvidos. Tensão. A multidão em polvorosa nas ruas noturnas. Helicópteros. Medo. Tropas de choque. Um homem negro caído imóvel no chão desagua um rio de sangue: é carnaval em Salvador!” (Mandingo, 2018, p. 48).

A obra de Mandingo, e sua dicção mandingueira, inapelavelmente masculina, inapelavelmente dependente da representação da mulher na consciência do homem negro, nos serve para definir esteticamente a passagem das aporias da antinegritude, na construção de “escolhas estéticas”, para o momento de transfiguração amefricana e moderna, entre a experiência de confusão vivida pelo homem negro e o alívio carnal no duplo vínculo de gênero. O repertório urbano, mapa cognitivo e estilístico de Mandingo, que percorre as praias da Ribeira, ou o degradado Centro Histórico de Salvador, se desenvolve em meio à reconfiguração urbana, moderna, da ladinidade presente na experiência histórica afro-brasileira, e não é de outra forma que a capoeira, a roda de capoeira e o amor proibido pela filha do mestre de capoeira servem de ponto de apoio, vínculo e transformação entre o dilaceramento agudo, desorientação objetiva, e o reencontro ancestral que o corpo da mulher permite.

– Vixe, irmão, você tá apaixonado mesmo hein?
– Completamente apaixonado, D´Ketu, essa mulher foi quem me fez entender o significado de plenitude.
– Que nada D´´Oyó, amor de capoeira é berimbau, mulher vem e vai…
– Nego, nego, nego, não existe berimbau sem a união da beriba com a cabaça. (Mandigo, 2018, p. 100)

Modernidade Amefricana: A Identidade Negra como um conteúdo simbólico-cultural

Jorge Augusto interroga a produção textual de pessoas negras, levando em conta aspectos sociológicos de constituição do mercado ou campo literário negro, e também do ponto de vista formal. Nesse sentido, sugere tópicos para a revisão de todo um campo, e nisso a crítica ao biografismo parece muito pertinente. Como ele aponta, o “biografismo tal como efetuado por parte da crítica acaba adentrando os caminhos minados do fetiche, pela existência do pobre e do iletrado; e do mérito, pelo exemplo de superação” (Augusto, 2022, p. 155). Biografismo, dizendo de modo direto, subsistiu uma análise rigorosa pela exotização da autoria. O que implica ademais em certa condescendência pervertida “produzida pela intelectualidade negra” que “tende a ser elogiosa” e se demitir de seu papel na construção de um de campo e de um repertório analítico. Entre a exotização, quase etnográfica, e a condescendência fetichizada, a ênfase na autorrepresentação do sujeito se converte na mesma velha conhecida armadilha de confiar cegamente na representação e na ilusão do Sujeito Soberano (Spivak, 2022). Na verdade, a crítica da constituição ideológica dos sujeitos no interior das formações estatais e dos sistemas de economia política não pode ser apagada, e o mesmo vale para a prática teórica ativa da transformação da consciência. Ora, destes erros a presente análise pretende se ausentar. E nesse sentido é que a determinação de situar a masculinidade negra no âmbito da modernidade antinegra parece imperativa.

A configuração moderna da experiência da diáspora africana é a própria constituição, histórica e estrutural do fato da negritude. De modo intrinsecamente conectado à modernidade antinegra. O tráfico transatlântico, o mercado de escravos, a passagem do meio, mais do que tropos literários, ou clichês visuais na iconografia colonial da (anti)negritude, se conformam como elementos estruturantes das aporias que definem a identidade negra e a subjetividade de homens negros. A diáspora em sua dupla dimensão, dispersiva e conectiva, disjuntiva e sincrética, ou justamente disjuntiva porque sincrética, configurada tanto em leituras do Atlântico Negro como na proposta teórico-prática amefricana, é um horizonte inescapável, que define o ser social do negro nesse transe (vertigem) irrealizável (Gilroy, 2001; Gonzalez, 2028 [1988]).

É principalmente desse ponto de vista que poderíamos considerar algo como uma tradição cultural africana ou afro-americana como uma estrutura, objetivada nas instituições e discursos, de uma dispersão ou violência originária negra/africana. Como sugere Fanon em Racism and Culture (1970), a violência da escravidão, do colonialismo e do racismo não são fatos exteriores à chamada cultura negra, ou à tradição afro-diaspórica, a não ser que a tomemos como mistificação devotada ao opressor/captor. “Thus, the blues – ‘the black slave lament’ – was offered up for the admiration of the oppressors. This modicum of stylized oppression is the exploiter’s and racist’s rightful due. Without oppression and without racism you have no blues” (Fanon, 1970, p. 47).

Em Paul Gilroy, como sabemos, a máquina do terror colonial pode ser restabelecida como paradigma de teorização crítica e/ou poética, como uma “transvaloração híbrida” definidora de uma contracultura da modernidade. Transvaloração particularmente demonstrada nas tradições musicais modernas, como formas não figurativas de reflexão, objetivação, diríamos, e memória inventiva. Tradições inventadas da diáspora constituem as formas culturais como objetos semióticos autopensantes[7] que se apoiam na reprodução de sujeitos e subjetividades (Gilroy, 2001). Ainda que Gilroy pareça excessivamente preso a “cultura” e a metáforas culturais. Quando, como diz Spivak, “a cultura é a explicação cultural; quer dizer que tudo que é cultural significa fazer de tudo meramente cultural” (idem, p. 386). Assim, parece radical o gesto contracultural de Gilroy, que paradoxalmente reforça a centralidade de uma tradição, que embora apoiada nas formas não figurativas, também depende da instituição e reconhecimento de uma intelectualidade negra, que ainda assim é intensamente “cultural”: “a ideia de tradição é compreensivelmente invocada para sublinhar continuidades históricas, conversações subculturais, fertilizações cruzadas intertextuais e interculturais, que fazem parecer plausível a noção de uma cultura negra distinta e autoconsciente” (Gilroy, 2001, P. 353).

No contexto da virada ontológica para o pensamento radical negro, a violência e a violência sobre o corpo deslocam as preocupações críticas de uma semiologia intertextual para uma ontologia corporificada, em relação tensa com a história. Como em Saidya Hartman, para quem o corpo supliciado da escravizada é o corpo da memória sobre o qual a imposição de um despedaçamento brutal e integral torna-se o imperativo para uma constituição de si, no umbral ambíguo entre escravidão e liberdade (Hartman, 1997). O corpo desmembrado do escravo é, nesse sentido, o lócus de um sujeito que não pode desdobrar-se como autorrepresentação consciente, de forma que as prerrogativas coletivas de uma enunciação cultural estão emudecidas, ou subsistem na “quebra”, como o ruído obscuro que resiste à decodificação, como um rastro de apagamento total de si, mergulho intrassubjetivo na carne em um nível efetivamente pré-semiótico e não, vamos insistir, meramente cultural (Moten, 2023; Gordon, 1999). Ainda assim, ou mesmo assim, o corpo é lugar de um exercício de agência, configurado como formas performáticas, e nesse sentido Hartman vê o lugar da performance negra, que não se confunde com cultura ou tradição, como expediente para aliviar o corpo dolorido, magoado pela “history that hurts”, uma agência coagida pela “non-autonomy of practice” por definição extensiva à condição escrava, que esvazia na escravidão e na vida póstuma o lócus próprio da política. Dessa forma, a performance se põe como forma de reparar (“redress”) o corpo desmembrado do escravo. Citando o antropólogo Victor Turner, Hartman ainda evoca a natureza liminar da reparação “betwixt and between[8]. Entre a dor excruciante e o prazer inebriante, a dissolução e a simulação de si, a transfiguração transcendental na fugitividade cosmológica das formas ancestrais, onde o corpo é ainda meio de comunicação, e uma ponte entre os vivos e os mortos (Hartman, 1997).

Na poética da masculinidade negra, a reparação (redress) que parece advir da tradição, aparece como uma modulação entre a sensualidade dos ritmos – maleabilidade paradigmática da música negra como uma metáfora para o prazer e o desejo figurado no corpo da mulher – e dos devaneios eróticos que parecem ser a tábua de sustentação de uma singular subjetividade masculina. Ou seja, a mulher-matéria no corpo da História. Dentre tantos autores, talvez Solano Trindade seja o campeão na encenação dessa expressão triangulada entre raça, desejo e tradição. Solano, nosso mais brilhante e solar Orfeu negro.

Velho atabaque
quantas coisas você falou para mim
quantos poemas você anunciou
Quantas poesias você me inspirou
às vezes cheio de banzo
às vezes com alegria
diamba rítmica
cachaça melódica
repetição telúrica
maracatu triste
mas gostoso como mulher…

Verdadeiro Orfeu, Solano epitomiza a invenção da masculinidade épica no afro-nacionalismo. Nessa figuração, a masculinidade negra aparece como “the reaffirmation of an autonomous and powerful black male sexuality”, convertida como estratégia da afirmação política de afirmação do povo negro (Alexander, 2000). Assim, a narrativa da epifania racial como afirmação do desejo negro heterossexualizado é inapelavelmente tema estruturante da diáspora africana e de suas políticas da subjetividade. Está em Ralph Ellison, em Richard Wright, em Marcus Garvey, em Solano Trindade, em Fabio Mandingo, e mesmo em Frank Wilderson (2020). De tal forma que o heteropatriarcado parece estar bem à vontade no coração das representações sobre a emancipação racial. O afronacionalismo, tal como Christen Smith o define, depende de uma articulação com estruturas de gênero e sexualidade para garantir sua própria coerência ou ficção verossímil, como uma genealogia possível diante do parentesco ferido pela escravidão e das próprias narrativas nacionais, formatadas como narrativas sexuais de miscigenação e hibridismo (Smith, 2016; Spillers, 2021). Na poética de Davi Nunes, a erótica em direção à mulher negra também é uma transcriação lírica da tradição amefricana, daí não só a “capoeira”, mas o “banzo”, o “atabaque” e o “dengo”, como tropos transicionais, formadores de um duplo vínculo de raça e gênero, no âmbito de uma negação da negação como um mergulho na tradição (Nunes, 2017).

Oh, cor da madrugada, diva Negra
denga flor de Iansã, doce mandinga.
tenho ao peito o belo seu como ginga
belo que nunca vi em deusa grega

Vou afetuoso, mas eu não bambo
na forma que te visto o quanto clássica;
vou no seu compasso, por isso sambo
No ofício que domino boa plástica.

O gênio que me inspira, é afronta
que n’alma regozija como bomba;
o novo como traço seu ribomba
Poema que no mundo se defronta;
verso tu negra, aqui não é remendo,
não amor, é bem melhor, é dengo.

A formação das subjetividades masculinas, designadas por essa relação especular e perversa com o Homem Branco, estabelece a centralidade política da sexualidade como marco de fronteira, liminar, betwixt e between, entre o discurso hegemônico da nação e o discurso nacionalista negro, nesta chave “cultural” ou “tradicional”, que, como no Orfeu Negro”, estabelece a primazia do simbólico, do mítico e do natural, como essencialmente africano, e essencialmente masculino (Sartre, 1978). Nesse sentido, a performatividade do eu poético negro é também masculina ou “espermática”, na medida em que, para Sartre (1978, p. 113), “o negro continua sendo o grande macho da terra, o esperma do mundo”. Vemos, então, nessa fabulação a conjugação a um só tempo da tradição, revisão de uma certa memória cultural amefricana materializada como “cultural”, e da heterossexualização de um sujeito, que encontra na imaginação da mulher negra o antídoto para a morte social. A tradição negra expressiva, ancestral, aparece como a produção de uma disjunção de gênero que elege a mulher como “vessel“, corpo significativo, para a afirmação da tradição, corpus significativo, e da própria subjetividade masculina. Como em Solano:

Outra linda negra
me levou à macumba
No Xangô da Baiana
da Praia do Pina

Era noite de lua
a negra era bela
Dançava no corpo
Que lindo o andar!
A negra era filha
da Deusa Oiá
tinha um cheiro no corpo
que me levou ao pecado
Faltei com respeito
Ao seu Orixá

Lá no terreiro
dançou pra mim
seus seios bonitos
pulavam no ritmo
do atabaque
e do agogô
Fui pra casa da negra
Recebi o santo
do corpo da negra
e fiquei o maior de todos os Ogans
e passei a cavalo
de Obatalá…

A performance do eu poético do homem negro se encontra e se perde em sua própria situação, diante e imerso no mundo antinegro. Consideraríamos, entretanto, como o mundo amefricano – suas estruturas e instituições – estabelece relações, transformações que são, ao menos no contexto latino-americano, coextensivas ao mundo antinegro. Morte social e ancestralidade, o mundo antinegro e o mundo africano, superpõem-se transversamente, como horizontes ontológicos de uma posicionalidade transformada ou generativa, liminar, estabelecida entre a morte social e a ancestralidade (Mandingo, 2018).

Capa de Banzo, de Davi Nunes (Organismo Editora, 2020)
Capa de Banzo, de Davi Nunes (Organismo Editora, 2020)

A Maldição do Avô

Em O Homem Invisível, Elisson principia a narrativa referindo-se à “maldição do avô”:

Mas meu avô é a chave. Meu avô era um cara estranho, e diziam que saí a ele. Foi ele quem causou o problema. Em seu leito de morte, chamou meu pai e disse: “Filho, depois de eu partir, quero que continue nesta luta. Nunca lhe contei, mas nossa vida é uma guerra, e tenho sido um traidor desde que nasci, um espião no território inimigo, desde que deixei minha arma, na época da Reconstrução. Quero que você viva com a cabeça dentro da boca do leão. (…) Quero que você os subjugue de tanto dizer sim, que os afogue com seus sorrisos subservientes, concorde com eles até a morte e a destruição, deixe-os engolirem você até vomitarem ou explodirem. (Ellison, 1990, p. 19)

Tal qual no poema de Ori/Lande, o avô é a chave. A admoestação do avô martela na cabeça do narrador, de que guerra ele está falando, de que traição? Que destruição ele profetiza em seu leito de morte? Tudo fez sentido depois quando o narrador, convocado para entreter os figurões da cidade em uma luta de vale-tudo, percebe a violência implicada, não apenas na luta ela mesma, contra outro assustado homem negro, mas no espetáculo ele próprio. Fez sentido então o risco, o medo, a dúvida e a confusão experimentadas na “boca do leão”. “O evento foi no salão de baile do principal hotel. Ao chegar, descobri que se tratava de uma reunião exclusivamente masculina e fui informado que, já que estava deveria participar, junto com outros colegas da escola, de um vale-tudo organizado como parte do entretenimento” (idem, p. 21). Então de repente, a figura feminina, virago antinegra, tropo essencial na conversão da fragmentação de si do negro em um Homem de verdade, uma “loira magnífica”, a mulher branca: “fez-se um silêncio absoluto. Senti uma lufada de ar fresco me congelar” (idem, p. 22). Diante da aparição o jovem narrador entra em pânico, desejando intensamente “afagá-la e destruí-la, amá-la e assassiná-la” (idem, p. 22). Na arena masculina, onde homens negros lutam como gladiadores para sujar de sangue o tapete e divertir homens brancos, a figura da mulher é o vórtice de uma vertigem que não pode distinguir entre ódio ou fascínio, desejo e violência. Neste momento o homem negro e seu corpo ganham coerência provisória como a autoimagem homicida, selvagem, Bigger ou muitos Biggers. “Com os olhos cheios de lágrimas e a boca cheia de sangue”, sou um homem de verdade? “Será que eles iam reconhecer o meu valor”? (idem, p. 12).

O transe e a vertigem da masculinidade negra convocam uma crítica encarnada ao sujeito soberano e revelam de modo agudo a heterogeneidade das redes de poder-desejo-interesse (Spivak, 2022), e revelam ainda a dupla posicionalidade, nó cego, ou “double bind”, para a fundamentação do sujeito negro na modernidade (Bateson et al., 1956). Estes só encontram precária sustentação nas transformações que a morte social opõe entre a Escravidão e a Africanidade, o mundo amefricano e o mundo antinegro. Duplo vínculo, double bind, que está implicado na condição ontológica de existir (como uma não-entidade) dentro da sujeição, mas ainda não como um sujeito[9]. Como poderíamos dessa forma, depois de procedermos a esse ajuste, que situa o homem negro nessa ambígua posição liminar, caracterizar uma “consciência”, instância ou lócus onde o sujeito poder tornar-se objeto para si mesmo? A crítica ao sujeito soberano e as políticas de representação são elementos integrais da constituição da aporia de uma subjetividade “singular”. A forma literária, a objetivação estética, busca um suplemento na representação da tradição, mas esta já é a estória de uma violação replicada na história de modo performativo e estrutural. A performance da negritude e sua encenação da vida social, na literatura, não pode obliterar o fato de que é escravo o objeto que permite a existência do sujeito burguês (ser-para-si/ser-para-o-outro) e que a confluência entre negritude e escravidão interdita de modo estrutural a reivindicação de subjetividade plena, autoconsciência como uma prerrogativa ética moderna. Porque escravo personifica o poder e a dominação do senhor, e é o Senhor a personificação do Sujeito Soberano. Como ser objetivo para si, alienando-se como modo de subjetivação, se o fundamento estrutural desse torturado si mesmo é a vida póstuma da escravidão? Diante dessa opacidade, ser para si é ser um escravo, “et tout le reste est littérature[10].

* Osmundo Pinho é antropólogo, bolsista de Produtividade CNPq-2, doutor em Ciências Sociais (UNICAMP) e professor no Programação de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Recôncavo da Bahia em Cachoeira e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia em Salvador. Foi pesquisador visitante no Africa and African Diaspora Department Studies da Universidade do Texas em Austin (2014) e Richard E.  Greenleaf Fellow na Latinoamerican Library da Universidade de Tulane em Nova Orleans (2020). É autor de Cativeiro: antinegritude e ancestralidade (2021), além de outros livros e artigos.
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Notas
[1] Este ensaio foi redigido a partir da apresentação “Pretitude e Poética: Modernismo e Masculinidade”, preparada para a mesa redonda “Gênero e Raça no Modernismo Brasileiro”, no seminário “O Modernismo Negro de Lima Barreto e os Cem Anos de 22: Tensões, rasuras e diálogos na modernidade brasileira!”, organizado pelos grupos Perifa/IF Baiano; Rasuras/UFBA; Etnicidades/UFBA; Esopo/UNEB; Yorubantu/UFBA e Poéticas Periféricas – UFRB em setembro de 2022. Agradeço a Jorge Augusto e a Florentina da Silva Souza o convite. E a Eumara Maciel a mediação da mesa.

[2] Sobre a obra de Landê, ver Freitas, s.d.

[3] Sobre “escrevivência”, ver Conceição Evaristo (2020).

[4] A reflexão desenvolvida aqui foi em grande medida também discutida na oficina “Negritude: A Masculinidade na Encruzilhada”, desenvolvida com o grupo teatral Os Crespos em abril de 2021, como estudo teórico de preparação para filme-espetáculo Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol (https://www.youtube.com/watch?v=MVUe2vZ7_w0). Agradeço a Lucélia Sergio o convite e aos demais integrantes do grupo a fecunda interlocução.

[5] David Marriott (2007) recupera a noção lacaniana de imago, como aparece em “O estádio do espelho” (Lacan, 1988), para qualificar criticamente a “aparição” do homem negro.

[6] Referência a canção gravada em 1955por Louis Armstrong “(What Did I Do to Be So) Black and Blue?”, originalmente composta por Thomas “Fats” Waller em 1929.

[7] Em mente aqui analogia com a discussão presente em Samain sobre imagens que pensam. Sendo estas percebidas como tendo “vida própria” e “poder de ideação”, uma capacidade de agência e reflexão do pensamento capaz de configurar uma rede de significação e de conexões materiais (Samain, 2012, p. 23).

[8] Em A floresta dos símbolos (2005), Turner caracteriza um estado particular na estrutura dos ritos de passagem definido por sua liminaridade constitutiva: “O sujeito submetido ao ritual de passagem fica, no decorrer do período liminar, estruturalmente, ou mesmo fisicamente, ‘invisível’” (Turner, 2005, p.137-139). Talvez convenha lembrar que a fórmula “floresta de símbolos” aparece pela primeira vez no famoso poema “Correspondances”, de Charles Baudelaire (1985).

[9] Em “Toward A Theory of Schizoprenia”, Gergory Bateson e colegas (1956, p. 6) dizem: “Then the double bind cannot work on the victim, because it isn’t he and besides he is in a different place. In other words, the statements which show that a patient is disoriented can be interpreted as ways of defending himself against the situation he is in”.

[10] Último verso do poemaArt poétique”, de Paul Verlaine. Em francês e português em O Anticrítico, de Augusto de Campos (1986).
Artigo
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O POETA MATUTINO PALITA MOLARES E CANINOS EM COPACABANA

A marca de nosso tempo, seu umbral – a grave fronteira que cumpre atravessar, arrastando trapos, ruínas, culpas e esperanças –, o signo por excelência – a celebrar, inverter e esconjurar –, a referência paradigmática de nossos dilemas, pessoais e coletivos, o centro, o novo e arcaico centro gravitacional para as cosmologias em trânsito, o eixo que ordena o regime de afetos e afia o gume das horas, a marca, portanto, de nosso tempo é Fausto.

Fausto, embora meio caduco e banguela, jantou Édipo e o cuspiu, misturado às tripas do anjo da história – que mania de olhar pra trás –, jantou Édipo e o cuspiu no baú dos arquivos veneráveis – veneráveis mas destituídos de urgência. Édipo pulou fora de nossas retinas pra virar retrato na parede, figura itabirana melancólica, álbum de família, flagrante saudoso e remoto de papai & mamãe.

Foi mais ou menos, traduzido e traído por minha memória claudicante, o que Italo Moriconi me disse, em meados dos anos 1990, quando nossa comunicação era diária e frenética, graças à magia recém-descoberta do e-mail, serviço pago e discado: eu em Virginia, ele em Copacabana. Talvez ele não se lembre, provavelmente não se lembrará. Italo era uma usina de ideias, como é até hoje, sempre foi, turbilhão, trezentos, não heterônimos, mas flashes por segundo, intensamente presente na experiência que sorvia até a última gota (veneno-remédio – naturalmente).

Italo Moriconi em foto de Ana Branco
Italo Moriconi em foto de Ana Branco

Presente de corpo e alma em cada cena cotidiana, política até a raiz dos cabelos, cenas que ele agarrava pelos cabelos até extrair-lhes a confissão. Saibam vocês: as cenas tagarelas que Italo dissecava, em suas mensagens-crônicas deliciosamente minuciosas, etnográficas, literárias, personalíssimas, dissecava com a violência sutil de poeta aprendiz, aquelas cenas confessavam tudinho, rendiam-se inteirinhas, da cabeça aos pés.

Italo flertava com as mil e uma possibilidades de sentido e sabor, desdenhando nostalgias, clichês e madeleines – porque interessante mesmo era o mundo por vir. Ao mesmo tempo, quem diria?, flanava pelas frestas da cidade, de que ele tomava posse, completamente: glutão, glutão.

Em outras palavras: presente, corpo e alma, mas sempre também recuando para o lado sombrio de cada esquina, camaleônico, poeta camuflado, voyeur espectral, fazendo-se de morto, evocando mortes e distâncias irredutíveis, encenando a si mesmo como tabula rasa, aberto ao mundo – cabeça, tronco e membros abertos, oferendas à fertilidade, dádivas aos deuses e demônios das origens e das manhãs.

Italo vivia os anos 90, como os 80 e os 70, de Brasília ao Rio, com intensidade paradoxal (doce e amarga, cheia de carne nos dentes, volúpia e comedimento), intensidade paradoxal de quem mergulha na boca da noite, mas se dedica ao ofício de palitar molares e caninos ao amanhecer, fixando na página em branco o ato que põe o sujeito em pauta sem rasuras. Italo sempre foi matutino e carioquíssimo, estrangeiríssimo, abrindo os olhos (não-inteiramente, é claro, porque faz muito sol em Copacabana), semicerrando a vista para cuidar-se, para cuidar, entrever e refratar a florada extravagante de luzes e ambiguidades, a explosão irremediavelmente parnasiana a que remete a linha alta do mar de Copa, dia sim, dia não.

Onde mesmo é que estávamos quando esse texto começou, antes de escapar ao controle e refugiar-se no labirinto de vielas barrocas? Vocês hão de me perdoar, mas essa lua e esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Ah! Sim, o diabo: Mefistófeles, Fausto. Pois é, talvez Italo nem se lembre, mas seu diagnóstico de que Fausto substituíra Édipo na encruzilhada de nosso tempo produziu um grande impacto em mim, impacto que ainda não metabolizei inteiramente, e sob cujo efeito penso e escrevo, até hoje, três décadas depois daquela nossa conversa casual.

A troca de mitos corresponde a uma troca entre sistemas de trocas. Com Édipo, estava em jogo, do ponto de vista antropológico, a troca de um interdito radical por uma autorização vivificadora, da endogamia pela sociedade, da clausura pela expansão, do insulamento pela reciprocidade e a tessitura das redes estendidas de sociabilidade, do solipsismo pelo universo das trocas. Do ponto de vista psicanalítico, estava em questão a substituição de uma linguagem matricial (em certa medida estava em questão a própria psicanálise). Édipo equivalia à troca da plenitude imaginária ilimitada e, por isso mesmo, mortificante, pelo nascimento do sujeito, graças à castração – a intervenção do terceiro, a entrada em jogo do falo. O declínio de Édipo retrata o ocaso do Pai, indicia a fratura de um pilar do capital, expressa o colapso de um regime de poder e servidão, o Patriarcado, nome do banho de sangue contínuo que encharca nossos destinos coloniais. Mas a que preço abandonamos as paisagens mentais em chamas, a que custo migramos dessas paragens que nos formaram, que são a nossa casa, a nossa cara? O que significa o desterro, o exílio? O que implica deixar-se reger pela cosmologia fáustica? Por outro lado, resta alguma escolha?

Esquematicamente, Fausto remete ao pacto, à celebração de um acordo por meio do qual se troca o objeto do desejo pela danação eterna, o que equivale a dizer que se troca a cadeia dos objetos que se põem a circular como alvos do desejo pelo desejo mesmo, enquanto nome da falta irremediável. Trocamos a saciedade provisória pela insaciabilidade permanente. Capitalismo, consumo, gozo contingente no ímpeto consumista trocados pela rendição à dinâmica da insaciabilidade, trocados pela ansiedade irrefreável, a insatisfação crônica, o fracasso – e a terra devastada, literalmente. Ou então: verdade, beleza, prazer, a glória em troca da condenação, a alma arrebatada, a liberdade vendida. Nada disso basta. A sabedoria de Italo, o poder de sua intuição vai além do trivial, das leituras previsíveis, do senso comum ilustrado, do ceticismo cultivado.

Leio o que ele mesmo escreveu no poema Contrato, em seu livro Quase Sertão, publicado em 1996 pela editora Diadorim (RJ):

Eu tenho nojo do teu comportamento.
Você tem nojo do meu comportamento.
Vamos guardá-lo no baú ancestral de couro encardido.
E fabricar nosso tecido
De meias-palavras.

O contrato negocia um sistema de relações, um sistema de trocas, de interações, interlocuções, diálogos, uma sociabilidade à meia-luz, à meia-boca, um convívio feito de silêncios que tenha o mérito de não se degradar em conflito terminal, em guerra e destruição. Mas esse mérito traz consigo o infortúnio de outra degradação, de outra destruição. Guardando o nojo recíproco no baú, nos salvaremos do cataclismo, sobreviveremos ao apocalipse. O preço é a meia-palavra. Custo valiosíssimo para o poeta, que lapida em cada silêncio, pausa a pausa, palavra e meia. De certa forma, não há relação nem troca com o nojo metido no baú, porque não se trata da meia-palavra plena de sentido, aquela que basta para que a comunicação se cumpra. Aqui, o baú é arca, túmulo, ataúde, o recalque objetivado. Se criação poética é desrecalque, ela aqui está sepultada. A palavra pela metade é comunicação mutilada. O preço da paz centrífuga é a coexistência de solidões insuladas.

Nojo é mais que desprezo moral: adiciona um tom sensível, corpóreo, inflama os cinco sentidos com o sopro da repulsa, mobiliza todas as dimensões do sujeito para a abjeção. Por outro lado, o alvo do nojo não é raça ou nacionalidade, é comportamento, é ação dotada de sentido. O repúdio se desnaturaliza e, por assim dizer, se politiza.

O couro encardido do baú, gasto pelo tempo, é matéria animal ressecada, esterilizada, revestindo o esquife que evoca a ancestralidade: a seta da ascendência aponta para a origem, arché, matriz, sede de arquétipos, figuras imemoriais imunes à contingência e à temporalidade. Aí está, arqueologicamente depositado no poema, o que seria, na ilusória tradição do esclarecimento, confrontada pelo poema, o fulcro do comum, a raiz primitiva do universal, solo sob os solos em que as diferenciações babélicas se radicariam, unidas no paraíso metafísico das indistinções. Nesse baú, repousaria a alma essencial e unívoca da humanidade, a garantia última da transparência, da comunicação desobstruída e da palavra plena. Pois aí está a crueldade e a ousadia subversiva do poema: seus versos enterram no poço ancestral a matéria insepulta da mútua abjeção. Não se sai desse poema como quem lava as mãos. Ao contrário, as mãos, como o poema, estão sujas, as mãos e as unhas se melam no esterco: na merda chafurda o lavrador, garimpeiro de palavras. Nenhuma Antígona velará pelo corpo insepulto da repulsa recíproca.

O contrato, este, pode bem aludir ao pacto fáustico, desde que recalibremos o alcance da reflexão, desde que renunciemos à pompa grandiloquente do bronze, tanto à gravidade do bronze que eterniza, quanto à bela leveza da tessera hospitalis, que enlaça. Este contrato não se cumpre, firma-se para a traição, firma-se com a piscadela do diabo que, por sê-lo, mente e finge, feito poeta, meio carioca, meio transgressor. Pacto feito de semitons, claro-escuros, despiciendo, pacto que é desconversa, meias palavras, jogo sujo, harmonia falsa sobre fundo falso, simetria impossível entre meias metades (inversão da tessera hospitalis), meias metades com as quais se convive, a muito custo, antagonistas que jamais serão salvas pela síntese sebastianista da dialética, cujas forças incomensuráveis sempre postergarão a guerra no jogo arrastado, traído e distraído. O que são desmesuras pela metade? Nem ilusão pseudo-humanista, nem escatologia dialética messiânica: o reconhecimento do quadro agonístico é o que resulta no poema, trama e drama insolúveis.

Não se trata, portanto, de celebrar contrato com o diabo; diabólico é o contrato; a relação está envenenada. Tampouco se trata de uma relação qualquer, mas do convívio pusilânime que mutila a palavra para garantir a coexistência corroída e corrosiva. O reino das meias palavras mortifica e amortece, dilui arestas, dissolve paixões no ácido da desconversa, põe-se contra o enfrentamento desestabilizador e angustiante das relações agonísticas, embate perigoso mas vivo, onde há clima para a poesia, paisagem pesada mas imune ao enxofre. Imune à putrefação da palavra, ao domínio do clichê, à morte da criação, seja canônica, seja essencial.

No cosmos do capital, prevalece a lei das trocas, palavra-moeda, pátria da comensurabilidade (ou da simetria substitutiva, para evocar Paul de Man), prevalece a linguagem da mercadoria, o império do mercado e do fetiche, feira onde tudo tem seu preço e se presta a virar pastiche, tudo encontra equivalentes. Nesse cosmos, o que rebenta a casca do ovo e põe a cabeça pra fora, dando-se à luz, é a singularidade – pós-canônica, pós-essencial, especialíssima, irredutível aos sistemas de trocas, aos sistemas das equivalências. A singularidade, o poema, a criação literária, a obra estética em voz anticlichê exige leitores e leitoras, ouvintes, fruidores e fruidoras (e críticos e críticas) que ousem a invenção de suas próprias mordidas únicas, incomparáveis. As dentições são diferentes como as impressões digitais. Italo anunciou, por obra e graça de Fausto, evocando o pacto mefistofélico como sinal dos tempos, Italo anunciou, isto é, insinuou a era das impressões digitais emancipadas, das dentições inclassificáveis.

No tempo pós-edipiano, novos e novas poetas estariam livres da angústia da influência, prescindiriam da morte do pai, evocariam ascendências matrilineares ou conceberiam um céu livre de monoteísmos, ou povoados de monoteísmos extintos, puras recordações inofensivas, céus e terras e mares panteístas ou vazios e silentes. Mas é claro que a novas liberdades corresponderiam novos constrangimentos. Nesse caso, a celebração de pactos talvez remetesse a contratos horizontais, em que se empenhe a palavra plena, sem concessões, em que se troquem toques e trilhas de fecundação recíproca.

Linhagens de novo tipo. Pistas futuras.

Como talvez dissesse um Mário renascido: os males do Brasil já não são muita saúva, pouca saúde, mas muita, muita saliva, muita palavra gasta, muita palavra moeda de troca, muitas convicções vendidas nos templos do fascismo, à boca pequena, na mão grande, na festa monumental da pusilanimidade, todas as mãos sujas de sangue, cumplicidade e meias palavras. Italo nos propõe o contraponto, representado pela consciência crítica sobre o pacto fáustico, que aponta para um ambiente estético, ético e político sem acomodações. Contra a transigência untuosa e pusilânime, à meia luz, das meias-palavras, a pulsão solar de Copacabana.

Por tudo, Italo, as lições, os exemplos, a coragem, a lucidez, por tanto afeto e generosidade, por tudo, meu amigo, meu irmão, eis-me aqui, a teus pés.[1]

* Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP. Publicou mais de vinte livros, dos quais os mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019), Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020) e o romance Enquanto anoitece (Todavia, 2023).
Notas
[1] Intervenção no seminário em homenagem a Italo Moriconi, realizado em 8 de dezembro de 2023 na Casa Dirce, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e organizado pelas professoras doutoras Diana Klinger (UFF) e Ieda Magri (UERJ) e pelo doutor em Literatura Brasileira e crítico literário Ricardo Vieira Lima.
Resenha
Tempo de leitura estimado: 12 minutos

SUSAN, SIGRID E EU

Divulgação disponível em: https://editorainstante.com.br/produtos/sempre-susan-um-olhar-sobre-susan-sontag/
Que tipo de crítica, de comentário sobre arte, é desejável hoje? De fato não estou dizendo que as obras de arte são inexprimíveis, que não podem ser descritas ou interpretadas. Podem sê-lo. A questão é como. Como poderia ser uma crítica adequada à obra de arte, e que não usurpasse seu lugar?
Contra a Interpretação, Susan Sontag

Nesse famoso ensaio que faz parte do livro Contra a interpretação, de 1961, publicado no Brasil em 1987, a afirmação de Susan Sontag indica a relação importante da ensaísta e romancista com o tema deste número da Revista Z. Mais adiante, no mesmo ensaio, afirma que a função da crítica “deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que significa”. Para terminar com a originalidade e a independência que marcavam suas reflexões: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”.

O “olhar que quer mostrar o que é ou o que parece ser” surge como categoria de leitura válida na contemporaneidade. Falo sempre de um olhar feminista sobre a obra de arte, a literatura, o cinema, uma maneira de mostrar como a obra é vista pelo leitor interessado e forçosamente envolvido que é o crítico.

Foi a proposta de uma mulher lançar um olhar sobre outra mulher, a intelectual pública libertária que foi Susan Sontag (1933-2004) – decisiva para toda uma geração de estudiosos de literatura –, que me atraiu no livro de Sigrid Nunez, Sempre Susan. A expectativa foi amplamente satisfeita e, mais do que isso, ele me parece ser altamente sugestivo como exemplo de escrito próximo do biográfico.

Sigrid Nunez (1951) é uma ficcionista premiada que nasceu e vive em Nova York. Também professora e experiente no trabalho com editoras, publicou sobretudo romances. No Brasil encontramos seu livro de contos O que você está enfrentando, lançado aqui em 2021.

No meio dos anos 1970, a jovem Sigrid foi indicada para trabalhar com Susan Sontag pela prestigiosa The New York Review of Books, de que era colaboradora, e ajudar sobretudo com a correspondência acumulada enquanto a escritora operara um câncer de mama que continuava tratando.

Nova York e o mundo literário ofereciam muito em comum às duas, além do trabalho a ser feito juntas. Só que em pouco tempo, Sigrid se mudou para o famoso 340 Riverside Drive, apartamento que dava vista para o rio Hudson e por onde passavam escritores, como Joseph Brodsky, prêmio Nobel (namorado de Susan por certo tempo), críticos, jornalistas, professores, dentre os quais o charmoso amigo Edward Said e outros intelectuais críticos do status quo americano.

Pouco depois de começar a frequentar o apartamento, foi intrépida: passou a namorar David Rieff, filho único da escritora, que, é claro, morava com a mãe. É sobretudo sobre o período de um ano e meio em que conviveram e conversaram os três, geralmente em volta da mesa da cozinha, que o livro fala.

A mãe que dormia no quarto ao lado fora sempre determinada a não deixar que houvesse um gap geracional entre ela e David, tratando-o como adulto desde criança. Fica, porém, chocada quando um psicoterapeuta lhe pergunta certa vez: “Por que você tentou fazer de seu filho um pai?”. São confidências que vão da sessão de terapia aos encontros, amores e desilusões com homens e mulheres que a poderosa intelectual partilha com a aspirante a escritora.

Escrever sobre alguém é sempre mais do que falar do biografado, é sempre, de algum modo, falar sobre si mesmo. O período serviu a Sigrid como iniciação ao mundo literário, político, do gosto requintado, e o livro é, de certa forma, uma breve novela de formação.

A figura de Susan que nos é apresentada é cercada de admiração e afeto, mas também não é poupada na apresentação de suas idiossincrasias: generosa e exigente, forte mas com dificuldade de ficar sozinha, apaixonada ou furiosa. Cobrava da jovem dedicação à carreira de escritora, mas exigia sua companhia o tempo todo. Não tolerava qualquer vitimização, especialmente nas mulheres: “Cuidado com a guetização. Resista à pressão de pensar em si mesma como uma mulher escritora”.

Sigrid referenda que Susan era feminista, mas era também capaz de criticar as irmãs feministas, consideradas pouco intelectualizadas, ingênuas e sentimentais, e garantia que o cânone (ou a arte, ou o gênio, ou o talento, ou a literatura) “não era um empregador que oferece oportunidades iguais”. E não é mesmo.

A melhor definição de Susan Sontag forma todo um parágrafo que resume a biografada e evidencia o talento da romancista:

Ela era tão Nova York. E no entusiasmo, na energia e na ambição, no poder de tudo fazer, no espírito de superação de revezes, na natureza infantil – e na crença em seu excepcionalismo e no poder da própria vontade, na autocriação e na possibilidade de renascer, na possibilidade de novas chances infinitas e de tudo ter –, também era a pessoa mais estadunidense que conheci.

A identidade nacional apontada não deixa de parecer estranha ao falar da intelectual que em 1966 afirmava: “Os Estados Unidos foram fundados sobre um grande genocídio, sobre o pressuposto inquestionável do direito dos brancos europeus de exterminar uma população nativa”.

Conheci Susan Sontag pessoalmente em sua vinda ao Brasil em 1993 para lançamento do romance O amante do vulcão pela Companhia das Letras. Seus livros de ensaios arrebatavam a intelectualidade durante os anos 1980. Cansados do esquematismo estruturalista, já distantes da herança francesa, pensadores e formadores de opinião recebiam os escritos de uma mulher de pensamento independente que já estivera até no Vietnã do Norte como uma possibilidade nova de se olhar cultura e política.

Luiz Schwarcz, seu editor, preparou um lançamento nos moldes americanos, com a autora presente, lendo trecho do romance diante de uma plateia fascinada: a mecha branca, o sorriso largo, todo um corpo que expressava a coragem daquela mulher.

No entanto, o romance não foi o sucesso que as publicações anteriores, conjuntos de ensaios, pareciam anunciar.

Em Sempre Susan, a autora faz o tempo todo restrições à ficção em que a ensaísta se empenhava tanto e que ela lia com dificuldade: “assim como outros leitores de sua obra, considerei os ensaios fascinantes e os romances custosos de ler”.

Depois, em setembro de 2002, a Fundação Biblioteca Nacional sediou o seminário internacional “Caminhos do pensamento: Horizontes da memória”. Susan Sontag foi convidada a partilhar com Carlo Ginzburg, popular entre nós pela obra O queijo e os vermes, a mesa “Conceitos de memória contemporâneos”. Eduardo Portella, diretor da Biblioteca, que fora meu professor e orientador, me pediu que fosse ao aeroporto para recebê-la na véspera da palestra. E lá fui eu, tensa e insegura.

A figura da escritora não desmentia as hipnóticas fotos de estúdio que conhecíamos, e do aeroporto fomos para o Hotel Glória, onde ficaria hospedada.

Apesar da gentileza da convidada, tremi nas bases quando chegamos à recepção. Queria um quarto com cama de casal – mesmo sozinha só dormia em camas duplas, disse –, mesa para escrever com um abajur que realmente iluminasse – justíssimo – e, finalmente, um banheiro com banheira. Aí fiquei em pânico: banheira! Felizmente estávamos no velho Glória e havia um único quarto com todos os requisitos.

Era cedo, havia um dia todo pela frente e ela não conhecia ninguém na cidade. Propus então darmos um passeio e fomos ver a praia, Copacabana, no tempo adorável de setembro no Rio. No caminho falou que tivera câncer e logo se corrigiu: eu tenho câncer. Deu fome e fomos almoçar. Pensei na reles diária oferecida para os gastos, mas ponderei: euzinha, almoçando com Susan Sontag, tenho que caprichar. Estacionamos então num belo restaurante de frutos do mar em frente à praia para o mais inesquecível almoço que desfrutei. Era dia de sorte, tudo estava ótimo, inclusive o vinho que ela pediu. Enquanto conversávamos, a cada frase parecia que de algum modo me testava, enquanto falava sobre o mundo, os Estados Unidos e literatura. No carro me dera uns foras, a maneira como eu entrara no táxi e outra bobagem, mas fomos ficando quase amigas.

Sigrid fala várias vezes do horror que Sontag tinha de ficar sozinha, então era melhor aquela professora brasileira do que um almoço sem companhia no hotel meio triste.

Às páginas tantas falei alguma coisa sobre os anos em que morei na Europa e subitamente a crítica passou a prestar atenção ao que eu falava. Em resposta a suas muitas perguntas – alma de jornalista –, contei que morara em Paris, estudara na École de Hautes Études e assistira às aulas de Roland Barthes. Fora um ano especial para os estudantes, porque as aulas eram dadas num teatro e o crítico francês, vaidoso, aproveitava a iluminação da ribalta.

Daí em diante tudo mudou e tornou-se uma conversa quase entre pares. Poupava minhas observações para ouvi-la o máximo possível e tudo o que falava era da maior importância, sempre marcado pelo magnetismo de sua presença. Política ainda mais que literatura, cultura em todas as expressões possíveis, e pelo mundo afora.

Lembrei-me tanto dessa cena quando li o que Sempre Susan fala sobre a admiração que a ensaísta, ela mesma capaz de se utilizar da belle écriture, tinha por Barthes. No livro está o relato de uma conversa entre as duas a propósito de como David e sua mãe eram próximos e se pareciam:

Ela me mostrou uma fotografia que a encantava, o jovem Roland Barthes com sua mãe (…) Roland Barthes, um dos maiores heróis literários de Susan, a quem eu muito admirava também, viveu com a mãe até o dia em que ela morreu.

A experiência barthesiana nem foi tão importante para mim. Naquele momento o crítico seguia em análises que me pareciam um tanto áridas, no caminho do enjoado S/Z. Nada ainda dos arrebatadores escritos de A câmara clara, que serviu de estímulo para Sontag escrever Sobre a fotografia, ou o íntimo Incidentes, mas me garantiu minimamente o interesse daquela mulher poderosa durante o almoço.

Concluímos o passeio enquanto esperávamos o quarto ficar pronto, indo, por sugestão dela, ao Pão de Açúcar. Subimos até o morro da Urca e lá me dei conta de grave erro meu: não levara nenhuma máquina fotográfica (pré-história: não havia celular para fotos!). Um quiosque vendia aquelas pequenas máquinas descartáveis. Perguntei se poderia tirar uma foto dela com aquela vista, e é claro que ela aprovou, adorara fotos. Foi com a precária maquininha que pude garantir que não fora tudo um delírio.

Figura 1: Susan Sontag em visita ao Rio de Janeiro.

Antes de irmos, propôs uma foto juntas e essa é mais uma que resistiu ao tempo.

Figura 2: Susan Sontag posa ao lado da professora Beatriz Resende.

Voltamos para o hotel, deixei-a no quarto, onde abriu a mala e tirou uma série de livros seus e me disse que escolhesse um. Interessei-me por uma obra crítica que se ocupava de teatro e eu não conhecia. “Rubbish”, exclamou, e me estendeu um romance.

Sigrid diz: “insistia que era uma escritora de ficção que por acaso escrevia ensaios, e não o contrário”.

No dia seguinte era a conferência. Na programação não constava o título, porque a palestrante não mandara. Ainda em nossa breve biografia a autora fala da relação ambígua que Susan guardava com as palestras, conferências, aparições públicas de modo geral, necessárias para vender livros, e ela precisava vender. Sigrid fala da impressão que a ensaísta passava de que, se não fosse pelo dinheiro, estava perdendo seu tempo.

Ganhou fama de ser um monstro de arrogância e falta de consideração, mas conforme a vida seguia, os convites continuavam chegando, ela os aceitava, e a má reputação crescia cada vez mais.

E vai mais além:

“Não tenho uma palestra entalada”, dizia, insinuando que ter uma palestra pronta não era algo de que qualquer escritor deveria se orgulhar. Ela improvisava – com resultados variados.

De fato a palestra, com “tema a confirmar”, não foi o sucesso que poderia ter sido. Na verdade, não apresentou nada que os leitores mais aplicados já não conhecessem. Carlo Ginzburg fez uma bela fala sobre “Memória e Distância”, mas, por mais que o historiador italiano esbanjasse simpatia, ninguém poderia concorrer com o carisma de Susan.

Deixou-nos em dezembro de 2004, pouco depois de publicar o fundamental Diante da dor dos outros, dedicado a David, sobre guerra, dor, violência, imagens de atrocidades. O livro começa por citar Virginia Woolf escrevendo sobre a Segunda Grande Guerra, passa por conflitos e atentados, e, a cada imagem do horror de novas guerras telemonitoradas a que assistimos, o livro parece mais atual.

Falando de fotos que constroem nossa ideia do presente e do passado imediato, diz: “Essas ideias são chamadas de ‘memórias’ e isso, no fim das contas, é uma ficção”.

* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPq e da FAPERJ e editora da Revista Z Cultural.
Referências bibliográficas
NUNEZ, Sigrid. Sempre Susan: Um olhar sobre Susan Sontag. São Paulo: Instante, 2023
Resenha
Tempo de leitura estimado: 14 minutos

NO VESTÍGIO, UMA LEITURA DO LIVRO DE CHRISTINA SHARPE

Christina Sharpe em foto de Rachel Eliza Griffiths (Divulgação)

O modo mais honesto de iniciar um comentário sobre o livro de Christina Sharpe (2023) – No vestígio: negridade e existência – é reconhecer o incômodo, certa perturbação, que como psicanalista prefiro nomear de mal-estar. Pode ser descrito, ainda, como espécie de desequilíbrio: ficamos zonzos, talvez, como em alto-mar, quando somos obrigados a buscar o horizonte, o ponto fixo, a referência que nos permita ficar de pé.

Sharpe nos deixa, então, deixou-me, ao menos, no vestígio. O que pode ter muitos significados. A dificuldade de tradução que acompanha o texto se refere à distância continental das línguas e aos impasses da travessia. Às vezes, são necessárias muitas palavras e a imprecisão deve ser explorada com vagar. Wake tem sentidos diversos que, em português, requerem outras palavras: vigília, velar, velório, vereda.

Há algo de específico nesse mal-estar, que talvez torne preciso recorrer a categorias como lugar de fala  (Ribeiro, 2019) ou saberes localizados (Haraway, 1995) para dizer da minha leitura e do quanto posso me implicar ou ser implicado pelo pensamento e afetos evocados por Sharpe. Afinal, ainda que não seja, nos termos de Charles Mills (2023), um signatário, sou certamente um beneficiário do contrato racial e da violência que engendra.

Não seria, contudo, justo falar, a partir do que li, em identidade. Melhor, necessário, dizer de experiências, experiências compartilhadas, aquelas capazes de se sobrepor à distância temporal de alguns séculos, fazendo passado e presente coexistirem no mesmo instante – afinal, para muitas pessoas Negras – grafado assim, em maiúscula, como quer a autora – não é necessário viajar no tempo, como a personagem de Octávia Butler (2019), em Kindred, para viver concretamente a violência da escravização, da transmutação de si mesmo em coisa.

Experiências, contudo, que não podem ser compartilhadas por um homem branco, por exemplo. O que não quer dizer que o livro não nos toque na carne. Tais experiências, como a do porão do navio, do tumbeiro, percorrem todo o livro.

A travessia proposta pela autora se faz em quatro momentos que se movimentam e se contaminam – vestígio, navio, porão, tempo –, capítulos que se encadeiam e se sobrepõem, como o passado e o presente na sensibilidade do vestígio. Navegando-os, descobrimos sentidos novos para palavras conhecidas, e conhecemos outras, como tumbeiro. Navio e sepultura, transporte para a não humanidade e depois a morte.

O destino do livro, porto (um pouco mais) seguro, é fazer do “vestígio” um problema para o pensamento. Há muito a elaborar.

Mas será preciso, antes, perguntar de que pensamento falamos quando buscamos, ao mesmo tempo, interrogar o tipo de racionalidade objetivante, que acaba por transformar pessoas em coisas para descartá-las em benefício de outras mais valiosas, ou simplesmente liquidá-las em troca do seguro comercial. Desdobrar o vestígio em vigília, implica em pensar de outro modo, uma forma de in-disciplina recusando a racionalidade que faz com que as pessoas pretas sejam “com frequência disciplinadas a pensar por meio de nossa própria aniquilação”. Só assim será possível formular “um método para encontrar um passado que não passou” (Sharpe, 2023, p. 33).

Quando afirma se distanciar de intelectuais que buscam respostas políticas, jurídicas ou filosóficas para aproximar-se da arte – da literatura à performance passando pela cultura visual –, Sharpe nos alerta para a incidência da sensibilidade na vigília que reconfigura o pensar. Trata-se de um novo regime de pensamento, de saber, novo regime estético, como quer Paul B. Preciado (2020), que fala a partir da resistência a outra operação colonial de corpos. Como em muitos outros momentos, o pensamento de Sharpe se aproxima de temas caros ao pensamento queer, sobretudo ao que nele se engendra de utopia, como o trabalho de subversão da cronologia que nos incita a falar de um “passado que não passou reaparece, sempre, para romper o presente” (Sharpe, 2023, p. 25). É assim que o vestígio se torna “uma forma de consciência” (Sharpe, 2023, p. 35).

Outras aproximações podem ser feitas com o pensamento queer, inclusive em relação à interrogação do modo como o pensamento (ocidental, branco, europeu, masculino, heterossexual) definiu as fronteiras da humanidade e nelas sentou guarda armado de regimes de verdade e de dispositivos de poder. Definindo, ainda, o modo como se transmite tal humanidade ou seu contrário.

Sharpe nos lembra que a genealogia, a filiação, que, para muitos, garante a ordem simbólica e o primado da civilização sobre a barbárie, no vestígio, opera a persistência da exclusão, pois o que se transmite, simbolicamente, é a não existência:

Viver (n)o vestígio da escravização é viver “a vida após a morte da propriedade” e viver a vida após a morte da ideia de partus sequitur ventrem (quem nasce segue o ventre), em que a criança Negra herda o (não) status, a (não) existência de sua mãe. Essa herança de um (não) status está aparente em toda parte agora na criminalização contínua de mulheres e crianças Negras. (Sharpe, 2023, p. 36)

Questões de gênero chegam a ser tratadas diretamente no livro e os corpos Negros são aproximados de corpos queer, tendo sua experiência marcada por um asterisco seguindo a palavra trans, como em Jack Halberstan (2023). Corpos que resistem à generificação, à epistemologia da diferença sexual, ao mesmo tempo que, como propõe Berenice Bento (2023), estão aquém dela, pois estão fora da humanidade. Nos termos de Sharpe, ejetados.

O asterisco após o prefixo “trans” mantém o espaço aberto para o pensamento (a partir dessa e nessa posição). O asterisco também se refere a uma gama de experiências incorporadas chamadas de gênero e ao desmantelamento do gênero euro-ocidental, sua incapacidade de se manter na/sobre a carne Negra. O asterisco diz sobre uma série de configurações da existência Negra que tomam a forma de tradução [translation], transatlântico, transgressão, transgênero, transformação, transfiguração, transcontinental, transfixado, transmediterrâneo, transubstanciação (processo pelo qual poderíamos entender a transformação de corpos em carne e depois em mercadorias fungíveis, mantendo a aparência de carne e sangue), transmigração e muito mais. (Sharpe, 2023, p. 66)

O pensamento em vigília, que vela, se faz afetivamente, por afetação, não havendo separação no vestígio, na turbulência, na vigília, entre razão e emoção. Recusa-se, nos termos de Saidiya Hartman, a “violência da abstração” (Sharpe, 2023, p. 24). O trabalho intelectual se dá com os nervos à flor da pele. Da mesma forma, o político contém o íntimo. A dor sofrida na intimidade é testemunho da subjugação política. Subjugação vivida em público e no privado, como na privação.

O livro se inicia com relatos de perdas, íntimas, pessoais, o que se articula à busca de uma narrativa singular e de suas condições e modos de produção. Mais uma das razões pelas quais a obra de Christina Sharpe interessa a um psicanalista branco e cisgênero que escuta pessoas negras e trans, desejando que essa escuta não se ancore no silenciamento do outro, de muitos outros: “incluo o que é pessoal aqui para conectar as forças sociais acerca do que é existir no vestígio para uma família específica ao que é existir no vestígio para todas as pessoas Negras” (Sharpe, 2023, p. 23).

Trata-se de falar de experiências subjetivas singulares a partir do que lhe seria, em princípio, exterior, evitando psicologização ou essencialização, privilegiando experiências e as estruturas que as produzem. Dessa forma, também é possível falar da negridade sem atribuição de marca identitária comum: este, se produz ao longo do tempo e é o interminável desse tempo, da redução dos corpos Negros a coisas, que define os limites possíveis da experiência. Por outro lado, essa escrita corporificada, questiona, ao mesmo tempo, o sujeito universal e o regime de produção de conhecimento instituído a partir do centro europeu.

A linguagem já está, aliás, desde sempre encarnada, como nos mostra o caso George Floyd, estrangulado por um policial na cidade de Minneapolis, lembrado pela autora, ou a morte por asfixia de Genivaldo num camburão da Polícia Rodoviária Federal, no estado em que moro, Sergipe. A falta de ar, a impossibilidade de respirar, o sufocamento intencional não são metáforas.

Essa passagem, travessia entre corpos e nomes, palavras, é algo central na escravização: “A primeira linguagem que os guardas do porão usam com as pessoas cativas é a linguagem da violência: a língua da sede e da fome e da dor e do calor, a língua da arma e da coronhada, o pé e o punho, a faca e o arremesso ao mar” (Sharpe, 2023, p. 128).

A morte está presente em quase todas as páginas e talvez o livro possa ser descrito como elegante e poético testemunho de um trabalho de luto. Mas como se esse luto fosse infinito, como se o preciso fosse sempre e para sempre continuar a velar mortes que não se esgotam, se desdobram, se repetem em outros corpos que de algum modo são um mesmo, um só. “Vidas após a morte da escravidão”, escreve Sharpe.

Sharpe faz mais do que nos recordar a escravização e o tráfico de pessoas. Não se trata apenas de um esforço de rememoração, ainda que este seja necessário e árduo. Trata-se de reconhecer no presente a repetição, a permanência do passado, permanência do desastre: “os meios e modos de sujeição infligidos às pessoas Negras podem ter mudado, mas o fato e a estrutura dessa sujeição permanecem” (Sharpe, 2023, p.31).

Vestígio pode ser o rastro deixado pelo navio que cruza o oceano carregando pessoas transformadas imaginariamente em coisas, mercadoria. Ou pessoas que morrerão no caminho e só então serão consideradas humanas, como os refugiados mortos nas costas europeias ontem. Talvez também hoje, provavelmente amanhã. Numa nota de rodapé, aprendemos que o desastre “é o desdobramento contínuo de séculos do comércio de pessoas africanas” (Sharpe, 2023, p. 18).

Examinando obras de arte, Sharpe encontra vestígios humanos: a personagem negra que aparece apenas para desaparecer; a criança com uma etiqueta em seu rosto onde se lê navio; Délia e Drana, fotografadas “para revelar como a negridade é e como olhar para ela” (Sharpe, 2023, p. 86). Destinos que se repetem, violência tão contínua quanto gratuita, imagens que não são verdadeiramente percebidas, seres espectrais, retratos de (não) existências. Como aqueles seres que foram lançados ao mar de uma embarcação chamada Zong, antes Zorgue, que significa cuidado. Seres espectrais, como a Amada de Toni Morisson (2007), personagem recorrente no argumento de Sharpe, ou como a senhora Jackson do filme The Forgotten Space:

A maneira como ela é incluída no filme e a incapacidade de este compreender seu sofrimento fazem parte da ortografia do vestígio. O espaço esquecido é a negridade, e quando a sra. Jackson é conjurada para preenchê-lo ela aparece como um espectro. (Sharpe, 2023, p. 61)

A semântica fantasmagórica é recorrente – espectros, assombrações – para descrever uma experiência que talvez possamos aproximar do Unheimilich freudiano (Freud, 2021), do que intimida, do estranho que surge no familiar, ou o contrário.

O que dá sentido maior à história de morte do Zong, assassinatos percebidos como lançamento de mercadoria ao mar, tem importância vital no trabalho de/na vigília de Sharpe.

O Zong foi levado ao conhecimento do grande público britânico pela primeira vez por jornais que noticiavam que os proprietários do navio estavam processando os seguradores pelo valor do seguro daquelas 132 (ou 140, ou 142) pessoas africanas assassinadas. Os pedidos de indenização são parte do que Katherine McKittrick chama de “matemática da vida negra”, o que inclui essa matabilidade [killability], esse lançamento ao mar. (Sharpe, 2023, p. 61)

Assim, Sharpe nos adverte que a redução do outro à vida nua, bem como a separação entre vidas dignas e indignas de serem vividas, elementos centrais da leitura da biopolítica proposta por Agamben (2010), é uma operação política de larga escala posta em movimento muito antes do nacional socialismo alemão e dos seus campos de concentração. Tudo começou muito antes, apenas não foi percebido. O mal, até então, se abatera apenas sobre seres que podiam ser coisas, podiam ser facilmente situados além das nossas possiblidades de identificação.

No Zong, o navio, há um porão no qual se transportam pessoas transmutadas em mercadorias que podem, em caso de necessidade, serem lançadas para a morte, no vestígio do navio, sem que isso seja visto, entendido, enunciado como assassinato. Aqui, a importância das palavras em seu múltiplo sentido, importa. O porão do tumbeiro, que se chamou cuidado, se escreve hold, e nada está mais longe do to hold, que no psicanalista Donald Winnicott (2022) deriva em holding, condição imprescindível para que o bebê se torne um ser.

Esse navio, que transporta vidas que serão assassinadas e de algum modo já tem seu destino traçado, não no momento em que embarcam ou são conduzidas ao porão, mas no momento em que nascem, partus sequitur ventrem, ainda navega nas águas do mediterrâneo e ancora em campos de refugiados. Não por acaso, o navio tem um ventre.

O Zong se repete; ele se repete e se repete por meio da lógica e do cálculo da desumanização iniciada há muito tempo e ainda operante. Os detalhes e as mortes se acumulam; os idem idem preenchem os arquivos de um passado que ainda não é passado. Os porões se multiplicam. (2023, p.133)

Verificação rotineira de documentos, baculejo, centros de detenção de famílias, centros de detenção, Lager [campos de refugiados], zonas de quarentena… são outros nomes pelos quais se pode reconhecer o porão como ele aparece em Calais, Toronto, Nova York, Haiti, Lampedusa, Trípoli, Serra Leoa, Bayeruth e assim por diante. (2023, p.153)

Importante dizer, enfim, que No vestígio nos dá respostas a certo discurso crítico dos movimentos ditos identitários, que procura desqualificar a retomada da categoria de raça pelos movimentos antirracistas, afirmando que esta categoria foi expulsa do campo da ciência e que tanto a escravização acabou quanto as antigas colônias se emanciparam[1]. O faz recordando, tecendo laços entre esse passado e o que vemos hoje na TV – os navios de refugiados no mediterrâneo, mas poderia ser o trabalho análogo à escravidão nos grandes latifúndios brasileiros –, o que vivem em seus corpos, pessoas marcadas pela cor negra da sua pele[2]. A cristalização da identidade é, por outro lado, uma das marcas do/no vestígio, não apenas uma imagem, estereótipo, que permite o reconhecimento imediato e a pronta ação das forças da ordem, mas a inscrição de um destino:

Uma professora do primeiro ano em Paterson, Nova Jersey, posta no Facebook que vê em seus alunos e alunas “futuros criminosos”. “Futuro criminoso” se junta a “ex-mãe” no anagramatical: não criança, não mãe, não ser. No vestígio, devemos conectar a indústria do nascimento à indústria prisional, a máquina que degrada, nega e eviscera a justiça reprodutiva à máquina que encarcera. (Sharpe, 2023, p. 160)

* Eduardo Leal Cunha é psicanalista. Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), professor titular da Universidade Federal de Sergipe e pesquisador associado da Universidade de Paris. Publicou recentemente O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política, pela Editora Criação Humana, e O político e o íntimo: subjetivação e política, do impeachment à pandemia, pela Editora Devires, onde dirige a coleção Impertinências.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

ANDRADE, Érico. Negritude sem identidade. São Paulo: n-1, 2023.

BENTO, Berenice. Europa: Homonacionalismo e racismo, Revista Cult, 22 de setembro de 2023. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/europa-homonacionalismo-e-racismo/. Acesso em 8 fev. 2024.

BUTLER, Octavia. Kindred: laços de sangue. São Paulo: Morro Branco, 2019.

FREUD, Sigmund. O incômodo. São Paulo: Blucher, 2021.

HALBERSTAN, Jack. Trans*: uma abordagem curta e curiosa sobre a variabilidade de gênero. Salvador: Devires, 2023.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados, Cadernos Pagu (5), p. 7-41, 1995.

MILLS, Charles. O contrato racial. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

PRECIADO, Paul B. Je suis um monstre qui vous parle. Paris: Grasset, 2020.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

ROUDINESCO, Elizabeth. O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

SHARPE, Christina. No vestígio: negridade e existência. São Paulo: Ubu, 2023.

WINNICOTT, Donald. Processos de amadurecimento e ambiente facilitador. São Paulo: Ubu, 2022.
Notas
[1] Ver, por exemplo, Roudinesco, Elizabeth. O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

[2] Logo depois de encontrar Christina Sharpe, me deparei com Érico Andrade e seu Negritude sem identidade, de modo que, para mim, ambos acabam se encontrando frequentemente no que penso e sinto.
Entrevista
Tempo de leitura estimado: 44 minutos

ORIGINAL É O PECADO: ENTREVISTA COM BIA LESSA

Bia Lessa é uma artista multimídia que não hesita em encarar grandes temas e grandes autores. Uma ousadia que é sua marca desde a estreia como diretora em 1983, com a peça A terra dos meninos pelados, baseada no livro homônimo de Graciliano Ramos. De lá para cá, encenou no teatro obras como Orlando, de Virginia Woolf (com texto de Sérgio Sant’Anna) em 1989, e Os possessos, de Fiódor Dostoiévski, em 1987; montou óperas como Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart, em 1992, e Suor Angélica, de Giacomo Puccini, em 1990; e foi responsável pela criação e curadoria do Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de 2000 (EXPO) em Hannover, Alemanha, do Módulo Barroco da Mostra do Redescobrimento, no Museu Nacional de Belas Artes, em 2000, no Rio de Janeiro, e das exposições Grande Sertão: Veredas, na Inauguração do Museu da Língua Portuguesa, em 2006, e Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem?, na Fundação Armando Alvares Penteado, em 1999, ambas em São Paulo.

Nesta entrevista concedida à Revista Z Cultural em 19 de janeiro de 2024, em sua casa no Cosme Velho, Bia Lessa comenta a sua trajetória, iniciada em 1975 como atriz no Teatro Tablado, no Rio de Janeiro, e a sua relação com a recepção da crítica e do público: “O teatro é uma humilhação diária”.

Por ocasião do lançamento de seu filme O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, fala do desafio de levar Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ao Museu da Língua Portuguesa, ao teatro e, depois, às telas de cinema e trata, ainda, da inquietação que a faz explorar diferentes suportes e meios.

Foto: Arquivo Pessoal
Foto: Arquivo Pessoal

Beatriz Resende: O tema deste número é crítica e curadoria, entendendo, inclusive, a curadoria como um tipo de crítica, e a crítica contemporânea menos como crítica e mais como uma espécie de curadoria. Por isso, veio essa ideia de conversar sobre seu trajeto, sua independência, e de que maneira você convive com avaliações, com críticas.

Bia Lessa: Acho o tema extraordinário. É o que mais anima: essa ideia de curadoria e crítica como sendo a mesma coisa, porque, de fato, não há como ter uma curadoria sem uma análise crítica muito firme ou muito determinada. Também acho extraordinário pensar crítica como ação. Vivo falando para a Flora [Süssekind] que, muitas vezes, quando ela fala sobre o meu trabalho, ela inventa um trabalho que eu nem sabia que existia. Então, quando ela cria, tem uma ação em cima do próprio trabalho. O outro vem e coloca outra camada. É isso que eu acho excepcional.

Do meu caminho, não sei muito por onde começar. Fiquei um ano no Antunes [Filho], que é uma pessoa extraordinária. Eu tenho um respeito imenso por ele, mas uma hora entendi que não ia poder ficar mais. Achei que, se ficasse em São Paulo, não ia dar conta de criar o meu caminho do lado de uma pessoa tão poderosa para mim. Daí eu vim para o Rio. E, quando vim, o Antunes estava começando a história dele no SESC. Foi quando conheci o SESC na Tijuca, que era um espaço fora da zona sul, à margem. Fiquei animada, porque ficar em um canto que ninguém queria, fora de tudo, me parecia ideal. E encontrei o Ubiratan Correa, que era o presidente do SESC naquela época, que se tornou uma pessoa fundamental na minha trajetória e um amigo como poucos. Lá, fui convidada a dirigir um espetáculo infantil. Fazer o quê? Como fazer? Eu tinha acabado de ver Memórias do cárcere, [filme] do Nelson Pereira [dos Santos], que amei. Não esqueço a cena final do chapéu que voa da prisão e cai no mar. E eu me deparei com o texto de A terra dos meninos pelados [de Graciliano Ramos], uma versão infantil de Memórias do cárcere. Havia ali várias questões que me interessavam e que não eram propriamente do universo infantil. O universo só da criança não me interessava, me interessava o universo do homem. Era um espetáculo infantil que era também adulto. Na minha cabeça, se é bom para criança, é bom para adulto. Começou a minha briga, que era convencer o SESC e convencer os jornalistas que valia a pena divulgá-lo. Naquela época a gente não tinha divulgação, nós mesmos fazíamos esse trabalho. A gente ia no Jornal do Brasil e falava: “O Macksen [Luiz] tem que ir”. Na época o crítico era o Yan [Michalski] ainda, brigávamos na redação com o cara do tijolinho: “Tem que ter tijolinho de manhã e de tarde no infantil.” Era muito extraordinário ter essa relação direta com os jornalistas e críticos – hoje temos intermediários.

Flora Süssekind: Eu me lembro que o Yan fez a matéria de lançamento de A terra dos meninos pelados. Eu escrevi também sobre a peça, graças à matéria dele, anterior, e muito cuidadosa, acho que a crítica foi capa, ao menos lembro que teve uma página enorme.

Inês Cardoso: Era uma época em que havia matéria de estreia de teatro, e depois a crítica. O que já não tem mais.

BR: Quer dizer, a crítica de jornal tinha um papel fundamental.

BL: O Antunes tinha uma coisa que eu achava espetacular: nos colocar para fazer cenas. A gente ficava uma semana estudando a cena, oito horas por dia, ele parava e perguntava para cada um. “Você, o que achou da cena? E a interpretação? E o espaço? E o cenário?” Era amedrontador, uma sabatina oral… Ele geralmente nos massacrava, mas aprendíamos a decodificar. Você aprendia o espaço, você aprendia a interpretação, o figurino, a luz, cada objeto. Era uma coisa extraordinária.

Então, fiquei muito vinculada ao exercício da crítica permanente, a ter alguém com quem estabelecer um diálogo de fato. Porque, no fundo, é o que a gente mais gosta. Foi quando chamei a Ângela Leite Lopes para fazer essa dramaturgia comigo. Foi ela que me apresentou o [Tadeusz] Kantor. Não, o Antunes me apresentou o Kantor, mas ela me apresentou mais coisas dele. Antunes também me apresentou o Bob Wilson. A Ângela ficou durante um tempo comigo, acompanhando alguns trabalhos. O trabalho teórico sempre foi fundamental para mim, unir teoria e prática, ou melhor, a estética ser o resultado do conteúdo. E meu trabalho foi tachado no começo como teatro da imagem.

BR: Mas essa clarificação era algo bom ou não?

BL: Nem um nem outro. É o que falavam. Acho uma besteira, porque não tem teatro da imagem, a imagem faz parte do teatro. Como é que você faz teatro sem imagem? Acho bobo, mas já me interessava essa coisa de um homem inserido em um espaço, o homem não era mais o centro de tudo, então, se ele não é o centro de tudo, o espaço é um personagem extraordinário. Lembro que estava estudando Dostoiévski para montar Os possessos e fiz o Exercício número um, que era uma abstração um pouco em cima de Os possessos, os cientistas correndo atrás do conhecimento como o burro querendo a cenoura… Era um espetáculo de 45 minutos em que chovia papel picado. Nunca esqueço da gente picando papel a noite inteira, porque a minha vida é feita das pessoas dizendo para mim: “Não dá”, e eu fazendo. Então falei: “Precisamos que tenha papel picado caindo o tempo todo”, porque queria que as pessoas vissem o espaço. Só a luz não ia bastar, queria que vissem a pessoa dentro do espaço. “Então vamos picar o papel e ver quanto tempo dura de papel picado”. Gente, moleza, gastamos dez sacos de 100 litros, tínhamos picado cinquenta: deu e sobrou.

No primeiro dia de espetáculo, abre a cortina, mostra o espetáculo, fecha a cortina e a plateia não vai embora. Ninguém percebe que acabou. Fica aquele negócio constrangido, abro a cortina e falo: “Gente, acabou”. Ficava aquele constrangimento, e um jornal publicou, não lembro quem era o jornalista, uma crítica muito ruim, em um pequeno espaço, não chegava a ser uma crítica, era um comentário. O Yan foi para a briga e escreveu uma crítica bastante interessante e foi quando me chamaram para fazer a capa da revista Programa [do antigo Jornal do Brasil], era a capa da revista. Essa crítica, foi um divisor de águas. O SESC, através do Ubiratan, nos dando suporte, nos cedendo o espaço onde podíamos montar os espetáculos, fazer as oficinas, proporcionar espetáculos de novos diretores etc. Tínhamos o espaço, mas não tínhamos nenhum patrocínio nem apoio financeiro.

Não tinha nem papel higiênico. Não tínhamos patrocínio, mas éramos muito mais estruturados do que hoje. Éramos uma equipe, Suzana Macedo, Fernando Mello da Costa, o Alberto Renault, André Monteiro e Zé Luiz [Rinaldi]. Registrávamos em texto todos os espetáculos, todos os ensaios, as experiências, as tentativas… Tínhamos o pensamento teórico do que era cada cena e fazíamos o que chamávamos de escritura cênica. A escritura cênica, é o registro do espetáculo, com todos os elementos que o constituem. Quando o espetáculo vai para a cena, o texto não é mais o texto, ele é o texto com a luz, com a música. Então começa com o sinal, e o silêncio, aí entra a luz, e, quando a luz toca no rosto do ator, o ator sente a luz e por isso ele responde àquele estímulo e, porque ele reage à luz, a música entra. Os elementos estão sempre ligados um ao outro, pedindo uma ação ou reação.

Quando estou muito obcecada, ainda faço como uma partitura de música – de forma que se saiba que a luz entra com determinada intensidade, a música entra baixinho etc. –, tudo como se fosse um gráfico mesmo. Não para ter um registro, e sim para os atores entenderem que estão em diálogo com a luz, com o figurino, que não estão sós e que o diálogo não é apenas com a outra pessoa. O diálogo é com tudo que está em volta, com a roupa, com a cadeira que entrou. É assim até hoje. Esse é o princípio do meu trabalho. Lembro que, em Os possessos, eu precisava que o “ar” fosse “concreto” como uma massa sólida. Eu pretendia que o ar criasse uma atmosfera densa, uma tradução do universo do Dostoiévski. Um universo denso, onde os personagens estão presos. Era assim: a atriz, Lilia Cabral, dava um passo, e o outro ator tinha que recuar um passo – estabelecendo uma ligação entre os três: espaço e atores –, se um ator anda ele de certa forma “empurra” o outro.

A partir disso dá para falar um pouco de como fui fazer curadoria e expografia. Me interessava pensar a exposição também como arquitetura, não só como curadoria, mas como espaço – um caminho natural. O raciocínio entre o fazer teatral e a exposição são muito parecidos, o diferente é o processo. Me chamam de artista multimídia, mas no fundo é a mesma coisa, o mesmo pensamento – o que muda é a matéria-prima. No cinema o mesmo, uma maravilha! No cinema o espaço é também a lente que você escolhe, o movimento da câmera.

BR: E você ficou muito tempo no espaço do SESC?

BL: Uns sete ou oito anos. Foi bastante tempo. Só que no final era tão exaustivo, é a maluquice de a gente trabalhar no Brasil. É muito duro. É um esforço. Eu não ganhava dinheiro nenhum. O SESC nos cedia o espaço, mas gerenciar o espaço, dar conta dele, sem um apoio financeiro, era nossa função. A gente tinha inclusive que pagar um percentual da bilheteria, então não havia verba. Eu com uma filha pequena, sozinha. O jeito que consegui para viver foi dando cursos. Eu ia para Campo Grande com a minha filha, ficava lá duas, três semanas; ia para Salvador, voltava; ia toda semana para Volta Redonda, pegava um ônibus. Fora fazer os espetáculos. Lembro que a minha mãe ficava enlouquecida, porque eu vendia tudo. Fui casada com o pai da minha primeira filha, que era rico em relação a mim, e ele tinha muitos móveis antigos, cômodas, penteadeiras. Quando vim para o Rio, a metade ficou comigo e eu vendi tudo. Mas os espetáculos tinham o cenário que queríamos, o figurino, o registro escrito do processo de criação, como a gente não tem mais. Mas tinha e tem o custo da exaustão. Fico até emocionada de falar, por exemplo, da morte do Zé Celso. Ele foi um herói. Você vê, o Zé tinha 80 e poucos anos. Estava vivo pra caramba, mas fisicamente… Ele segurou a coisa no braço, na unha, percebe? Queimado em praça pública. Então é muito simbólico, é muito verdadeiro. A morte do Zé é o Brasil puro.

BR: Mas você sentia que o público retribuía isso?

BL: O público ora adorava, ora detestava.

BR: E quando detestava?

BL: Quando detestava era difícil, porque o teatro é uma humilhação diária. Você tem que ter uma espinha dorsal, porque todos os dias você espera uma pessoa que não vai, você vê uma plateia que não gosta, e isso durante 3, 4 meses. Lembro de Os Possessos quando a Fernandona [Fernanda Montenegro] foi… Alguém tinha dito que achava que ela ia. O SESC tem várias sacadinhas, pelas quais você fica vendo as pessoas chegarem. Estávamos eu e o Alberto [Renault] esperando, deitados em uma sacadinha, e a Fernandona apareceu lá. Avisamos ao elenco, porque era um acontecimento. Vinham quatro, vinham cinco, vinham seis [espectadores] às vezes. Isso não só em um espetáculo, mas em muitos. A gente vai aprendendo. O teatro é parecidíssimo com os desafios da vida.

Lembro que, primeiro, eu ficava muito mal com as críticas. Recebi críticas muito graves na vida. Lembro de uma do Flavio Marinho, em A tragédia brasileira, que era uma coisa assim: “É uma pena que essa menina exista”. Nesse grau. Até agora. O [Artur] Xexéu escreveu sobre Formas breves: “Soube que a Bia vai voltar ao teatro, que infelicidade, lá vem bomba”. Com o tempo, você vai entendendo que o que fica é o trabalho. É claro que [a crítica negativa do] jornal leva menos gente. Mas o que conta é o trabalho. Se o trabalho é bacana, se ele tem o que dizer, ele segue seu próprio caminho. Mas tive críticas maravilhosas, não apenas no sentido de enaltecer o espetáculo, mas de gerar reflexão, da Flora Süssekind, Yan Michalski, Gerd Bornheim, Haroldo de Campos etc.

Foto: Entrevista na casa de Bia Lessa no Cosme Velho Arquivo Pessoal
Foto: Entrevista na casa de Bia Lessa no Cosme Velho Arquivo Pessoal

Lucas Bandeira: Você falou que, quando a Flora escreve sobre sua peça, ela acrescenta algo. É como se tivesse um que diminui e um que aumenta.

BL: Sim, sem dúvida. Só que na realidade essas que diminuem são umas pessoas que estão distantes do universo em que trafego, então não contam tanto. Quer dizer, contam para o negócio do teatro, mas não para o teatro em si.

FS: Agora eu acho que nem há mais isso de levar público. Nem sei o que de fato leva público ou não, possivelmente o Instagram. Ainda assim a primeira recepção é sempre curiosa. Eu me lembro da Barbara Heliodora escrevendo sobre você, sobre o Gerald Thomas. Não se tratava simplesmente de incompreensão, mas de construir, fixar, uma espécie de invisibilidade. Porque, assim, se mantém uma mediania que não incomoda. Em grande parte, a primeira recepção resguarda padrões e convenções. Por isso é infelizmente difícil imaginar a persistência, em grandes veículos, de uma crítica que desafie esses padrões.

BR: A gente reconhece o talento da Barbara, mas sabia que era uma pessoa reacionária.

BL: Lembro que, no Formas breves, encontrei com ela antes de ela entrar e falei: “Preparada para a luta?”. Eu acho até engraçado. Olha o grau de distância dela sobre o espetáculo. Ela escreveu: “Bia continua não fazendo teatro, agora ela faz artes plásticas”. Quer dizer, a concepção dela de teatro não possibilitava ver que o teatro hoje pode ser também artes plásticas. Ela tinha um valor, mas um valor fixado num modelo, modelo que hoje em dia já não é mais possível. Se há modelos hoje, são infinitos.

Quando eu fiz a minha primeira ópera, que foi a Suor Angélica, com Paulo Mendes da Rocha, um trabalho que adorei fazer, foi um sucesso do ponto de vista de levarmos à cena o que pretendíamos e também da compreensão do público de nossas intenções. Quando acabou, lembro que a gente foi para um restaurante e comemoramos muito a noite inesquecível. A gente sabe quando alguma coisa acontece, foi uma comoção! Naquele tempo a gente ficava acordado para esperar o jornal sair. E estava escrito assim na Folha de S. Paulo: “Bia Lessa copia Bob Wilson” [a crítica saiu com o título: “Bia Lessa faz cópia dos cenários de Bob Wilson”]. Quase morri. Nunca tinha visto o Bob Wilson na vida, a não ser algumas fotos que o Antunes tinha me dado. Daí, um cara lá da Bienal, amigo do [Emilio] Kalil, falou assim: “Vamos ver o que tem do Bob Wilson”. Bom, descobrimos que o Gerald encontrou com esse cara, [o jornalista Luís Antônio] Giron, e falou sobre a proximidade com um trabalho do Bob Wilson. E daí fomos pesquisar: não tinha nada, nem que lembrasse esse trabalho. O que tinha era o seguinte, no Bob Wilson tinha um cenário com umas escadas, em que umas pessoas subiam como se fosse uma biblioteca. No meu era um paredão que as freiras escalavam, sem escada, elas subiam pelas paredes, não tinha nada a ver. Acho que é errado, é mesquinho – ninguém poderia dizer que alguém copia sem ter uma prova de que copia. Só de ouvir algum comentário na saída de um espetáculo.

FS: A própria ideia de cópia é complexa… Não há como trabalhar sem referências. Trata-se de ver como elas atuam. Trata-se de ver os deslocamentos que foram operados. Se houver alguma referência bruta, aparentemente sem grandes desdobramentos, trata-se de pensar por que se dá essa apropriação tal qual, por que esse ready made está lá.

BL: Exatamente. Mas uma hora você entende que uma certa imprensa funciona assim. Ela levanta sua bola para cortar depois. A gente não pode esquecer que o jornal é feito para ganhar dinheiro. Então, a relação deles é com o Ibope ou instituto semelhante.

LB: E alguns críticos estavam ali para isso.

BL: Era para isso. Tanto que, depois, eu respondi a ele. E o [Fernando] Zarif me deu o título mais lindo do mundo: “Original é o pecado”. Tive muitas brigas com jornalistas, porque tinha a ingenuidade de achar que o mercado não estava em primeiro lugar. Ao mesmo tempo criei relações profundas com outros, que até hoje são contribuições fundamentais.

BR: E como você passou para a ópera?

BL: Não passei, foi algo que se deu naturalmente. Foi o Emilio Kalil, diretor do Theatro Municipal de São Paulo na época, que viu meu espetáculo Orlando e achou que ele era de certa forma uma ópera, que a linguagem cênica conversava com a ópera. Daí ele me chamou para montar Suor Angelica, de Puccini – minha primeira parceria com Paulo Mendes da Rocha. A mesma coisa aconteceu com a primeira exposição, a Faap me convidou para fazer uma exposição da alta-costura do Christian Lacroix. E me chamaram, em seguida, para fazer uma exposição sobre o Brasil. Foi quando conheci a Maria Lúcia Montes, uma antropóloga e historiadora da USP, uma pessoa extraordinária que trabalhava com Emanoel Araújo e o ajudou a criar e inventar a Pinacoteca [do Estado de São Paulo; Araújo criou a Associação dos Amigos da Pinacoteca]. A Maria Lúcia foi uma pessoa que me ensinou muita coisa. Ela falava: “Isso não conversa com isso. Essa imagem não conversa. O que que conversa com o quê? O que colocar do lado de quê?” E eu resolvi fazer uma exposição, a Brasileiro que nem eu. Que nem quem?. Era um pouco sobre o que é o brasileiro, mas, ao mesmo tempo, já era uma coisa multi. Primeiro a gente pensou: historicamente, quem é o brasileiro? Então vieram o documento, o registro, mas olhávamos e falávamos: “o brasileiro não está aqui”. Pegávamos foto documental, mas o brasileiro também não estava lá. Então havia as artes plásticas, a poesia, a música. Tínhamos muitas linguagens para explicar o que era o brasileiro. Uma música do Cartola, por exemplo, pode falar mais do brasileiro do que mil documentos, mas os documentos dizem algo que o Cartola não diz – então a exposição precisava contar com essas múltiplas camadas, para tentar chegar ao “brasileiro”. Foi minha primeira exposição, a primeira em que fiz curadoria e expografia.

Nessa época, conheci o [José] Mindlin, porque eu precisava de um quadro do Franz Post. Foi a coisa mais linda do mundo. Eu nunca tinha feito curadoria e nem exposição, então ninguém me cedia nada. Eu ligava para a dona do quadro, pedia para ela me emprestar a obra, até que um dia ela não aguentou mais e disse: “Minha filha, eu só te entrego o meu quadro se o José Mindlin vier aqui”. Tudo bem, não tinha, e acho que continuo não tendo, nenhuma timidez para alcançar o que era imprescindível para que o discurso da exposição ficasse inteligível. Peguei o telefone do Mindlin, liguei: “José Mindlin, aqui é Bia Lessa, você não me conhece, etc.”. Ele disse: “Me dá cinco minutos”. Deu cinco minutos e ele me ligou: “Estou aqui na porta dela”. Ele foi até a casa da colecionadora e me trouxe um Franz Post naquele mesmo dia. Lembro que uma vez liguei para ele e falei: “Puxa, não estou conseguindo ir aí tantas vezes te ver”, e ele me disse: “Você tem que me garantir só uma coisa: você está lendo? Me visitar não precisa”. Eu tinha o maior preconceito do mundo com colecionador, porque acho essa coisa de coleção besta. Mas fui na coleção do Mindlin e, na hora em que ele me abriu o Grande Sertão: Veredas, fiquei tonta, quase caí. Me deu um grau de emoção, fiquei branca, e entendi o Mindlin e a importância daquilo. É incrível, o jeito como ele doou, o jeito como ele cuidava, como ele divulgava [a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin foi doada para a Universidade de São Paulo (USP) e é aberta ao público]. Era o oposto da coleção, no sentido do acúmulo.

BR: E você chegou ao Grande Sertão: Veredas.

BL: Me chamaram para o Museu da Língua Portuguesa e o projeto do museu era maravilhoso, mas tinha só a ver com a estrutura da palavra. De onde ela vinha, o que vinha do tupi, do latim… E pensei: um museu sobre a língua portuguesa que não fala da linguagem? O poder do idioma é a linguagem. Claro que é importante você saber a origem das palavras, mas me brotou de imediato o valor da linguagem, que é o que me fascina na vida – as mil formas de você falar com o outro.  Pensei no Grande Sertão: Veredas, em Guimarães Rosa, mas eu nunca tinha lido o livro. Eu conhecia da escola, mas nunca tinha lido. E, na hora em que eu peguei o livro, pensei: “Me fodi”. Porque não podia expor nada, se expusesse uma fotografia, estaria falando que o sertão era aquilo. Se eu fizesse o sertão da Bahia, se pusesse os óculos do Guimarães… Qualquer exposição enfraqueceria a obra.

Lembro que entrei no museu e ele estava em obra. Vi os entulhos e me veio aquela metáfora óbvia, que é a construção do museu, a construção da linguagem. Então decidi trabalhar com os tijolos, com os restos, os entulhos – os materiais da construção dariam suporte às palavras. Uma constrói prédio, a outra ideias.

BR: E isso foi decisivo para a própria instituição, para o museu ser o que ele quis ser.

BL: Acho que foi. Até foi bonito isso, porque a gente teve uma discussão muito grande e eu defendia que fosse museu e ninguém queria que fosse museu. Era o “Palácio da Palavra”. Eu falei: “Não, tem que ser museu, porque, sendo museu, vai nos obrigar a ter um outro tipo de relação”. Foi uma briga bonita.

BR: O que você está dizendo é que o museu não tem que ser o que o museu é?

BL: Acho que a função da gente é contribuir. É ampliar as regras ou mudar as regras. Quer dizer, na profissão de crítica não tem outra saída, você está no fogo cruzado. Se vai fazer o que já existe, não é essa a profissão. Então não adianta. Acho que a função é botar a cara a tapa, uma função de exposição absoluta. Mas foi muito difícil, eu sofri muito. Não sofri só para fazer, mas sofri para convencer as pessoas de fazer uma exposição só com palavras. Eles não queriam, receavam o uso exclusivo da palavra, diziam que palavra é a coisa mais chata de uma exposição – e de certa forma eles tinham razão, mas a palavra na exposição não era apenas texto, era também imagem. Acho que por isso tocava tanto as pessoas.

Exposição Grande Sertão: Veredas. Foto: Acervo Pessoal.
Exposição Grande Sertão: Veredas. Foto: Acervo Pessoal.

LB: Isso me lembra dos vídeos da preparação para a peça [Grande Sertão: Veredas]. Tem ali um trabalho duplo. Você primeiro faz a curadoria do próprio Guimarães, tanto na exposição quanto na peça, e a partir daquilo cria um espaço, primeiro no ensaio, depois na peça.

BL: E depois no filme.

LB: E depois no filme. De interação do ator com o texto em relação ao qual você fez a curadoria e depois do espectador em relação ao espaço. Eu queria que você falasse um pouquinho disso. Ser curadora de Guimarães Rosa e Mário de Andrade [na peça Macunaíma] e de vários outros.

BL: Nunca adaptei, porque sempre trabalhei com alguém com o domínio da palavra. No caso do Grande Sertão, também não adaptei. Eu curei, fui tirando trechos. Quando falam adaptação, não tem adaptação, tem o livro tal como é, esse pedaço, aquele pedaço, aquele outro pedaço. Então, não teve, como teve no Orlando, uma adaptação [de Sérgio Sant’Anna sobre o romance de Virginia Woolf].

LB: E é a curadoria como criação, não é? Você está criando sem intervir no texto diretamente.

BL: É, você intervém na relação dele com o outro. O que é que está do lado do quê? Você colocar um Kafka do lado de um Dostoiévski é diferente de você colocar um Kafka do lado de um Freud. Você faz algo a partir da relação que estabelece entre uma coisa e outra. É isso que acho lindo na curadoria: o que está do lado do quê? O que está conversando? Então você vai criando uma outra camada. Isso é muito lindo.

BR: Acho que na verdade é isso que dá um salto na curadoria. Por exemplo, o museu está em crise, então você arranja um tema, cata isso, cata aquilo, cata aquilo outro.

BL: A primeira vez que vi uma curadoria que me encantou profundamente, porque os museus eram assim, posso estar sendo ignorante, mas era assim. Duchamp. Van Gogh. Daí eu lembro que entrei um dia na Tate [em Londres] e era assim: amor, desejo. E daí tinha o Duchamp, conversando com o Monet, com o Picasso, com o Vermeer. Não era uma exposição cronológica ou uma retrospectiva de um dos artistas, era a obra de um em diálogo com a do outro – atravessando os tempos, sem cerimônia.

FS: Talvez você pudesse falar da disposição das peças naquela exposição da coleção do Itaú. De alguns quadros colocados no chão, tendo um suporte de vidro em cima. Como a “Painting to Be Stepped On”, da Yoko Ono. Lembro como a reação a essa exposição foi violenta. A reação a outro lugar para olhar, a outro modo de pensar a disposição, e o percurso pelas obras. E houve também a reação à mostra sobre o Barroco. A recepção a essas exposições foi marcada por um desconforto muito grande de curadores mais tradicionais e também de alguns artistas.

BL: O Emanoel Araújo tinha acabado de fazer uma exposição no Grand Palais, em Paris, sobre o barroco brasileiro, com muito sucesso. Uma exposição toda barroca, uma obra do lado da outra, linda, como ele sempre fez. E o meu barroco era uma exposição dos 450 anos do Brasil. Então na minha cabeça eu tinha que fazer uma exposição do Brasil, do povo brasileiro e do barroco. Por isso, criei aquelas flores todas e separei as obras. Então, eu punha um Aleijadinho e você andava dez, quinze metros para ver o outro. Havia ali dois protagonistas em diálogo: as obras e a história do Brasil a partir da colonização, que imprimiu uma religiosidade católica, cheia de pecados e culpa, onde o homem tem que ter temor a Deus, e o brasileiro transformou essa religiosidade num Deus que obedece aos desejos do homem: “Se Santo Antônio não me arruma um marido, ele fica de cabeça para baixo”. O barroco brasileiro traz essas questões, as obras barrocas que vieram da Europa e foram se transformando a partir da realidade encontrada aqui. Foi uma exposição que gerou uma série de questões, propunha uma outra forma de expor que não fosse mais o cubo branco, criando elementos que dialogavam com as obras.

Em Brasileiro que nem eu. Que nem quem?, foi a maior discussão com a Maria Lúcia Montes porque eu disse que ia colocar [as obras religiosas] no chão. Era uma briga imensa, porque como colocar o “sagrado” no chão? A Maria Lúcia falava que não podia botar no chão arte sacra, o ouro no chão. Eu retruquei: “As pessoas vão pisar em cima da igreja” e o que aconteceu foi o imprevisível: o chão ficou mais sagrado do que nunca, as pessoas pisavam com imenso cuidado, como se pisassem em ovos. E nessa sala, no teto, tinha uma foto da Nossa Senhora da Boa Morte, o que era bonito porque a morta refletia nesse vidro em cima do qual as pessoas passavam. Sagrado e profano juntos. Era uma exposição em que chão, teto e parede existiam.

Para fazer a cidade de São Paulo, para explicitar a selvageria da especulação imobiliária, optamos por colocar palitos de fósforos queimados pela parede inteira – era uma parede circular –, eram milhões de palitos de fósforo, colocados um a um. No centro da sala havia uma espécie de poço com óleo negro – petróleo –, no centro desse poço, exposto o osso do Anchieta, porque conseguimos o osso do Anchieta. Até hoje não sabemos como a Diocese nos emprestou esse osso. Então na sala tínhamos a floresta destruída através dos milhares de palitos de fósforo queimados, o poder e a sedução do dinheiro através da beleza do poço de petróleo, que produzia uma espécie de espelho onde tudo se refletia, e um pedaço do corpo do colonizador.

E tinha uma coisa que eu gostava. A exposição chamava Brasileiro que nem eu. Que nem quem?. Quando as pessoas entravam, eram fotografadas, e íamos colocando a foto de cada visitante [na parede] e fomos tendo que criar mais paredes, a exposição ia se ampliando diariamente. E tinha expostas as obras de artes plásticas, os documentos, a música, a poesia, a fotografia etc. Camadas!

Exposição Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem? Foto: Acervo Pessoal.
Exposição Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem? Foto: Acervo Pessoal.

BR: Voltando ao Grande Sertão, você primeiro chegou à exposição, e da exposição foi para a peça.

BL: Teve a exposição e eu não imaginava a possibilidade do teatro.

BR: E como é essa mudança de suporte?

BL: Ah, é de novo aquilo, conteúdo e forma. Se o espaço diz uma coisa, o que está dentro dele, o objeto ou a pessoa, também tem um significado, o diálogo que estabelece entre eles é o que me interessa. Então não me interessava fazer um filme da peça, um registro. Mas havia o desejo de levar para o cinema as questões que o teatro me colocava, porque na peça o cinema me ajudou demais. Por exemplo, o corte seco que tem no cinema foi uma linguagem que levei para o espetáculo. No cinema há uma cena no deserto, corta para dentro do apartamento. No Grande Sertão não tinha entrada e saída de ator. O tempo inteiro estavam todos lá, num espaço que não permitia saída. Os atores ora eram homens, em seguida bichos, plantas – corte seco. Aquilo veio de um pensamento de cinema. Também o som, do fone de ouvido, de ter os ruídos como linguagem, como quase uma cenografia sensorial, veio da ideia do foley [sonoplastia] do cinema. O cinema foi uma referência para o espetáculo.

Muito do que penso, desde o trabalho do ator e tudo na minha vida, é quase o oposto do Antunes, me apoio nele para fazer outra coisa. Mas no Antunes era assim, a gente ia montar o Nelson Rodrigues, a gente estudava todo o Nelson Rodrigues, a fala do Nelson Rodrigues, o que ele quis dizer naquele momento, e eu, com o tempo, fiquei achando isso quase ingênuo, porque a sensação que tenho é que você vai emburrecendo, primeiro você tem a pretensão de achar que sabe exatamente o que aquele autor quer dizer, e é impossível descobrir isso, porque o bom, quando você lê, é pensar sobre aquilo, não exatamente o que o autor quis exprimir, mas o que te interessa no que você leu.

BR: E esse foi o caminho por muito tempo da crítica. Querer entrar na cabeça do autor e explicar o que era a cabeça dele. Isso em literatura foi um desastre.

BL: Mas isso, na realidade, não é crítica. Isso é uma aula, uma tentativa de domínio total dos códigos e conteúdos – isso me parece pretensioso e ao mesmo tempo ingênuo. O ator virava o empregado do texto. Você era um empregado e acho que, em qualquer ato de criação, você não pode ser empregado, você tem que ter brio, tem que ter caráter, entendeu? Não posso ter medo do Guimarães. Eu o acho um gênio, mas, se vou fazer a obra dele, tenho que olhar para ele e me colocar.

As pessoas falavam muito: volta pro teatro. Mas, para voltar pro teatro, eu queria criar uma grande dificuldade. Essa era a máxima do Antunes, que também levo para o resto da minha vida. O bom da vida é você criar dificuldade, não criar facilidade. Ele falava que, quando você cria uma dificuldade, é só uma questão de trabalhar. Você pode trabalhar dez anos, mas, quando você resolver, deu um passo para a frente. O espetáculo Grande Sertão trazia muitas questões, entre elas a impossibilidade de criar uma cenografia que localizasse o romance em uma região – tínhamos que criar um espaço concreto e abstrato ao mesmo tempo, porque o sertão do Guimarães não é um espaço geográfico, mas um espaço metafisico: “O sertão está dentro da gente”.  Um dia, uma antropóloga, Marina Vanzoline, me deu uma definição linda. Ela viu o espetáculo e falou: “O sertão não está aí, mas você evoca o sertão.” Que palavra boa.

BR: E mais ainda no filme.

BL: É. Mais ainda no filme. Evoca, é bonito. Não afirma. Evoca, chama.

BR: Qual é o formato que te dá mais prazer, ou tanto faz?

BL: Tanto faz. Paulo Mendes dizia uma coisa. Ele falava que férias para ele é trabalhar em outra coisa. Então é assim, descanso do teatro fazendo cinema, do cinema fazendo exposição – o trabalho me cansa, mas me dá um prazer parecido com férias. Teatro é muito difícil, pela questão do grupo. Eu, por exemplo, não gosto de companhia. Implico com companhia, porque acho que você acaba criando um ambiente homogêneo. Eu gosto do diverso, de atores diferentes um do outro: um cheio de experiência, ao lado do outro que nunca pisou no palco, de pessoas oriundas de diferentes culturas, com origens e conhecimentos variados. Eu gosto de estar apaixonada pelas pessoas que estou dirigindo. Mas hoje em dia a questão do mercado me apavora, a relação forte com o dinheiro, a fama, a carreira, que está cada vez menos vinculada ao significado do ofício. O ofício pelo qual optamos é um ofício de risco, de precipícios e não de certezas.

BR: Mas você falou uma coisa fundamental, que você vai tendo ideias, mas ninguém vai. É isso que me impressionou muito no filme. Na situação em que a gente está, economia de mercado e tudo o mais, você peita isso e diz “ninguém vai”. Mas vai.

BL: Às vezes temos público, não é sempre. No Cartas ao mundo não foram. Mas não ter público também faz parte. O Grande Sertão foi um sucesso. Foi mais do que um sucesso. Ele foi, de fato, uma coisa que eu nunca tinha vivido. Já vivi sucessos. A terra dos meninos pelados, meu primeiro espetáculo, foi um sucesso imenso. Orlando foi um sucesso imenso. As óperas foram sucessos imensos. Não foi só fracasso, mas o Grande Sertão é diferente. É uma coisa diferente, mesmo para a gente. O sucesso tem – como vou dizer? – uma alegria.

IC: É como a Bia falou. Quando ninguém vai, a sensação é mesmo de uma humilhação diária. O ator está ali toda noite para fazer o espetáculo. As pessoas estão sentadas sem gostar. Ou as pessoas não estão nem lá sentadas. Ou as pessoas estão sentadas e vão embora. É uma humilhação física. Você está lá. Então o sucesso, no sentido da presença do público, de uma relação que se estabelece, é uma alegria sim. É muito forte, é uma explosão.

BL: Isso. Aplausos, pessoas vão ao camarim, todo mundo fala alto. E no Grande Sertão ninguém ia embora do teatro. As pessoas ficavam, choravam, ficavam paradas. Na fila no CCBB tinha gente desde as quatro horas da manhã. E aí tem umas coisas bonitas. A quantidade de gente que escrevia para mim. No dia seguinte tinha, sei lá, oitenta depoimentos que vão do Caetano a um professor do CEAT [Centro Educacional Anísio Teixeira, fundado por Therezinha Gonzaga Ferreira, mãe de Bia Lessa]. Outro dia a [atriz] Luisa Arraes me falou de um projeto novo, ótimo, mas ela me disse: “Bia, sem ilusão, não é?! O que a gente viveu no Grande Sertão a gente sabe que nunca mais”.

LB: Bia, tem o dispositivo no palco [a jaula da peça Grande Sertão: Veredas], não? É do Paulo Mendes [da Rocha]. Os atores não saem, tem aqueles bonecos. Como é que isso foi pensado?

BL: Sabe que esses dias eu estava pensando nisso e não sei como é que esses bonecos chegaram. Lembro de pedir para o Fernando Mello [da Costa] os bonecos. Fernando ainda estava vivo. Daí o Fernando fez a coisa mais linda: ele foi esculpindo. Mas não lembro exatamente, só lembro que queria que eles [os bonecos] virassem mochilas, para que as pessoas as carregassem. O homem carregando o homem nas costas, como peso e como bagagem. E também como rio, como muro, como vento até. O cenário é da Camila Toledo e meu, o Paulo foi um colaborador.

FS: Nos bonecos, você optou por um material semelhante ao que cobre as pessoas em situação de rua.

BL: Exatamente. Hoje, olhando para eles, penso em algumas obras do [Joseph] Beuys [artista alemão, autor de Terno de feltro, de 1970]. O piano coberto…

FS: Sim. O feltro. A gordura e o feltro, cruciais para o Beuys. Lembro que havia uma oficina de fabricação dos bonecos no local do ensaio do Grande Sertão. Eles habitaram o espaço de construção da peça o tempo todo.

BL: Eu não tinha onde ensaiar e resolvi ligar para o Roberto Irineu Marinho, um homem especial, que gosta do meu trabalho. Pensei: “Será que ele não tem um lugar para eu ensaiar?”. Eu queria um lugar bonitinho, que tivesse um jardim agradável. Porque, para mim, o espaço onde se cria um espetáculo ficará impresso na criação – não é apenas uma questão de conforto. No espetáculo As três irmãs, o cenário é quase a casa onde ensaiávamos – as entradas e saídas, as portas… Liguei e perguntei: “Será que você não consegue?” Ele me disse: “Olha, tem o antigo prédio da Infoglobo”. Habitamos aquele lugar, um edifício desocupado, com inúmeras salas. Tivemos a oportunidade de ensaiar, montar uma oficina de cenário, de figurinos, de adereços, num espaço ótimo e ao mesmo tempo em ruínas – o espetáculo tem nele essas ruínas e a generosidade encontradas ali. O espaço, de novo, fez o espetáculo.

Primeiro, o [arquiteto e urbanista] Paulo Mendes [da Rocha, colaborador da peça e morto em 2021, com quem ela trabalhou em seis espetáculos] e eu tivemos uma briga, porque ele falava assim: “Você sempre querendo muita coisa, faz uma única cena, que todo o Grande Sertão está contido em uma única cena”. É fato, no caso do Guimarães, em uma única cena, de certa forma, está toda a obra. Mas o desejo da dificuldade de fazer aquilo tudo era o meu negócio. Eu me encanto não apenas com a linguagem, mas com a história, gosto de como ela é, gosto de não ser cronológica, gosto de misturar as histórias, de valorizar o que está atras da ação, gosto dos fragmentos um ao lado do outro. A primeira ideia cenográfica que apresentamos a ele era a gaiola, e ele, deslumbrante e radical, falou: “Vamos fazer só uma coisinha, que as pessoas fiquem apoiadas assim, fica todo mundo de pé, nada de fazer o povo sentar, o povo entra e volta, briga pra ver – criamos um corredor apertado em volta da cena”. E, como era dentro do CCBB, que era muito pequenininho, ainda não tinha ideia de fazer ali no meio [o espetáculo foi, por fim, montado na rotunda do Centro Cultural Branco do Brasil do Rio de Janeiro], fazemos o espaço cênico o maior possível e o espaço para a plateia mínimo, deixa os caras se espremendo e brigando para ver. Olha que beleza. Porque daí você ficava com alguns jagunços dentro e fora.

BR: Que é bem do teatro contemporâneo moderno, tirar a plateia daquela posição passiva e incomodar.

BL: O Paulo tem cada história. A primeira briga feia com o Paulo foi na primeira ópera que eu fiz, olha que briga linda. Era um espaço cênico com uma escadaria que ia do proscênio ao fundo do palco. A distância do chão para a vara de luz era imensa. Tinha que afinar a luz. Não havia escada possível que chegasse até os refletores. Como é que íamos afinar a luz? O Paulo fala: “Simples, desce a vara, a gente calcula o ângulo da luz, e pronto”. Eu falei: “Paulo, não dá. Isso decidimos vendo, experimentando, temos que ver”. A gente afinava a luz assim: sobe a escada, bota essa gelatina, tira, coloca outra, abre o foco etc. Eu lembro que ele olhava e dizia: “Você não acredita na matemática, você não acredita no cálculo”. Mas foi uma briga tão feia que eu falei: “Paulo, saia daqui”. Porque eram cinco dias de montagem, sempre aquela coisa de montagem desesperada. Foi a primeira briga que eu tive com ele, feroz, ele foi embora, furioso. Chamamos uns caras de rapel, pendurados de capacete, e afinamos a luz. Por essa razão acho que fomos tão cúmplices durante a vida, não tínhamos medo dos embates.

BR: Na montagem do Grande Sertão no Rio, o que mais me fascinou, por incrível que pareça, foi o debate. Não saíam duas pessoas com uma opinião igual. Vi duas vezes o espetáculo e foram duas recepções muito diferentes. Uma foi logo no início, tinha muito estranhamento, e a segunda tinha outra coisa interessante, porque as pessoas iam ver uma coisa que já estava elogiada, já era considerada de qualidade. Mas será que não é isso que cabe à crítica, que a crítica devia ser?

FS: Não sei se é assim. A crítica é muitas coisas, as possibilidades de intervenção são muitas. Também na relação com obras contemporâneas. Não vejo a crítica como intervenção posterior. A crítica problematiza campos expressivos. Inclusive o próprio campo de atuação da crítica. No caso da Bia, do Grande Sertão, e também do Macunaíma [baseado na obra de Mário de Andrade], que ela montou depois, havia uma interlocução crítica intensa com muitas pessoas, de áreas bastante diferentes, ao longo de todo o processo – e depois da estreia, ao longo da temporada. Como está havendo com vocês agora. Foi uma construção em debate. Como em tantos outros trabalhos da Bia, há essa atenção para perspectivas diversas. Claro que vai se operar uma síntese ligada ao projeto artístico, que é dela.

BL: O Antunes tinha uma máxima. “Ouça tudo, depois joga fora!” Isso é uma maravilha, é muito bonito. Mas a gente tem cada vez menos um interlocutor real no próprio trabalho, no elenco. Então isso também é um empobrecimento.

FS: Não só no âmbito do elenco, o espaço de discussão pública está muito restrito.

BL: É algo que vocês perguntaram sobre a crítica. Acho que é quase como se a crítica tivesse uma independência do objeto que está sendo criticado, como se fosse, de fato, um pensamento autônomo daquilo que está sendo analisado. Então é ali que acho que a coisa acontece. E é algo necessário, a conversa. Tem que ter, porque, se não tem, morrem os dois. Morre aqui e morre lá. A crítica é uma obra em si, que dialoga com uma outra obra, que também dialoga com infinitas outras coisas e obras.

FS: É a questão da autonomia intelectual. De como ela não tem encontrado lugares mais amplos, do ponto de vista do espaço público, para o seu exercício. Houve de fato esse estreitamento da discussão comum, pública. Pois, quando se discute, se conversa, se você de fato tem autonomia, você vai produzir diferença, vai ser uma diferença em relação a quem produziu aquele objeto, aquela obra, aquele campo artístico, e se produzirá dissenso com relação ao público potencial também. Você não bajula esse público. Não se tem mais esse lugar de dissenso, assim como de análise detida. O que se tem é o elogio fácil, que caiba no Instagram, na divulgação de tal ou qual trabalho. Ou que faculte a simples adequação dessa ou daquela obra a algum trending topic do momento.

BL: E não tem nada a ver com dizer que é bom ou ruim. Tanto que eu lembro que, quando apareceu a coisa da crítica dos bonequinhos do Globo, aplaudindo sentado, em pé, eu quase morri. Eu lembro que eu fui lá, fui brigar. Eu sou tão ingênua que fui ao jornal tentar reverter, porque aquilo induzia o espectador a ir ou não assistir o filme, ver a peça.

BR: No lançamento do filme [O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, baseado em Grande Sertão: Veredas], você comentou a questão de ser hors concours [no Festival do Rio de 2023]. Ou seja, não concorrer. Por que isso?

BL: Eu fiquei muito mal. Flora que me convenceu, com toda a razão, de a gente passar o filme, porque realmente é uma oportunidade, a gente não pode do jeito que estão as coisas se dar ao luxo de falar não. Mas eu acho uma loucura, porque já deixa o filme como uma exceção, ele está fora. Eu acho que é um filme para estar dentro.

FS: Mas que não cabe em gavetas pré-prontas. Como o filme do Bressane, lançado na mesma época.

BR: Mas como é que está agora a distribuição?

BL: A Adriana Rattes [cofundadora do Grupo Estação] fará a distribuição. Então a gente está nessa batalha de conseguir dinheiro para fazer o lançamento.

Sofro muito com isso, não por não ter dinheiro, mas por não poder fazer as coisas que eu gostaria de fazer. Por causa de dinheiro. E, ao mesmo tempo, acho que essa precariedade me dá uma liberdade muito extraordinária. Acho que eu sou resultado dessa precariedade que nos leva a inventar desde as formas de produção até os caminhos estéticos e ao mesmo tempo gera um cansaço infinito, que de alguma forma vai nos matando.

Você faz opções, as opções têm consequências.

* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e editora da Revista Z Cultural; Flora Süssekind trabalha como professora do curso de Estética e Teoria do Teatro da Unirio; Inês Cardoso é professora do curso de Estética e Teoria do Teatro da Unirio; Lucas Bandeira é professor adjunto do Instituto de Letras da Uerj e editor da Revista Z Cultural.
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REPENSANDO A HISTÓRIA LITERÁRIA

A década de 1980 foi um momento de euforia para os estudos feministas. Parecia que nossa perspectiva do mundo e das relações sociais tinham ganhado uma lente nova, novíssima, e o que não percebíamos antes voltasse com a nitidez de uma luz frontal. A percepção de um sistema de gênero que determinava as relações entre homens e mulheres era um admirável mundo novo. Tudo mudava em nossos discursos, pesquisas, afetos. Um certo binarismo ainda guiava os estudos que começavam a ganhar legitimidade acadêmica. A pergunta sobre como ler um texto com perspectiva crítica feminista revelava o estágio inicial desses estudos. Dessa primeira leva, o artigo “Repensando a história literária” de Ria Lemaire, publicado em Tendências e impasses, volume que organizei, surgiu como um salva-vidas indispensável. É interessante revisitá-lo hoje, quando as teorias queer sinalizam o final da saga da identidade binária e das relações de gênero fixas. É mais interessante ainda perceber sua utilidade metodológica mesmo em tempos de alterações paradigmáticas radicais.

Heloisa Teixeira
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo

A História Literária Tradicional

A história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da genealogia nas sociedades patriarcais do passado: o primeiro, a sucessão cronológica de guerreiros heróicos; o outro, a sucessão de escritores brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço para mulheres “normais”. Tanto a genealogia quanto a história literária revelam a tendência masculina de justificar seu poder atual por meio do recuo às origens e do mapeamento de uma evolução, factual ou hipotética, até o presente. Desta forma, o poder político e cultural masculino passa a ser entendido como apenas um momento de uma tradição venerável e secular. Ou seja, é pela ideia de ancestralidade que são legitimadas situações atuais. Neste sentido, nos discursos das ciências humanas, as representações masculinas sobre a mulher, como o sexo “natural, essencial e universalmente” mais fraco, podem ser consideradas como uma das formas mais radicais deste tipo de legitimação de poder: não se trata apenas de representações ancestrais, uma vez que elas nunca foram diferentes.

Podemos observar ainda outra preocupação comum aos dois tipos de historiografia. Ambas apresentam suas genealogias como uma tradição única e ininterrupta e desqualificam, isolam ou excluem, como marginais ou inimigos, indivíduos que, por uma razão ou por outra (ideias, raça, sexo, nacionalidade) não se adequam ao sistema construído. A genealogia e a história literária criam a ilusão de uma só história, de uma única tradição. Este mito é reforçado continuamente em cada descrição genealógica e cada versão da história literária.

Os “heróis” destes dois tipos de historiografia também têm muito em comum:

* sua sucessão é definida em termos patrilineares; são pais e filhos no quadro de relações de um sistema social baseado na propriedade privada. Nos dois casos, os filhos são apresentados como herdeiros de um patrimônio político ou cultural.

* são vistos como seres humanos superiores, de maior valor e importância, que, distantes e acima da banalidade da vida cotidiana, criam seus sistemas políticos ou obras de arte sublimes.

Existe um caráter comum interessante por trás destas convicções. Elas implicam  negação, ou, no mínimo, depreciação das circunstâncias econômicas, sociais e políticas, dos jogos de poder e dos conflitos de interesse e respectivas ideologias, que possibilitaram a esses heróis – nas sociedades em que viveram – a oportunidade de expressão, propagação e realização de suas ideias. De um lado, os conceitos básicos da história literária, como o gênio, o autor, o herói, o personagem e o tema, e por outro, tradição, unidade, originalidade e criatividade (todos geralmente definidos em sua relação com o cânone das obras escritas) estão intimamente relacionados com a negação básica do impacto das estruturas sociais tanto em obras individuais como na tradição literária. Essa negação dissimula as complexas relações entre uma sociedade e sua literatura, impedindo assim a percepção do papel das ideologias nas obras literárias e na sociedade, bem como a inter-relação de suas funções. Estes conceitos básicos são também os pressupostos (geralmente) ocultos da crítica tradicional, que, na maior parte das vezes, reforça as perspectivas ideológicas das obras literárias em vez de promover instrumentos que possam detectá-las e criticá-las.

Examinada do ponto de vida das mulheres, a crítica e a teoria literárias explicitam – como faz a genealogia em outro nível – uma das principais obsessões masculinas nas sociedades patriarcais: a incerteza acerca da paternidade biológica. Enquanto, na genealogia, esta insegurança é compensada pela descrição da linhagem em termos patrilineares, na história literária este sentimento desconfortável é reprimido pela ênfase excessiva na paternidade cultural, mecanismo que implica a exclusão ou negação de qualquer elemento que possa perturbar o monopólio masculino neste sentido.

Esta perspectiva nos permite distinguir duas preocupações básicas na crítica literária contemporânea. Em On deconstruction, Jonathan Culler as apresenta da seguinte maneira:

1. “Controlar o contato com os textos para prevenir a proliferação de sentidos ilegítimos” (Culler, 1983, p. 61). A interpretação, uma das atividades-chave da crítica literária, é uma prática diretamente ligada a esta ordem de preocupação.

2. “Desenvolver princípios que determinem quais são os sentidos verdadeiramente concebidos pelo autor” (Culler, 1983, p. 61). Neste caso estão as eternas discussões sobre os autores e suas vidas, sobre as origens, gêneros e períodos literários que vêm sendo fartamente utilizados, em favor da paternidade cultural, no reforço dos sistemas de classificação dos discursos das ciências humanas e de conceitos preestabelecidos, em lugar de servirem como base material para a criação destes sistemas de classificação. A política da edição de textos, concentrando-se no estabelecimento do texto único, verdadeiro e autêntico, é uma parte essencial dessa tendência de definição da paternidade cultural. Por este motivo ainda, muitos textos medíocres foram incluídos no cânone e usados na consolidação do mito da continuidade e unidade de uma tradição masculina que dataria dos tempos de Homero. Por esta mesma razão, as literaturas não-ocidentais, assim como a contribuição feminina, foram, até muito recentemente, excluídas do cânone e das discussões acadêmicas. A história literária tem sido – com pequenas exceções – fundamentalmente etnocêntrica e viricêntrica.

Da mesma forma, foram subestimadas as numerosas tradições orais das línguas vernaculares, outra parte importante da história cultural do mundo europeu. A reabilitação destas tradições só vem ocorrer durante o período romântico, depois de séculos de discriminação pelas elites, empenhadas em destruí-las ou em adequá-las as suas próprias visões de mundo (Burke, 1983; Lemaire, 1986).

Depois do romantismo, as tradições orais voltaram a ser marginalizadas, tornando-se, agora, alvo de uma reação ainda mais intolerante, de descaso ou negação, como pode-se observar na redefinição teórica do discurso das humanidades, no final do século XIX, situação que mantém-se quase inalterada desde então.

Uma característica desta redefinição foi a separação entre o estudo da literatura escrita, que na Europa ocidental concentrou-se nas universidades, e o estudo das tradições populares e orais, relegado aos folcloristas, geralmente não admitidos como professores nas universidades. Assim, as abordagens e as disciplinas tradicionais das humanidades ainda refletem a luta entre as tradições populares europeias nativas, com suas visões de mundo e sabedoria próprias, e a tradição escrita, de origem estrangeira, imposta pela elite (Ong, 1971; Lemaire, 1986). As técnicas da escrita desempenharam um papel-chave nesta luta (Ong, 1967-1982). Mais tarde, este papel é assumido pela imprensa e pelos meios de comunicação de massa.

Estas tecnologias, usadas pelas elites na propagação de suas visões de mundo e culturas, pelo próprio fato de serem escritas, eram apresentadas como civilizadas, superiores, e mais desenvolvidas. Os vieses ideológicos desta imposição tornaram-se os pressupostos atuais dos discursos das ciências humanas, que, por esta razão, podem ser caracterizadas como “scriptocêntricas” (Lemaire, 1984). Enquanto a história da literatura continuar sendo apresentada como uma história única e contínua, como um cânone de obras escritas cuja origem está numa cultura, ancestral e distante, transmitida por meio de uma elite intelectual, a existência das tradições orais e das culturas populares nativas vai permanecer excluída da historiografia cultural. No mesmo sentido, a perspectiva scriptocêntrica vai continuar dispensando os pesquisadores da tarefa de estudar o impacto inegável das culturas orais (onde as elites masculinas muito se inspiraram para criar sua tradição escrita) no próprio cânone literário.

Oralidade e escrita

Algumas descobertas fundamentais da historiografia literária feminista emergiram do debate sobre oralidade e escrita desenvolvido por pesquisadores como E. Havelock (1963), que estudou a transição da oralidade para a escrita na cultura grega, J. Goody (1968 e 1977), que trabalhou as relações entre oralidade e escrita nas sociedades africanas, e P. Zumthor (1983 e 1984), que estudou a mesma questão na cultura medieval europeia. Nos trabalhos de W. Ong (1967-1982), foi desenvolvida a síntese das pesquisas realizadas sobre esta questão em vários campos, culturas e períodos, e elaborada uma teoria geral da oralidade e da escrita.

A colocação central destes trabalhos é a crítica do scriptocentrismo na cultura ocidental, ou seja, a existência de um conceito da escrita unitário e monolítico e seu uso nas discussões acadêmicas. A própria escrita tem uma longa história. A épica de Homero ou a literatura medieval, por exemplo, não foram “escritas” no sentido moderno da palavra. A partir desta perspectiva, estes pesquisadores invertem o jogo: o ponto de partida para as discussões sobre a escrita e sua história deve ser a oralidade. A cultura escrita sempre parte das culturas orais preexistentes, como ocorreu no caso da Europa, onde se desenvolveu uma nova tecnologia, ou, mais tarde, no caso do desenvolvimento da imprensa e dos meios de comunicação de massa.

A história literária europeia deveria ser estudada como uma transição lenta, mas progressiva, da oralidade para as formas primitivas de escrita, para as formas mais elaboradas de escrita, e, finalmente, para a imprensa e meios de comunicação de massa. Em cada um destes momentos, as formas e funções destas tecnologias foram diferentes, assim como suas relações com as tradições orais mais próximas. Com base nestas observações teóricas, podemos afirmar que, nas comunidades europeias tradicionais da Idade Média, a escrita foi introduzida numa associação íntima com um tipo de cultura vinda de fora e em língua estrangeira: o latim.

Esta cultura não se enraizava na realidade cotidiana, mas numa tradição escrita, morta e predominantemente masculina, e foi imposta por uma elite – em coalizão com o cristianismo – como cultura superior e mais civilizada. Nas sociedades europeias, isto determinou uma defasagem entre a tradição e o saber oral local – que pertencia a todos os membros da comunidade, mulheres e homens – e uma elite masculina que se utilizou do latim e da tecnologia da escrita para impor suas visões de mundo e criar centros elitistas de cultura escrita. Nas sociedades medievais, as mulheres foram, progressivamente, sendo excluídas destes centros de cultura escrita. No discurso das ciências humanas, a introdução da escrita e a invenção da imprensa sempre foram representadas como um progresso para todos os seres humanos, apesar de suas consequências terem sido marcadamente diferentes para mulheres e homens. Na realidade, estas tecnologias foram usadas, por uma pequena elite, como instrumentos de poder para ampliar a distância entre o povo e a elite (Pattison, 1982), entre mulheres e homens (Ong, 1982).

Nas comunidades tradicionais europeias, havia duas culturas diferenciadas, que tinham por base a divisão econômica de trabalho entre os sexos: a cultura dos homens e a cultura das mulheres. Os universos culturais dos homens e das mulheres desenvolveram-se num patamar de igualdade, mas em duas linhas diversas, cada sexo possuindo seu próprio tipo de saber tradicional, suas próprias formas de lidar com o amor, a vida, a morte, a natureza e a religião, suas próprias canções e gêneros literários, seus próprios instrumentos musicais e até suas próprias formas de dançar e cantar. As tradições das mulheres eram geralmente mais ricas e diversificadas que as dos homens. Apesar das exceções, podemos afirmar que, no conjunto, as tradições masculinas desenvolveram-se na linha da narrativa épica. Suas danças eram frequentemente caracterizadas por um tipo de performance “heroica” e espetacular, enquanto as mulheres criavam seus gêneros na linha da narrativa lírica, adaptando as danças aos sentimentos que desejavam expressar.

Ambos os sexos revelavam estratégias variadas de exclusão do outro sexo de seus universos culturais. As mulheres, por exemplo, paravam de cantar quando surgia um homem ou, no século XIX, recusavam-se a cantar suas canções para folcloristas masculinos que tentavam coletá-las. Os homens reuniam-se em grupos fechados para contar ou cantar seus  gabs ou swanks, como ainda fazem hoje em dia, ainda que o tipo de performance e o batismo dos gêneros tenha mudado muito desde então. Entretanto, geralmente, esta exclusão não era completa: muitas vezes, os dois sexos imitavam ou apropriavam-se das canções um do outro. Nestes casos, a canção ou a estória não era simplesmente apropriada, mas também adaptada a seus gostos e estilos.

Estes fatos provam que mudanças estranhas e radicais devem ter ocorrido nas sociedades ocidentais nas quais os gêneros femininos não existem mais (excetuando-se, talvez, as cantigas de ninar) e nas quais, oficialmente, temos apenas uma cultura, monopolizada pelos homens e apresentada como a única e exclusiva tradição do mundo ocidental.

lsto nos induz a formular algumas questões de grande importância para a pesquisa feminista da história literária. O que aconteceu na história da cultura ocidental que provocou o desaparecimento das ricas tradições femininas? Como foi possível para os homens, cujas culturas orais tradicionais eram menos variadas que as das mulheres, estabelecer um monopólio que não possuíam nas culturas orais tradicionais da Europa? Como os homens puderam impor os mitos de sua paternidade cultural exclusiva, na qual, até muito recentemente, todos acreditávamos?

Reconsiderando um mito

Para a abertura do círculo hermenêutico que tem sido construído de forma tão cuidadosa no discurso das ciências humanas – no qual cada elemento confirma o sistema e vice-versa – , devemos promover uma alteração radical dos conceitos e pressupostos da história literária. Uma desconstrução que seguirá duas linhas centrais:

1. A desconstrução do próprio sujeito masculino: o homo sapiens da cultura ocidental, bem como o “herói” das obras literárias.

2. A desconstrução de sua genealogia literária, do mito de uma única literatura.

No que se refere à desconstrução do homo sapiens, o sujeito/gênio masculino que criou a cultura ocidental, é importante perceber que a noção de “autor” teve, no passado, sentidos extremamente diferenciados. Por exemplo, Homero foi a pessoa que compôs a Ilíada, ou o artista que recitava a épica, ou o copista que a transcreveu? Provavelmente nunca saberemos a resposta, mas pelo menos podemos garantir que ele não era, de forma alguma, um “autor” no sentido moderno da palavra. Na literatura medieval europeia, o “autor” cujo nome encontramos nos originais pode ser o copista de uma canção, um bom intérprete, o compositor ou simplesmente alguém que se apropria dos originais de outra pessoa.

Este exemplo mostra como uma história da literatura baseada numa definição monolítica de escrita e de autoria pode reforçar o mito de que a literatura ocidental foi criada por escritores homens.

Uma outra estratégia de desconstrução pode ser desenvolvida por meio da análise das relações do autor com as estruturas político-sociais de seu tempo. Em vez de criar a imagem de um gênio individual, autônomo e superior, este tipo de história literária poderá revelar a dependência do autor em relação aos discursos de seu tempo, e mostrar como seu desempenho é ligado às estruturas da sociedade.

De forma similar, a psicanálise pode ajudar a descobrir que as obras de um autor (ou parte delas) não são produtos de um gênio autônomo e autoconsciente, mas expressões de conflitos inconscientes, temores e desejos não admitidos abertamente. A crítica feminista trabalha frequentemente nesta direção, demonstrando que o que encontramos nas obras dos autores não são, necessariamente, verdades essenciais e universais, mas conflitos pessoais, sexuais, emocionais e de poder.

Os heróis (personagens, sujeitos) de obras literárias também devem ser reconsiderados. Os trabalhos de Mieke Bal são, neste sentido, uma contribuição fundamental. Desde a publicação de Narratologie (1977), a autora vem desenvolvendo uma nova teoria do sujeito com base no pressuposto de que a noção do sujeito humanístico unitário, autônomo e individual é uma ilusão. Mieke Bal decompõe este sujeito em três categorias: o narrador (que conta a história), o focalizador (cuja visão é apresentada) e o(s) ator(es).

Em seus estudos sobre o sujeito nas narrativas bíblicas, que se baseiam em três questões centrais – quem conta? quem vê/focaliza? e quem age? -, ela demonstra a ambiguidade dos heróis nas narrativas, sua falta de unidade, bem como a evolução, mudanças e contradições em suas posições e papéis de sujeito. O confronto das respostas que Mieke Bal propõe com as interpretações dos teólogos e intérpretes da Bíblia sobre essas mesmas narrativas revela o caráter ambíguo e falso das interpretações baseadas no conceito humanista unitário de sujeito/herói masculino bíblico. Por isso, estes intérpretes por um lado tentam ocultar ou resolver as ambiguidades e contradições dos personagens masculinos da Bíblia e, por outro, alterar, mutilar ou minimizar as personagens femininas (como Dalila, Deborah ou Ruth), que não se adequam às concepções de mulher, ou do lugar da mulher nas sociedades do século XX.

A decomposição do sujeito/herói bíblico nos elementos que o constituem (narrador, focalizador, ator) e a recomposição de sua ambiguidade original têm se revelado excelentes estratégias de leitura para a identificação da ideologia das obras literárias para o mapeamento das complexas manipulações do leitor, e para a análise da recepção tradicional das obras pela crítica e pela história literárias. Para a historiografia literária feminista, oferecem instrumentos para a crítica das imagens que os homens criaram sobre si mesmos e sobre as mulheres em suas obras, e para a identificação dos recortes ideológicos da crítica masculina e da história literária tradicional.

A desconstrução do mito de uma literatura única

Os princípios da desconstrução dos discursos da história literária foram formulados por Foucault em sua Leçon inaugurale no College de France (1970), a partir de quatro premissas metodológicas:

– o principe de discontinuité. Em vez da procura da continuidade, unidade e tradição, a observação de gaps, descontinuidades, quebras e contradições nos discursos.

– o principe de renversement. Elementos, ideias, conceitos, até hoje considerados positivos (como unidade de sentido, continuidade), devem ser analisados em seus aspectos negativos: a exclusão de sentidos, ideias e personagens que não se adequem a quadros preestabelecidos. A história literária não é apenas definida – como tem sido ensinado até hoje – a partir de uma seleção natural e positiva, nem apenas a partir da sobrevivência de obras realmente superiores do passado. Ao lado de uma seleção positiva, houve também uma seleção negativa por meio da qual obras/autores importantes foram excluídos. E o que Foucault chama de jeu négatif.

– o principe de spécificité. Que formas de violência foram impostas aos fatos, à realidade, aos seres humanos pela introdução de novos discursos, gêneros ou estilos? Em outras palavras: como uma ideologia específica foi propagada nas obras de um dado período? Como foram desenvolvidas ideologias novas ou parcialmente novas?

– o principe de l’extériorité. No lugar de simplesmente glorificar a autoria, o heroísmo individual, a originalidade, deve-se levar em consideração as condições e as circunstâncias externas, as estruturas sociais, culturais e ideológicas que permitiram que discursos específicos se impusessem e obscurecessem outros discursos.

A historiografia literária feminista traz uma contribuição nova para a desconstrução do discurso da história literária tradicional, porque junta, aos quatro princípios definidos por Foucault, uma nova premissa, que não é simplesmente um quinto princípio metodológico, apesar de intimamente relacionada aos princípios de Foucault, determinando consequências fundamentais para todos eles. Seu ponto de partida é a percepção de que a história literária é um dos discursos de uma sociedade que se baseia essencialmente na desigualdade entre os sexos. lsto resulta no fato de que mudanças nas estruturas sociais ou culturais terão consequências diversificadas para homens e mulheres. Por exemplo, certas mudanças culturais consideradas como progresso para todos os seres humanos frequentemente provam ser ganhos para os homens, mas perdas para as mulheres.

Pressupõe-se, portanto, que o discurso da história literária deve ser estudado prioritariamente como um sistema de relações de gênero, cujos códigos subjacentes dizem respeito às estruturas de poder na sociedade. A primeira questão será então: o que significam ou significaram os fenômenos que descobrimos (quando analisamos os discursos segundo as sugestões de Foucault) para as mulheres e o que significam para os homens?

Uma historiografia feminista da cultura ocidental

A reescrita da história da literatura ocidental demanda três atividades distintas:

1. A desconstrução da história literária tradicional como parte do discurso das ciências humanas.

2. A reconstrução das diversas tradições da cultura feminina marginalizadas e/ou silenciadas.

3. A construção de uma nova história literária, como produto de diversos sistemas socioculturais inter-relacionados, marcados pelas relações de gênero.

Isto implica a elaboração de uma história dialética com duas pistas inter-relacionadas, mas que, a partir da introdução da escrita nas culturas vernáculas europeias, começaram a se orientar em direções opostas. A cultura masculina inicia um processo contínuo de crescimento, reforço e monopolização da cultura escrita, contrabalançado pela exclusão das mulheres desta cultura e pela progressiva marginalização, deformação e obliteração das tradições orais femininas. A relação entre essas duas vertentes culturais tem sido dialética: os homens imitaram e se apropriaram dos gêneros femininos e, ao mesmo tempo, os transformaram. As mulheres reagiram, mas pelo menos uma parte desta reação não foi mais determinada pelos recursos de suas próprias tradições, mas pelos novos padrões criados pelos homens.

Foi por meio da introdução da escrita nas línguas vernáculas europeias que a primeira desproporção essencial entre homens e mulheres foi estabelecida. A partir deste momento, os homens tiveram duas culturas: uma, predominantemente oral e tradicional, e outra estrangeira, escrita, e apresentada como superior. A história da literatura medieval, examinada a partir desta perspectiva, mostra as formas de coalizão entre estes dois tipos de cultura e a progressiva exclusão das mulheres dos domínios masculinos. A invenção da imprensa alargou esta distância por ter permitido a propagação da visão de mundo masculina numa escala muito maior do que a feminina, além de se constituir numa arma extremamente eficiente na luta contra as culturas populares. A partir daí, as culturas populares foram sendo progressivamente substituídas por novos tipos de cultura “popular”, criados por artistas da sociedade burguesa, disseminando a visão de mundo de suas classes. Esse fenômeno é hoje considerado a origem da cultura de massa (Burke, 1987; Göttner-Abendroth, 1982). Mais uma vez, a cultura europeia havia criado duas tradições culturais distintas: a cultura erudita e a cultura de massa.

Formulando nossas próprias questões

Uma historiografia feminista deverá colocar, para cada período (oralidade, escrita, imprensa, comunicação de massa), as seguintes indagações relacionadas às questões de gênero:

– O que mulheres e homens criaram no período em questão? Que ideias e imagens tinham eles sobre si e sobre o outro sexo? Como homens e mulheres apresentaram temas como amor, natureza, experiência religiosa, morte e outros?

– Que estratégias foram usadas para a exclusão do sexo oposto de seus universos culturais?

– Como poderíamos relacionar as ideias expressas por mulheres e homens aos códigos que sublinham seus respectivos discursos frente às estruturas econômicas, sociais e políticas de seu tempo?

– Como estas ideias, imagens e relações têm sido interpretadas até hoje? Quais os recortes ideológicos destas interpretações? Como estes recortes foram apropriados pela crítica literária, história e ciências humanas?

Para cada período de transição, é necessário ainda que estas perguntas e respostas sejam especificadas com clareza:

– Quais as mudanças que ocorriam então na distribuição de gêneros entre os sexos? Qual a parte assumida pelos homens e quais os novos tipos de literatura que criaram? Qual pretendia ser a nova divisão de trabalho cultural entre os sexos?

– Existiam novas estratégias ou mecanismos de exclusão das mulheres em áreas tradicionalmente delas ou de bloqueio de sua fala ou escrita no novo contexto? Como reagiram as mulheres?

– Quais as mudanças ocorridas nos conceitos, ideias e imagens tradicionais sobre os homens, as mulheres, o amor, a natureza, a religião, o trabalho?

– Que tipos de violência os novos discursos impuseram a homens e mulheres?

– De que forma estes fenômenos vêm sendo interpretados pelos pesquisadores; como os representam em seus discursos; quais os pressupostos não explícitos de suas interpretações?

Finalmente, novas questões devem ser formuladas para cada período:

– Quais os elementos que reforçam o poder masculino nas novas estruturas sociais ou culturais?

– Como as mulheres conseguem manter suas tradições apesar do fato de se tornarem progressivamente mais invisíveis? Que mudanças introduzem? Como se adaptaram aos novos padrões criados pelos homens? Como resistem às ideias, imagens e conceitos, cada vez mais opressivos, propagados pelos homens?

– Como estas formas de cultura e de resistência femininas têm sido interpretadas, ou esquecidas, nos discursos das ciências humanas? (Spender, 1982)

Repensar e reescrever a história literária numa perspectiva feminista pressupõe, assim, em primeiro lugar, aprender a colocar novas questões que possibilitem a revisão de ideias estabelecidas, das interpretações acerca destas ideias e das teorias decorrentes destas interpretações. Isto implica uma alteração radical no paradigma das ciências humanas, cujo ponto de partida é a descoberta de que, mesmo nas ciências humanas, não há seres humanos, nem existência humana, a não ser como homem ou como mulher.

* Ria Lemaire é medievalista, professora de literatura na Universidade de Poitiers e autora de Passions et positions. “Rethinking literary history” foi publicado em Historiography of women’s cultural traditions, ed. Maaike Meijer e Jetty Schaap, Foris Publications Holland: USA, 1987, p. 180-93. Tradução de Heloisa Teixeira.
Referências bibliográficas
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Göttner-Abendroth, H. Die Tanzende Gottin-Prinzipien einer Matriarchalen Aesthetik. Munique: Frauenoffensive, 1982.

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Spender, D. Women of Ideas and What Men Have Done to Them: From Aphra Behn to Adrien ne Rich. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1982.

Zumthor, P. Introduction à la poesie orale. Paris: Seuil, 1983.

Zumthor, P. La poesie et la voix dans la civilization medievale. Paris: Presses universitaires de France, 1984.
editorial
Tempo de leitura estimado: 3 minutos

AS MÁS-LÍNGUAS

Luiz Norões | Aquarela, sem título, s/d
Luiz Norões | Aquarela, sem título, s/d

Assistimos no presente a enfrentamentos discursivos em que usos canônicos, privilegiados ou desviantes da(s) língua(s) competem pelo direito de nomear e narrar na ciência, na política, nas artes, nos processos múltiplos de identificação dos sujeitos contemporâneos, nas redes sociais e no resquício do que talvez ainda possamos chamar de esfera pública. O presente dossiê da Revista Z Cultural, nº 1 de 2023, se propõe como espaço de discussão sobre esses enfrentamentos a partir de campos variados, abrangendo de estudos de linguística, como o importante artigo de Dante Lucchesi sobre as raízes históricas do racismo linguístico no Brasil, a reflexões participativas, como o artigo de Dieison Marconi, um trabalho de observação situada do uso de alguns conceitos pela militância nas redes sociais.

A questão racial também aparece no artigo de Gabriel Chagas sobre a relação entre Langston Hughes e Nicolas Guillén e no relato de uma experiência de letramento racial por Guilherme dos S. Ferreira da Silva e Jade Soares do Nascimento, assim como na entrevista-ensaio visual do artista plástico Sérgio Adriano H, em que a língua é extrapolada para a imagem e se torna uma corporificação da ideia de “tomar a palavra”, como explicam Dalva França de Assis e Silvana Barbosa Macedo. Os feminismos e questões de gênero, centrais nas discussões sobre linguagem, são tratados nos artigos de Drica Madeira e Adriana Azevedo, e os limites da linguagem aparecem no ensaio de Louise Furtado de Souza sobre livros de Marília Floôr Kosby e Ieda Magri. Eduardo Schaan, por sua vez, discute como, na peça Tybyra, o artista potiguara Juão Nyn propõe a escrita em Potygyês, mistura do Tupi-Guarani com a língua portuguesa que ressignifica a língua do colonizador. Por fim, a relevância de análises do discurso e da narrativa como ferramentas para qualificar a discussão sobre “disputa narrativa” é contemplada pelos textos de Fábio Fernando Lima e de Barbara Venosa.

Além do dossiê, como é tradição da revista, publicamos artigos que abordam questões contemporâneas, como o relatório de Luiz Eduardo Soares escrito a partir de uma pesquisa com moradores da Maré sobre a exposição à violência armada; e o ensaio de Maria Caterina Pincherle e o de Lucas Bandeira, que recuperam a discussão recente sobre o centenário do Modernismo de 1922. Outro aspecto da cultura contemporânea, a tendência da literatura contemporânea de “colar-se à vida e à experiência das mulheres”, aparece no artigo de Luciana Conti sobre o romance Pagu no metrô, de Adriana Armony. Publicamos ainda três poemas de Vera Lins, acompanhados de fotos feitas pela escritora, e uma resenha de Beatriz Resende sobre Paixão simples, de Annie Ernaux. Na seção Vale a Pena Ler de Novo, uma rara entrevista de Guimarães Rosa é recuperada pela acadêmica Heloisa Teixeira, como agora assina Heloisa Buarque de Hollanda. Fechando este número, o poeta, romancista e pesquisador Edimilson de Almeida Pereira discute as múltiplas formas da linguagem poética a partir de sua obra literária e ensaística.

Revista Z Cultural

dossiê
Tempo de leitura estimado: 54 minutos

AS ORIGENS HISTÓRICAS DO RACISMO LINGUÍSTICO NO BRASIL

Introdução

Embora tenha cunhado o termo racismo linguístico no calor da polêmica em torno do chamado “livro de português do MEC” (Lucchesi, 2011), os fundamentos para essa formulação remontam aos inícios da década de 1990, quando iniciamos nossas pesquisas de campo junto a comunidades quilombolas do interior do estado da Bahia, nas quais coletamos amostras de fala vernácula que possibilitaram análises dos processos de mudança em curso nos padrões de comportamento linguístico dessas comunidades, com o enquadramento teórico e metodológico da Sociolinguística Variacionista (Labov, 2008[1972]). A Figura 1 é uma foto deste pesquisador (muito mais magro), em uma comunidade quilombola, no ano de 1992.

Figura 1: Dante Lucchesi junto a membros de uma comunidade quilombola, em 1992 (Fonte: acervo pessoal)
Figura 1: Dante Lucchesi junto a membros de uma comunidade quilombola, em 1992 (Fonte: acervo pessoal)

Um conjunto significativo de análises de aspectos da morfossintaxe da fala dessas comunidades foi reunido em volume intitulado O Português Afro-Brasileiro (Lucchesi; Baxter; Ribeiro, 2009). Essa publicação, cuja capa é apresentada na Figura 2, contribuiu significativamente para vencer as resistências na pesquisa linguística brasileira em reconhecer a relevância do contato do português com as línguas indígenas e africanas na conformação das atuais variedades do chamado português brasileiro, embora essas resistências ainda persistam de forma minoritária.

Figura 2: Capa do livro O Português Afro-Brasileiro, publicado pela EDUFBA em 2009 (com reimpressão em 2015), e disponível em pdf na plataforma SciELO Livros.
Figura 2: Capa do livro O Português Afro-Brasileiro, publicado pela EDUFBA em 2009 (com reimpressão em 2015), e disponível em pdf na plataforma SciELO Livros.

Mas a expressão racismo linguístico só viria a ganhar maior notoriedade quando se tornou o título do livro de Gabriel Nascimento (2019), que passou a ser tido como autor da expressão (cf. Melo; Mira, 2021, por exemplo), certamente por conta de sua militância e lugar de fala. Nesse âmbito, a expressão se fundamenta na dimensão racista do preconceito linguístico, ou seja, o preconceito linguístico integra um conjunto de mecanismos que plasmam o racismo estrutural no Brasil.

Mais do que dirimir uma questão de autoria, este artigo busca demonstrar que, não obstante a pertinência desse conteúdo do conceito de racismo linguístico, há razões históricas que permitem afirmar que o racismo está na gênese do preconceito contra as formas mais típicas da linguagem popular brasileira, especialmente a falta de concordância nominal e verbal (exemplificadas na frase: “meus filho trabalha muito”). Revela-se, assim, a dialética perversa, que é inerente ao próprio preconceito linguístico. A falta de concordância era estigmatizada por ser típica da fala de africanos e seus descendentes, e, quando essa motivação histórica se diluiu e se perdeu no esquecimento, o estigma ganha uma autonomia e se escora na “autoridade gramatical”, que classifica tais formas linguísticas como degradadas e inferiores, de modo que, com a força ideológica do preconceito, atua como mecanismo reprodutor do racismo estrutural.

Portanto, quando a ciência da linguagem, conjugando pesquisa histórica e empírica, revela as raízes racistas do preconceito linguístico, fornece elementos para a desconstrução de um dos mais poderosos instrumentos ideológicos de dominação de classe nas sociedades letradas contemporâneas. Não é à toa que a Linguística é uma das ciências mais desprestigiadas quando não virulentamente atacada pela grande mídia corporativa. E a luta ideológica que se trava na sociedade se insinua no próprio campo do fazer da ciência, com o preconceito e o conservadorismo se infiltrando, de forma mais ou menos dissimulada, nas posições em debate.

Para abordar tais questões, este artigo está dividido em quatro seções. A primeira seção reporta brevemente o episódio do que ficou conhecido como “livro de português do MEC”, quando a questão da língua ocupou o centro do debate político nacional, com o acirramento do preconceito contra as formas mais típicas da linguagem popular. A forma como as representações sociais da língua atuam como um poderoso instrumento de discriminação e de construção da hegemonia da dominação de classe é objeto da segunda seção deste artigo. A terceira seção traz um breve panorama da história sociolinguística do Brasil. A quarta seção busca explicar como o contato entre línguas deu origem às formas mais típicas da linguagem popular, sobre as quais recai um pesado estigma social. A conclusão retoma a íntima relação entre a história da língua e a história social e como a compreensão daquela pode contribuir para uma conscientização do que ocorre nesta.

Um livro que ensinava a falar errado

Uma ligeira nota publicada em um portal da Internet, no mês de maio de 2011, desencadeou um dos mais intensos debates sobre a língua no Brasil. A violenta reação ao chamado “livro de português do MEC”, cuja capa é apresentada na Figura 3, foi motivada por uma passagem em que se afirmava que o aluno poderia dizer “os livro”, sem aplicar a regra de concordância nominal, como é comum na fala popular, mas deveria ficar “atento”, porque, “dependendo da situação”, poderia “ser vítima de preconceito linguístico”. A frase “nós pega os peixe”, também referida no livro, como legítima em seu ambiente cultural de origem, foi propagada à exaustão, reforçando o estigma social que se abate sobre a falta de concordância na fala popular.

Figura 3: Capa do livro Por uma vida melhor, distribuído pelo MEC para o EJA – Programa de Educação de Jovens e Adultos, em maio de 2011.
Figura 3: Capa do livro Por uma vida melhor, distribuído pelo MEC para o EJA – Programa de Educação de Jovens e Adultos, em maio de 2011.

Para os críticos, a distribuição do livro demonstrava que o MEC estava fazendo apologia da ignorância popular e privando a população de seu direito legítimo a um ensino adequado de língua portuguesa, dando azo às reações mais furibundas e esdrúxulas, como esta, de uma senhora (publicada no portal100fronteiras.com.br, em 15/05/2011), que se apresentava como pedagoga e professora de português [sic]:

Com pompa e circunstância, o MEC do governo petista quer assegurar que os futuros cidadãos fiquem privados de empregos, de crescimento intelectual, de relações culturais; no futuro, o MEC deseja que os brasileiros estejam no estado de barbárie linguística e sejam incapazes de entender um edital de concurso, por exemplo; salvo se o edital informar que “os candidato deve apresentarem os seguinte documento”. Nem Hitler, com sua mente diabólica e homicida, realizou um projeto desse tipo para dominar a juventude nazista, ganhando simpatias e aplausos dos pouco letrados daquela época. Com pompa e circunstância, em uma palhaçada do politicamente correto, o governo petista organiza um exército de futuros adultos privados de proficiência no vernáculo, cuidadosamente preparado no sistema público de ensino, que servirá aos interesses do estado brasileiro que está sendo forjado desde 2003, em conformidade com as lições Gramsci.

Manifestações desse tipo alimentaram, durante semanas, uma onda de revolta e indignação, na qual os responsáveis pelo livro foram, inclusive, chamados de criminosos, e uma procuradora da República anunciou sua intenção de processá-los, como se pode ver nesta notícia publicada pelo jornal O Globo (versão on line), em 16/05/2011:

Diante da denúncia de que o livro Por uma vida melhor, da professora Heloísa Ramos – que foi distribuído a 485 mil estudantes jovens e adultos pelo Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação –, defende o uso da linguagem popular e admite erros gramaticais grosseiros como “nós pega o peixe”, a procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, previu que haverá ações na Justiça. Para ela, os responsáveis pela edição e pela distribuição do livro “estão cometendo um crime” contra a educação brasileira. “Vocês estão cometendo um crime contra os nossos jovens, prestando um desserviço à educação já deficientíssima do país e desperdiçando dinheiro público com material que emburrece em vez de instruir. Essa conduta não cidadã é inadmissível, inconcebível e, certamente, sofrerá ações do Ministério Público”, protestou a procuradora da República em seu blog.

É muito significativo observar que alguns aspectos desse episódio anteciparam o violento retrocesso que ocorreria nos anos seguintes, no país. Em primeiro lugar, o discurso de ódio e intolerância, contra uma paranoica ameaça comunista e contra o politicamente correto. Esse foi um dos principais motes da campanha que elegeu Bolsonaro em 2018. Em segundo lugar, o açodamento e a exacerbação de alguns órgãos do poder judiciário. A partidarização do poder judiciário, através da famigerada Operação Lava Jato, foi um fator decisivo no desenvolvimento da luta política que levou ao golpe parlamentar que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e à prisão do presidente Lula, em 2018. O terceiro aspecto foi a manipulação da grande mídia corporativa, que também desempenhou um papel decisivo no retrocesso político que ocorreria nos anos seguintes, com um verdadeiro massacre midiático do Partido dos Trabalhadores, que descambou para a criminalização de toda a política, criando o caldo de cultura que possibilitou a eleição à presidência da República de um deputado que se destacava pela defesa da ditadura militar e viria a dar representatividade política ao que de mais obscuro existe na sociedade brasileira.

Visando desgastar o governo petista, particularmente seu ministro da educação, Fernando Haddad, que concorreria e venceria a eleição para a maior cidade do país, em 2012, a mídia corporativa não tinha pejo em se referir ao “livro que ensinava a falar errado”, contrariando a lógica mais elementar, como ficou evidente quando o então ministro da educação afirmou que “ninguém em sã consciência se propõe a ensinar ao aluno a falar como ele já fala”. Aferrando-se às três primeiras páginas do livro, a mídia sonegou a informação de que em todo o seu restante o livro se propunha a ensinar a norma culta para o público a que se destinava: os alunos do Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Também vale destacar que quase nunca um linguista foi convidado para os diversos debates que foram promovidos na época.

Embora não tenha havido maiores consequências práticas (a ação judicial impetrada para o recolhimento do livro, por exemplo, não prosperou), o episódio do livro de português do MEC deixou claro que o preconceito contra as formas mais típicas da linguagem popular é um poderoso instrumento ideológico de dominação de classe, do qual a elite econômica, através de seus pensadores e de sua mídia corporativa, não abre mão.

O papel da língua na construção da hegemonia ideológica nas sociedades de classe

No plano linguístico, o episódio do livro de português do MEC tornou evidente que o emprego das regras de concordância nominal e verbal é um marcador social que traça uma indelével fronteira, reproduzindo, no plano social da língua, o apartheid que rasga a sociedade brasileira. Dessa forma, a fala se junta a outros marcadores sociais da dominação capitalista no Brasil, como os estereótipos do popular como atrasado, ignorante e folclórico, cujas origens remontam ao passado colonial e escravista da sociedade brasileira. Nesse contexto, o aporte da ciência da linguagem assume um caráter profundamente subversivo, ao desconstruir o preconceito linguístico como sendo uma mera convenção social, sem implicações para o pleno funcionamento da língua, o que explica a forma como a ciência da linguagem é tratada pelo mainstream midiático.

Um simples cotejo com o inglês e o francês, línguas que gozam de grande prestígio, no Brasil e no mundo, basta para provar o caráter arbitrário do julgamento social sobre as formas da linguagem popular. Em inglês, se diz: I work, you work, he works, we work, you work, they work; na linguagem popular do Brasil: eu trabalho, tu trabalha, ele trabalha, nós trabalha, vocês trabalha, eles trabalha. Nas duas variedades linguísticas, só uma pessoa do discurso recebe uma marca específica (no inglês é a 3ª pessoa do singular: he works; enquanto no português popular brasileiro é a 1ª pessoa do singular: eu trabalho), ou seja, ambas têm o mesmo nível de complexidade estrutural, mas o inglês é a língua da globalização e da modernidade, enquanto o português popular do Brasil é língua de gente ignorante, que não sabe votar.

O mesmo se pode dizer do francês, em que a flexão de número e pessoa do verbo também se perdeu, e só se mantém na escrita: je travaille, tu travailles, il/elle travaille, nous travaillons, vous travaillez, ils/eles travaillent. Isso não impediu o francês de ser a língua de cultura do século XIX e ser chique para a aristocracia brasileira falar francês até meados do século XX.

Conquanto seja evidente o caráter arbitrário e preconceituoso do estigma que se abate sobre a ausência de concordância no português popular, o pensamento conservador dominante sequer reconhece o preconceito linguístico como uma categoria de análise válida. Diante disso, vale a pena descrever o modus operandi do preconceito na língua, introduzindo a noção de transferência. No julgamento preconceituoso, avalia-se uma coisa com base em outra. Nesse caso, a avaliação negativa da linguagem popular decorre da avaliação negativa de seus falantes, em um círculo vicioso e tautológico, no qual a desqualificação da linguagem popular, baseada no julgamento negativo de seus falantes, serve para legitimar o próprio julgamento social negativo desses falantes, do qual se alimenta. Porém, na inversão que a hegemonia ideológica da classe dominante opera, o discurso gramatical, que condena a falta de concordância, é chancelado como um discurso técnico, ponderado e abalizado, enquanto o discurso da Linguística, que revela o caráter arbitrário e dogmático dessa avaliação, é visto como altamente ideológico e relativista. E isso não ocorre só no Brasil, mas em todo o mundo letrado. Para entender por que essa inversão ideológica ocorre, é preciso situar a normatização da língua na cultura das sociedades modernas.

A normatização linguística é um dos pilares da hegemonia ideológica nas sociedades contemporâneas, no que o sociolinguista James Milroy (2011 [2001], p. 57-59), recentemente falecido, denominou ideologia da língua padrão: “praticamente todo o mundo adere à ideologia da língua padrão e um dos aspectos dela é uma firme crença na correção gramatical”:

Essa crença assume a seguinte forma: quando houver duas ou mais variantes de uma palavra ou construção, somente uma delas pode estar certa. É considerado óbvio, como senso comum, que algumas formas são certas e outras são erradas, e assim é, mesmo quando existe discordância sobre qual é qual. Em geral, não existe discordância. […]. Para a maioria das pessoas em culturas de língua padrão que prestam atenção à língua é assim e pronto: nenhuma justificativa é necessária [para rejeitar uma forma como errada].

A naturalização do mito da correção gramatical faz com que ele assuma uma dimensão moral, o que acentua seu caráter ideológico e a sua força como discurso hegemônico, posto que a correção gramatical é vista como uma mera questão de bom-senso, ocultando o seu caráter ideológico:

embora as atitudes do senso comum sejam ideologicamente carregadas, aqueles que a sustentam não as veem de modo algum como tais: eles acreditam que seus juízos desfavoráveis sobre pessoas que usam a língua “incorretamente” são juízos puramente linguísticos sancionados por autoridades sobre a língua (…). As pessoas não associam necessariamente esses juízos com preconceito ou discriminação em termos de raça ou classe social: elas acreditam que, sejam quais forem as características sociais do falante, estes simplesmente usaram a língua de um modo errado e que existe para eles a possibilidade de aprender a falar corretamente. Se não o fizeram, é por culpa própria deles, como indivíduos, seja qual for sua raça, cor, credo ou classe; existe uma abundância de modelos do “bom” falar para eles. (Milroy, 2011 [2001], p. 59)

Dessa forma, a ideologia da correção gramatical confina com a ideologia da meritocracia, que avalia supostos méritos individuais, abstraindo as condições objetivas que diferenciam os indivíduos. E a dimensão ideológica do discurso da correção gramatical é assim descrita por Milroy (2011 [2001], p. 62):

A ideologia exige que aceitemos que a linguagem (ou uma língua) não é algo que os falantes nativos possuem: eles não são pré-programados com uma faculdade da linguagem que lhes permite adquirir (ou desenvolver) “competência” na língua sem ser formalmente ensinados (…). O que eles adquirem de modo informal antes da idade escolar não é confiável e não plenamente correto ainda. Nesse contexto, a “intuição do falante nativo” não significa nada, e as sequências gramaticais não são produtos da mente do falante nativo. Elas são definidas externamente – em compêndios gramaticais – e a escola é o lugar onde ocorre a verdadeira aprendizagem da língua. Faz parte do senso comum que é preciso ensinar às crianças as formas canônicas de sua própria língua nativa.

Assim, o discurso da correção gramatical exibe uma das características centrais do discurso ideológico, ou seja, um discurso que emite um juízo de valor, determinado por um interesse de classe, mas que não se apresenta enquanto tal. Não obstante sua avaliação seja arbitrária e apriorística, o discurso da correção gramatical logra um estatuto de objetividade e de universalidade. O parâmetro da autoridade, definida externamente, é crucial para a legitimação do discurso ideológico. E autoridade da tradição gramatical (um paradigma do saber que se mantém e se reproduz há mais de dois mil anos no mundo ocidental) é tanta que se opera uma inversão perversa: “se os linguistas afirmarem que todas as variedades são gramaticais (o que elas, é claro, são), suas opiniões serão interpretadas como ideológicas, não como linguísticas” (Milroy, 2011 [2001], p. 62). Ou seja, o discurso da correção gramatical arbitrário e dogmático é visto como técnico e objetivo, enquanto o discurso científico e empiricamente fundamentado da linguística é visto como… ideológico!

Essa invisibilidade do caráter ideológico do discurso da correção gramatical é que lhe confere um papel central na construção da hegemonia ideológica da dominação de classe, donde a importância estratégica de se manter o dogma da correção gramatical, como faz o pensamento conservador, amplamente apoiado e difundido pela mídia corporativa. Como contraparte necessária, é preciso também desqualificar o discurso científico da Linguística, interditando-lhe qualquer autoridade sobre as questões da língua, pelo menos no debate social. Uma estratégia adotada para isso é exatamente criar uma contradição entre o conhecimento científico da língua e o seu ensino como disciplina escolar, como o fez o gramático Evanildo Bechara, por ocasião do debate acerca do livro de português do MEC:

Há uma confusão entre o que se espera de um cientista e de um professor. O cientista estuda a realidade de um objeto para entendê-lo como ele é. Essa atitude não cabe em sala de aula. O indivíduo vai para a escola em busca de ascensão social.[1]

Não deixa de ser espantoso o que é reconhecido com tanta naturalidade. A língua não deve ser estudada na escola como ela é de fato, mas como ela deve ser. Imaginem o professor de biologia ensinando a forma ideal dos seres, e não sua anatomia real. Ou o professor de geografia ensinado a disposição perfeita dos continentes, e não sua configuração atual. Acenando com a cenoura da “ascensão social”, Bechara limpa o terreno para os normativistas legislarem arbitrariamente sobre a língua. A visão científica, que descreve e analisa a variação e a diversidade da língua viva, deve ficar hermeticamente confinada entre os muros da universidade. Na escola e na sociedade, deve predominar a visão dogmática e discriminatória de que existe uma única forma de falar e escrever, enquanto as demais variedades devem ser vistas como deteriorações produzidas por mentes inferiores, ou seja, o discurso da correção gramatical, que atua como um poderoso instrumento de discriminação, marginalização e exploração das classes populares das periferias urbanas e dos rincões rurais do país, onde predominam os pretos e os pardos. E revela-se aí mais um círculo vicioso e perverso. Alguns dos aspectos linguísticos mais estigmatizados da linguagem popular têm a sua origem exatamente na forma como a língua portuguesa foi assimilada pelos africanos escravizados e se tornou a língua materna dos descendentes brasileiros desses africanos, e o estigma social que se abate sobre essas formas linguísticas torna-se um poderoso sustentáculo do racismo estrutural no Brasil.

O contato entre língua na formação histórica da realidade linguística brasileira

A realidade linguística do Brasil atualmente pode ser definida como paradoxal. Ao tempo em que contém uma das mais ricas diversidades linguísticas do planeta, com mais de duzentas línguas faladas em seu território, o Brasil é também um dos países mais linguisticamente homogêneos do mundo, pois cerca de 98% de sua população é falante nativa do português, em sua imensa maioria monolíngues (Lucchesi, 2020). Tirando as mais de 50 línguas de imigração, a grande diversidade linguística do Brasil se concentra nas cerca de 160 línguas autóctones de pelo menos cinco famílias linguísticas tipologicamente bem diferenciadas. Porém, toda essa diversidade linguística é só uma pálida imagem do que existia no início da colonização portuguesa, quando se estima que eram faladas mais de mil línguas indígenas no território brasileiro (Rodrigues, 1986). Grande parte dessas línguas desapareceu já nos primeiros séculos de colonização, com o extermínio dos povos que as falavam. Da mesma forma, estima-se que cerca de 200 línguas africanas foram trazidas para o Brasil com o tráfico negreiro (Petter, 2006). E nada diz mais sobre a violência simbólica e cultural da escravidão do que o fato de nenhuma dessas línguas ter subsistido no Brasil. Portanto, a história linguística do Brasil, nos últimos 500 anos, pode ser definida como um violento processo de homogeneização linguística, pois, até o final do século XVII, o português era apenas uma das centenas de línguas que se falavam no território brasileiro, sem uma clara proeminência sobre as demais em várias regiões. Dessa forma, o ciclo da mineração representa um turning point no processo de imposição do português como língua hegemônica do Brasil (Lucchesi, 2017), embora a imposição linguística, religiosa e cultural tenha sido a marca da colonização europeia desde o seu início.

Não obstante a enorme quantidade de línguas autóctones que eram faladas em seu território, predominava, na costa do Brasil, no início da colonização portuguesa, uma grande homogeneidade linguística, devido à grande expansão dos povos tupis pelo litoral brasileiro (Lucchesi, 2009, 2017). Esses povos falavam basicamente duas variedades linguísticas muito aparentadas: o tupiniquim e o tupinambá (Rodrigues, 1986). Por serem muito semelhantes entre si, os colonos e missionários portugueses se referiam a essas variedades como uma única língua, a que chamaram língua geral da costa do Brasil. O amplo uso dessa língua geral vai caracterizar o cenário sociolinguístico de São Paulo, onde se instalou o primeiro foco de colonização portuguesa no Brasil, com a fundação da Vila de São Vicente, em 1532. Após se estabelecer no litoral, os colonizadores seguiram para o interior, subindo o planalto paulista e fundando uma nova vila, que viria a dar origem à atual cidade de São Paulo. Após a sujeição da população tupi local, o aprisionamento dos povos indígenas prosseguiu pelo interior do Brasil, em grandes expedições denominadas Bandeiras. Essas populações eram aprisionadas e exploradas em aldeamentos nos quais se impunha a língua geral tupi como língua franca, já que muitos desses povos eram falantes de diversas línguas indígenas, sobretudo do grupo macro-jê, que predominava no interior do Brasil. Por outro lado, o reduzido contingente de colonizadores, em sua imensa maioria homens, possibilitou um amplo processo de miscigenação, no qual as crianças adquiriam a língua geral tupi de suas mães para só adquirirem o português quando cresciam e iam trabalhar para seus pais (Rodrigues, 2006).

A conservação de variedades da língua geral tupi, com alterações produzidas no novo contexto de colonização, ocorreu em vários pontos da costa brasileira, como o sul da Bahia (Argolo, 2013). Com a expulsão dos franceses de São Luís, em 1615, outra variedade do tupi, o tupinambá, viria a predominar na sociedade colonial que os portugueses estabeleceram inicialmente no Maranhão e expandiram para a região amazônica, em busca das especiarias da selva e do apresamento de novos povos indígenas, em sua maioria falantes de línguas diversas, inclusive de outras famílias linguísticas, distintas da família tupi-guarani, nomeadamente as famílias aruaque e caribe. Assim, a língua de intercurso que viria a predominar na colonização da Amazônia seria essa variedade crescentemente alterada do tupinambá, que, com a denominação de nhengatu (lit. ‘língua boa’), acabou por se nativizar entre povos indígenas da região e até hoje é a língua materna de algumas localidades do Alto Amazonas (Rodrigues, 2006).

A língua geral foi predominante no Estado de São Paulo até os finais do século XVII (Silva Neto, 1963[1951]), porém a descoberta de ouro e diamantes na região vizinha, das Minas Gerais, promoveu um grande afluxo de colonos portugueses, com seus muitos milhares de africanos escravizados, ao longo do século XVIII, os quais expulsaram os antigos paulistas para o centro-oeste do Brasil, reduzindo drasticamente o uso da língua geral no Sudeste. No Maranhão e no Pará, no norte do Brasil, a língua geral de base tupinambá se conservou por muito mais tempo, tanto que o governo português do Marquês de Pombal publicou um decreto, proibindo o seu uso, no ano de 1755, mas a língua geral amazônica só viria a entrar em franco declínio ao longo do século XIX (Freire, 2004).

Por outro lado, nas regiões economicamente mais dinâmicas do Brasil Colonial, como o entorno das vilas de Olinda e Salvador, no Nordeste do Brasil, a população indígena local foi rapidamente dizimada, com a importação de largos contingentes de africanos escravizados, que teriam substituído a mão-de-obra indígena já em meados do século XVII (Menard; Schwartz, 2002, p. 10). A partir daí a contribuição africana para a composição da sociedade brasileira foi crescente, pois a principal força motriz do empreendimento colonial português foi a mão de obra dos africanos escravizados e seus descendentes, denominados crioulos; tanto que o chamado tráfico negreiro se tornou uma das atividades comerciais mais lucrativas, durante todo o período colonial e em boa parte do período do Império.

Embora tenha sido, durante bastante tempo, muito pouco visível, em função da violência, não apenas física, mas, sobretudo, simbólica, inerente ao processo de escravidão (Mattoso, 2003), a presença africana constitui um dos componentes fundamentais na formação da sociedade brasileira, nos mais diversos setores da atividade social e da cultura, com forte influência na religião, na culinária, na música, na dança (Freyre, 1936), e também no plano da língua, tendo os africanos e seus descendentes desempenhado um papel decisivo na “europeização” linguística do Brasil (Ribeiro, 1995, p. 166).

Não apenas no Brasil, mas em todo o processo de colonização da América, entre os séculos XVI e XIX, a importação de largos contingentes de mão de obra africana foi crucial. Estima-se que, ao longo de mais de três séculos, o tráfico negreiro trouxe para o continente americano cerca de dez milhões de africanos.[2] A participação desse contingente na formação das nações que vieram a se constituir no novo continente foi significativa, não obstante a já referida opressão na qual se buscava apagar a identidade cultural e linguística dos povos africanos. Em vários planos da cultura, como a religião, a música e a culinária, a contribuição africana é indelével. No plano linguístico, essa contribuição se destaca pela emergência de línguas crioulas, na região do Caribe, em sociedades formadas a partir de grandes propriedades agroexportadoras que empregavam largamente a mão de obra escravizada, denominadas plantações. Dentre as mais de trinta línguas crioulas que se formaram na região, encontram-se o haitiano, cujo léxico é de origem francesa, e o jamaicano, de base lexical inglesa, além do papiamento, em Curaçao, e o sranan e o saramacan, no Suriname.

Calcula-se que o destino de quase a metade dos africanos trazidos para o continente americano tenha sido o Brasil, o que conduz à impressionante cifra de cinco milhões de indivíduos.[3] Em sua maioria, eram provenientes da região de Angola e da região que atualmente corresponde à Nigéria e ao Benin. Da primeira região vieram os falantes das línguas banto, principalmente o quimbundo, o quicongo e o umbundo. Da segunda região, vieram os falantes das línguas kwa, majoritariamente o iorubá, o ewe, o mahi e o fon. Os escravos provenientes de Angola eram levados para Pernambuco e principalmente para o Rio de Janeiro, que se tornou o principal porto do Brasil, a partir do século XVIII. Do Rio de Janeiro, eram distribuídos para o resto do Brasil, exceto a Bahia, que importava a maioria dos seus escravizados da Costa da Mina, com larga predominância dos falantes do iorubá, tanto que essa língua ainda era falada entre a população pobre de Salvador até o início do século XX (Rodrigues, 2004 [1933]).

Até meados do século XIX, aproximadamente dois terços da população do Brasil era constituída por índios, africanos e seus descendentes – ou seja, só cerca de um terço daqueles que formaram a sociedade brasileira eram falantes nativos do português filhos de falantes nativos dessa língua, ou seja, o segmento da elite colonial branca. A partir do século XVII, os africanos e seus descendentes, incluindo os mestiços, predominaram na população do Brasil, tanto que, em 1850, africanos, crioulos e mulatos correspondiam a 65% do total da população (Lucchesi, 2009). Esse contingente formou, quase que exclusivamente, a mão de obra das lavouras de cana-de-açúcar, fumo e algodão do Nordeste, entre os séculos XVII e XIX, da extração de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, no século XVIII, e das fazendas de café do Vale do Paraíba e do Planalto Paulista, no século XIX. O tráfico negreiro só cessou em 1850, e a escravidão africana só foi abolida em 1888. Até o início do século XX, a grande maioria dessa massa de afrodescendentes vivia no campo e era iletrada (Lucchesi, 2015, p. 85-94).

Desde o tráfico da África para o Brasil, os africanos eram misturados para evitar a articulação de revoltas. No Brasil, essa prática se reproduzia, e o uso das línguas africanas era reprimido, bem como suas práticas culturais e religiosas (Mattoso, 2003). Os africanos eram forçados a usar o português até para se comunicarem entre si, porém a aquisição da língua do colonizador era precária, porque o acesso a essa língua era muito restrito, e, na maioria das situações, especialmente na lavoura, os africanos não tinham interesse em adquirir uma grande proficiência em português. Essa segunda língua tornava-se, então, um código restrito de comunicação interétnica (Baker, 2000), com uma estrutura gramatical limitada e muitas vezes decalcada das línguas nativas dos africanos. Mesmo assim, essa variedade alterada de segunda língua ia se tornando a língua materna dos filhos dos africanos, no que se definiu como transmissão linguística geracional irregular (Baxter; Lucchesi, 1997; Lucchesi; Baxter, 2009). Esse processo pode levar à formação de uma língua qualitativamente distinta da língua do colonizador, tradicionalmente denominada língua crioula.

É possível que variedades crioulizadas do português tenham se formado no Brasil, sobretudo no século XVII, em algumas localidades com maior concentração de população africana, como o quilombo dos Palmares, no atual estado de Alagoas. Porém, essas variedades tiveram uma vida efêmera e não deixaram testemunhos históricos. Para além da desarticulação dos núcleos de resistência linguística e cultural, vários fatores demográficos, sociais e culturais concorreram para que a crioulização da língua do colonizador não ocorresse no Brasil de forma ampla de duradoura como ocorreu no Caribe, não obstante os significativos paralelos que se podem estabelecer entre os dois processos de colonização, especialmente no século XVII, que marca o início da formação da maioria das línguas crioulas nas sociedades de plantação das ilhas caribenhas (Lucchesi, 2019). Em primeiro lugar, coloca-se o percentual de pelo menos 30% de falantes nativos de português, durante o período da colônia e do império, bem superior ao que Bickerton (1981) estabeleceu para que a crioulização fosse possível: que os falantes do grupo dominante fossem inferiores a 20% do total da população. No plano socioeconômico, destaca-se a significativa presença pequenos proprietários no Brasil, que empregavam uma média de 3 a 5 escravizados, esbatendo, assim, a polarização entre senhores e escravizados, que caracterizou o Caribe, com a grande concentração de africanos nas poderosas empresas agroexportadoras que tornaram o açúcar o primeiro produto de consumo de massa do Ocidente. O elevado grau de miscigenação e a grande assimilação dos mestiços pela sociedade branca. A ação da Igreja Católica, que favoreceu a maior integração dos africanos e crioulos, nomeadamente através das ordens religiosas. E o grande número de alforrias (Lucchesi, 2019). Essas condições impediram a formação de pidgins e crioulos no Brasil, mas não impediram as alterações que vão separar as variedades de português dos descendentes de índios e africanos frente o português lusitanizado da elite colonial e do Império. Assim, um português dividido vai-se tornando a língua hegemônica da sociedade brasileira, configurando a polarização sociolinguística do Brasil (Lucchesi, 2015). Identificar os efeitos do contato entre línguas nas atuais variedades da língua no Brasil é crucial para compreender mais profundamente a questão social da língua e do preconceito linguístico.

Como o contato entre línguas afetou as atuais variedades do português popular brasileiro

Se hoje 98% da população do Brasil é de falantes nativos do português, quase todos monolíngues, durante a maior parte da sua história, cerca de dois terços de sua população era de falantes de línguas indígenas africanas e seus descendentes. Escrever livros e artigos científicos, como muito se faz, falando da história do português no Brasil baseado apenas nos testemunhos escritos da elite colonial e do império é apagar a história e a voz da maioria do povo brasileiro, descendentes dos povos originários e africanos (Lucchesi, 2012). A história linguística do Brasil tem ao menos duas grandes vertentes (Lucchesi, 2001). De um lado, uma elite branca e concentrada no litoral esforçava-se para reproduzir aqui o bon usage de Coimbra e Lisboa. De outra parte, esfalfando-se nas minas e plantações, milhões de indígenas e africanos iam adquirindo precariamente a língua do colonizador que lhes era imposta juntamente com os açoites. E essa variedade de segunda língua, mastigada e remoída, foi gradualmente se tornando a língua dos descendentes desses indígenas e africanos, gravando em seu modo de falar uma clivagem que reproduzia a clivagem de uma sociedade dividida entre senhores e escravos. Assim, ao longo dos séculos, a clivagem original entre o português da elite colonial, de um lado, e as línguas gerais indígenas e línguas francas africanas, de outro, foi se transformando na oposição entre um falar lusitanizado da elite escravocrata e variedades mais ou menos alteradas do português do povo trabalhador, descendente, em sua maioria, dos povos originários e africanos.

Em meados do século XIX, essa clivagem etnolinguística era bem notável para qualquer observador arguto, porém o ingresso de cerca de três milhões de imigrantes europeus e asiáticos na sociedade brasileira, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, foi esbatendo a coloração da clivagem linguística do Brasil, pois esses imigrantes, atraídos pelo governo brasileiro para substituir a mão de obra escravizada (sobretudo depois da abolição), aprendiam português, no mais das vezes, com os ex-cativos que subsistiam nas propriedades em que eram alocados. E como muitos desses imigrantes, pelas melhores condições que desfrutavam aqui, acabavam por ascender na escala social, levavam para as classes médias e altas as marcas da linguagem dos afrodescendentes, com quem haviam convivido (Lucchesi, 2001, 2015).

Esse esbatimento do caráter étnico da clivagem linguística do Brasil, ao longo do século XX, favoreceu o esforço para diluir as contribuições dos africanos e indígenas para o modo de falar dos brasileiros, até mesmo no âmbito da ciência. Para isso, concorreram dois fatores. De um lado, o racismo e o eurocentrismo, que viam nas interferências do aprendizado indígena e africano o empobrecimento e a degradação do idioma lusitano. Isso fica bem claro neste trecho do discurso de Joaquim Nabuco, na sessão de instalação da Academia Brasileira de Letras, em 1897:

A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa uniformidade de língua escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós; devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las indo a eles. A língua é um instrumento de ideias que pode e deve ter uma fixidez relativa. Nesse ponto tudo devemos empenhar para secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época (…) Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano ou Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem brasileira. (apud Pinto, 1978, p. 197-198)

No discurso do acadêmico, fica claro que os modelos de correção gramatical devem ser importados de Portugal, porque no Brasil a língua estava contaminada pela miscigenação racial, revelando como o racismo estava na base das representações sociais da língua numa sociedade que acabara de abolir formalmente a escravidão. Um pensamento similar é igualmente observado, entre filólogos e até linguistas, em meados do século XX, com a ideia de que o português não se impôs pela violência, mas pela superioridade cultural do colonizador europeu:

a vitória do português não se deveu a imposição violenta da classe dominante. Ela explica-se por seu prestígio superior, que forçava os indivíduos ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização. (Serafim da Silva Neto, 1963 [1951], p. 67)

Foi, portanto, a superioridade axiológica e pragmática da cultura ocidental que levou à vitória da língua portuguesa no Brasil sobre as suas concorrentes indígenas e africanas. (Sílvio Elia, 1979, p. 18)

Por outro lado, a hegemonia do estruturalismo, que encerra a história da língua na lógica interna do sistema linguístico, levava muitos teóricos a minimizar a influência do contato do português com as línguas africanas. Assim, Mattoso Câmara Jr. (1975) mantém no essencial a visão de Serafim da Silva Neto (1988[1957], p. 604):

Não se pode esquecer que a ação dos aloglotas consiste, de modo geral, em precipitar a deriva da língua, isto é, tendências já contidas no sistema. A evolução opera-se no sentido de tendências pré-existentes, que então irrompem e se difundem. É sabido que o aloglota reproduz, acentuando-os e exagerando-os, os traços da pronúncia que ouve.

E o mais surpreendente foi ver dois dos mais destacados sociolinguistas do Brasil reafirmarem essa hipótese, que se baseia no conceito estruturalista de deriva secular do linguista norte-americano Edward Sapir (1954[1921]):

A língua portuguesa falada em Portugal antes da colonização do Brasil já possuía uma deriva secular que a impulsionava ao longo de um vetor de desenvolvimento. No Brasil, este vetor se encontrou com forças que reforçavam e expandiam a direção original. (Naro; Scherre, 2007, p. 47)

Portanto, o resgate da participação de africanos e indígenas na formação histórica da realidade linguística brasileira demandou, em primeiro lugar, a superação de obstáculos que se colocavam no âmbito da própria ciência da linguagem, seja por influxos ideológicos, seja por limitações da teoria. Esse trabalho de pesquisa ensejou três grandes frentes de investigação: uma historiográfica, precisando os contextos sociolinguísticos em que ocorreu contato entre português e as línguas indígenas e africanas; uma teórica, com a formulação de uma teoria que desse conta de como o contato entre línguas afeta a estrutura da língua; e uma  empírica, que testa as hipóteses geradas pela teoria por meio de análises sociolinguísticas em tempo aparente dos processos de mudança em curso na fala popular brasileira, especialmente das comunidades quilombolas, onde, por suposto, os efeitos do contato do português com as línguas africanas seriam mais notáveis. No plano da teoria, a formulação do conceito de transmissão linguística irregular (Baxter; Lucchesi, 1997; Lucchesi; Baxter, 2009) foi a chave para se buscar uma adequada compreensão de como o contato entre línguas afetou a formação das atuais variedades populares da língua portuguesa no Brasil.

O conceito de transmissão linguística irregular tem um caráter gradiente e visa a desenvolver um modelo mais amplo de análise das mudanças linguísticas induzidas pelo contato maciço entre línguas, para além das situações típicas de crioulização. A ideia básica é que uma situação de maciço contato entre línguas pode conduzir à formação de uma língua crioula, que tem uma gramática qualitativamente distinta da língua alvo (Rouge, 2008), constituindo um caso radical de transmissão linguística irregular. Por outro lado, a situação de contato maciço pode gerar apenas variedades históricas da língua dominante com algumas características estruturais das línguas crioulas, porém em um nível menos intenso e mais superficial, caracterizando uma transmissão linguística irregular de tipo leve.[4]

Em ambos os casos, o que está essencialmente em jogo é a necessidade de recomposição das estruturas gramaticais perdidas na situação inicial de contato, com a aquisição precária da língua do grupo dominante pelos falantes adultos dos grupos dominados. Portanto, é a intensidade da erosão gramatical da língua dominante que vai determinar o grau de reestruturação gramatical da variedade linguística que se formará na situação de contato. Para que haja a reestruturação original da gramática que dá origem às línguas pidgins e crioulas, é preciso que o acesso aos modelos da língua dominante seja restrito durante todo o período de formação dessa nova comunidade de fala, o que aconteceu, por exemplo, nas sociedades de plantação do Caribe. Nesses casos, o grupo dominado, muito majoritário, retém um restrito conjunto de itens do léxico da língua dominante (denominada, então, lexificadora), adquirido inicialmente para a comunicação verbal com os colonizadores, mas que depois passa a servir como código de comunicação interétnica entre os grupos dominados, já que estes falam línguas diversas, normalmente ininteligíveis entre si. Nesse universo da interação entre os dominados, implementa-se a reestruturação gramatical do restrito vocabulário adquirido da língua do colonizador, sem deixar de ocorrer uma profunda alteração na forma fonética das palavras adquiridas (Baker, 2000). Esse código de comunicação interétnica, denominado tradicionalmente pidgin, é a segunda ou terceira língua da maioria de seus utentes (Mühlhäusler, 1986). Ao se converter na língua materna das crianças que nascem na situação de contato, torna-se uma língua crioula, que, como toda língua nativa de uma comunidade de fala, é uma língua plena em termos estruturais e funcionais em seu universo cultural próprio, conquanto tenha uma estrutura gramatical incialmente muito simplificada em algumas áreas da gramática (Siegel, 2008).

Dessa forma, as línguas crioulas, embora tenham a imensa maioria de suas palavras provenientes da língua do grupo dominante na situação de contato (na imensa maioria dos casos, uma língua europeia), exibe uma estrutura gramatical qualitativamente diversa. Por exemplo, as línguas crioulas expressam os valores das categorias gramaticais de tempo, modo e aspecto por meio de partículas pré-verbais, e não por meio da flexão verbal, como ocorre nas línguas lexificadoras europeias. A gramaticalização desempenha naturalmente um papel crucial na formação das línguas crioulas. Assim, o verbo dar se gramaticaliza para desempenhar a função de preposição de dativo, os verbos discendi (dizer/falar) passam a desempenhar também a função de complementizadores (conectores oracionais), e o nome cabeça ou corpo passa a funcionar também como pronome reflexivo. A crioulização pode ser vista também como um processo de simplificação morfológica (McWhorter, 1998; 2001). Normalmente, as línguas crioulas utilizam um número muito reduzido de preposições e conjunções, predominando as construções por justaposição; além disso, não possuem flexão de caso dos pronomes pessoais, flexão verbal de número e pessoa e concordância verbal e nominal. Como decorrência dessas alterações, as línguas pidgins e crioulas também exibem algumas mudanças paramétricas em relação às línguas lexificadoras europeias, como a ausência de sujeito referencial nulo e de inversão na ordem sujeito-verbo (Roberts, 1997). A recomposição da estrutura gramatical que ocorre na pidginização/crioulização se concentra nos mecanismos que são essenciais ao funcionamento de qualquer língua natural, o que reveste o estudo das línguas crioulas de especial interesse para a compreensão da linguagem humana, pois a língua crioula prototípica possuiria apenas o núcleo gramatical essencial da faculdade da linguagem (Bickerton, 1981, 1999).

Toda essa reestruturação gramatical que caracteriza a formação das línguas crioulas ocorreu em situações sócio-históricas bem específicas, nas quais os grupos dominados eram altamente segregados e tinham um acesso extremamente restrito aos modelos da língua alvo. As grandes plantações de açúcar do Caribe são considerados os contextos históricos prototípicos para a ocorrência da pidginização/crioulização (Arendts, 2008, Singler, 2008). Porém, como argumentado acima, na formação da sociedade brasileira, os falantes dos grupos dominados e seus descendentes tiveram um maior acesso à língua europeia do grupo dominante, o que inibiu a crioulização, mas não impediu a ocorrência de mudanças estruturais decorrentes da aquisição mais ou menos limitada do português como segunda língua por milhões de índios aculturados e africanos escravizados e da nativização desse modelo mais ou menos defectivo de segunda língua entre os seus descendentes mestiços ou endógamos.

Nesse processo de transmissão linguística irregular de tipo leve, que determina a formação histórica das atuais variedades populares do português brasileiro, a reestruturação radical da gramática típica da crioulização não teria sido representativa nem duradoura. Ocorreu, portanto, a transmissão dos mecanismos nucleares da gramática da língua dominante. Por outro lado, não deixou de ocorrer uma reestruturação parcial, com mudanças que afetaram sobretudo os mecanismos gramaticais sem valor informacional, como as regras de concordância nominal e verbal. Observa-se, contudo, uma diferença quantitativa entre esse processo menos intenso de reestruturação e o processo radical da crioulização, pois, neste último, mecanismos gramaticais sem valor informacional são virtualmente eliminados, enquanto na transmissão linguística irregular de tipo leve observa-se apenas um amplo processo de variação no uso desses mecanismos gramaticais, sem ocorrer a sua eliminação, como acontece até hoje no português popular do Brasil, em que a falta de concordância nominal é verbal não é categórica, mas variável, observando-se tanto meus filho foi embora, quanto meus filhos foro embora.

Análises sociolinguísticas desses fenômenos em comunidades quilombolas do interior do estado da Bahia, numa abordagem em tempo aparente, que busca deslindar processos de mudança em curso na comunidade, com base na observação sincrônica da variação em determinando momento da língua (Labov, 2008[1972]), identificaram uma tendência ao incremento das marcas de concordância, liderados pelos homens mais jovens que viveram algum tempo fora da comunidade e que tiveram alguma experiência de escolarização (Lucchesi; Baxter; Ribeiro, 2009). Essas mudanças de cima para baixo e de fora para dentro da comunidade quilombola se inserem no amplo processo de nivelamento linguístico, no qual os padrões de fala das elites letradas das grandes cidades brasileira se difundem para todas as classes sociais e para todas as regiões do país, em função da influência vertiginosa dos meios de comunicação de massa, da educação pública (mesmo que precarizada) e pelo deslocamento populacional. Esse nivelamento linguístico, que vai eliminando gradualmente as marcas produzidas pelo contato linguístico no passado, é resultante do profundo processo de industrialização e urbanização da sociedade brasileira que se implementa a partir da revolução de 1930. Porém, essa difusão do padrão linguístico urbano culto esbarra nas limitações do desenvolvimento tardio e dependente do capitalismo brasileiro e do quadro de violenta concentração da renda que ele produziu, o que não permite a plena integração no mercado de trabalho e de consumo das massas egressas das zonas rurais, que se concentram em bolsões de miséria na periferia das grandes cidades, configurando, assim, o quadro atual da polarização sociolinguística do Brasil (Lucchesi, 2015).

A constatação de que está em curso atualmente uma mudança com a recuperação da morfologia perdida na situação de contato no passado refuta a hipótese de Nero e Scherre (2007) de que esses fenômenos decorrem de uma deriva secular interna à estrutura da língua, pois esta hipótese prevê um lento processo de perda das marcas de concordância, e não o seu incremento, como as pesquisas empíricas têm revelado. Além disso, a observação de fenômenos variáveis mais raros de simplificação morfológica, como a falta de concordância de gênero (e.g., as vezes ‘duece um pessoa, não tem um ambulança) e de não marcação da 1ª pessoa do plural nos verbos (e.g., eu trabalha na roça), que não se observam, em geral, nas variedades populares do português brasileiro, mas se observam nas comunidades quilombolas mais isoladas, reforça a  relação historicamente motivada entre esses processos de simplificação morfológica mais profundos e o contato do português com as línguas indígenas e africanas que marca a formação da sociedade brasileira.

A historiografia linguística revela, assim, que as marcas mais estigmatizadas da fala popular tiveram sua origem na forma como o português foi imposto aos segmentos indígenas e africanos na formação da sociedade brasileira e ainda se mantêm, nos dias atuais, em função da marginalização socioeconômica desses segmentos. Sua erradicação passa, portanto, pela real democratização da sociedade brasileira, facultando a esses segmentos marginalizados o pleno acesso ao mercado de trabalho e de consumo, nomeadamente de bens simbólicos e culturais. E nada justifica o preconceito contra essas formas linguísticas, que nada mais são do que o reflexo do caráter pluriétnico da sociedade brasileira, a não ser o preconceito e o racismo de uma elite e uma classe média retrógradas e escravistas.

Conclusão: o racismo na língua e na sociedade

A sociedade brasileira é uma das mais injustas, violentas e cruéis de planeta. Historicamente, isso se explica pelo fato de os dois grandes processos formadores desse imenso país foram o extermínio dos povos indígenas (infelizmente ainda em curso) e a escravidão africana (ainda surpreendida pelo Ministério Público do Trabalho no interior de grandes empresas rurais ou travestida nas “modernas” relações trabalhistas mediadas por aplicativos informáticos). Quarenta anos de hegemonia neoliberal só aprofundaram a exploração e a marginalização de crescentes segmentos da sociedade brasileira, como ocorreu em todo o mundo, com o vertiginoso desenvolvimento tecnológico concentrado na mão de uma poucos gigantes econômicos, produzindo um retrocesso que ameaça o meio ambiente, as relações humanas, a ciência, a cultura e coloca o mundo à beira da guerra, do caos social e do desastre ambiental irreversível.

A ciência não pode se furtar ao seu papel e não pode deixar de cerrar fileiras na luta democrática, popular e progressista em defesa do planeta e da humanidade, contra a voragem dos monstruosos detentores do grande capital financeiro nacional e internacional. A inextrincável relação entre a língua e a vida social faz das representações sociais da língua um poderoso instrumento de dominação de classe, alimentando no Brasil o desumano racismo estrutural. Não é à toa que a mídia capitalista cultiva o purismo gramatical e trata a discriminação contra as formas da linguagem popular como “ação civilizadora”, para “tirar o povo da sua ignorância”. Mas, ao provar, com uma investigação empírica consistente, que o preconceito linguístico não passa de uma nefasta convenção social, cujas origens remontam ao racismo da elite escravocrata do século XIX, a historiografia linguística e a sociolinguística assumem um caráter altamente revolucionário e subversivo, atraindo a ira dos sabujos e mastins das elites brancas e escravistas, como se pode ver nesta passagem de um editorial de um dos órgãos mais reacionários e manipuladores da imprensa nativa, a revista Veja, publicado na época da polêmica do livro de MEC, em sua edição de 25 de maio de 2011:

A discussão arcana sobre o ‘falar popular’ ocupa um escaninho secundário na sociolinguística e seria um enorme favor aos brasileiros que estudam e trabalham se nunca tivesse deixado o seu porão acadêmico.

Como expediente de seu discurso ideológico, a revista, que é porta-voz fidelíssimo dos interesses do grande capital, invoca retoricamente os interesses dos brasileiros que estudam e trabalham. Mas, ao contrário do que seu grunhido sectário afirma, a sociolinguística tem muito a contribuir com a melhoria de vida dos estudantes e trabalhadores brasileiros, desarmando um dos poderosos instrumentos ideológicos de sua opressão e exploração e promovendo a consciência e o respeito à diversidade linguística e cultural, como parte da construção de uma sociedade verdadeiramente pluralista, justa e democrática, o que a grande mídia capitalista tanto tenta impedir, para manter o poder avassalador do grande capital financeiro.


* Dante Lucchesi é professor titular aposentado de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense e Bolsista de Produtividade em Pesquisa, Nível 1B, do CNPq. É autor dos livros: Língua e Sociedade Partidas (Contexto, 2015), agraciado com o Prêmio Jabuti em 2016; Sistema, Mudança e Linguagem (Parábola, 2004); e organizador e autor do livro O Português Afro-Brasileiro (EDUFBA, 2009).

 

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Notas

[1] Publicado na Folha de São Paulo (versão on line), em 18/05/2011 (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1805201118.htm).

[2] Voyages – The Trans-Atlantic Slave Trade Database [http://slavevoyages.org/assessment/estimates]. Acesso em 24/09/2018.

[3] Idem.

[4] Uma formulação algo semelhante é feita por John Holm (2004), através do conceito de reestruturação linguística parcial.

Entrevista
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A GENTE DANÇA POR DENTRO: ENTREVISTA COM EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA

Edimilson de Almeida Pereira estreou em 1985 com Dormundo, e, desde então, publicou livros de poesia, romances, infanto-juvenis e ensaios, como o recente Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de um estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira, de 2017, republicado em 2022. É professor titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal Juiz de Fora (UFJF) e vencedor dos prêmios Oceanos, com O ausente, e São Paulo de Literatura, com Front, em 2020. Seus últimos livros são o infanto-juvenil A vida não funciona como um relógio e os livros de poesia Melro, O som vertebrado (ambos de 2022) e A morte também aprecia o jazz (2023). Nesta entrevista, concedida em 17 de maio, Edimilson relata alguns momentos de sua carreira e a relação de sua literatura com outras artes e com o trabalho antropológico, uma das marcas de sua escrita.

Prisca Agustoni / Divulgação
Prisca Agustoni / Divulgação

Beatriz Resende: Queria começar chamando a atenção para essa conversa do poeta com outras artes. No Diquixi: estudos para cabeças de Artur Timóteo da Costa, por exemplo, há uma conversa com as artes visuais, em A morte também aprecia o jazz, explicitamente, com o jazz.

Edimilson de Almeida Pereira: Acho que essa diversidade de abordagem temática e de inter-relações com diferentes áreas de conhecimento e campos artísticos tem muito a ver, no caso de vários escritores e no meu em particular, com o momento em que você se sente um sujeito criador, quando você começa a trabalhar com a criação. Isso às vezes tem a ver com uma questão geracional. Eu me formei na geração que, aqui em Juiz de Fora, começou a escrever na década de 1980. É uma geração, sobretudo, herdeira da poesia marginal. Tínhamos uma conexão muito próxima com o Rio, mas também éramos herdeiros de João Cabral [de Melo Neto], de Manuel Bandeira, de [Carlos] Drummond [de Andrade]. E havia aquela necessidade, até em função da situação política, dos quadros mais jovens que estavam na universidade se interessarem pelos temas gerais do país e tudo que o afetava. Era inevitável nosso interesse por política, economia, ciências sociais, artes plásticas e pelo cinema, que tinha um papel muito importante. A literatura acaba sendo um fio que atravessava todas essas áreas, não com um discurso de confrontação, para dizer “a literatura é diferente de tudo isso”, mas, ao contrário, para dizer que a literatura está presente de algum modo em tudo. Essas áreas nos ofereciam uma visão ampliada do país e do mundo naqueles anos efervescentes da primeira metade da década de 1980, o que nos deu uma espécie de metodologia natural para nos interessarmos por tudo.

Com o passar dos anos, os autores do grupo foram se dispersando, e eu fui tentando abordar essas diferentes áreas de uma maneira mais objetiva, reflexiva e analítica, de modo que, nos livros que você cita — Entre Orfe(x)u e Exunouveau, A morte também aprecia o jazz e o Diquixi —, tem um trabalho consciente. No primeiro, há uma análise de base antropológica que dialoga com questões de teoria literária. No segundo, um diálogo muito mais de natureza espiritual com o jazz, de modo que isso pode ser traduzido na linguagem poética. E no Diquixi é uma discussão de uma questão antropológica, uma visão do que são as nossas relações com as matrizes culturais africanas, e a tradução disso é um discurso político contemporâneo. Então, acho que veio sendo um processo a princípio natural, depois intencional, de me interessar por várias áreas de conhecimento, de produção do saber, de sempre trabalhar a noção de teias e relações. Relações já é em princípio plural, mas colocadas em teia se amplificam, para que se tente abordar diferentes campos de conhecimento, e a literatura é o fio mais ou menos condutor desse processo.

BR: Você é percebido no mundo da literatura como um poeta. Por isso, achei um desafio tão grande você fazer um livro como O ausente. É um romance, mas, quando lemos, conseguimos ver o quanto é atravessado por poesia. E mais, como aquela narrativa é atravessada também por questões políticas, referentes ao campo, à violência e à negritude, sem que você desenvolva de uma forma pedagógica. A sua expressão é sobretudo poética.

EAP: Os romances refletem de novo aquela teoria das teias de relações. São três romances com temáticas e linguagens diferentes [O ausente, Um corpo à deriva e Front]. Eles podem funcionar separadamente também como obras únicas, ou na trilogia que propus. Mas, no caso de O ausente, é um romance no qual fiz uma opção clara pela linguagem poética a partir da proposição de trabalhar temas da antropologia rural. A história básica do romance é muito simples. São dois camponeses num ambiente rural extremamente tradicionalista, uma cultura arcaica, muito fechada. Temos inúmeros estudos antropológicos que levantam essas estruturas familiares do interior do Brasil. O Antonio Candido, em Os parceiros do Rio Bonito, nos deu um belo exemplo desse tipo de estrutura social. Então, a base inicial do romance vem dessa área das ciências humanas. Faz parte do trabalho com pesquisa de campo que desenvolvo há mais de vinte anos. Agora estou um pouco parado, não tenho viajado mais, mas a estrutura do tema é fruto de pesquisa de campo, de convivência com meio rural. A questão que se coloca é a seguinte: já temos no Brasil uma fortíssima tradição regionalista que todos nós conhecemos bem. Ela já está mapeada nos temas, nas formas, nos narradores, os ícones dessa linhagem muito vigorosa. A minha preocupação não era refazer esse caminho, embora eu tivesse o mesmo tema e a mesma estrutura dessa literatura regionalista. A questão, para me diferenciar dessa tradição regionalista, não era o tema, mas a linguagem. E aí entra a questão da linguagem poética, o viés que mais me interessa, uma linguagem que prima não pelo seu caráter denotativo, que explicita o real, mas, sobretudo, pelo caráter obscuro, velado, hermético no modo como os temas são combinados. Sem falar diretamente do que é o real, vai criando emulações de sentido que nos levam a confrontar o real.

Estão lá os temas da violência, temas ligados às heranças das matrizes africanas e à relação do homem com o meio natural. São perceptíveis à medida que se faz a leitura, mas não estão enunciados de modo direto. A linguagem poética me permite criar essas emulações na fala dos personagens, de modo que é o leitor quem vai construindo os vínculos com o mundo real. O tema da violência rural, por exemplo, é incontornável no livro, mas em momento algum aparece de forma explícita. Ele vai sendo construído nos interstícios dos diálogos e das observações dos personagens, e é o leitor que tem que chamá-lo para si no processo de interpretação. Acaba sendo um livro intencionalmente difícil. Minha proposição não foi dar para o leitor um novelo aberto sobre os temas, mas deixar ele mesmo desfazer o novelo para chegar às suas construções. Foge um pouco da literatura didática e pedagógica, que encontra mais recepção. A intenção era fazer um livro que fosse experimentado a conta-gotas, talvez também por isso não seja muito extenso, senão se tornaria inviável. Para mim, o elemento principal de O ausente é a linguagem e o modo como ela é construída, e ele acaba sendo um livro metalinguístico. Eu deixei muito claras as referências dele, o [Guimarães] Rosa está lá. Não só na inversão das estruturas sintáticas, mas porque é um universo muito próximo do que o Rosa frequentou. Nesse caso, o grande sertão é uma metáfora para a linguagem se construir. O livro é uma visita e uma homenagem evidentes ao trabalho do Rosa.

Nós somos as leituras que fizemos. Nós, da área da teoria, sabemos que muitas vezes nosso pensamento teórico é fruto das leituras e interpretações que elaboramos. Faço questão de marcar esses diálogos na minha obra, as referências são evidentes para o leitor, mas, a partir das referências, é preciso começar a procurar também as particularidades. De certo modo, o que O ausente tem de “anti-Rosa” é a ruptura com o aspecto messiânico dos personagens, que ele explora muito, até porque se aproxima muito do real, da vida rural, como em “A hora e a vez de Augusto Matraga”. Em algum momento o messianismo rural aparece na reconstrução do Matraga. O ausente é totalmente antimessiânico e talvez seja uma das armadilhas do livro. Quem lê procurando esse sertão só do Rosa ou a realidade rural tem certa decepção, porque são personagens que constroem o próprio universo. A figura do narrador principal no fundo tenta se colocar como um pensador às avessas desse universo, tanto que a linguagem dele é toda de recusa.

Julio Tavares: Sua incursão em várias áreas e territórios chama a atenção, provindo principalmente de um profissional da área da letra, da palavra. Sendo você também uma figura ancorada na identidade negra, torna-se ainda insólito. Temos algumas figuras com esse marcador, mas não propriamente nesse trabalho artesanal com a palavra, como o Muniz Sodré, que tem também um longo trabalho de viagem por vários territórios. Através da literatura, você começou a trabalhar com antropologia, ciências sociais, em alguns momentos muito marcantes até existencialmente para você, que toca profundamente na sua biografia. São duas questões muito relevantes, o Congado de um lado, e sua grande parceira, a Núbia Pereira, de outro. Gostaria muito de conhecer mais essa vivência em campo e o motivo que impulsionou você a escrever a quatro mãos um projeto tão bonito, que se desdobrou em vários trabalhos, entre eles o que você me deu o privilégio de prefaciar, Ardis da imagem.

EAP: Raramente coloco minha biografia à frente do trabalho. Vivemos em um modelo social em que, tantas vezes, o biográfico se antepõe à própria reflexão, essa ideia do mundo dos famosos, da publicidade, e torna as suas dores e as suas conquistas um elemento de frente, o que às vezes dificulta o acesso com certo distanciamento à obra. Mas claro, não tenho nada contra isso, são modelos de época e valores sociais que prevalecem. Optei sempre pelo contrário, tenho dados biográficos importantes que aparecem na obra, mas raramente falei sobre eles. Sua pergunta é interessante, porque, como a vida dá muitas voltas, hoje começo a entender que esses dados biográficos são importantes, já dá para pensar sobre eles com distanciamento. Os dois casos que você cita são cruciais para a reestruturação do modo de pensar ou dos modos de pensar, e também para definir as áreas por onde venho caminhando ao longo das décadas. O primeiro acho que foi o contato com a Núbia, que me leva depois para o Congado. O contato com ela se deu na Faculdade de Letras e a universidade é um importante espaço de intercâmbio entre pesquisadores, professores e alunos. Fomos tão massacrados nos últimos anos, mas esse território, como convivência pessoal e de investigação, é decisivo para formar biografias e trabalhos fundamentais.

Entrei na universidade em 1983 e esse ingresso foi um divisor de águas. Vinha de um bairro de periferia e na época ninguém da minha família fazia universidade. Então, era uma primeira relação entre esse mundo periférico e o mundo acadêmico, que a princípio sempre se estranharam. Vemos que só agora essa barreira começa a ser um pouco reduzida, mas em 1983 era nítida. A universidade era um campo mais fechado, a classe média a ocupava e as periferias não chegavam lá. Para mim, de início, foram dois mundos muito diferentes colocados frente a frente, mas acho que tive, talvez por puro instinto, a preocupação de não manter a confrontação desses dois mundos, mas tentar entender como podiam se interpenetrar. Mantive toda a minha vida na periferia e as minhas relações com o mundo acadêmico.

Nesse momento foi importante o encontro com a Núbia, porque ela trabalhava no Departamento de Letras, na área de linguística, e, exatamente em 1983, estava iniciando um amplo projeto que se dividia em psicolinguística e sociolinguística. Ela abriu uma área de estudos sociolinguísticos, porque havia feito uma dissertação sobre a linguagem do pescador do interior de Minas Gerais, e vinha trabalhando etnografia, investigação linguística. Era um trabalho interdisciplinar, com uma abordagem incomum, pelo menos aqui na nossa universidade, talvez em outras isso já estivesse ocorrendo. E eu vinha do movimento de poesia de rua, que me levava a ter interesse por várias áreas. Acho que casou meu interesse múltiplo com a procura dela de um auxiliar de pesquisa que trabalhasse as culturas populares em uma perspectiva interdisciplinar. Em 83, tínhamos muito professor compartimentado na sua pesquisa. Tanto é que, quando ela escrevia os projetos, colocava a palavra “interdisciplinar” em itálico, porque não era algo habitual.

Esse contato foi decisivo para mim, encontrar na universidade alguém com uma visão de mundo muito ampla e interessada em agregar pessoas de áreas de conhecimento diferentes. Ela tinha vários bolsistas, alguns da área da música, o que nos permitiu fazer a transcrição inicial das pautas musicais do Congado, ainda hoje inovadora. Uma das primeiras barreiras que os musicólogos enfrentaram na época foi como fazer uma notação musical da rítmica do Congado, que era algo que precisava ser investigado. A notação tradicional, ocidental, não dava conta. A Núbia tinha um especialista na notação musical etnográfica. Quem avançou depois com esses estudos foi a professora Glaura Lucas, que também se tornou nossa grande interlocutora.

Respondendo a sua pergunta, a minha abertura para o campo da multidisciplinaridade se deve ao encontro com a Núbia. Aquele momento em que você diz que a vida muda de rumo e, no meu caso, mudou. Eu havia terminado a graduação em 1986 e meu projeto de mestrado era estudar o Carnaval no Rio, e já estava fazendo o projeto e iniciado alguns contatos. Acabei desistindo e fui para a UFRJ fazer literatura portuguesa, porque me dava mais tempo para ingressar no projeto da Núbia, o “Minas e Mineiros”, que se propunha a ser multidisciplinar e abordar as culturas populares nas perspectivas antropológica, sociológica, linguística, histórica e literária. A partir de 1986, comecei a acompanhá-la nas viagens para o interior de Minas. Foram dezenas de viagens, não exatamente para municípios importantes, mas para micropolos, microrregiões no interior do estado, junto com os bolsistas e auxiliares de pesquisa. Era aquele trabalho etnográfico clássico, de visita à localidade, permanência demorada, convivência longínqua com os habitantes, muita documentação em áudio, vídeo, fita, transcrição, o trabalho braçal da etnografia. Até hoje, três décadas depois, ainda tenho fita cassete desse acervo para transcrever. Espero algum dia passar esse material para  domínio público, porque não vou dar conta de trabalhar tudo, tem muita coisa que foi coletada e é um material intocado. Um link da pesquisa era sobre as questões da feminilidade no meio rural. A Núbia tinha um núcleo específico do projeto que se chamava “O Penhor dessa Igualdade”. Ela era muito criativa nos títulos. A discussão era como o patriarcado no meio rural havia segregado as mulheres, de tal modo que não só a corporalidade, o campo discursivo, mas tudo ficava muito restrito. Tenho as pastas amarelas do projeto com questões sobre religiosidade feminina, parto, puerpério, maternidade, narrativas sobre o feminino, a demonização do feminino. Era uma pasta de pesquisa que ela ia desenvolver. Então, para resumir, depois desse encontro com ela em 1983, como aluno, e em 1986, como participante do projeto, deixei de estudar Carnaval para estudar culturas populares no interior de Minas.

Eram mais de trinta temas que investigamos e um deles era o Congado. Foi talvez a área que mais apostamos na investigação, porque, na época, no início da década de 1980, toda terminologia, todo levantamento de campo sobre a prática ritual do Congado estava nos livros de folclore e de folguedos. Enveredamos primeiro na pesquisa de campo, sentíamos que isso era necessário. Visitamos muitas comunidades afrodescendentes do interior do estado, com ênfase no meio rural. O trabalho com os Arturos ficou mais conhecido, mas nossa ênfase era o meio rural, porque nos anos 1980 não se fazia antropologia rural do Brasil.

JT: Naquele momento os Arturos já eram urbanos?

EP: Sim, porque Contagem é uma cidade colada em Belo Horizonte. Mesmo em 1983, eles estavam a oito quilômetros do centro urbano de Contagem. Era uma comunidade fechada, com uma agricultura de subsistência pequena, mas da porteira para fora já era área urbana, então havia um contato muito grande. Com isso, o Congado entrou de fato na nossa área de interesse e fizemos um levantamento muito grande. Temos ainda muito material gravado e hoje, quando me lembro da Núbia, lembro com carinho especial, porque ela tinha uma enorme preocupação com o registro visual. Era difícil naquela década um fotógrafo fazer as imagens, era quase um milagre, ter uma câmera Super 8 era dificílimo. E as pessoas das comunidades não gostavam de se expor para a fotografia, muito diferente de hoje. Atualmente, abro as redes sociais e os Arturos têm um link próprio da comunidade e fazem questão de aparecer com as suas práticas culturais. Era uma outra experiência de campo, que nos levava inclusive a propor teorias que hoje talvez precisem ser revistas. Trabalhamos muito, por exemplo, com a ideia de isolar os negros desolados remanescentes. Eram comunidades muito isoladas, muito pobres, e essa pobreza material afetava a preservação das práticas culturais, e, além do isolamento, havia a desolação pela falta de reconhecimento. Não se falava naquele momento, por exemplo, em comunidades quilombolas, um termo que hoje elas reivindicam para si, como direito político, como direito ao território, e isso implica um aumento não só do valor cultural, mas do valor político delas. Hoje, há lideranças que procuram, com mais frequência, as conexões com lideranças políticas e do meio urbano. Nosso trabalho estava em um período muito inicial, de pouca teoria sobre o Congado, pouca conexão com essas comunidades isoladas, e, nesse fio do tempo, percebemos como foram ganhando autonomia, acompanhando o processo político do país, de construção das identidades das periferias, de maior evidência política dos movimentos sociais negros, de políticas públicas de governos que dão suporte a elas. Esse é o ensaio que espero fazer, uma espécie de autoanálise, como fez o Mário de Andrade para a geração de 1922, escrever minha “Elegia de abril”, rever essas três décadas para ter uma visão mais crítica desse percurso.

JT: Foi essa última imagem que me brotou quando imaginei seu trabalho, que combina inserção na comunidade e uma profunda reflexão sobre a letra, sobre a literatura.

EAP: O que a gente percebe é que uma sociedade como a brasileira é desafiadora em vários aspectos, é um modelo social o tempo todo em processo de ebulição. Quando achamos que chegamos a um ponto de síntese, na verdade, estamos abrindo outras conexões de relações sociais. No que diz respeito às culturas populares, minha grande implicância, no bom sentido da palavra, é quando as análises sociológicas tendem a mapear essas relações sociais, mas imaginam que depois, em algum momento, esses processos se esgotam. Então, muito da pesquisa que se faz, por exemplo, sobre a religiosidade popular tem um processo de recusa, de não reconhecimento. Tem uma entrada em certa modernidade que vai integrar uma utopia nacional, modernista, e para por aí, enquanto que as religiosidades populares são, ao contrário, proteicas, vão continuar guardando valores extremamente retrógrados e são capazes de se acoplar a posturas altamente avançadas, contemporâneas. Esses processos não se fecham, e o Congado é um exemplo disso. Como estrutura inicial, é muito fechado, mas tem uma plasticidade muito grande que se adapta nas relações com os modelos religiosos. A umbanda, que já era mais tradicional, o candomblé. Hoje há um jogo interessante inclusive nos grupos neopentecostais, fora da lógica neopentecostal catequética.

Temos que ter uma postura muito serena quando tratamos de fenômenos sociais no Brasil. Deixamos muitas vezes a discussão ideológica se antepor à análise reflexiva. E claro, na militância, no ato de sobrevivência, é isso o que vale. Tenho uma força agressiva, tenho que sobreviver, a confrontação se dá no campo de batalha, na rua, nos campos da comunicação. Mas, nesse distanciamento reflexivo para tentar entender as estruturas, antes de criar uma imagem de demonização do movimento neopentecostal – que é muito variado, há movimentos dentro de um grande movimento –, precisamos ter vários enfoques. Tirando esses movimentos mais midiáticos que realmente são de charlatanismo, espoliação da boa-fé, há vertentes dentro do movimento neopentecostal que têm, sim, a preocupação de suprir as carências do humano na sua materialidade em relação a um processo de busca da transcendência. A vivência da religiosidade como algo muito sério, muito fundamental para a existência. Essa vertente neopentecostal menos conhecida se apoia muito em estruturas de credibilidade do sagrado que já estão nas culturas populares. Você pega a chamada cultura popular tradicional (só para termos uma diferenciação, criar uma terminologia) e ela está ligada a práticas rituais cotidianas. Tem um artigo famoso do Frei Beozzo, dos anos 1970, “Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada”, que fala que o catolicismo brasileiro é de muita prática, muito rito, muita reza e pouca doutrina. As pessoas gostam de rezar o terço, fazer a bandeirinha para a igreja, levar a comida para depois da reza do padre. Então é uma vivência do sagrado muito teatralizada, muito pragmática. Isso envolve o devoto em todo os sentidos, ele é parte de um conjunto social no qual a vida dele tem sentido. Isso está na religiosidade brasileira desde a colonização e vai para o Congado, para as práticas das benzeções, das folias de reis, do Nordeste para as grandes práticas das festas populares de igreja dos adros. Ora, certa vertente neopentecostal vai justamente trabalhar com esses microrritos, o teatro do sagrado. Por isso, vemos muitas vezes os ritos de despossessão, o ato de consagração de objetos, o ato de consagração da corporalidade. O que vai ocorrer depois, ao longo dos processos, é que podemos ver o distanciamento desse momento inicial, e aí começa outro discurso, mais de catequese, a ideia de depuração da religião, que vai recusar inclusive o próprio mundo popular. Uma vez que me conectei com ele e dissolvi os elementos de interesse, posso rejeitá-los, recusá-los. Esse processo é muito rico e começamos a observar hoje, em várias práticas populares do interior, como essas relações acontecem. São pessoas que já têm uma experiência de mundo plural, em termos de cultura. Esse dado da pluralidade das culturas populares do Brasil é muito importante.

Só abrindo um parêntese: você pega um indivíduo e ele tem várias funções. No caso das mulheres, são parteiras, rezadeiras, benzedeiras, curandeiras, trabalham no Congado, na cozinha, todas atividades sociais com o sagrado. Então, para adotar mais uma vertente do sagrado, é só agregar ao universo multipolar um elemento a mais, dar mobilidade a essas vivências do sagrado. Só que isso é um processo contínuo, por isso, a observação de campo, a base do nosso projeto Minas e Mineiros em 1986, ainda hoje é um dado fundamental. Daí a conexão cotidiana que fazíamos com as comunidades, e era um propósito inclusivo. Volto ao que era a ideia inicial da Núbia, sempre procurar uma conexão entre o campo teórico que investigávamos na universidade — nas áreas da linguística, antropologia, sociologia — e o ambiente de vivência das culturas populares, que são culturas teóricas. Elas têm teorização. Boa parte do nosso projeto era o projeto de escuta. Tínhamos uma paciência enorme de escutar horas e horas as pessoas falando, para deduzir como tinham uma visão teórica da própria cultura. Sempre cito, como um ícone de nosso modelo de trabalho, um senhor que se chamava Nelson Carvalho da Silva, em uma comunidade em Jequitibá, no interior de Minas, vizinha a Piracuama do conto “O duelo”, de Guimarães Rosa. Nelson Carvalho seria um personagem do Rosa e nós o entendíamos como um pensador do meio cultural em que vivia. Ele tem uma frase que uso como epígrafe de trabalhos até hoje: “O mundo é feito de muitas sabedorias”. Uma visão mais aberta para a conexão com o outro, a ideia de alteridade, está sintetizada nessa frase. Assim como vamos à Sorbonne para estudar, íamos a Jequitibá estudar.

Capa de A morte também aprecia o jazz (Círculo de Poemas, 2023)
Capa de A morte também aprecia o jazz (Círculo de Poemas, 2023)

BR: Edimilson, e Orfe(x)u e Exunouveau?

EP: Esse aí é um livrinho que me deu trabalho. Nasce como tese para a titularidade e vai, de certo modo, na contramão de algumas propostas e análises das culturas de matriz africanas do Brasil. Temos trabalhos fantásticos, extraordinários, na perspectiva de tentar entender como os valores africanos trasladados ao país, pelas razões óbvias da escravização, de certa forma permitem uma volta às matrizes africanas. É como se houvesse todo um patrimônio cultural que veio a despeito das relações difíceis e da violência. Esses modelos culturais se mantiveram e nos ajudam, como brasileiros negros e negras, a voltarmos a ter uma conexão com a África, uma ideia de resgate da memória e da ancestralidade. Nos anos 1980, isso era muito evidente, por exemplo, no campo da literatura, em que muitos autores e autoras se autorrenomeavam, abandonavam o nome ocidental, muitas vezes cristão, e assumiam nomes africanos. Hoje está aí de novo, acho que por outras razões, mas, nessa época, era um pouco isso: para me reconhecer africano ou descendente, tenho que, simbolicamente, mudar de nome. Então se vê uma leva de escritores e escritoras com nomeação em geral tirada do iorubá, o que era interessante. Não havia muitos nomes da herança banto no meio literário e no Brasil de modo geral. Tivemos um movimento literário negro muito forte, derivado do trabalho do Quilombhoje em São Paulo, que se espalhou para várias áreas do país. Muitos grupos de escritores negros estavam começando junto à militância e à escrita literária. E a forma de se identificar com África era renomear o próprio autor. O Éle Semog, por exemplo, o Negrícia, no Rio. Era a ferramenta política da época, para contrastar com a rejeição que sofriam as culturas de matrizes africanas. Um processo legítimo e interessante, que surtiu depois efeitos muito positivos.

Mas a minha preocupação sempre foi a de não trabalhar nem o ponto de partida dessas matrizes africanas nem o de chegada, mas pensar o trânsito, que, depois do livro do Paul Gilroy, ficou mais evidenciado como o espaço do Atlântico Negro, embora ele excluísse o Cone Sul. Gosto de trabalhar essa metáfora da diáspora em percurso, em trânsito, porque ali se encontram os valores culturais, os modelos políticos, a prática de vida. E se encontra, no processo de dispersão, uma pretensa origem africana, sem ter um ponto de chegada definido. Se trabalha com a ideia da crise das matrizes culturais africanas e não com os processos de identificação imediata, que é uma vertente. Eu me sinto herdeiro das culturas africanas, adoto um nome, invisto nas religiosidades de matrizes africanas, tanto que, já nos anos 1980, havia um movimento muito grande de intelectuais que voltavam para as religiões de matrizes africanas, como o candomblé, e, mesmo hoje, nas redes sociais, há um interesse intelectual e político de jovens autores de se identificarem como filhos dos terreiros. Eles identificam que pertencem e fazem a descrição: “Sou filho de Ogum, filho de Iemanjá”. Descrevem o processo de iniciação, mas curiosamente esse movimento não se deu de modo vigoroso em relação às matrizes banto, o Congado, por exemplo. Agora, algo se prenuncia e é um fenômeno para acompanharmos.

Percebi que não queria usar esse processo de saída das culturas africanas do continente, chegada nas Américas e depois um caminho de volta à África, queria pegar a crise de ruptura desses modelos culturais. Então, a minha procura em termos de análise nunca foi por identidades, mas por problemáticas de como essas fragmentações geraram modelos, inclusive, de pensamento laico. É muito delicado tocar no tema do intelectual negro hoje que não seja adepto de uma região de matriz africana ou que não tenha o sagrado como referência da sua criação, mas também da sua conduta pessoal. Se observar bem, as pessoas fazem questão de dizer: “Pertenço a uma comunidade intelectual, mas também do sagrado, das religiões de matrizes africanas”. Eu sempre me perguntei: mas e se um sujeito quiser perder todos esses modelos culturais e se definir como um sujeito laico? Que visão teria deste processo? Que literatura produziria? É uma janela pequena, mas que tem norteado meus pontos de vista. O sagrado quando aparece na minha obra – tanto na analítica quanto de criação – é um componente de percepção do mundo, de atribuição de sentido ao mundo, ao lado de outros. Procuro fugir um pouco dessa perspectiva que, na falta de um termo melhor, chamo de teocrática. Entendo que há uma necessidade de pensar todo esse processo das religiões de matrizes afrodescendentes e do modelo cultural derivado de uma perspectiva que não tenha só o sagrado como referencial, porque, na medida em que o sagrado é o referencial, até pela natureza dele, ele nos obriga às práticas rituais, que mantêm no processo de repetição. Se o rito não se fizer como repetição, ele não mantém a estrutura originária de sentido. Então me pergunto: como pode haver uma matriz afrodiaspórica que seja, acima de tudo, laica em sua percepção do mundo, embora trate o fenômeno sagrado, que não fique restrita aos territórios nacionais? Não penso em uma cultura só afro-brasileira, afro-cubana, afro-colombiana, penso em um mapa mundial. E esse mapa mundial é muito extenso, numeroso, multilíngue e multiestético.

Tenho uma noção muito clara e autocrítica de que muito do que escrevo não se encaixa em certos padrões dos discursos afrodescendentes do Brasil, da literatura negra e do pensamento da militância negra propriamente falando, e gosto dessa situação, de certo desconforto. Tenho falado que gosto de pensar não de um lado ou do outro da aresta, mas no fio da aresta. Por isso Exu é meu referencial importante. Acho que ele tem um campo de interpretação maior e mais dinâmico do que aquele que nós temos feito, que já não é pouco. Os modos como vemos Exu hoje são fascinantes, ele desconstrói toda a lógica social colonial do Brasil e aponta para uma utopia muito importante. Esse trabalho, feito por artistas, cineastas, é maravilhoso. Sou um entusiasta dessa linha de interpretação. Mas, em minha inquietude, me pergunto se não posso tirar dessa lógica de Exu o componente sagrado para jogar no campo difícil do mundo laico – a tese que está em Entre Orfe(x)u. Ao usar esse princípio de Exu fora do mundo religioso, tento construir uma lógica em que ele me dá, não o modelo literário para interpretar e analisar literatura afro-brasileira, mas literatura brasileira, literatura ocidental. Assim como pego um princípio do [Jacques] Derrida para pensar a literatura ou a sociedade, por que não posso pegar uma lógica exusíaca para pensar a cultura ocidental como um todo, mesmo quando não for afrodescendente? Então, é uma projeção bastante utópica que o ensaio tenta fazer e por isso é provocativo. Tenho que transformar isso em um conceito, não só em uma prática religiosa, mas em um conceito que me permita analisar, por exemplo, a ascensão do trumpismo nos Estados Unidos. Não tem nada a ver com o mundo afrodescendente, mas estou tirando um conceito, a lógica de Exu construir e desconstruir no caos, para ver como ela pode virar um conceito político e pensar relações políticas em um país tão importante como os Estados Unidos ou a ascensão da barbárie no Brasil recente. Então, é uma provocação que vai do literário ao filosófico, é um livro que intencionalmente não se fecha, se propõe a ser aberto para análise de temas que vão sendo incorporados. É extremamente autocrítico, incorpora as falhas da teoria como um componente dela mesma.

JT: Está claro que Exu continua com seu elemento principal, a encruzilhada.

EAP: A ideia é aproveitar essa base que fundamenta e, vou dizer algo que vai parecer uma heresia na lógica das religiões de matrizes afrodescendentes, tirar um pouco o Exu de dentro do mundo negro, fazê-lo passear fora dele. O que ele pode fazer? Assim como puxamos a filosofia ocidental para pensar questões negras, vou tirar o Exu do mundo negro para pensar o mundo ocidental.

Lucas Bandeira: Achei interessante você começar falando do livro do Antonio Candido, que de certa forma é um malogro. Ele vai estudar uma prática cultural, desiste e faz um trabalho antropológico. Pensando nos conceitos dele, acho que aparecem na sua pesquisa práticas culturais que não podemos analisar com os instrumentais teóricos da literatura, da teoria da literatura. Seriam sistemas que não são os que o Antonio Candido estuda. E talvez o Congado seja um deles, com um outro tipo de tradição, tradição oral, não escrita, outro cânone, e ainda tem a maneira como isso é influenciado pelas novas tecnologias.

EP: Essa é uma das estradinhas esburacadas que venho tentando perseguir. Discuto um pouquinho a possibilidade de se ter um outro cânone, um outro sistema. Em relação ao Congado, já publiquei isso em A saliva da fala: nota sobre a poética banto católica do Brasil,  que saiu no mesmo ano da primeira edição do Exunouveau. Ele também tenta entender o Congado dentro da estrutura social brasileira, como um modelo religioso, uma prática do sagrado, que está relacionado a essas heranças de matrizes africanas, sobretudo de origem banto, e suas relações com o cristianismo católico. Em A saliva da fala, parto das análises dos próprios agentes do Congado, que são pessoas, na área urbana, de bairros periféricos, e, na área rural, de comunidades pobres. O Congado hoje mantém essa estrutura social. Há elementos que se agregam de fora, que é uma tradição também. O Congado sempre teve alguém de mais poder aquisitivo que ajuda na realização da festa. Geralmente são os reis festeiros, que ficam durante o ano e auxiliam a comunidade. Então tem uma aproximação com a classe média, às vezes com a classe alta da localidade. Ele já é por natureza esse ambiente socialmente meio híbrido, mas está nas mãos das comunidades mais pobres a prática toda do ritual, o discurso sobre ele. E foram esses discursos que, a partir da pesquisa com a Núbia, me deram algumas preocupações teóricas. Analisamos primeiramente uma lógica sociológica-antropológica em livros como os dos Arturos, mas sempre me interessei pelo aspecto literário. Há uma grande produção discursiva que vai de narrativas a cantos e esse material sempre fora trabalhado, inclusive por mim e pela Núbia, como elementos que usávamos para justificar teses antropológicas. Nunca analisamos de maneira autônoma esse manancial discursivo. No livro A saliva da fala, trabalho com as chamadas narrativas de preceito e com os canto-poemas, que foi o termo teórico que cunhei para me dedicar à parte poética dessa estrutura.

Esse corpus é muito grande, faço questão de frisar, porque em cada comunidade há um repertório textual muito expressivo e dinâmico. As comunidades têm a prática de expor alguns desses textos que são antigos e têm uma dinâmica de criação de novos, que vão incorporando inclusive elementos da contemporaneidade. Hoje, por exemplo, você pode acompanhar essas narrativas, esses cantos nas mídias sociais. Os devotos foram para lá. Esses agentes têm clara noção de que há no Congado um eixo fixo, que vão chamar de tradição, e um eixo móvel, que são as transformações sociais. Eles adotam uma perspectiva do que é tradição, e é importante pensar antropologicamente, que é uma espécie de contínuo com adaptações de matrizes africanas. O Chinua Achebe, um grande historiador nigeriano, tem uma definição de tradição muito importante para pensar o Congado e talvez as outras matrizes africanas no Brasil. Ele diz que ela é, de certo modo, dialética. Ao mesmo tempo que tem um eixo de preservação, tem um eixo de mudança. Isso de modo simultâneo. Não é preservar primeiro para mudar depois ou só preservar para nunca mudar. Ela é simultaneamente uma produção de discurso e uma prática cultural, em que o indivíduo e a comunidade preservam e mudam algo. Essa lógica dialética na estrutura do Congado é fascinante. A partir disso, quando trabalhei com a textualidade das narrativas dos canto-poemas, minha preocupação era: essa não é uma literatura que se encaixa na estrutura da literatura ocidental, muito menos na brasileira. Então, começam a surgir questões muito peculiares, não é só porque são textos inicialmente orais, e esse é o grande referencial deles, mas alguns começaram a formar um repertório escrito. Você pode ter uma antologia de textos escritos de todo esse material.

Primeiro, os pesquisadores se esforçaram em gravar e transcrever, então, havia uma espécie de coautoria entre o agente do Congado e o agente pesquisador, uma parceria mais ou menos como o Bruce Albert e o Davi Kopenawa em A queda do céu. Há uma textualidade dupla sendo criada. Depois passa a haver muitos casos de pessoas das próprias comunidades escrevendo as narrativas, passando a ter uma escrita interna. Dá para comparar inclusive com aquela que fazem os pesquisadores, porque há diferenças. Mais recentemente, começa a haver jovens dessas comunidades que se escolarizaram e chegaram ao meio universitário, e aí fazem dissertações, teses, produzem um outro discurso acadêmico, mas com uma linguagem voltada para a própria comunidade. Há um campo literário muito complexo, que vai ter que ser bem analisado, pois se aprofundou nos últimos anos. Se esse campo se constitui, a grande tensão é tentar se inserir na lógica discursiva literária brasileira, pois são textos estéticos, mas, ao mesmo tempo, não têm ainda uma recepção estética para eles, que querem se inserir como texto estético, porque ainda os olhamos como material antropológico. Os devotos, no entanto, têm clara noção de que o que produzem é material estético, é poema, é história, tem caráter ficcional, tem a estrutura do poético, por exemplo. Alguns elementos até lembram a estrutura da lírica moderna do Hugo Friedrich. São textos fechados, intencionalmente herméticos, alguns cantos são indecifráveis, o que dá margem para um processo interpretativo. Existe uma lógica literária.

No caso do A saliva da fala, minha preocupação foi um pouco essa: mais do que definir um outro cânone, acho cedo para falar disso, definir que há dentro da literatura brasileira um corpus literário que é estrangeiro, não só porque tem palavras de línguas, como quimbundo ou umbundo, não totalmente inseridas na língua brasileira, que ainda precisam de vocabulário para interpretá-las, de tradução. É literatura estrangeira dentro do português. É uma literatura estrangeira por esse aspecto e porque seus agentes não são reconhecidos como sujeitos autorais, todos sempre dizem que “é criação coletiva”. Muitos desses campos podem até ser criação coletiva, mas têm um dado fundamental: a apresentação desses cantos ou dessas narrativas é uma performance individual. Então consigo distinguir muito bem, só para citar aqui dois nomes, quando era um canto-poema tirado pelo seu Geraldo Arthur Camilo e quando era um canto tirado pelo irmão dele, o Antônio Maria da Silva. Havia um traço autoral, é assim até hoje, e os devotos sabem disso, reconhecem essas individualidades. Não sei como isso vai se encaminhar, porque agora nas redes sociais, quando aparece alguma imagem, filmagem, canto, narrativa, as pessoas identificam: “É fulano de tal fazendo a performance”. O caráter autoral está se tornando mais evidente, e acredito que, em algum momento, vá ficar mais específico até para quem fizer a pesquisa.

A ideia que propusemos é: nosso cânone literário está estabelecido, mas tem elementos nas fronteiras dele que frequentemente colocam em xeque essa limitação, que, sabemos bem, hoje não é tão rígida. No senso comum, falamos “cânone literário” e as pessoas pensam que é um campo definido de autores e obras, mas a prática mostra há um bom tempo que ele está mais flexível, no dia a dia da sala de aula, na crítica literária. Acho que hoje o momento é muito favorável para essas modalidades literárias, como tem sido com as literaturas indígenas, as textualidades de imigrantes que o Brasil começa a receber com mais frequência. É um fenômeno interessante ter o imigrante que escreve um livro do Brasil. Como categorizamos essa produção literária? As fronteiras estão muito mais próximas e os indivíduos circulando mais.

BR: O Edimilson apresentou a formação intelectual dele a partir do trabalho de campo, e isso é extremamente interessante, porque falamos de um poeta com essa formação e as coisas começam a se encaixar.

JT: Ele foi tragado pelo anthropological blues. Na verdade, essa ideia de captura, a agência de ir ao campo é o que o Dostoiévski fez, inspirado por Púchkin. O delicado é trabalhar na experiência os aspectos mais minúsculos da alma, o que a etnografia, em sua forma mais criativa, nos traz de sua forma clínica. Porque a etnografia é, sobretudo, a libertação da alma de quem a faz. Você faz com ela uma travessia inenarrável e nunca vai conseguir colocar em texto todo o conjunto da experiência que ela promove: fazer saltar para um platô absolutamente distinto daquele que o conduziu até o momento inicial da experiência.

Outro trabalho seu que gosto muito é o Signo Cimarrón. É um livro de poesia fantástico. Para nós, o cimarrón seria a tradução de quilombola. A experiência poética, que você transfigura ali, imediatamente me levou a imaginar seu trabalho de campo, o que ficou de seu contato com as experiências comunitárias. Fiquei muito tocado por sua preocupação com o signo, porque tem um momento semiótico muito forte na construção da sua travessia literária, que aparece no conjunto de vários autores que você compila e edita em Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Peço, então, que fale dessa experiência, que eu diria autopoética, correlacionando o momento da descoberta do signo e esse desvelamento da experiência no trabalho literário.

EAP: É um novelo complicado, mas, se puxarmos os pontos, se solta e depois se emenda. Tenho uma metáfora para minha trajetória: a ideia de um arborescer intelectual. Você tem núcleos de pensamento, formas de escrita, que vão se expandindo e, em algum momento, se conectam e depois se separam de novo. Então, para falar do comentário do Júlio, retomo um pouco essa experiência em um poema longo de O som vertebrado, que saiu ano passado pela José Olympio. É um poema central, uma operação clínica. Retomo os temas que me interessavam de uma viagem etnográfica clássica em um povoado no interior de Minas, não na perspectiva da análise antropológica ou histórica, mas em linguagem poética. É um poema extenso que relata a viagem de alguém a um povoado, com a intenção de coletar dados para um trabalho acadêmico, mas esse sujeito acaba tragado pela alma do lugar. É o anthropological blues em situação explícita. Se vai como coletor de dados para criar interpretação sobre o outro, retorna como quem se torna um enigma para si mesmo, porque a comunidade o ensina isso. Quando se inverte um pouco o trabalho da pesquisa, sobretudo no autorreconhecimento, uma parte dele implica você se entender como um conjunto de máscaras. No meu autorreconhecimento, vou entendendo que, na verdade, sou um conjunto de máscaras que se multiplicam, tanto quanto são os outros que, em tese, analisei. É por isso que também tenho pouca preocupação com a projeção pessoal, cada vez me preocupo menos com isso. A noção de linguagem poética para mim é mais importante do que a figura do poeta, o que é fruto desse processo etnográfico, o anthropological blues. Vou ao campo em busca de algo, ele me dá algo inesperado e isso me transforma. No fundo, a transformação de quem investiga talvez seja o ponto de contato com essas comunidades, que, em tese, eram o outro. O outro no fundo é também quem investiga. Isso está nos textos teóricos e era uma preocupação que eu e a Núbia tínhamos, trabalhávamos muito com a lógica do Clifford Geertz, da fala desde dentro e desde fora, e os trabalhos procuram refletir a fala desde dentro, admitindo as limitações da fala desde fora. Por isso, nossos trabalhos têm muito depoimento, muitas transcrições das falas das pessoas, que às vezes analisam a própria cultura e analisam nosso comportamento como investigadores. Você trabalha com a perspectiva horizontal e produção de sentido, uma colaboração entre o mundo das comunidades e o acadêmico. Nós somos só intermediadores desse processo.

Na linguagem poética isso também aparece muito. Está lá em Árvore dos Arturos, de 1988, que é um livro em percurso longo, e em A saliva da fala, de 1987. Isso se dá não só com as matrizes afrodiaspóricas, mas também com as culturas populares de um modo geral, que é o caso de O ausente, que tem muita referência cultural não afrodiaspórica. Esse grande repertório rural brasileiro é o mosaico de referências, o mundo ibérico, o mundo indígena, de imigrantes e de outras origens. Essa experiência de criação para mim vai funcionando à medida em que o eu, esse ego pessoal Edimilson de Almeida Pereira, vai ficando meio de lado para dar voz a esses outros “eus” que esse sujeito pode experimentar. Esse aprendizado é no trabalho de campo mesmo.

A história e a prática musical do jazz de algum modo me fascinam por isso também. Em tese, é uma experiência cultural e musical, em que a teorização de quem executa não é muito visível. Tanto é que o mote fundamental do jazz é o improviso. As culturas populares têm muito a lógica do improviso. O Congado tem a ideia do mote, da nota inicial, e depois o trabalho de criação no momento, na hora. Só que, nessa aparente desorganização teórica, o que se tem é outra proposição de percepção do mundo, ramificada. Em vez de pensar em uma composição com uma nota de origem, vou pensar em uma composição com um conjunto de origens que possa ir desdobrando ad infinitum. A jam session é um pouco isso, cada um vai pegando um fio dessa raiz plural e desenvolvendo até ter uma noção de um conjunto que vai ao infinito, quase um ser spiritual que está enraizado em uma lógica social. O jazz tem um fundo histórico, sabemos quem são os agentes, as condições de surgimento, mas, nesse afastamento do mundo real, são propostas lógicas de sentido transcendentes, mas que não me afastam totalmente da imanência. Quem tem um bom conhecimento do jazz sabe que, quanto mais me afasto do real, depois há um loop e volto ao real e de novo para essa partida contínua. Nas análises das culturas populares, percebemos muito isso, é um ponto que sempre comento. Se tenho um projeto futuro de investigação e de produção analítica, é escrever, com uma estrutura filosófica, a partir das matrizes culturais populares. O que [Martin] Heidegger fez em O ser e o tempo, gostaria de fazer com essas matrizes rurais, buscar as estruturações da linguagem que permitem esses sujeitos estruturarem sua relação consigo mesmos e com o outro, com a lógica da sociedade, com as hierarquias, e isso perpassa os falares das pessoas. Não está decodificado em um processo escrito, e talvez esse distanciamento seja necessário para produzir o pensamento escrito. Seria um trabalho estritamente filosófico, a partir das experiências de campo com as culturas populares, não mais antropológico ou histórico.

LB: Acho que a questão trazida pelas palavras que você usa (“travessia”, “variedade”, “ramificação”) fica bem clara em seus poemas, por exemplo, “Odisseia”, que está no último livro. Parece que tem um mundo inteiro ali, referências à Odisseia, referências locais, além de uma pluralidade de ritmos. Isso lembra de novo o jazz, ele tem um improviso, mas a partir da forma. Se não tiver uma forma ali, o improviso não acontece, mesmo o jazz mais livre precisa de uma forma. A leitura da sua poesia me passa isso: uma variedade de ritmos longos e curtos, às vezes se invertendo, que dão a impressão de improviso, mas ao mesmo tempo, quando se lê com calma, vê que tem uma forma permitindo o improviso. A outra coisa interessante é o primado da linguagem que está em versos como “o antídoto contra a língua dos homens”, em busca de uma certa linguagem só pedra, algo meio João Cabral, que tem a ver com a ideia de certa exigência de autonomia da linguagem poética.

EAP: Tenho falado um pouco mais do meu processo de escrita. Isso é muito recente, então estou aprendendo a olhar e a traduzir o que trabalhamos. Estou para reeditar um livro de entrevistas que publiquei em 2013, o Blue Note: entrevista imaginada, que agora revisei e ampliei. Ele traz dois ensaios no final, que, na verdade, são duas conversas como essa que tivemos e que transcrevi depois, como entrevista. Nele, tem algumas dessas chaves de leitura que você comenta. Tento transitar nesse mapa e inclusive, uma coisa que sempre gosto de frisar, as matrizes afrodescendentes são um foco, um conjunto mais amplo de outros que tento abarcar, sem hierarquizar. Talvez seja o que me dá muito trabalho, tenho que escrever muito para poder abarcar esses focos todos. Isso é algo que gosto de deixar sempre bem evidente, até porque esses focos depois vão se interligar. Toda essa discussão sobre as matrizes africanas só faz sentido quando discuto, por exemplo, em um livro como Melro, que saiu agora, o processo de fracionamento da imigração mais contemporânea que abarca muitos indivíduos, afrodescendentes inclusive. Ou seja, infelizmente não estou sozinho nesse barco da dispersão, há outros indivíduos aí também. Mas, para mim, todo esse processo de reflexão de temas que abordamos aqui e outros mais só são capturáveis a partir de uma estrutura de linguagem que não pode ser – para mim pessoalmente – a nossa linguagem diária. É uma linguagem literária. Essa busca por uma sofisticação é proposital. Minha obra não é intuitiva, muito pelo contrário, mesmo quando ela toca temas que são da alma, da transcendência, do espírito, da experiência, essa tradução literária é ficcional, porque a linguagem é pensada para chegar a esses resultados. Vou um pouco na contramão da linguagem do confessionalismo. É uma escolha estética. Hoje as questões do signo e da semiótica também são importantes.

Não há nada, em nenhum texto meu, que não passe por uma prévia reflexão sobre a materialidade da linguagem, seus desdobramentos, suas limitações, a necessidade de reinventar outras formas de linguagem, como fazer um romance que claramente não é um romance. Eles ganharam prêmios como romances, mas tenho plena consciência de que não são romances, porque não queria fazer o romance na lógica habitual que conhecemos. E olha que O ausente é menos radical, Um corpo à deriva é mais radical. Tanto é que são livros de circulação pequena. É uma opção estética, porque entendo que essa minha linguagem, principalmente a literária, é uma linguagem de ficção. Mesmo que, às vezes, nos permita chegar a experiências reais, a identificações com sentimentos reais, o ponto de partida inicial é justamente a recusa a essa relação osmótica do leitor com o texto, a essa relação direta entre um escrito e aquilo que o leitor quer. Minha poesia é como se fosse uma bicicleta com roda quadrada, porque minha intenção é fazer com que tanto a autoria quanto o receptor ou a receptora do texto trabalhem a produção de sentido. A linguagem é realmente contrária a essa linguagem natural do humano, contrária a essa linguagem da descrição realista e imediata. Não tenho nada contra essa perspectiva de criação, porque ela continua necessária. Diante de tantas barbaridades sociais que produzimos, há um campo literário que ainda tem que denunciar, decifrar, decodificar esse processo. Claro que em algum momento faço isso, mas em boa parte é uma linguagem literária que tende a jogar para a recepção, minha inclusive, um esforço intelectual de interpretação, que é onde me aproximo da antropologia interpretativa de Geertz. O fato antropológico só está dado quando é interpretado tanto pelo agente que o pratica quanto pelo agente que o analisa. E, por ser interpretativo, é contínuo, renovável, o que tira das culturas ditas tradicionais a marca pejorativa de que estão paradas no tempo, nunca estiveram, estão sempre se movimentando.

JT: Fiquei perplexo diante do canivete suíço que você trouxe. O cabo desse canivete é um tema que percebo há décadas, a questão do ritmo. O ritmo na verdade vai aparecer na sua obra, no seu relato, o tempo todo. Na sua evocação da experiência, aparece como o grande elemento nutridor da sua imaginação, da sua experimentação literária, o ritmo das suas múltiplas variedades. E o ritmo é isso, não tem início nem fim, é uma execução litúrgica. Participei de muitas jam sessions em Chicago, exatamente no South Side, e uma das coisas que mais me chamavam a atenção era a sensação do transe que percebia não só nos executantes, mas na audiência. A própria movimentação do corpo, todos no mesmo sentido, ficava fascinado e quase levitava. Que coisa rítmica está promovendo aqui uma tessitura desses corpos que nem sabem disso, mas estão no elã de um processo incrível? Sua obra é uma espécie de evocação do ritmo, como uma grande descoberta epistêmica e ontológica para uma reflexão contemporânea necessária. Ainda não encontrei uma grande reflexão sobre o jazz atravessando inúmeras áreas do conhecimento, e ao mesmo tempo concreta, movimentando a nossa capacidade de reflexão diante daquilo que nos apavora ou nos entusiasma. Não só percorrendo as ruas de favelas aqui no Rio, como Mangueira, na Baixada Fluminense, mas no Harlem, via essa semelhança entre territórios diferentes e o ritmo, construindo os modos de caminhar, os modos da culinária, os modos de percepção.

EAP: Podíamos deixar como gancho essa questão do ritmo, porque meu segundo livro se chama Ô Lapassi & outros ritmos de ouvido. A rítmica realmente me acompanha. Um detalhe interessante: a minha escola de ritmo é a do Luiz Gonzaga, porque ele tocava de ouvido e confessou isso em várias entrevistas. Então o modo de captar o ritmo está fora da formalidade musical, é sinal de que há campos diferentes de experimentação rítmica, o que boa parte dos grupos e das coletividades experimenta. Talvez por isso essa universalidade, no Harlem, na periferia do Rio, no interior do Brasil. Isso vai marcar o grande fluxo humano que se move pela rítmica. Ela não passa só pela questão de uma etnia, isso é que me interessa no ritmo, está muito identificada com certo grupo ou outro, mas procuro uma universalidade mesmo. Eu sei que a palavra é meio gasta.

Minha obra tem essa lógica, tanto nos livros de ensaios quanto nos poemas existem muitas retomadas de pontos ou de notas que ficaram soltas, espero algum dia colocar isso mais ou menos junto para soar e ver que ritmo vai dar. Nos dias de hoje, essa questão do ritmo é fundamental, porque, do mesmo modo que a experiência rítmica nos leva para experiências assombrosas, como você lembrou muito bem com o transe que te tira de si e te joga em um abismo imprevisível, que o jazz vai nos levando às vezes até para um lado bacana que pode ser muito boa a viagem, o deslocamento, é um abismo da consciência. Diante de um mundo tão pragmático como esse que nós temos hoje, um mundo tão alusivo à produtividade e ao trabalho, essa lógica de um certo transe prazeroso me interessa muito. Essa lógica de, de repente, a queda do abismo ser também prazerosa, ainda que narcótica por um curto período. As sociedades precisam disso de tempos em tempos. Não é por acaso que nós estamos estendendo o tempo do Carnaval, das festividades todas, cada um de nós está fazendo uma festa particular. Acho que tem um eixo de pensamento para pensar até uma outra estruturação social pós-pandêmica muito necessária, porque os nossos corpos ficaram segregados, todos de modo geral. E reduzindo a jornada de trabalho cada vez mais. Isso me faz lembrar certo caráter subversivo do ritmo. Penso em uma frase do seu Geraldo, dos Arturos, quando o conheci em 1987: “A gente dança por dentro”. Até hoje me marca muito essa expressão dele. Por fora você é um sujeito compelido à produtividade, à obediência, mas o seu ritmo interno continua marcando seu modo de ser no mundo, porque ele é rebelde, é contra a estrutura imposta. Esses ritmos internos são muito interessantes, mais até do que esses visíveis que percebemos, que são fundamentais, mas outros estão se produzindo internamente. Eles têm linguagem, a questão é saber que linguagem é essa. O discurso artístico é muito importante nessa hora. Vejo cada vez mais a liberdade do discurso artístico, literário, como uma questão fundamental. Tenho falado em devolver a literatura à literatura, para poder experimentar, errar, testar. Fazer inclusive mais do que afirmações, mais do que propor assertivas, sugerir enganos, trabalhar na margem de erro. Está até na epígrafe de O som vertebrado, um poema de Orides Fontela, em que ela diz o seguinte: “margem de erro: margem de liberdade”. Temos que pensar no texto literário, nos enganos dele, com uma margem de liberdade que nosso tempo hiperprodutivo não permite mais. Esses ritmos são subversivos, os dos corpos estão aí em evidência, mas reprimidos muito rapidamente, haja vista o deputado do Sul que propôs criminalizar o hip hop. Esses ritmos assustam, mas há também os internos, que estão querendo sair da caverna para podermos reconhecê-los melhor.


* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural;  Julio Cesar de Tavares é professor do Departamento de Antropologia da UFF e coordenador do Laboratório de Etnografia e Estudos e Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC/PPGA/UFF) e do Laboratório de Estudos Negros (LEN/PACC/Letras/UFRJ); Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/Letras/UFRJ, com bolsa da Faperj.

dossiê
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NARRATIVAS CONFLAGRADAS E A POLARIZAÇÃO POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

Tornou-se lugar comum, contemporaneamente, fazer referência à expressão “disputa pela narrativa” para caracterizar um “embate de versões” entre atores sociais e discursivos colocados em campos opostos. No entanto, como nunca, essa expressão tem sido empregada para fazer referência ao forte enfrentamento discursivo que circunscreve a política brasileira dos últimos tempos. Neste último caso, a “disputa pela narrativa” atrela-se à compreensão de um processo em que cada ator de um campo político e ideológico procuraria impor sua própria história sobre os fatos em questão, na busca de atingir o máximo de corações e mentes possível e, assim, sobrepor uma suposta “verdade” sobre uma outra – a de seus adversários.

No caso específico do campo político brasileiro, assistimos hoje a uma profunda polarização político-partidário-ideológica, a um acirramento de posições antagônicas que proporciona a emergência de embates calorosos, abrangendo questões variadas, que vão desde a área econômica até questões atreladas a valores morais, costumes e direitos dos grupos minoritários. Afloram discursos intolerantes, estigmas e estereótipos, especialmente nas redes sociais.

Esse cenário é marcado pelo recrudescimento de uma direita mais radical no Brasil (em substituição à centro-direita, antes ocupada pelo PSDB e seus partidos aliados), que tem no ex-presidente Jair Messias Bolsonaro seu mais fiel expoente. Seus representantes mais conhecidos advogam uma pauta liberal na economia e conservadora nos costumes, evocando, muitas vezes, a memória discursiva dos valores que nortearam a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, uma manifestação pública de grupos conservadores, antipopulistas e anticomunistas contrários às reformas de base propostas pelo então presidente da República, João Goulart (1961-1964), e que serviram de base para certa legitimação por parte de uma determinada camada da sociedade brasileira ao Golpe de 1964. A esse respeito, observamos a constante publicação, por grupos bolsonaristas, de insígnias com o número 22 (número do partido do então pré-candidato) e as inscrições “Deus”, “Pátria”, “Família”.

Figura 1: Insígnia colocada em circulação por grupos bolsonaristas
Figura 1: Insígnia colocada em circulação por grupos bolsonaristas

É nesse contexto que entendemos posições e discursos que defendem a volta do regime ditatorial. Também faz parte do referido processo uma atitude no mais das vezes negacionista perante as dificuldades enfrentadas pelas minorias e grupos excluídos socialmente no Brasil (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, dentre muitos outros), alegando sua “criação” pelos governos de centro-esquerda que antecederam o último governo e atribuindo a culpa aos discursos que denunciam sua existência, algo muito comum nas políticas do não dito que imperavam no Estado Novo, e à própria promulgação da Constituição de 1988. Aqui, observa-se alguma rejeição aos sistemas de cotas e aos programas de transferência de renda, atrelados à opção prioritária pela erradicação da pobreza extrema.

Do outro lado desse espectro está a centro-esquerda, representada, nas eleições do ano passado, principalmente pela candidatura de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, apoiada fortemente pelos movimentos sociais. De forma antagônica à posição de direita, a centro-esquerda advoga uma maior ingerência do Estado na economia, a fim de buscar corrigir as desigualdades sociais existentes; defende as garantias das liberdades individuais e, dentre muitos outros aspectos, as políticas públicas voltadas especificamente para as minorias e para a superação da pobreza e da extrema pobreza.

Figura 2: Insígnia colocada em circulação por coletivo feminista pró-Lula
Figura 2: Insígnia colocada em circulação por coletivo feminista pró-Lula

Na verdade, o que essas posições divergentes fazem é colocar em circulação aquilo que Gee (2005, p. 131) denomina “CapitalD Discursos”, fazendo referência aos grandes discursos que circulam na sociedade, uma vez que grande parte das imagens e representações de determinados valores morais e ideológicos emerge por meio dos discursos que se apresentam como associações socialmente aceitas “entre formas de uso da linguagem, outras expressões simbólicas e artefatos, de pensamento, sentimento, acreditar, valorizar e agir que pode ser usado para se identificar com um membro de um grupo significativo ou ‘rede social’”. Tais discursos, repetidos tanto por práticas institucionais quanto não institucionais, são amplamente colocados em divulgação por meio de uma variedade de modos semióticos, estabelecendo relações de poder e determinando a “ordem dos discursos” (Foucault, 1996).

Para Lynch (2019), pesquisador que trabalha no campo das ciências políticas, o conceito de cultura política está completamente atrelado à noção de discurso, o que respalda nossa opção por associar, às análises advindas dos estudos do discurso, especialmente a narrativa, pesquisas realizadas no âmbito das ciências políticas. De acordo com o autor, entende-se, por cultura política,

o conjunto de discursos ou práticas simbólicas por que tais demandas são efetuadas, conferindo identidades aos indivíduos e grupos, indicando-lhes os limites de suas comunidades e definindo as posições a partir das quais podem demandar. Uma cultura política é atravessada por discursos, práticas simbólicas ou ideologias orientadas por diferentes valores e/ou interpretações da realidade. Os fatos políticos precisam ser interpretados à luz dos valores, crenças, interesses e objetivos dos diversos segmentos de que a sociedade é composta (Lynch, 2019, p. 80-81).

Nesse sentido, segundo Freeden (2003, p. 32), as ideologias ou discursos políticos são, portanto, conjuntos de

ideias, crenças, opiniões e valores que exibem um padrão recorrente; que possuem grupos significativos como seus portadores; competem pelo fornecimento e controle das políticas públicas, com o objetivo de justificar, contestar ou alterar os processos e arranjos políticos e sociais de uma comunidade política.

Retornando à questão da “disputa pela narrativa” apontada no início deste trabalho, cumpre destacarmos que, embora essa expressão seja empregada amiúde, não encontramos, nem na literatura corrente derivada dos estudos acerca de narrativa em particular, nem no campo das análises do texto e do discurso em geral, estudos que versem sobre a narrativa em contextos de polarização, conforme proposto por esta pesquisa, o que justifica sua execução. Segundo Borges e Vidigal (2018, p. 54), coincidentemente, não se encontram trabalhos relacionados à polarização no âmbito das ciências políticas brasileiras. De acordo com os autores, “de fato, o tema da polarização não foi objeto de estudos mais sistemáticos na ciência política brasileira”.

Nesse contexto, este trabalho, enquanto um recorte de uma pesquisa maior, procurará analisar e descrever as formas e funcionalidades das narrativas em contextos de profundo embate de posições político-ideológicas, selecionando, para tal, quatro interações específicas: as entrevistas concedidas pelos candidatos Jair Messias Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva ao Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, respectivamente transmitidas nos dias 22 e 25 de agosto de 2022, além dos debates promovidos pela emissora entre os candidatos à eleição presidencial, realizados respectivamente em 29 de setembro e 28 de outubro de 2022.

A opção teórica pela Análise da Narrativa

Antes de mais nada cumpre-nos, agora, deixar claro o que entendemos por “narrativa” e quais são, de fato, suas imbricações com fatores de natureza ideológica e identitária, justificando, assim, nossa escolha pela Análise da Narrativa para esta empreitada. Na verdade, não será o sentido corriqueiramente atribuído ao termo “narrativa” que embasará a presente pesquisa. O que faremos é ecoar a posição assumida contemporaneamente por muitos pesquisadores nas ciências humanas em geral e na Linguística Aplicada em particular que têm compreendido a narrativa como a forma de organização básica da experiência humana, a partir da qual se pode estudar a vida social. Para autores como Sarbin (1986), a narrativa pode ser considerada como um artifício organizador que ressitua a construção do “eu” como um fenômeno social (a maneira como nos construímos no mundo social), integrando cultura e discurso na interpretação da sociedade. De acordo com Biar, Orton e Bastos (2021), ao narrar, os narradores vão dando forma ao mundo social, à medida que o escrevem, o discutem e o contestam, e, dessa maneira, interessa aos analistas da narrativa o que os atores sociais fazem ao narrar em histórias. Nesse sentido, “narrar” seria “uma prática discursiva constitutiva da realidade”, ou, como disse Foucault, uma prática que “forma os objetos dos quais fala”.

As primeiras pesquisas sobre narrativa foram elaboradas por Labov e Waletsky (1968) e Labov (1972), assentadas em uma concepção de narrativa enquanto um método de se recapitular experiências passadas. Nas palavras de Labov (1972, p. 37), “a narrativa será considerada (…) uma técnica para construir unidades narrativas que correspondem à sequência temporal daquela experiência”.

Labov (1972) apresenta uma proposta de estruturação de narrativas bem formadas, composta basicamente pelos seguintes itens: 1) “sumário”: resumo inicial, com introdução do assunto e da razão por que a história é contada;  2) “orientação”: identificação de personagens, tempo, lugar e atividades narradas; 3) “ação complicadora”: sequenciação temporal de orações narrativas, em que o narrador efetivamente conta o que aconteceu (de acordo com Labov, se ao menos duas orações no passado estiverem sequencializadas, remetendo a um passado temporal, se está diante de uma narrativa);  4) “avaliação”: explicitação da postura do narrador em relação à narrativa, bem como da razão de ser da narrativa; 5) “resultado”: desfecho da narrativa, em que o narrador revela o que “finalmente aconteceu” (Labov, 1972, p. 370); 6) “coda”: encerramento do relato com uma síntese, avaliação dos efeitos da história ou retomada do tempo presente.

Embora esse modelo dito “canônico” continue a influenciar muitas pesquisas na área, as propostas atuais, ditas “não canônicas”, vêm apontando críticas e revisões ao modelo laboviano. Se as narrativas estudas por Labov constituíam-se de relatos longos, relativamente ininterruptos e conduzidos por eventos passados ou pela história de vida do entrevistado, estudos contemporâneos sobre narrativa vêm ampliando esse trabalho pioneiro, expandindo suas definições formais e passando a incluir a análise de segmentos não canônicos, compostos por “narrativas breves” (cf. Bamberg e Georgakopoulou, 2008).

As narrativas breves são “histórias curtas, com tópicos específicos, organizadas em torno de personagens, cenários e de um enredo” (Riessman, 2001, p. 697), as quais podem se aproximar ou se distanciar do modelo laboviano. Podem versar sobre histórias muito recentes ou ainda sobre desdobramento de eventos, encaminhando uma orientação narrativa sobre entendimentos locais e situados dos narradores.

Faz-se imprescindível destacar que, de acordo com Bamberg e Georgakoupoulou (2008), a narração de pequenas histórias cumpre, sobretudo, um trabalho retórico: elas apresentam argumentos, contestam e desafiam outros pontos de vista e geralmente estão sintonizadas a propósitos locais e interpessoais, configurando-se em aspectos do uso situado da linguagem. Ainda segundo os autores, as narrativas breves podem versar sobre pequenos incidentes que podem (ou não) ter realmente acontecido, mencionados para apoiar ou elaborar determinado ponto argumentativo.

Nesta mesma linha, Schiffrin (1996) sustenta que o ato de se contar uma história pode frequentemente ter o objetivo de argumentar em favor de determinada opinião, de forma objetiva ou subjetiva, uma vez que permite ao falante jogar com fatos que são enquadrados dentro de uma realidade reportada, de maneira a contextualizar sua própria posição.

Por fim, de acordo com o estudo socioconstrucionista empreendido por Shi-Xu (2000) (que também versa, dentre outros aspectos, sobre o ato de narrar enquanto recurso argumentativo), os fatos, descritos e/ou narrados, atuam na argumentação como um frame interpretativo para a opinião em questão, amparando a opinião na coletividade cultural, aqui empregada como base de realidade. Nesse sentido, os fatos da realidade social, muitas vezes organizados em formas constituídas por pequenas histórias, são usados para sustentar opiniões, fundindo os significados subjetivos e objetivos da argumentação.

Em um âmbito maior, coloca-se a pertinência da Análise da Narrativa para a abordagem de questões atinentes à construção identitária e à interação social, questões estas que têm sido entendidas, contemporaneamente, como centrais em estudos como os de Mishler (2002), Riessman (2008), Bastos (2005), Bastos e Biar (2015), dentre outros. Nesse sentido, conforme bem lembra Bastos (2005, p. 81), as escolhas que fazemos ao nos introduzirmos como personagens em certos cenários, em meio a outros personagens e ações, se dão em função do modo como nos posicionamos em relação a esses elementos e nos afiliamos a certas categorias sociais, mesmo que contingencialmente, sendo parte de um processo de apresentação e interpretação de pelo menos algumas dimensões de quem somos: “ao contar estórias, situamos os outros e a nós mesmos numa rede de relações sociais, crenças, valores, ou seja, ao contar estórias, estamos construindo identidades”. A partir dessas histórias, podem-se elaborar articulações com o contexto macro-contextual ou sócio-histórico, conforme proposto por esta pesquisa. Afinal, se, conforme afirma Lynch (2016, p. 81), “os fatos políticos precisam ser interpretados à luz dos valores, crenças, interesses e objetivos dos diversos segmentos de que a sociedade é composta”, a Análise da Narrativa pode oferecer uma valiosa chave de interpretação para o pensamento político brasileiro contemporâneo.

Argumentação, polêmica e dissenso

Apontamos, na seção anterior, em consonância com diversos autores de Análise da Narrativa, para um imbricamento entre “narrativas breves” e “argumentação”. Deixamos claro que entendemos, em sintonia com Bamberg e Geogakoupalou (2008), que narrativas são meios construtivos e funcionais para a criação de personagens no espaço e no tempo, os quais são instrumentais para a criação de posições na fala-em-interação. Agora, faz-se necessário apresentarmos o que entendemos por “argumentação” e quais são seus possíveis pontos de contato com o emprego de narrativas na fala-em-interação.

Foi apenas em tempos recentes, com os trabalhos de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), que os estudos sobre argumentação ganharam novo impulso. Tentando aliar os principais elementos da pioneira Retórica de Aristóteles a uma visão atualizada do assunto, os autores elegeram a adesão do interlocutor como a mola-mestra do estudo da Teoria da Argumentação, de forma a definir a argumentação como “o conjunto das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas ao seu assentimento” (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996, p. 4).

No Tratado da argumentação, Perelman e Olbrechts-Tyteca (obra citada) elencam um inventário exaustivo dessas “técnicas argumentativas”, sob forma de esquemas de argumentos. Para os mestres do Tratado, as técnicas argumentativas se dividem em dois grandes grupos: os argumentos quase-lógicos e os argumentos baseados na estrutura do real.[1]

Paralelamente, faz-se importante retomar a noção aristotélica de provas “objetivas” e “subjetivas” da retórica, associadas aos conceitos de logos, de um lado, ethos e pathos, de outro. De acordo com Declerq (1992, p. 58), enquanto as provas objetivas definem a argumentação “pela capacidade persuasiva interna da linguagem”, as provas subjetivas, subdivididas em provas éthicas e pathéticas, relacionam-se “aos sujeitos da comunicação que se definem na situação de fala” (Declerq, obra citada, p. 45): a prova éthica “é relativa ao orador e à imagem moral que ele constrói dele mesmo ao falar”; a prova pathética concerne “ao auditório e às emoções que o orador desperta nele por seu discurso” (Declerq, obra citada, p. 45).

Ao lado desses estudos, caracterizados por entender a argumentação como um ato linguageiro marcado basicamente pela busca da adesão dos interlocutores às teses apresentadas ao assentimento, desdobramentos recentes, como aquele promovido pela Análise Argumentativa do Discurso (doravante AAD), proposta por Amossy (2017, 2018), têm alargado a noção de adesão do interlocutor para outras visadas, mais amplas e adequadas à proposta apresentada pela presente pesquisa.

Embora a concepção clássica de retórica e argumentação enquanto “arte da persuasão” continue a influenciar fortemente a construção teórica da AAD, Amossy (2017) aponta que, no entanto, para esses autores, a busca pelo acordo é privilegiada e “as dissensões persistentes são consideradas como perturbações à harmonia social e entraves ao processo de tomada de decisão” (Amossy, obra citada, p. 230). Segundo a autora, nem sempre o acordo entre teses antagônicas é possível, e, por isso, o desacordo não é sinônimo de fracasso, mas, na verdade, marca constituidora das sociedades democráticas, pautadas na diversidade de saberes e vivências, o que torna sua análise indispensável:

Se, de fato, o conflito é inevitável em nossas democracias pluralistas e se o cerne da democracia não é o consenso, mas a gestão do dissenso, então a polêmica como confronto verbal de opiniões contraditórias que não leva a um acordo utópico deve ser reconsiderada em sua profundidade. É, por conseguinte, uma retórica do dissenso que é necessário desenvolver, na qual a polêmica deve ter lugar de destaque (Amossy, obra citada, p. 38).

Nesse contexto, concebe-se que o discurso polêmico já nasce dicotomizado, uma vez que os participantes do confronto verbal público laçam suas teses no mais das vezes sem o propósito de negociar a busca por um consenso que ultrapasse as diferenças. Nesse contexto, o empreendimento da persuasão pode estar direcionado a um terceiro, um auditório sem direito a fala que, em princípio, pode aderir a uma das teses e, consequentemente, intensificar a polarização social, como no caso dos discursos políticos acionados em situações de debates eleitorais televisivos e de entrevistas a veículos de comunicação concedidas por candidatos analisados neste artigo.

Em sua obra intitulada Apologia da polêmica (2017), Amossy apresenta a polêmica como uma modalidade argumentativa fundamentada no dissenso, uma “manifestação discursiva sob forma de embate, afrontamento brutal, de opiniões contraditórias que circulam no espaço público” (Amossy, obra citada, p. 53) em que o “antagonismo das opiniões apresentadas no seio de um confronto verbal é sua condição sine qua non” (Amossy, obra citada, p. 49). Desse modo, o discurso polêmico é marcado por um contradiscurso que lhe constitui; não basta que um locutor mobilize argumentos para sustentar a sua tese: ele necessita, também, trazer argumentos que refutem/desqualifiquem a tese de seu adversário ou a própria pessoa que assume o papel de adversário. Ou seja, a natureza discursiva da polêmica impossibilita qualquer tipo de acordo, pois, “se há choque de opiniões contraditórias, é porque a oposição dos discursos, na polêmica, é o objeto de uma clara dicotomização na qual duas posições antitéticas se excluem mutuamente” (Amossy, obra citada, p. 53).

Entende-se, por dicotomização,

respostas antagônicas que sejam apresentadas como duas opções antitéticas que se excluem mutuamente […] é branco ou preto, e o polemista insiste na boa escolha a fazer em tal circunstância. É essa oposição radical que diferencia a polêmica do debate contraditório onde as opções divergentes são postas à prova da discussão (Amossy, obra citada, p. 232).

Além da dicotomização, a polêmica instaura uma polarização evidenciada pela divisão de dois grupos que se mantêm em campos opostos, com cada grupo apresentando uma determinada identidade diante da questão polêmica de interesse público. Mais especificamente, trata-se de um embate entre os sujeitos que, ao defenderem suas teses, se colocam em pontos opostos da argumentação e se organizam tendo em vista os valores coletivos a que se filiam. Temos, nesse caso, a “polarização”. Diferentemente da dicotomização, que é uma operação abstrata, a polarização é um fenômeno necessariamente social. Trata-se de um processo complexo através do qual um público extremamente diversificado se funde em dois ou vários grupos, fortemente contrastados entre eles e mutuamente excludentes, que partilham os valores que o argumentador considera fundamentais. De uma forma mais clara, de acordo com Amossy (obra citada, p. 232),

A polarização tem implicações identitárias. Trata-se de se aliar a um grupo constitutivo de uma identidade, ou suscetível de reforçá-la. Quanto mais a adesão a uma determinada tese é constitutiva de uma identidade compartilhada, mais o indivíduo tenderá a apegar-se a ela: a maneira pela qual percebe a si mesmo, a maneira pela qual os outros o veem e a medida em que participa fortemente de uma comunidade, é que estão em jogo. Encontramo-nos então numa lógica de divisão social, de defesa identitária e de combate pelo triunfo dos valores e opções de seu grupo.

Já que a polarização é marcada para além das divergências pontuais e se coloca no campo social mais profundo, o ideológico, os atores envolvidos assumem papéis diferentes, “de proponente e oponente”. Dessa forma, não se trata mais de uma interação entre dois participantes com pontos de vista divergentes, mas de representantes de grupos sociais que defendem posições argumentativas incompatíveis e antagônicas, gravitando em torno de bandeiras que clamam ao agrupamento, o que torna a solução para o embate difícil, fundamentando a polêmica em uma estrutura actancial. Assim sendo, tal estrutura não se caracteriza como flexível, com sinalizações de mudanças de posições argumentativas, mas de identificação de diversos outros participantes à posição defendida por cada um dos debatedores, num fenômeno identitário destes com o grupo que os representa.

Análise dos dados

Para Charaudeau (2006, p. 39), embora o discurso não esgote, de forma alguma, todo o conceito político, “não há política sem discurso”. O discurso é constitutivo da política. Tomando a linguagem como o dispositivo que motiva a ação, a orienta e lhe dá sentido, o autor afirma que, por conseguinte, “a política depende da ação e se inscreve constitutivamente nas relações de influência social, e a linguagem, em virtude do fenômeno de circulação dos discursos, é o que permite que se constituam espaços de discussão, de persuasão e de sedução nos quais se elaboram o pensamento e ação políticos” (Charaudeau, obra citada, p. 39). Justifica-se, assim, o estudo do político pelo viés do discurso.

Ainda de acordo com o autor, o discurso político, como ato de comunicação, concerne aos atores que participam diretamente da cena de comunicação política, e seu desafio consiste em influenciar as opiniões a fim de obter adesões, rejeições, consensos ou dissensos. Ele resulta de aglomerações que estruturam parcialmente a ação política (como debates e declarações em entrevistas televisivas) e constroem imaginários de filiação comunitária, em termos de um comportamento comum, mais ou menos ritualizado. Nesse contexto, instituem-se comunidades múltiplas de pensamento e de ação, intercambiada entre os membros do grupo, como uma espécie de “cimento identitário” (Charaudeau, obra citada, p. 46).

Considerando a complexidade da estruturação do campo político, Charaudeau distingue três lugares de fabricação do discurso político: um lugar de governança, um lugar de opinião e um lugar de mediação. “No primeiro desses lugares se encontram a instância política e seu duplo antagonista, a instância adversária; no segundo, encontra-se a instância cidadã e, no terceiro, a instancia midiática” (Charaudeau, obra citada, p. 55). De acordo com o autor,

Pode-se dizer que a instância midiática se encontra em um duplo dispositivo: de exibição, que corresponde a sua busca por credibilidade, e de espetáculo, que corresponde a sua busca por cooptação. Esta última adquiriu uma posição dominante no circuito de informação a ponto de não se saber mais qual crédito conceder à instância midiática. Isso não impede que o discurso que a justifica avance em seu dever de informar e promover o debate democrático, de maneira a ser reconhecido seu direito de fazer revelações e de denunciar. O discurso da instância midiática encontra-se, portanto (…), entre um enfoque de cooptação, que leva a dramatizar a narrativa dos acontecimentos para ganhar a fidelidade de seu público, e um enfoque de credibilidade, que o leva a capturar o que está escondido sob as declarações dos políticos, a denunciar as malversações, a interpelar e mesmo acusar os poderes públicos para justificar seu lugar na construção da opinião pública (Charaudeau, 2006, p. 63; grifos nossos).

Na realidade, a instalação definitiva da sociedade do espetáculo – vigente nos últimos quarenta anos, acompanhando as características das sociedades pós-modernas, derivadas da radicalização dos traços da modernidade – reserva, ao discurso político trabalhado pelas mídias, facetas um tanto distintas da materialização observada nos períodos anteriores: agora, o tratamento dado a esse discurso é caracterizado pela “espetacularização”, devidamente adequada aos padrões midiáticos pós-modernos, o que as leva a atribuir os efeitos de sentido de mentira e segredo ao discurso político.

Nesse contexto, as mídias passam então a se apresentar pretensamente como instituições que cumprem uma “função social imprescindível, propriamente a de desvelar criticamente as mentiras e os segredos políticos” (Piovezani Filho, 2003, p. 54): “visualiza-se, pois, a atuação da mídia, em função de sua suposta ‘politização’, como ‘porta-voz’ daqueles que, alijados do poder (que, paradoxalmente, eles mesmos concederam), impossibilitados de agir efetivamente no espaço político, devem contentar-se com a mera assistência do desenrolar das ações ali empreendidas” (Piovezani Filho, obra citada, p. 58).

Dessa forma, assumem a função de organismos especializados em responder a uma demanda social por dever de democracia, atribuindo-se aos jornalistas o papel de agentes que buscam tornar público aquilo que seria ignorado, oculto ou secreto, “em benefício da cidadania”. Conforme bem aponta Charaudeau (obra citada, p. 17), “enquanto se admite no mundo político, de maneira geral, que o discurso aí manifestado está intimamente ligado ao poder e, por conseguinte, à manipulação, o mundo das mídias tem a pretensão de se definir contra o poder e contra a manipulação”.

É nesse sentido que podemos entender muitos dos aspectos da performance discursiva dos entrevistadores William Bonner e Renata Vasconcelos, da Rede Globo de Televisão, durante as entrevistas com os principais candidatos à presidência em 2022, no Jornal Nacional, conforme podemos observar em (1), (2):

(1) [William Bonner]: Candidato, (…) em 2018, o senhor candidato à Presidência, o senhor se apresentava como candidato da antipolítica e o candidato contra o centrão. Na convenção do seu partido, o general Heleno chegou a cantar “se pegar,… se gritar pega centrão, não fica um”, trocando a palavra “ladrão” por “centrão” etc., isso ficou muito famoso. Hoje, a verdade é que o centrão, ele é a base do seu governo. Na semana passada, quando o senhor estava saindo lá do Palácio do Alvorada, inclusive o senhor enfrentou lá um incidente com aquele youtuber, que foi cobrar do senhor essa aliança do seu governo com o centrão. Eu pergunto: por que eleitores como aquele, que se sentem traídos pelo senhor, acreditariam nas suas promessas de agora?

[Jair Bolsonaro]: Você está me estimulando a ser ditador.

[William Bonner]: Eu, candidato?

[Jair Bolsonaro]: Você. O centrão são mais ou menos 300 deputados. Se eu deixar de lado, eu vou governar com quem? Não vou governar com o parlamento. Então, você está me estimulando a ser um ditador. São 513 deputados. 300 são de partidos de centro, pejorativamente chamado de centrão. O lado de lá, os 200 que sobram, pessoal do PT, PC do B, PSOL, Rede, não dá para você conversar com eles, até não teriam número suficiente para aprovar sequer um projeto de lei comum. Então, os partidos de centro fazem parte, grande parte da base do governo, para que nós possamos avançar em reformas, como temos avançado em muita coisa. Como, por exemplo, através do centrão, nós conseguimos o Auxílio Brasil de R$ 600 para 20 milhões de famílias. Dá para imaginar isso? E olha só, os partidos de esquerda votaram contra o parcelamento dos precatórios, que era condição para a gente dar lá atrás R$ 400 de Auxílio Brasil para os mais necessitados. Então o PT votou contra o Auxílio Brasil (…).

[William Bonner]: Agora vamos lá, candidato…

[Jair Bolsonaro]: Como é que eu vou trabalhar com o parlamento sem os partidos do centrão?

[William Bonner]: A questão que o senhor disse que eu estou estimulando o senhor a ser ditador?

[Jair Bolsonaro]: Está estimulando, sim.

[William Bonner]: Por favor, candidato, não, longe de mim.

[Jair Bolsonaro]: Se eu for governar sem o centrão?

[William Bonner]: Não, eu estimulei nada, é que a questão é a seguinte: em 2018, o senhor chegou a dizer, até com propriedade, que governos anteriores tinham feito alianças com o centrão, mas o senhor disse criticamente que esses governos anteriores tinham feito nomeações com interesse político-partidário e que isso tinha tudo para dar errado. O senhor chegou até a concluir assim: “Por isso eu não integro o centrão”. Mas, recentemente, há dias, o senhor, com muita naturalidade, disse assim: “Eu sempre fui do centrão. Eu vim do centrão”. Aí eu? eu tenho que perguntar ao candidato, em nome da clareza para os eleitores: em qual dessas duas afirmações o eleitor deve acreditar? O senhor sempre foi do centrão ou o senhor, como disse em 2018, diz: “Eu nunca fui do centrão por esse motivo”?

[Jair Bolsonaro]: No meu tempo não era centrão. Não existia centrão.

[William Bonner]: Como assim?

[Jair Bolsonaro]: No meu tempo, esses partidos que eu já integrei não eram tidos como partidos do centrão. Agora, o importante, Bonner, o importante: nós estamos num governo sem corrupção. Eu indiquei ministros pelo critério técnico. Eu não aceitei pressões de lugar nenhum para escalar ministros. (…) Estamos governando com competência e sem corrupção, porque não tem indicação política para esses ministérios.

Na pergunta inicial elaborada pelo entrevistador Willian Bonner, observamos uma sucessão de narrativas breves que serve à materialização de uma argumentação baseada na estruturação do real, a partir do relato de uma sucessão de fatos que encaminha, em termos de uma argumentação quase-lógica (Cf. Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996), para o apontamento de uma contradição entre o candidato Jair Bolsonaro, que se dizia contra o “centrão”, e o agora presidente Jair Bolsonaro, aliado do “centrão”. Observe ainda que a narrativa breve na semana passada, quando o senhor estava saindo lá do Palácio do Alvorada, inclusive o senhor enfrentou lá um incidente com aquele youtuber, que foi cobrar do senhor essa aliança do seu governo com o centrão serve à fundamentação do real, mediante uma ilustração do ponto defendido pelo entrevistador.

A resposta dada pelo presidente Bolsonaro ao entrevistador (você está me estimulando a ser um ditador) instaura, de imediato, a polêmica, entendendo esta resposta, nos termos do que foi proposto por Amossy (2017), como uma resposta antagônica, uma antítese do que foi apresentado pelo entrevistador, a partir da seguinte lógica: “ou sou o Presidente de uma república democrática, que governa com seu grupo no parlamento, ou não governo com o parlamento e me torno um ditador”. Esse posicionamento vem materializado, na superfície discursiva, por meio de um argumento baseado na estruturação do real, de natureza pragmática, aplicando-se ligações de sucessão, que unem um fenômeno a suas consequências ou a suas causas (O centrão são mais ou menos 300 deputados. Se eu deixar de lado, eu vou governar com quem? Não vou governar com o parlamento. Então, você está me estimulando a ser um ditador).

Cumpre destacar ainda que a argumentação de Bolsonaro é baseada na premissa de ele mesmo se encontrar no “lugar da governança” (Charaudeau, 2006) (eu vou governar com quem? Não vou governar com o parlamento). Paralelamente, ao se negar a responder àquilo que foi central na pergunta de Bonner (“o que mudou entre o que pensava o candidato Bolsonaro e o agora presidente Bolsonaro em relação ao ‘centrão’”), o candidato passa a utilizar seu tempo para apresentar, na sequência, uma sucessão de números que, se confirmados, serviriam como uma argumentação baseada em fatos acerca de aspectos positivos de seu governo. Dessa maneira, o então presidente não só não responde à questão central quanto desvia o tópico discursivo para um campo mais favorável.

Consciente dessa estratégia, após mais um embate entre entrevistador e entrevistado ([William Bonner]: A questão que o senhor disse que eu estou estimulando o senhor a ser ditador? [Jair Bolsonaro]: Está estimulando, sim. [William Bonner]: Por favor, candidato, não, longe de mim. [Jair Bolsonaro]: Se eu for governar sem o centrão? [William Bonner]: Não, eu estimulei nada), William Bonner retoma o ponto central da pergunta elaborada no início da entrevista, novamente em forma de narrativa: após a orientação em 2018, observamos a apresentação de uma sequência de “ações complicadoras”: o senhor chegou a dizer, até com propriedade, que governos anteriores tinham feito alianças com o centrão, mas o senhor disse criticamente que esses governos anteriores tinham feito nomeações com interesse político-partidário e que isso tinha tudo para dar errado. O senhor chegou até a concluir assim: “Por isso eu não integro o centrão”. Mas, recentemente, há dias, o senhor, com muita naturalidade, disse assim: “Eu sempre fui do centrão. Eu vim do centrão”. Segue-se a resolução Aí eu? eu tenho que perguntar ao candidato, em qual dessas duas afirmações o eleitor deve acreditar?, intercalada à avaliação em nome da clareza para os eleitores, fazendo referência ao papel contemporaneamente assumido pelas mídias, das quais toma parte, de denunciar as malversações e trazer à luz o que está escondido nas declarações dos atores políticos.

No plano subjetivo da argumentação, o teor dessas perguntas e sua repetição servem para colocar em xeque a “credibilidade” do presidente da República e candidato à reeleição, a partir da observância sobre se aquilo que ele anuncia, diz e promete corresponde sempre ao que ele pensa e coloca em prática, “e que isso será seguido de um efeito” (Charaudeau, obra citada, 2006, p. 119).

Novamente, no entanto, a resposta elaborada pelo presidente Bolsonaro tergiversa o teor central da pergunta e se esvai para um outro campo, mais uma vez, a partir de uma argumentação baseada na estruturação do real, através da apresentação de supostos fatos positivos que colocam o seu governo no plano de uma avaliação mais favorável. Essa desconexão entre pergunta e resposta, e o consoante desalinhamento entre entrevistador e entrevistado, permeia toda a interação em questão e está presente também, na mesma medida, na entrevista concedida ao Jornal Nacional pelo principal oponente de Jair Bolsonaro, Luís Inácio Lula da Silva. Observe:

(2) [William Bonner]: Obrigado por ter vindo, candidato. E nós vamos começar então essa entrevista a partir de agora, contando o tempo, e vamos começar falando de corrupção. O Supremo Tribunal Federal lhe deu razão, considerou o então juiz Sérgio Moro parcial, anulou a condenação do caso do triplex e anulou também outras ações por ter considerado a Vara de Curitiba incompetente. Portanto, o senhor não deve nada à Justiça. Mas houve corrupção na Petrobras. E segundo a Justiça, com pagamentos a executivos da empresa, a políticos de partidos, como o PT, como o então PMDB e o PP. Candidato, como é que o senhor vai convencer os eleitores de que esses escândalos não vão se repetir?

[Luiz Inácio Lula da Silva]: Bonner, primeiro, eu acho importante você ter começado esse debate com essa pergunta. Porque, durante cinco anos, eu fui massacrado, e estou tendo hoje a primeira oportunidade de poder falar disso abertamente, ao vivo, com o povo brasileiro. Primeiro, a corrupção, ela só aparece quando você permite que ela seja investigada. Eu queria começar dizendo para você uma coisa muito séria, foi no meu governo que a gente criou o Portal da Transparência, que a gente colocou a CGU para fiscalizar, que a gente criou a Lei de Acesso à Informação, a gente criou a lei anticorrupção, a lei contra o crime organizado, a lei contra a lavagem de dinheiro. A AGU entrou no combate à corrupção. Criamos o Coaf para cuidar de movimentações financeiras atípicas, e colocamos o Cade para combater os cartéis. Ou seja, foram todas medidas tomadas no meu governo, além do que o Ministério Público era independente, além do que a Polícia Federal recebeu no meu governo mais liberdade do que em qualquer outro momento da história. (…)

[William Bonner]: Agora, candidato, o senhor elencou diversas medidas adotadas em governos do PT como instrumentos, mecanismos de controle da corrupção, mas é fato que a corrupção, a despeito disso, ocorreu, e ocorreu em grande escala, por isso eu retomo a pergunta original, que é: como o senhor pode assegurar que elas não se repetirão? Alguma medida nova foi estudada para evitar que aconteça?

[Luiz Inácio Lula da Silva]: Ô Bonner, primeiro, as medidas estão colocadas. Veja, eu poderia ter escolhido um procurador engavetador. Sabe aquele amigo que você escolhe que nenhum processo vai para frente? Eu poderia ter feito isso; não fiz, eu escolhi da lista tríplice. Eu poderia ter impedido que a Polícia Federal tivesse um delegado que eu pudesse controlá-lo; não fiz, e permiti que efetivamente as coisas acontecessem do jeito que precisavam acontecer.

Cumpre destacar que o jornalista já inicia a entrevista com uma pergunta que faz referência direta ao tema mais vulnerável para a candidatura de Lula em 2022: a “corrupção”. De forma análoga à entrevista anterior, essa abordagem está ancorada discursivamente em narrativas não canônicas: após a orientação houve corrupção na Petrobras, seguem algumas ações complicadoras e segundo a Justiça, com pagamentos a executivos da empresa, a políticos de partidos, como o PT, como o então PMDB e o PP, baseadas em fatos e em um argumento de autoridade (segundo a justiça) que colocam em cheque, no plano subjetivo da argumentação, o ethos de “virtude” do candidato e ex-presidente Lula.

Cumpre destacarmos que, de acordo com Charaudeau, o ethos de “virtude” está atrelado à demonstração, por parte dos atores políticos, das imagens fundadas em suas condições de sinceridade, fidelidade e honestidade pessoal, sendo esta última relacionada a uma atitude de se dizer o que pensa, de se ter uma vida transparente, não ter participado de negócios escusos. Nas palavras do autor, constitui “uma resposta a expectativas fantasiosas da instância cidadã, na medida em que esta, ao delegar um poder, procura fazer-se representar por um homem ou por uma mulher que seja modelo de retidão e honradez” (Charaudeau, obra citada, p.124).

Após a narrativa breve durante cinco anos (orientação), eu fui massacrado (ação complicadora), e estou tendo hoje a primeira oportunidade de poder falar disso abertamente, ao vivo, com o povo brasileiro (avaliação), que aqui ocupa a função de refutar, no plano subjetivo da argumentação, as acusações que pesaram sobre sua imagem pública enquanto um político “virtuoso” no que tange ao envolvimento com corrupção, o candidato passa a narrar ações empreendidas pelo seu governo para combater a corrupção, novamente através de narrativas não canônicas: as ações complicadoras foi no meu governo que a gente criou o Portal da Transparência, que a gente colocou a CGU para fiscalizar, dentre outras, subsequentes, ancoram uma nova argumentação estruturada no real, baseada em fatos que, atrelados à avaliação mais liberdade do que em qualquer outro momento da história, desempenham basicamente a mesma função daquelas observadas na entrevista com Jair Bolsonaro, ou seja, deslocar o tópico da interação em curso (no caso, a corrupção na Petrobrás) para um campo mais favorável ao candidato.

Essa estratégia é denunciada pelo entrevistador, que recoloca o tema a corrupção como o centro da interação em curso (Agora, candidato, o senhor elencou diversas medidas adotadas em governos do PT como instrumentos, mecanismos de controle da corrupção, mas é fato que a corrupção, a despeito disso, ocorreu, e ocorreu em grande escala, por isso eu retomo a pergunta original, que é: como o senhor pode assegurar que elas não se repetirão? Alguma medida nova foi estudada para evitar que aconteça?).

Mais uma vez, de forma análoga ao observado no exemplo (1), o candidato tergiversa o teor central da pergunta, mantendo exatamente a mesma estratégia de elencar supostas ações positivas empreendidas no passado para evitar tratar diretamente do tema.

Esse descompasso entre pergunta e resposta, esse desalinhamento entre os interlocutores, torna-se ainda mais pungente quando analisamos a performance dos candidatos em uma outra modalidade de interação: os debates eleitorais televisivos (especialmente nas seções de tema livre, em que, em tese, caberia a um perguntar e ao outro responder). Observe, a esse respeito, o excerto destacado em (4), que se apresenta como um desdobramento posterior da pergunta retratada em (3):

(3) [Jair Bolsonaro]: Luiz Inácio, assumindo em 2019 um Brasil com sérios problemas éticos, morais e econômicos, em grande parte herdado do Governo do PT, mas mesmo assim com pandemia, com falta d’água e outras crises, nós concedemos reajuste para os aposentados e majoramos o salário-mínimo. Tanto é verdade que nós reajustamos, acertamos a economia, que eu posso anunciar que, a partir do ano que vem, o novo salário-mínimo será de 1.400 reais. Mas ao longo dos últimos dias, Luiz Inácio, o seu partido foi com toda vontade, na televisão e nas inserções de rádio, dizer que não ia reajustar o mínimo, que eu não ia reajustar as aposentadorias, e, também, que eu ia acabar o 13º, com as férias e com as horas extras. Tu confirmas isso? Fim do 13º, fim das horas extras e também das férias?

(4) [Jair Bolsonaro]: Lula, na verdade, tu deixou uma dívida, só na Petrobras, o dobro do valor da empresa. Você deixou uma dívida de 900 bilhões de reais. 170 bilhões de dólares. Ainda roubou o fundo de pensão da Petrobras, roubou o fundo de pensão da Caixa Econômica. Roubou o fundo de pensão dos Correios. Você deixou algo no ar em torno de 400 bilhões do BNDES com essa política de também emprestar para outros países, para fazer obras sem qualquer retorno para nós. Lula, você deu um bilhão de dólares para Cuba para fazer um porto lá e estamos levando calote. Agora, está no contrato, eu vi, Lula, que falta de vergonha de você. Você sabe qual a garantia de Cuba para o Brasil, caso não pagasse a dívida? Charutos. Tá lá no contrato. Lula, você não tem vergonha na cara de indicar um presidente do BNDES para ele fazer esse tipo de acordo com outros países, como charuto em garantias com Cuba? Explica aqui, Lula.

[Luiz Inácio Lula da Silva]: Eu vou naquela câmera ali para pedir o seguinte. Pai, perdoai os ignorantes, eles não sabem o que fazem. Porque se ele tivesse o mínimo de noção do que é política externa, ele percebesse, tivesse lido o Valor essa semana, o jornal Valor, ele perceberia o significado de exportar engenharia. Ele deveria saber que o Brasil lucrou praticamente… o Brasil investiu 10 e o Brasil recebeu 12 bilhões. Ele poderia ler pelo menos o Valor. Alguém poderia pedir para ele ler, ou a assessoria ler para ele, para ele não falar tanta sandice aqui. Isso aqui é um debate que a gente está falando com milhões de pessoas. Pelo amor de Deus. Diga alguma coisa com coisa. Pelo amor de Deus, gente, é difícil. O cidadão está desequilibrado hoje. Porque ele veio com um único argumento.

Alguém dá um argumento para ele outra vez. Ensina ele a falar outra coisa, porque ele tem que explicar por que ele não aumentou o mínimo, ele tem que explicar por que não aumentou a merenda escolar, ele tem que explicar por que ele isolou o Brasil do mundo!

Observe que, em (3), o início da pergunta vem materializado em forma de uma narrativa breve, composta pela orientação assumindo em 2019 um Brasil, pelas avaliações com sérios problemas éticos, morais e econômicos, em grande parte herdado do Governo do PT e tanto é verdade que nós reajustamos, acertamos a economia, pelas ações complicadoras mas mesmo assim com pandemia, com falta d’água e outras crises e pelas resoluções nós concedemos reajuste para os aposentados e majoramos o salário-mínimo e que eu posso anunciar que, a partir do ano que vem, o novo salário-mínimo será de 1.400 reais. Neste caso, o presidente e candidato à reeleição aproveita o momento da pergunta para novamente, assim como observado nos excertos anteriores, trazer à memória dos telespectadores supostos fatos e dados positivos de sua administração, agora nas áreas de economia e bem-estar social, em forma de narrativa.

Em (4), no entanto, temos algo um tanto diferente: a narrativa elaborada no início da intervenção de Jair Bolsonaro, que se inicia em Lula, na verdade, tu deixou uma dívida só na Petrobras, o dobro do valor da empresa, serve para ancorar uma versão conflitante sobre os fatos em questão, desfavorável ao oponente, acionando, no plano subjetivo da argumentação, a um ataque tanto ao ethos de “virtude” quanto ao de “competência” de seu oponente. Lula, no entanto, se recusa a dar segmento na interação e a responder aos ataques desferidos por seu oponente, em mais um claro truncamento da dinâmica interacional em curso, ocupando seu tempo para atacar o ethos de “caráter”[2] (Cf. Charaudeau, 2006) de Bolsonaro.

Quanto à virulência da linguagem empregada (roubou, falta de vergonha, não tem vergonha na cara, ignorante, desequilibrado), segundo Amossy (2017), quando estamos diante de uma polarização extrema,

a polarização utiliza, de bom grado, manobras de difamação. Trata-se de uma estratégia retórica para desacreditar o adversário, definindo-o como um defensor de um ponto de vista caracterizado por sua má-fé (não autêntico) e suas más intenções (mal-intencionado) (Vanderford, 1989, p. 166). Não nos impressionamos, portanto, em ver que a exacerbação em grupos antagônicos, em que cada um afirma sua identidade social opondo-se e fazendo do outro o símbolo do erro e do mal (Amossy, 2017, p. 58).

Por fim, observamos casos em que a narrativa acena para os pontos extremos, ancorando avaliações e ações complicadoras constituídas pelos princípios ideológicos da polarização, em torno dos quais gravitam segmentos sociais em conflito. É o caso das palavras proferidas por Jair Bolsonaro ao término de um dos debates, nas “considerações finais” da sua participação:

(5) Boa noite. Deus, pátria, família e liberdade. Temos um governo que respeita a todos. Um governo que está rompendo quatro anos sem corrupção. Um governo que respeita a família brasileira. Um governo que diz não ao aborto, porque ele entende que a vida existe desde a sua concepção. Um governo que respeita as crianças em sala de aula, não a ideologia de gênero. Um governo que sabe a dor de uma mãe que tem os filhos no mundo das drogas, por isso é um governo que não quer legalizar as drogas. Um governo do livre mercado. Um governo que dá exemplo para o mundo na recuperação da economia mundial, que foi abalada. Um governo brasileiro onde pode mostrar para o mundo que temos uma das gasolinas mais baratas do mundo, que tem um dos programas sociais mais abrangentes do mundo: são 20 milhões de famílias que ganham 600 reais por mês, diferentemente do que acontecia no passado. Um governo que respeita a todos. Um governo que quer continuar, com o seu voto, para que a felicidade de verdade chegue aonde tem que chegar: a você, povo brasileiro. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!

Ao fazer referência ao lema “Deus, pátria, família e liberdade”, Bolsonaro retoma a memória discursiva do manifesto apresentado em 7 de outubro de 1932 pela Ação Integralista Brasileira (AIB), vertente nacional do fascismo.

Figura 3: slogan da Ação Integralista Brasileira
Figura 3: slogan da Ação Integralista Brasileira

Empregado amiúde pelos apoiadores do Golpe de 64, esse manifesto se constitui em um norte para a extrema-direita brasileira. O manifesto prega o caráter cristão da nossa sociedade como centro da orientação política da nação, iniciando-se já com a afirmação de acordo com a qual “Deus dirige os destinos dos povos”. Ao longo do texto do manifesto, a força sobrenatural cristã é enaltecida repetidas vezes como o dogma a ser seguido para se alcançar um modelo ideal de família, de sociedade, de uma pretensa indivisibilidade de classes e, logo, do próprio funcionamento econômico e social:

Deus dirige os destinos dos povos. […] O homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família, da Pátria e da Sociedade. […]toda superioridade provém de uma só superioridade que existe acima dos homens: a sua comum e sobrenatural finalidade. Esse é um pensamento profundamente brasileiro, que vem das raízes cristãs da nossa História e está no íntimo de todos os corações (Manifesto de 7 de outubro de 1932, Ação Integralista Brasileira).

De acordo com Almeida (2022, p. 354)

como colocado pela AIB, este “pensamento profundamente brasileiro” é advindo “das raízes cristãs da nossa História”: eis o sentido do programa integralista para um modelo unívoco de pátria, que passou a ser sintetizado no slogan “Deus, pátria e família” (…). Ao analisar este dizer, relacionamo-lo às condições de produção da década de 1930 para, assim, perceber como (…) se comunica com as condições postas pela contemporaneidade, quando tal lema é reapropriado pela extrema direita brasileira que ora detém o poder político da nação.

Cumpre destacar ainda que, para Charaudeau (2016, p. 102-103),

O discurso de direita baseia-se numa visão de mundo em torno da qual se elabora um sistema de pensamento: a natureza se impõe ao homem. Dessa visão de submissão do ser humano à ordem da mãe natureza decorrem os valores defendidos, num movimento de conservação do estado das coisas. Valor da ordem, como na natureza e que é preciso deixar expandir-se sem a mão do homem. (…) O valor família, da sociedade familiar, pois é em seu seio que se fabrica o indivíduo. No pensamento de direita, não é o indivíduo que fabrica o grupo, mas o grupo que fabrica o indivíduo, daí a importância da filiação, do inato e do peso da tradição familiar que essencializa o grupo e o indivíduo num destino imutável. Isso justifica a ordem piramidal em cujo topo se encontra a figura do patriarca, potência tutelar, e ao mesmo tempo protetor dos membros da família (…) Aqui se confundem legitimidade e autoridade, uma fundando a outra num lugar de poder antirrepublicano. O valor do trabalho (…) que deve ser entendido como estabelecedor de uma ordem hierárquica entre os senhores, os donos, os chefes, os dirigentes e, por último, os executores – que de início foram os camponeses e depois os operários. Assim se justifica uma atividade produtiva a serviço de um corpo social – ao qual os trabalhadores devem tudo (…) O valor pátria, segundo o qual o corpo social é constituído pelos filhos da nação como essência fundadora da sua identidade.

Considerações Finais

Tomando em consideração o vasto emprego da expressão “disputa pela narrativa” na contemporaneidade, acionada principalmente para fazer referência aos embates de versões que circundam a política brasileira contemporânea, profundamente polarizada entre a centro-esquerda e a direita, este trabalho, enquanto um recorte de uma pesquisa maior, buscou analisar e descrever as formas e as funcionalidades de narrativas que emergiram em situações de interação com os dois principais líderes políticos e candidatos à Presidência da República, Jair Messias Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva, particularmente em entrevistas e debates realizados pela Rede Globo de Televisão durante a campanha para as eleições de 2022.

Para atingir nossos objetivos, partimos do quadro teórico oferecido pela Análise da Narrativa, tanto do modelo dito “canônico” elaborado por Labov e Waletsky (1968) e Labov (1972) quanto das propostas de análise de narrativas “não canônicas” e “narrativas breves”, apresentadas por autores como Bamberg e Georgakopoulou (2008).

Após a análise dos dados, os resultados desta pesquisa ecoaram a posição sustentada pelos trabalhos de Bamberg e Georgakoupoulou (2008), Schiffrin (1996) e Shi-Xu (2000), já que as narrativas breves analisadas cumpriram sobretudo um trabalho retórico, elaborado para apoiar um determinado ponto argumentativo (especialmente para apresentar supostos “feitos” e fatos positivos relacionados ao período em que ocuparam a Presidência da República). Nesse sentido, o ato de se recontar a realização de algo apresentou-se com o propósito de argumentar em favor de uma determinada opinião, permitindo ao falante jogar com fatos que são enquadrados dentro de uma realidade reportada, aqui empregada como base de realidade, contextualizando sua própria posição e moldando um frame interpretativo para a opinião em questão, amparada muitas vezes na coletividade cultural dos polarizados segmentos que os apoiam. Nos termos da Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), esses argumentos constituem-se daqueles baseados na “estrutura do real”.

De forma simultânea, quase na totalidade das vezes, as narrativas não canônicas empregadas pelos candidatos serviram, estrategicamente, especialmente no caso das entrevistas, para tergiversar o teor central do tópico em curso acionado pelo entrevistador (geralmente também a partir da narração de determinados fatos) durante a elaboração da pergunta, geralmente com temas bastantes sensíveis para as candidaturas em curso, e se esvair para um outro campo mais favorável, quase sempre a partir de uma argumentação baseada na estruturação do real, responsável por colocar em pauta os feitos e fatos descritos no parágrafo anterior.

Observamos ainda, especialmente no caso dos debates, outras funções da narrativa, como aquela destinada a ancorar uma versão conflitante sobre os fatos em questão, desfavorável ao oponente. Em todo caso, no plano das relações subjetivas da argumentação, as narrativas empregadas serviram para performar, por parte dos candidatos, imagens positivas de si, acionando imaginários sociais sociodiscursivos que remetem às diversas categorias de ethos descritas por Charaudeau (2006) para os atores políticos e, no caso dos enfrentamentos verbais, para difamar e desqualificar o adversário.

Por fim, sobretudo no momento das “considerações finais” das entrevistas e debates, o emprego de narrativas não canônicas por parte dos candidatos assumiu a funcionalidade de acenar, estrategicamente, para os segmentos ditos “ideológicos” de seus eleitores, colocados na ponta mais extrema do continuum da polarização centro-esquerda versus direita em curso. Essa funcionalidade da narrativa emerge em todas as performações discursivas do presidente Jair Bolsonaro, tanto na situação de encerramento da entrevista quanto dos debates, e se prestam a dar corpo ao “cimento social” que conecta o candidato aos setores mais conservadores da sociedade brasileira, atrelando novamente sua identidade e sua candidatura aos imaginários populares acionados aos universos morais que circunscrevem tal posicionamento.

Em todo caso, a desconexão entre pergunta e resposta, e o consoante completo desalinhamento entre os oponentes, funda e faz eco à situação de extrema polarização em que se encontram seus eleitores, numa dinâmica aparentemente sem fim, com a narrativa se prestando ao papel de servir, de fato, para pavimentar o curso dos duelos discursivos travados em cada interação apresentada neste artigo, atrelando-se sempre ao embate. Nesse sentido, depois de muitos anos em que foi armado o ringue, o Brasil segue prisioneiro das narrativas conflagradas. Duas forças opostas que se retroalimentam numa dinâmica de sinais trocados, que sequestra o debate e faz dos brasileiros reféns da colisão permanente.


* Fábio Fernando Lima é doutor (2009) e pós-doutor (2013) em Letras pela USP e membro do GRPESq Narrativa e Interação Social – NAVIS. Atualmente, é professor colaborador e bolsista de Pós-Doutorado da FAPERJ na PUC-Rio. Tem publicações nas áreas de Análise do Discurso, Linguística Textual e Linguística Aplicada.

 

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Notas

[1] Em razão dos limites estabelecidos para este trabalho, não nos deteremos, aqui, a apresentar um inventário exaustivo dessas “técnicas argumentativas”. Elas serão devidamente apresentadas na seção de análise, conforme for o caso.

[2] A elaboração da figura de um homem que “tem caráter” emerge no discurso, segundo Charaudeau (2006), a partir de diversas estratégias, tais como a crítica indignada, com suas variantes, a provocação e a polêmica; a força tranquila, serena mas combativa, por meio da qual o político demonstra a força de quem sabe conduzir e o controle de si, o qual denota um caráter equilibrado de quem não se deixa levar por pequenas coisas, além da moderação.

dossiê
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PODE A “POLÍCIA” DA PALAVRA PRODUZIR “POLÍTICA”?

Nos últimos doze anos circulei com muita frequência entre os espaços formais dos movimentos sociais organizados e os espaços de produção de conhecimento nas universidades, assim como prestei atenção, na esfera das redes sociais, aos discursos e posturas das militâncias alinhadas às esquerdas. Tratou-se de uma observação bastante situada (Haraway, 1995), tendo em vista que recuso não somente aquelas posturas descorporificadas de ativista e intelectual, como também abdico de uma oposição ontológica ou essencialista entre essas duas esferas. Isto é, ainda acredito que nosso problema é, sobretudo, epistemológico. Enquanto não produzirmos e circularmos outras formas de saber e conhecimento sobre o mundo, seguiremos sustentando a ficção colonial, branca, cisgênera e heterossexual que tem efeitos reais sobre corpos negros, homossexuais, transexuais, indígenas e empobrecidos.

Ainda assim, ao flanar pelos espaços de militâncias alinhadas à esquerda na web, não foram poucas as vezes que me vi refletindo sobre como muitos termos do seu vocabulário, alguns deles fruto de profunda elaboração intelectual ou ativista, se popularizaram de maneira bastante superficial ou se esvaziaram de sentido nas caixas de comentários, no “textão” do Facebook, nas stories do Instagram ou em threads do Twitter. Termos como problematização, desconstrução, empoderamento, pós-modernidade, liberal, privilégio, empatia, sororidade, representatividade, apropriação cultural, lugar de fala, resiliência e até esquerda são, sem exceção, vocábulos que constituem um glossário que é repetido incansavelmente por indivíduos supostamente politizados e esclarecidos a respeito da partilha desigual do mundo sensível.

Gostaria de conversar sobre os usos desses vocábulos em seu conjunto. Não para defender qualquer preciosismo, como se me dispusesse a criar um manual de como eles deveriam ou não ser empregados nas caixas de comentário. Não serei eu a abraçar essa lógica policialesca. Pois, inclusive, grande parte dessas expressões tem origem no cânone da academia europeia, sendo natural que as mesmas viajem e transmutem através das diástases da colonialidade. Além disso, há casos em que a popularização desses termos exerce uma função pedagógica de tornar alguns problemas sociais mais palpáveis para aquelas pessoas que não estão em círculos acadêmicos ou ativistas. Ainda que a popularização dessas palavras e do debate que as mesmas constituem seja, de algum modo, superficial, o que nos ajuda a compreender fenômenos como “feminismos midiáticos”, nem tudo nessas cenas deve ser jogado na lata de lixo.

Gostaria de contribuir para o debate e tornar mais palpável a compreensão de alguns desses termos a partir de uma posição cruzada: acadêmica e ativista. E, assim, produzir não uma crítica à popularização desses vocábulos enquanto resultado de um processo de politização, mas refletir sobre como eles estão, de maneira hegemônica, constituindo os próprios modos de cognição, de subjetivação e da ação política. Ou, melhor, modos da ação polícia – para usar o termo do filósofo Jacques Rancière (2018). Por modos de ação polícia quero dizer que, muitas vezes, essas expressões foram e ainda são utilizados para fixar modelos de ver e de dizer, para estabelecer narrativas únicas, para alimentar a impotência de liberar a ação política de um desejo totalizante, mais interessado em moralizar a vida e a experiência das pessoas do que realmente politizá-las. Ou, ainda, termos que estabelecem um glossário que, em alguns casos, inviabiliza a vida, a arte, o diálogo e o exercício da política enquanto prática de dissenso. Digo todas essas coisas com um certo receio de sofrer um cancelamento, outro termo bastante em voga nos últimos tempos. No entanto, assumindo esse risco e a provisoriedade do pensamento, vou em direção a eles.

Gostaria de começar por desconstrução. Desconstrução ultrapassou as fronteiras teóricas do pós-estruturalismo, no qual seu uso indicava, inicialmente, a desmontagem ou a decomposição de um texto literário a fim de entender suas estruturas formais, próximo do que também se faz em análises fílmicas baseadas em teorias do cinema e do audiovisual. Porém, num sentido mais amplo, e a partir das reelaborações dos estudos queer sob a influência do pensamento de Jacques Derrida (1973), a desconstrução também é uma estratégia modular através da qual é possível compreender e reorganizar o pensamento ocidental, sempre considerando sua heterogeneidade, suas contradições e suas fissuras que estranham, inclusive, a própria ortodoxia do pensamento filosófico. Tal ideia de desconstrução também contribuiu para a crítica das teorizações queer e das teorias feministas pós-estruturalistas (o trabalho de Judith Butler, por exemplo) em torno da produção da diferença e de uma análise dos processos de normalização social.

No entanto, há um aspecto importante da estratégia de desconstrução, o de sustentar um devir, o de não se enclausurar em uma fórmula ou verdade absoluta. E, talvez, essa complexidade seja o aspecto mais ignorado pelas fórmulas da partilha policial nas redes sociais. Nesta partilha é muito presente, por exemplo, dois polos opostos entre si. O primeiro é quando o sujeito é tão desconstruído que se tornou, também, a rarefação que ignora como diferentes instituições e disciplinas (a psiquiatria, o direito, a pedagogia) seguem operando a regulação dos sujeitos e da materialidade de seus corpos, lhes distribuindo valores distintos, lhes relegando a diferentes espaços sociais e parcialmente condicionando os próprios regimes de agência e subversão. O oposto desse gesto de super-desconstrução, que de tão desconstruído corre o risco de não ver mais classe, nem gênero e nem raça e, portanto, vê tudo branco, masculino e de classe média, é o gesto de usar o termo desconstrução para argumentar, paradoxalmente, que as “estruturas sociais” são sempre soberanas.

Eu costumava acompanhar com avidez as publicações da jornalista Stefanie Cirne sobre militância e feminismos, até o momento em que ela publicou que estava abandonando o debate das militâncias nas redes sociais.  No entanto, antes disso, recordo de uma publicação sua na qual expunha que, quando esse modelo de desconstrução prevalece, tentativas de resistir à unificação e preservar o particular (uma nuance, um indivíduo, um caso específico) viram, dentro de alguns feminismos, “sinais de alienação” e de silenciamento. Nesse momento se abraça, contraditoriamente, o argumento da sociologia canônica no qual as estruturas de gênero e sexo são sempre intransponíveis. Isto é, pouco importa para essa “visão desconstrucionista”, criticava Cirne, se os signos e práticas da feminilidade normativa empoderaram uma mulher. O que importa, nessa perspectiva, é que estruturalmente esses dispositivos de dominação não podem ser empoderadores.

E é aqui que chegamos ao segundo termo: empoderamento. No ano de 2019, Vanessa (Figura 1), vendedora de açaí nas praias do Rio de Janeiro, viralizou com um vídeo no qual conta que foi abordada por um grupo de meninas, a maioria delas branca, que lhe disseram que ela deveria ser uma mulher empoderada. Até então, Vanessa não sabia o que era empoderamento. As meninas lhe disseram que empoderamento era deixar os pelos do corpo crescer, usar cabelo blackpower e evitar os adereços tidos como femininos. No vídeo, acusada de não ser empoderada, Vanessa diz com indignação:

Sinceramente, eu só aprendi essa palavra “empoderada” agora, na internet. Eu nem sabia o que era isso, linda. Eu tinha 12, 13 anos, ninguém falou pra mim: Ah, Vanessa, você tem que ser “empoderada”. Fiz 17 e ninguém mandou eu ser “empoderada”, fiz 18 e ninguém mandou eu ser “empoderada”, fui passando pelas situações da vida sem empoderamento nenhum. Aí, a garota, só porque ela é “empoderada”, na finalidade do sistema nem sei o que é isso, aí vem falar que tenho que ser “empoderada”. Agora, século XXI, “as garota tudo empoderada”, quer ficar ditando empoderamento pros outros. Chega devagar, explica o que é primeiro, filha.

Na finalidade do sistema, Vanessa sabe bem o que é empoderamento para uma mulher negra de sua classe e de sua geração: trabalhar, pagar o aluguel, ter uma vida-lazer. Vanessa também é consciente de que não é correto ditar empoderamento a ninguém. Em um vídeo posterior, disse que se sentiu humilhada e que agora tem lido muita coisa sobre empoderamento. De fato, a miopia geracional, de raça e classe das garotas não foi capaz de explicar para Vanessa o que era empoderamento. Talvez, essas meninas que a abordaram não saibam o que é empoderamento para além do limítrofe mimético das redes sociais e seus círculos de convivência. E esse é o problema: a ignorância é um tipo de saber que lhe dá o poder de acusar uma mulher de não empoderamento, especialmente quando tal ignorância é legitimada por posições privilegiadas de raça e classe.

Figura 1: Print Screen do vídeo de Adriana, vendedora de açaí acusada de não ser “empoderada” (Fonte: Youtube)
Figura 1: Print Screen do vídeo de Adriana, vendedora de açaí acusada de não ser “empoderada” (Fonte: Youtube)

Naturalmente, aqui não há espaço para mapear todos os usos díspares e complementares do termo empoderamento, tendo em vista que desde sua versão luterana o termo remete ao período da Reforma Protestante no século XVI. Foi o momento em que os textos bíblicos, favorecidos pela invenção da imprensa, foram traduzidos do latim para as línguas vernáculas a fim de dar poder à população europeia, isto é, permitir o acesso aos textos bíblicos, é o que conta a pesquisadora Rute Baquero (2012). No entanto, foi na segunda metade do século XX que o termo passeou pela contracultura, pela linguagem corporativa, pelas modulações da psicologia, pelos movimentos de emancipação social como os feminismos e pelas teorizações sobre pedagogia e política do brasileiro Paulo Freire. Na acepção de Freire, como também recorda Baquero, empoderamento não se trata de “dar poder” a uma comunidade ou indivíduo, mas sim de um processo de ação coletiva que se dá na interação entre indivíduos e que desequilibra relações históricas de poder.

Mas também haveria maneiras individuais de se empoderar, desde que esta tenha relação mais ampla com a sociedade e a cultura. Bell Hooks (1995), que lia Paulo Freire com animação, fez isso através da produção intelectual. Segundo ela, foi através do pensamento crítico e analítico que ela se tornou testemunha de si mesma, capaz de analisar as forças que atuavam sobre seu corpo e o corpo de outras mulheres negras. Logo, olhar ao redor, para si e para além do próprio umbigo, possibilita entender como determinados empoderamentos trazem consigo diferentes modos de agência e contingência. O problema é quando os “oprimidos”, na acepção de Freire, se deixam seduzir pelo “poder”. E, às vezes sem se dar por conta da sua condição de hospedeiro dos “valores do opressor”, ou das circunstâncias que lhe tornam “provisoriamente opressor”, reproduzem a mesma estrutura de pensamento.

Ponderar sobre nossos desejos pelo poder e sobre o próprio empoderamento é necessário, mas isso não se torna muito difícil dentro de uma concepção essencialista de esquerda? Desde a Revolução Francesa (1789-1999) e dos bancos do parlamento francês, termos como esquerda e direita vêm descrevendo espectros opostos e complementares. Em linhas gerais, o termo esquerda quase sempre descreveu, em distintos períodos da nossa história compartilhada, as lutas preocupadas com a superação de diferentes desigualdades e injustiças. Especialmente entre o século XVIII e meados do século XX, ele serviu para descrever, quase que de forma hegemônica, as lutas de classe, os movimentos sindicais operários, os ativismos proletários – e também as acepções políticas/econômicas próximas desses espectros – socialismo, marxismo, comunismo.

Foi especialmente durante o século XX que o termo também passou a descrever outros movimentos suprapartidários, a exemplo das lutas ambientalistas, as lutas antirracistas, os feminismos e os movimentos de sexo/gênero dissidentes. O marxismo, por exemplo, foi um componente crucial na composição dos estudos e dos ativismos feministas, queer e antirracistas, vide o trabalho de Gayle Rubin, Joan Scott e Angela Davis. Pois bem, se as esquerdas marxistas ensinaram muito aos estudos e aos ativismos de sexo/gênero dissidentes no século XX, para as pesquisadoras Amanda Palha (2019) e Marília Moshkovich (2019), vivemos em um momento em que as lutas de classe e as teorias marxistas precisam aprender com os estudos e as lutas das mulheres, das pessoas negras, das putas, das bichas e das travestis. “A grande tarefa do marxismo é o sexo”, disse Marília Moshkovich em 2019, afinal, pergunta ela, “por que tanta resistência em abandonar um universal quando sabemos, já, que universalidades não passam de singularidades em posição de poder?” A classe trabalhadora, prossegue Moshkovich, “não é em parte mulher, em parte LGBT; a classe trabalhadora é mulher, é LGBT, assim como é negra, e tudo o que isso implica. O homem cisgênero heterossexual branco é a minoria da minoria entre nossa classe – por que, então, trata-se as questões de gênero e a questão LGBT como ‘particularidades/identidades’ de ‘parte da classe’?”, questiona a socióloga.

Se essa é uma questão complexa para a tradicional intelectualidade branca e masculina das esquerdas, também se trata de uma fratura cognitiva bastante complexa para os militantes dos threads no Twitter. Pois, ali, o sentido da palavra esquerda se reduz a uma cartilha secular. Ser de esquerda é análogo a ser bom, saudável, salubre, verdadeiro, politicamente correto. É uma teia que reúne muitas pessoas apaixonadas pela estética da revolta e pela mitologia da luta do bem contra o mal, mas onde também se aglomera a impotência da autocrítica (o medo de olhar-se no espelho e se reconhecer machista, classista, racista e homo/transfóbico). Ao mesmo tempo, é a teia onde se projeta no outro a própria incapacidade de autocrítica e, por isso, produz intensas doses de cancelamento: o desejo de silenciar o outro porque se descobre que qualquer um pode macular a mitologia do bem contra o mal.

A cognição binária, herança do pensamento moderno, não deixa ninguém ileso, freia processos de aprendizado, aponta dedos em direção ao outro acusando-o com um sem número de jargões como, por exemplo, o de privilegiado. E falar de privilégio no Brasil exige cuidado. Pensei melhor sobre isso ao ver algumas stories no Instagram da jornalista, professora e pesquisadora Fabiana Moraes. Seja através de seus livros e artigos, seja através do compartilhamento de memes, Morais também é uma dessas pessoas que me ajudam a não cair na armadilha absolutista do “iconoclasta da militância na web”. Segundo ela, é claro que é necessário estarmos atentos aos possíveis privilégios de gênero, orientação sexual, raça e classe, inclusive para nos posicionarmos contra injustiças e preconceitos.

Porém, ressalta ela, também é preciso cuidado para não esvaziar a questão, pois, de saída, em um país tão desigual como o Brasil, ter um pouco mais de algo absolutamente necessário te transforma em “privilegiado”. Especialmente no caso brasileiro, é importante não perder de vista a efetivação de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal: nem todos que acessam determinados direitos fundamentais podem ser considerados privilegiados. No entanto, os espaços de debate sobre privilégios que acompanhei em redes sociais não parecem preparados para aceitar a complexidade dessa questão. Como observei nestes últimos anos, especialmente no que diz respeito às discussões sobre privilégio de classe, quando uma pessoa, que possui garantidos alguns direitos fundamentais previstos na constituição, é acusada de privilegiada, a reação dessa pessoa tende a ser moralizante.

Ela não apenas não compreende que, por exemplo, ter coisas básicas como trabalho, casa e comida durante a pandemia do coronavírus não pode ser considerado um privilégio, como se autodemoniza e se culpa por usufruir de direitos básicos garantidos pela constituição. E é aí que perdemos a chance de aprender. Parte-se de uma interpelação superficial que vai ao encontro de uma resposta também superficial, pois nesse caso se esquece que acusação e culpa cristã não são as melhores estratégias para compreender como a tríade raça, Estado e capitalismo podem, infelizmente, transformar direitos fundamentais em “privilégios”. Assim como se tira de campo aquele 1% da população brasileira que, historicamente, sustenta seus altos privilégios à custa da exploração e da pobreza do restante da população. Trata-se de uma palavra que precisa admitir mais de duas variáveis, assim como no caso do termo apropriação cultural.

Uma das intensas polêmicas que acompanhei a respeito da apropriação cultural nos últimos anos envolveu a empresa Havaianas, seu chinelo branco de tiras azuis e a cantora e ex-BBB Manu Gavassi (Figura 2). É um daqueles casos em que, realmente, partilhei da vontade de apenas dizer: “calma lá, descansa, militante”. No entanto, isso não pode ser dito sem algumas reviravoltas argumentativas ou até poéticas. Manu Gavassi foi convidada pela Havaianas, empresa brasileira, a participar de uma de suas campanhas publicitárias. A cantora compartilhou em seu Instagram alguns vídeos e fotos com sua havaiana preferida, aquela nas cores azul e branco, o modelo mais antigo da marca e, também, uma das peças que teriam um preço “módico”.

Em seguida, uma militante muito atuante nas redes sociais, com seu perfil verificado pelo Twitter, publicou: “Manu Gavassi fez parceria com a Havaiana. Havaiana escolhida: azul e branca, é, aquela, dissertem”. E as respostas dadas a esse tweet foram: “isso é apropriação cultural”. Essa troca de tweets é representativa sobre como funciona, hegemonicamente, a ética e a estética cognitiva da militância na web. A militante, antes mesmo de colocar sua percepção da campanha publicitária ao exame da reflexividade, consciente ou inconscientemente, conhece muito bem o pensamento monolítico de seus seguidores e apenas diz: “dissertem”. E aí, então, além da avalanche de críticas contra a “apropriadora”, a militante agrega holofotes em torno do púlpito de um julgamento. Eu aceito, ao menos provisoriamente, que há sentido em conversar sobre como pessoas jovens, brancas e de classe média alta “goumertizam” alguns elementos comuns às classes populares.

O salto que eu não executo, mas que outras pessoas podem executar, inclusive, que salto fascinante, é dizer que Manu Gavassi usando havaianas branca de tiras azuis é um exemplo de apropriação cultural. Uma coisa é lembrar que, na década de 1980, esse modelo branco de tira azul era o que havia de disponível e que ficou conhecido como “chinelo de pedreiro” por ter um valor acessível. Outra é dizer, na segunda década do século XXI, que essa havaiana de preço inflacionado e mundialmente conhecida foi – ou ainda é – um elemento intrínseco à cultura das pessoas pobres no Brasil e que, portanto, trata-se de um elemento genuíno das classes populares sendo apropriado por pessoas de classe média alta. Mas pior que isso é usar apropriação cultural, um termo muito necessário para compreender como a estética é um campo de atuação política importante nas lutas antirracistas, para produzir uma crítica meramente mimética e descontextualizada.

Figura 2: Manu Gavassi em campanha publicitária da empresa Havaianas (Fonte: Havaianas)
Figura 2: Manu Gavassi em campanha publicitária da empresa Havaianas (Fonte: Havaianas)

No entanto, mesmo quando esse debate está localizado nas reflexões sobre antirracismo, o termo apropriação cultural também é reduzido à oposição essencialista entre “coisa de branco” e “coisa de preto” ou, ainda, “pode usar” e “não pode usar”. Murilo Araújo, ativista, pesquisador, gay e negro, em seu canal do Youtube, Muro Pequeno, em alguns momentos me ajudou a desanuviar algumas dessas tensões. Em um de seus vídeos sobre apropriação cultural, Araújo argumenta que, até onde ele próprio consegue estar a par do debate, para compreender o que é apropriação cultural é necessário ter em mente dois critérios. O primeiro é que apropriação cultural tem a ver com os significados culturais, artísticos e religiosos que determinados elementos possuem para populações historicamente estigmatizadas. O segundo critério é que apropriação cultural diz respeito às relações de poder marcadas por categorias como raça, classe, etnia ou religiosidade.

Nesse caso, explica Araújo, para uma ação ser chamada de apropriação cultural, ela precisa, primeiramente, envolver o esvaziamento dos significados que determinados elementos culturais ou religiosos têm para determinado grupo cultural, étnico ou religioso que é historicamente estigmatizado. Em segundo lugar, para entender a apropriação cultural, é preciso pensar no “lugar” que o suposto “apropriador” desses elementos ocupa dentro dos marcadores de raça, classe ou religião. Como pessoas brancas gozam de alguns privilégios em relação às pessoas negras, é permitido que rapazes brancos da Zona Sul do Rio de Janeiro acessem, por exemplo, elementos da cultura Rap ou Hip-Hop sem sofrer sanções. Enquanto isso, um rapaz negro da periferia que utiliza tais elementos que, talvez, façam parte do seu cotidiano e identidade, tem grandes chances de ser abordado de forma truculenta pela polícia.

Este exemplo combina, justamente, os dois critérios expostos por Murilo Araújo: há o esvaziamento de significado desses elementos a partir das relações de poder de raça e classe. Logo, estamos falando de apropriação cultural. No entanto, destaco um dos comentários que o vídeo de Murilo Araújo recebeu de um rapaz que, como ele mesmo diz, é branco, pobre, periférico e desde criança consome Rap e Hip-Hop. No comentário, ele diz que tem sido acusado de apropriação cultural por aqueles que ele chama de “playboyzinhos”.  Ainda que esse rapaz esteja menos sujeito a sofrer sanções ao utilizar elementos da cultura Hip-hop por ser um homem branco, isso por si só não configura apropriação cultural pois, de fato, esses elementos fazem parte de sua vivência e construíram sua subjetividade. Nenhum desses elementos está sendo esvaziado ou banalizado. São casos como este que contribuem para, sempre que possível, tomar como ponto de partida uma contextualização. E não tornar, de saída, a havaiana preferida de Manu Gavassi ou o rapaz loiro de dreads das praias de Florianópolis os bodes expiatórios daquilo que, a depender do sujeito e contexto, não se trata de apropriação cultural.

Mas repito, trata-se de um exercício impossível se você não estiver disposto a vacilar nas próprias certezas quando, por exemplo, você também utiliza o termo lugar de fala. Do mesmo modo como outros termos aqui expostos, o lugar de fala também tem origem, especialmente, nas teorias feministas e nos estudos pós-coloniais da segunda metade do século XX, especificamente em textos como O problema de falar pelos outros (Linda Alcoff, 1992) e Pode o subalterno falar? (Gayatri Spivak, 2010). E há, basicamente, um ponto em comum bastante explicativo entre estes dois textos: questionar a legitimidade quando sujeitos em condições de poder ou em condições de privilégio falam por aqueles sujeitos que experimentam, em suas peles, violências racistas, machistas, homofóbicas ou transfóbicas, tendo em vista que muitas vezes se negou a estes grupos a possibilidade de falar sobre suas próprias experiências.

O que esses dois textos também informam, enquanto nas redes sociais o contrário segue sendo repetido à exaustão, é que aqueles sujeitos que não partilham de determinada experiência subalterna não apenas podem, mas inclusive devem se interessar e se engajar nas questões de raça, gênero e classe a partir das suas posições. Ou melhor, a partir dos seus trânsitos, afinal, também é preciso compreender, como lembra Donna Haraway (1995), que não há como estar em todas as partes, ou inteiramente e somente em uma das posições estruturadas por gênero, raça e classe. Entender isso também evita armadilhas identitárias, afinal, quem segue acreditando que viver é igual a entender (ou que a vivência prática é a única forma de entendimento do mundo) quando nos deparamos, durante o sangrento Governo Bolsonaro, com Damaris Alves e seu Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos!?

A conservadora Damares Alves foi uma mulher/ministra que curta-circuitou uma concepção essencialista e binária de lugar de fala, mas também desvelou a importância de dois movimentos: escutarmos a voz das bichas, das travestis e das mulheres pretas que, para além de serem mulheres ou LGBT, são sujeitos comprometidos em estudar os processos históricos de generificação e racialização; e estarmos abertos para aqueles sujeitos que estão fora dos nossos grupos e que podem contribuir, a partir de suas posições e trânsitos, para a superação dessas violências. Sei que nas redes sociais há falta de tempo, espaço e disposição para discutir sobre esses temas, mas é preciso não abraçar um antiintelectualismo, esse gesto que também é uma marca da minha geração que acessou fóruns e espaços da militância especialmente através da web.

Ainda seria possível se debruçar sobre outras palavras, a exemplo de liberal, resiliência, sororidade e empatia, as quais também pipocam nas redes sociais e, com alguma frequência, constituem polêmicas arrastadas. Todas elas estão, inclusive, sob o escudo do termo problematização. Para Michel Foucault, possivelmente o primeiro a exercitar uma operação conceitual designada por problematização, o termo descrevia um constante olhar analítico que o autor tinha sobre sua própria obra. É o que ele diz em As palavras e as coisas (2002). Para Foucault, parecia importante não fazer do seu pensamento um esquema fechado, no entanto, tendo em vista que a obra foucaultiana produziu intensas genealogias de temas que vão desde a loucura até a sexualidade, assim como de instituições como a prisão, não seria errado dizer que o filósofo francês construiu uma vigorosa problematização de valores, discursos e instituições da sociedade ocidental.

No caso de algumas posturas militantes na web, me parece que todos esses termos e palavras aqui comentados perfazem uma rota de problematização que, em alguns momentos, está mais preocupada com um desejo narcísico e obstinado de produzir qualquer conflito e menos com o de identificar um problema.  Essas práticas me levam a pensar, num gesto explicitamente teórico, sobre paradoxos conceituais. Compreendo que essas cenas polêmicas são fruto, especialmente, de militâncias que podem ser vastamente analisadas pela perspectiva dos Estudos Culturais, dos Estudos pós-estruturalistas, das teorizações pós-modernas, das políticas das identidades. Ainda que todas essas correntes de pensamento tenham suas diferenças teóricas e metodológicas, arrisco aproximá-las na intenção de dizer que todos os termos até aqui comentados jogam essas e outras escolas dentro do grande liquidificador que são as esquerdas contemporâneas. Liquidificador no qual temas como identidade e diferença, discurso e desconstrução, fim das grandes narrativas totalizantes, fragmentação e descentramentos de grupos e sujeitos constituem, todos, um único caldo.

No entanto, isso talvez não seja necessariamente ruim. Ou, ao menos, não tão ruim quanto constatar que, no fundo desse liquidificador, ainda é o caldo de uma racionalidade moderna que sedimenta, nas redes sociais, os usos dessas palavras aqui compiladas e analisadas: uma militância marcada por uma estrutura de pensamento que ainda é quadrada, cartesiana, unilateral, totalizante, binária, masculinista e anti-intelectual. Também por esse motivo, ao longo de minha trajetória, sempre preferi utilizar mais a palavra ativismo e menos a palavra militância. E isso diz mais respeito a uma impressão ótica e tátil (Benjamin, 1996) de que o termo ativismo pode designar um tipo de intervenção política que preserva a prática do dissenso, assim como valoriza a horizontalidade e a autonomia. Já o termo militante, inclusive por sua proximidade como a palavra militar, me parece, mesmo dentro de grupos supostamente progressistas, valorizar a disciplina, o moralismo e a concentração de poder.

Por fim, esse breve ensaio trata-se apenas de uma primeira tentativa, como diria Michel Foucault (1993), de fazer da escrita um intensificador do pensamento, da reflexão uma multiplicadora das formas de intervenção política, da sugestão de que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade. E, sobretudo, que não é preciso ser triste para ser um ativista.


* Dieison Marconi é professor e pesquisador em regime de Pós-Doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com período sanduíche realizado na Universidade Complutense de Madrid, na Espanha. É Mestre em Comunicação e Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria. Como pesquisador, atua no campo da imagem, audiovisual, cinema e experiência estética, sobretudo em uma intersecção com os estudos queer. É autor do livro Ensaios sobre autorias queer no cinema brasileiro contemporâneo (Selo Editorial PPGCOM-UFMG).

 

Referências

ALCOFF, Linda. The Problem of Speaking for Others. In: Cultural Critique, Nº 20, 1991-1992, pp. 5-32.

BAQUERO, Rute. Empoderamento: instrumento de emancipação social? Uma discussão conceitual. Revista Debates, Porto Alegre, v. 6, nº 1, p.173-187, jan.-abr. 2012.

BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume 3. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 103-149.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_________________. O anti-édipo. Uma introdução à vida não fascista; In: Cadernos de Subjetividade, v. 1, nº 1, São Paulo, 1993.

DERRIDA, Jaques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.

HOOKS, bell.  Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 3. p. 464-477, 1995.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5. Campinas, Ed. Unicamp, vol 5, p. 7-41, 1995.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

RANCIÈRE, Jacque. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: 34, 2018.

PALHA, Amanda. Tranfeminismo e a construção revolucionária. In: BUGARELI, Lucas; Marxismo e luta LGBT; Margem Esquerda, São Paulo, Ed Boitempo, vol 33, 2019.

MOSHKOVICH, Marilia. A grande tarefa do marxismo é o sexo. Disponível: blogdaboitempo.com.br.

dossiê
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ÁRVORES, LÍNGUA E HISTÓRIA: UMA ANÁLISE DE TYBYRA

Ao caminharmos em alguma floresta antiga, dessas que existem há milênios, ou que ao menos puderam crescer em paz por algumas centenas de anos, às vezes nos deparamos com pequenos montes de terra, da altura de uma pessoa, ou de uma sobre os ombros da outra, no máximo. No meio da sensação mágica de abafamento da mata antiga – o ar parado, os mosquitos indo e vindo, o completo silêncio pesado como uma coberta de inverno, e o ritmo dos pés estalando camadas de folhas que caíram umas sobre as outras ao longo de anos até que viraram terra macia –, esses montes parecem alheios e externos, como se fossem postos ali por um ato de um deus criança. Frequentemente, esses montes de terra, onde já crescem árvores menores, são acompanhados por um buraco no sopé, em um de seus lados, formando uma espécie de gruta em que muitos animais, como tatus e quatis, cavam suas tocas, ou então onças passam as noites dormindo ali. É estranho que esses pequenos morros não sejam criados e feitos por alguém. Existem, é verdade, montes de sepultamento, em que povos antigos construíam grandes morros de terra para honrar figuras importantes que ali eram enterradas, sendo que a quantidade de solo deslocado demonstrava a importância daquela pessoa. Também há montes geológicos, formados pela erosão, por fricção de placas tectônicas, por pedras enormes que rolam em dias de chuva ou são arrastadas pelas forças de rios em torrente, entre outras tantas possibilidades.

Esses montes, na realidade, são sinais de tempestades de décadas ou de séculos atrás que afetaram aquela floresta. Quando uma tempestade muito forte assola uma região da mata, às vezes os ventos são tão intensos que derrubam as maiores árvores, que muitas vezes resistiram por toda a sua vida contra a ação das tormentas e que, velhas, vencidas pelas formigas, cupins, pelo solo que cede, pela própria força do vento, finalmente tombam. E quando tombam, seus troncos e galhos pesando toneladas derrubam tudo à sua frente, formando uma cicatriz na mata que logo será coberta por árvores menores que nasceram e permaneceram pequenas por muito tempo, esperando sua chance de crescer. Na extremidade oposta da árvore, no entanto, o tronco se derrama sobre o chão, e junto as raízes rompem-se e rompem a terra, erguendo-se parcialmente no ar e trazendo um toição de terra, o qual forma esses montes, amaciados pelo tempo até tornarem-se um outeiro. Se a árvore não resiste, ela morre e ao longo de décadas ela apodrece, criando casa para os mais diversos animais e plantas no meio do caminho, até que por fim ela desaparece, fertilizando o solo onde as árvores menores que tiveram sua chance já se tornaram as novas árvores velhas, e formando os montes que estamos agora estudando na paisagem do mato verde; onde o tronco se unia às raízes, fica um espaço oco que serve de tocas aos animais que citamos; onde as raízes ficam expostas com a terra, fica o lado mais suave desse monte. É incrível como um dia de chuva e vento há tantos e tantos anos pode deixar sinais inscritos na carne da terra e que podem ser lidos como um livro em língua antiga e esquecida, parcialmente compreensível, mas com muitos trechos perdidos e rasgados.

Figura 1: “Forest cemetery”, Ivan Ivanovich Shishkin, 1893 (National Art Museum of the Republic of Belarus, Minsk)
Figura 1: “Forest cemetery”, Ivan Ivanovich Shishkin, 1893 (National Art Museum of the Republic of Belarus, Minsk)

Entretanto, frequentemente essas mesmas árvores, ainda que velhas e prejudicadas pelo tempo, continuam a viver. Seu tronco tomba sobre a floresta, abrindo uma nova clareira. A maior parte de seus galhos seca e suas raízes ficam expostas no ar, junto à terra revolvida. Quase todo o seu tronco seca e apodrece, mas uma pequena parte sobrevive, lançando novos galhos que, mesmo que não retornem à altura majestosa que a árvore tinha anteriormente, são testemunha de sua força de vida, postando-se humildes junto às árvores mais novas. As raízes no ar secam e se tornam casas para marimbondos e besouros, mas a parte das raízes que permaneceu no solo continua a crescer e se desenvolver. Também é assim com poemas, povos e falas indígenas, ou ao menos é o que imagino quando leio Tybyra.

Juão Nyn e seu povo já são por si mesmos uma dessas árvores que lutaram por viver. Morando no Rio Grande do Norte, uma das áreas de início do contato entre os primeiros comerciantes e exploradores, incumbidos da tarefa da conquista, Juão e sua comunidade não se consideravam indígenas, sujeitos às pressões da colonização. Se víssemos externamente, pareceriam como uma árvore morta, como tantas que de fato pereceram nessa espécie de paisagem natural e colonial do Brasil. Mas restaram raízes vivas no solo, ainda que as outras tenham morrido e sido expostas à ação da erosão, e houve galhos que se mantiveram verdes e florescendo. Os Potiguara, (também) do tronco Tupi, pegaram emprestada a fala da outra ponta de seu tronco linguístico Tupi-Guarani para retomar sua língua e, aos poucos, aquele povo e o autor citado renovaram sua língua e seus costumes, como brasas mexidas na fogueira ou então a clareira exposta após a tempestade, aberta a todas as novas formas de vida.

Nyn, artista Potiguara, estudou teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atuando e dirigindo várias peças desde 2014 e, a partir de 2018, começou a escrever suas próprias obras, enfocando, de maneira geral, o tema de sua ancestralidade indígena. Escreveu, em 2020, Tybyra, uma tragédia indígena brasileira, peça centrada no personagem Tybyra, que aparece em um monólogo dividido em atos – chamados de luzes. Tybyra, resumidamente, foi um indígena Tupinambá executado em 1614 por colonizadores franceses, conforme aparece na narrativa de Yves d’Évreux, que conta seu relato a partir de seu ponto de vista religioso, em Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614 (D’Évreux, 2002 [1844]). Especula-se que a morte do indígena tenha decorrido de uma acusação de sodomia, apesar de não se afirmar claramente no trecho. O Tupinambá, quando foi acusado e condenado, solicitou o batismo e, neste momento, o padre afirma que, após sua morte, “se quiseres ter no Céu os cabelos compridos e o corpo de mulher antes que o de um homem, pede a Tupã que te dê o corpo de mulher e ressuscitarás mulher, e lá no Céu ficará ao lado das mulheres e não dos homens” (D’Évreux, 2002, p. 232). Isto é, é presumível que o indígena fosse uma pessoa transsexual ou homossexual, sendo que alguns comentaristas associam o relato desse indígena executado com outro relato posterior, em que o frade francês narra que havia um indígena hermafrodita na ilha de Juniparã, apesar de essa conexão não ser explícita no texto. Tybyra, de qualquer modo, foi perseguido pelos franceses e executado a tiro de canhão – e esse relato de perseguição, julgamento religioso e execução foi gravado na historiografia colonial. Por conta disso, Tybyra tem sido visto como a primeira vítima de homofobia no Brasil.

Além disso, a peça explora o corpo e sua relação com elementos naturais de maneira muito aprofundada: os atos se chamam luzes, as quais, ao longo de cada seção da peça, iluminam determinada parte do corpo do ator, até que, no último ato, todo o corpo é revelado de uma única vez. Do mesmo modo, há trechos dedicados a cantar a natureza, como os nomes das árvores nativas, ou o som de rio corrente enquanto transcorre o monólogo. Entre outros elementos, há o canhão, no último ato, que executa o indígena. Mas, não por acaso, o tiro do canhão e a morte do personagem são postos em suspenso, e a peça, na realidade, é finalizada não com a execução e a violência colonial, mas sim com um discurso inflamado e premonitório de Tybyra, com a tônica final, novamente, na imagem, no corpo e na fala do indígena, e não nas ações ou falas colonizadoras – um exato reverso da obra do frade Yves d’Évreux, que salienta os atos impuros de Tybyra, seu batismo e sua morte.

Juão ainda apresentou outras invenções em sua peça, como a língua falada por todo o monólogo: o Potyguês. Mistura do Tupi-Guarani, em que a semivogal Y tem ampla presença, com a língua portuguesa, esse novo idioma indianiza e demarca a língua do colonizador, moldando-a a novos sentidos menos coloniais e mais afeitos ao sentido indígena. Mantendo as metáforas vegetais, é como realizar um enxerto: nessa operação, cortamos um pedaço de uma planta e inserimos em outra planta já cortada, amarrando bem as duas partes. Se tudo der certo, as duas plantas (independentemente de serem indivíduos diferentes ou de espécie distinta) podem se desenvolver e criar um híbrido em que a parte enxertada recebe a força da planta original, geralmente mais forte e resistente. No caso de Tybyra, o Potyguês tem a força do Y, do silêncio, do deslocamento causado ao lermos e ouvirmos palavras que são quase indígenas, quase portuguesas. A mistura descentra as duas línguas e cria um híbrido que nos dá a sensação de que mudanças são possíveis, de que as línguas e histórias coloniais não são estanques ou imunes à influência dos colonizados.

Figura 2: Índios usando um tronco de árvore caída para atravessar o Rio Paraíba do Sul, ilustração de <em>Voyage Pittoresque et Historique au Brésil</em>, de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), publicado em Paris, 1839
Figura 2: Índios usando um tronco de árvore caída para atravessar o Rio Paraíba do Sul, ilustração de Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), publicado em Paris, 1839

Para Nyn, o Y por si só já é uma vogal produzida no fundo da garganta, quase próxima ao silêncio, como as tocas onde os tatus e as onças dormem à noite, recobertos pela mata abafada. Na linguagem de Nyn, vemos que há uma língua menor, na acepção de Deleuze (2014), em seu espaço criativo desterritorializado: Nyn resgata o “y”, que vê como uma semivogal vinda da profundeza e da gruta, como uma maneira de dar peso à linguagem de Tybyra. As palavras do português perdem seu caráter de língua do colonizador e ganham a profundidade e o lastro temporal vindos da imagem da gruta, do fundo da garganta. O próprio autor e sua comunidade vivem esse processo, ao passarem a aprender e a falar o Guarani, tendo nascido falantes do português. Esse espaço de descoberta da língua e de, por contraste, nova percepção da língua materna e colonizadora transparece na própria obra e atinge cada leitor, como se cada um também devesse (ou pudesse naquele momento) ler/ouvir a língua portuguesa de outra maneira, vendo nela suas possibilidades de transformar-se em um enxerto entre português e Tupi-Guarani.

Em Tybyra, o silêncio é o interlocutor por excelência, pois a peça se constitui por poucos elementos: o monólogo de Tybyra, as luzes que demarcam partes do corpo dos atores e que denominam os próprios atos, a tinta sobre a pele, os sons de mato e água e, essencialmente, a fala. É uma fala truncada, dirigida a um silêncio persistente, marcada por avaliações, convites, reclamações, ironias, beliscões, deboches e prazeres, em que acompanhamos a história de Tybyra. Nela vemos esse contato colonizador-colonizado, quando esses termos ainda nem eram postos, em uma relação regida pelo prazer da descoberta e do encontro sexual, não problematizado por Tybyra, mas que se transforma, para os colonizadores europeus, em recalque, culpa e raiva.

No diálogo da peça, o interlocutor implícito, o silêncio, se torna frequentemente esse colonizador do passado e, por desdobramento, se transforma na imaginação da plateia e, por fim, na própria plateia, que percebe a si mesma no silêncio do passado a que Tybyra se dirige, uma mistura entre as figuras dos colonizadores como interlocutores e a audiência. Um silêncio marcado pela vergonha, pela negação da vontade e do prazer, o silêncio de preconceito, das ameaças e pecados que se tornaram parte do nosso pensamento, e que ocupa o fundo de nossas mentes. Por isso a importância de falar em uma nova linguagem, uma linguagem que descentra e desconcerta e que permite identificar e nomear esse silêncio do interlocutor a que Tybyra se dirige e se tornou parte de nós, culpando, tolhendo e punindo os prazeres, vontades e, de maneira mais concreta, os corpos e povos indígenas.

É necessário ainda ressaltar o papel da ironia e do chiste na peça Tybyra. Como frequentemente aparece em obras indígenas, a ironia tem papel central, ao afirmar o oposto do que se aparenta dizer, ao criar jogos de palavras em que o verdadeiro significado se esconde sob a face do humor e pode ali ser apreendido sem um embate direto. É claro que, em Tybyra, há falas diretas, confrontos com esse outro silencioso e colonizador; entretanto, o humor e a ironia aparecem com mais força na obra, como piadas e deboches sobre o que está escondido. Não por acaso, essa ironia é dirigida aos desejos e ações do colonizador, que transforma sua sexualidade – ao tolhê-la, puni-la e castrá-la – em agressividade e violência. Freud (1980) comentava que o chiste, a ironia e o humor em geral são meios de se conseguir liberar tensões e recalques sem precisar entrar em um conflito direto com eles, o que é muito custoso psiquicamente e que se pode resolver com muito mais facilidade e vantagem para o locutor por meio da ironia, do duplo sentido, do chiste, da piada. Ao mesmo tempo, também parece ser uma forma com que Nyn opera para evitar conflitos diretos entre Tybyra e o colonizador e, extrapolando, entre o indígena colonizado e o colonizador, talvez porque ainda não haja um jogo de forças suficiente para que as coisas possam ser ditas com clareza e justeza sem prejuízo a quem fala a verdade.

Nyn aponta a crueza da modernidade, vista aqui em seu viés colonial, heteronormativo e violento, por meio da regulação do prazer, da língua e da instituição do processo (Tybyra é preso, ouvido e condenado). Seus crimes são confessados, admitidos, redimidos (pelo batismo e pela execução). Nyn aposta em uma transformação vegetal e em metáforas de crescimento e temporalidade: ao desnudar seu personagem e iluminá-lo gradativamente, chamando seus atos de luzes e intercalando com raízes e sons de água, e colocando-lhe no fundo da boca novas palavras que não são nem português nem Potiguara, o autor transforma Tybyra em árvore e em potencialidade criativa. Nyn, desse modo, usa sua linguagem enxertada e demarcada como uma maneira de reformular o passado que criou a própria modernidade. O autor desenvolve, no futuro, a voz de Tybyra e cria um meio de reescrever a história colonial, abrindo a possibilidade de alterar o próprio futuro – por isso as imagens vegetais, de árvores, plantas, raízes crescendo, se desenvolvendo, multiplicando-se, são tão relevantes na peça. A árvore como um signo do passado e do futuro, juntos, tanto na linguagem quanto na narrativa de Tybyra e em seu significado como indígena LGBT. Tybyra, de certa maneira, escapa da bala de canhão que o dividiu ao meio – bala esta que é o término do relato feito por d’Évreux e que, sintomaticamente, é retirada da obra de Nyn justamente para evitar a apoteose da prática colonial, o prazer e o gozo que, inconscientemente, poderiam afluir à plateia ao ver a morte do indivíduo questionador a fim de, assim, retomar um status quo. No lugar disso, Tybyra vira árvore e semente, como ele mesmo coloca em seu monólogo final. É como se o enxerto do português no Tupi-Guarani formasse uma árvore estranha, mas talvez mais forte e produtiva do que seriam individualmente cada uma das línguas em separado, e que consegue ultrapassar os relatos de violência e unir um passado pré-colonial às possibilidades de um futuro (as sementes) em que a única lógica não seja uma espécie de monocultura colonial.

Resgatando a história inicial deste ensaio, os montes dos quais falei anteriormente ainda existem nas matas, e as grandes árvores de raízes no ar com seus pequenos brotos ainda existem, apesar dos dois serem cada vez mais raros pelo fato de as próprias matas antepassadas serem cada vez mais raras em todo o Brasil. Para limpar o mato e possibilitar o plantio da lavoura, um método bastante comum usado em áreas densamente florestadas é a passagem do correntão, em que dois tratores, postos em paralela, são unidos por uma enorme corrente de metal, com força suficiente para derrubar tudo. Todas as árvores tombam, e depois as maiores são serradas e vendidas, abandonando as menores no local, e depois a terra é queimada, reduzida a cinzas. Os tocos restantes são destocados e a terra torna-se pasto ou lavoura. Gradativamente, com o passar das décadas, a força e a fertilidade da terra esmorecem, e aparecem imensas manchas de solo nu, arenoso e pobre. E os montes, em seus pequenos relevos em forma de outeiro, são aplainados e desaparecem, porque dificultam a passagem de caminhões, colheitadeiras, sementeiras e pivôs. As frases do antigo livro da terra já não podem ser lidas, pois tudo se tornou um único grande continuum de lavoura, boi, pasto, cortado por uma estrada de terra vermelha. O mesmo processo ocorreu, poderíamos dizer, em relação às vivências indígenas, negras, quilombolas e de outros povos em nosso país: o correntão serviu para derrubar as línguas (inclusive seus troncos linguísticos), fazê-las desaparecer, deixar de serem faladas, praticadas e lembradas. Os povos foram reduzidos à categoria de periféricos, de vilas que servem para serem controladas e manejadas por um poder local, com pobres endividados e presos à sobrevivência. Mas por vezes essas árvores se mantêm vivas, com seus brotos, e um desses brotos poderia ser a peça de Nyn e seu Potyguês.

Se, nas línguas menores que os artistas encontram – seja a língua de um autor judio e desterritorializado como Kafka, de que trata Deleuze (2014), seja como indígenas que perderam suas terras e seus direitos e buscam retomá-los –, existe um espaço de enxertos, transformações, chistes e brechas, que serve tanto para reformular a linguagem quanto a própria lógica dominante, que pode ser melhor vista através da estranheza, Nyn consegue criar o espaço do reencantamento. Por oposição, a política do desencante (Rufino, Simas, 2011) seria a produção de escassez e mortandade, a administração burocrática da vida, a hierarquização dos seres e a lógica colonial e racional. Essa política, além disso, ignora, tolhe e uniformiza outras lógicas que giram em torno do encantamento, como a integração e interlocução entre diferentes seres vivos, a indissolubilidade entre material e espiritual, racional e irracional, entre outras lógicas que perpassam a modernidade (Goldman, Lima, 1999) e que não se guiam por divisões como racional/irracional, natureza/cultura ou material/espiritual, que retiram do mundo a interligação dos seres vivos, os conhecimentos de povos tradicionais que pensam de outra maneira o tempo. Esse universo de desencante – universo narrado pelos escritores modernos e que culmina na obra de Kafka, entre outros – é questionado por Nyn ao possibilitar modos de contornar e reformular o desencante colonial, a violência e a lógica que podem sim ser reescritas, reimaginadas e rememoradas. A imaginação criativa não se dirige a um espaço melancólico de transformações negativas, unidas pela incompreensão, inação ou incomunicabilidade, mas sim a um espaço de produção positiva das narrativas presentes, passadas e futuras.

Juão Nyn (2020, p. 07) comenta no início de seu livro que os povos indígenas sonham a arte e vivem o sonho, e que fazer arte é um ato coletivo e espiritual. Essa prática permite ver na criação artística um modo de gerar não uma representação sobre o mundo, isto é, um discurso externo do artista sobre os objetos, mas sim uma forma de inscrição do humano sobre os objetos em si, ou então da criação de um novo objeto-sujeito em meio a outros objetos-sujeitos, como Tybyra, que é árvore, antepassado cuja história foi criada no presente e que se tornou uma história de um antepassado. A árvore não como um sinal régio de autoridade, ordem e hierarquia, como esse símbolo opera no Ocidente (podemos pensar no formato árvore da cruz, na presença da árvore como símbolo da nobreza ou da antiguidade do poder, da autoridade que se ergue sobre os demais, como Deleuze [1995] estudou), mas a árvore como símbolo do tempo e do coletivo, como um ser em meio a outros seres, formado pela união dos que crescem juntos, unindo o passado (raízes e tronco) com futuro (flores e sementes). Essa árvore que serve como portal ao passado e ao futuro, e que é corporalizada em Tybyra, morto e transformado, por assim dizer, em árvore e semente aos filhos e netos da posteridade, como o próprio Nyn coloca. Nesse espaço, o sonho vira arte, e arte vira vida: a obra de Nyn é factualmente posterior às de D’Évreux, as falas de Tybyra nunca poderiam ser resgatadas segundo a lógica do desencante, apenas suas ações vistas pela voz colonial (que não era silenciosa na época).

Mas Tybyra e a narrativa da peça se tornam uma nova realidade, como sua linguagem enxertada, como se retomassem a terra do passado e tornassem real a voz que não havia sido falada, mas que agora é uma realidade concreta. Nesse jogo entre passado, presente e futuro, podemos inclusive retomar a noção Aymara, trabalhada por Cusicanqui (2010), do “qhipnayra uñtasis sarnaqapxañani”, ou seja, o passado que poderia ser o futuro, que vive nos sonhos e atualiza utopias. Esse passado que se torna realidade e que abre novas portas ao presente e também ao futuro, como a árvore que estava e estará, que provoca o sonho, é semente e tronco, é vida e gera vida, mesmo que tombada, com as raízes no ar e brotos lutando pelo sol.


* Eduardo Schaan é doutorando em Estudos Literários na UFRGS, organizador e produtor da Tela Indígena, grupo que produz eventos, filmes, exposições, entre outros, sobre a temática indígena no Brasil.

 

Referências

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