Ano XVIII 01
dossiê
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PODE A “POLÍCIA” DA PALAVRA PRODUZIR “POLÍTICA”?

Nos últimos doze anos circulei com muita frequência entre os espaços formais dos movimentos sociais organizados e os espaços de produção de conhecimento nas universidades, assim como prestei atenção, na esfera das redes sociais, aos discursos e posturas das militâncias alinhadas às esquerdas. Tratou-se de uma observação bastante situada (Haraway, 1995), tendo em vista que recuso não somente aquelas posturas descorporificadas de ativista e intelectual, como também abdico de uma oposição ontológica ou essencialista entre essas duas esferas. Isto é, ainda acredito que nosso problema é, sobretudo, epistemológico. Enquanto não produzirmos e circularmos outras formas de saber e conhecimento sobre o mundo, seguiremos sustentando a ficção colonial, branca, cisgênera e heterossexual que tem efeitos reais sobre corpos negros, homossexuais, transexuais, indígenas e empobrecidos.

Ainda assim, ao flanar pelos espaços de militâncias alinhadas à esquerda na web, não foram poucas as vezes que me vi refletindo sobre como muitos termos do seu vocabulário, alguns deles fruto de profunda elaboração intelectual ou ativista, se popularizaram de maneira bastante superficial ou se esvaziaram de sentido nas caixas de comentários, no “textão” do Facebook, nas stories do Instagram ou em threads do Twitter. Termos como problematização, desconstrução, empoderamento, pós-modernidade, liberal, privilégio, empatia, sororidade, representatividade, apropriação cultural, lugar de fala, resiliência e até esquerda são, sem exceção, vocábulos que constituem um glossário que é repetido incansavelmente por indivíduos supostamente politizados e esclarecidos a respeito da partilha desigual do mundo sensível.

Gostaria de conversar sobre os usos desses vocábulos em seu conjunto. Não para defender qualquer preciosismo, como se me dispusesse a criar um manual de como eles deveriam ou não ser empregados nas caixas de comentário. Não serei eu a abraçar essa lógica policialesca. Pois, inclusive, grande parte dessas expressões tem origem no cânone da academia europeia, sendo natural que as mesmas viajem e transmutem através das diástases da colonialidade. Além disso, há casos em que a popularização desses termos exerce uma função pedagógica de tornar alguns problemas sociais mais palpáveis para aquelas pessoas que não estão em círculos acadêmicos ou ativistas. Ainda que a popularização dessas palavras e do debate que as mesmas constituem seja, de algum modo, superficial, o que nos ajuda a compreender fenômenos como “feminismos midiáticos”, nem tudo nessas cenas deve ser jogado na lata de lixo.

Gostaria de contribuir para o debate e tornar mais palpável a compreensão de alguns desses termos a partir de uma posição cruzada: acadêmica e ativista. E, assim, produzir não uma crítica à popularização desses vocábulos enquanto resultado de um processo de politização, mas refletir sobre como eles estão, de maneira hegemônica, constituindo os próprios modos de cognição, de subjetivação e da ação política. Ou, melhor, modos da ação polícia – para usar o termo do filósofo Jacques Rancière (2018). Por modos de ação polícia quero dizer que, muitas vezes, essas expressões foram e ainda são utilizados para fixar modelos de ver e de dizer, para estabelecer narrativas únicas, para alimentar a impotência de liberar a ação política de um desejo totalizante, mais interessado em moralizar a vida e a experiência das pessoas do que realmente politizá-las. Ou, ainda, termos que estabelecem um glossário que, em alguns casos, inviabiliza a vida, a arte, o diálogo e o exercício da política enquanto prática de dissenso. Digo todas essas coisas com um certo receio de sofrer um cancelamento, outro termo bastante em voga nos últimos tempos. No entanto, assumindo esse risco e a provisoriedade do pensamento, vou em direção a eles.

Gostaria de começar por desconstrução. Desconstrução ultrapassou as fronteiras teóricas do pós-estruturalismo, no qual seu uso indicava, inicialmente, a desmontagem ou a decomposição de um texto literário a fim de entender suas estruturas formais, próximo do que também se faz em análises fílmicas baseadas em teorias do cinema e do audiovisual. Porém, num sentido mais amplo, e a partir das reelaborações dos estudos queer sob a influência do pensamento de Jacques Derrida (1973), a desconstrução também é uma estratégia modular através da qual é possível compreender e reorganizar o pensamento ocidental, sempre considerando sua heterogeneidade, suas contradições e suas fissuras que estranham, inclusive, a própria ortodoxia do pensamento filosófico. Tal ideia de desconstrução também contribuiu para a crítica das teorizações queer e das teorias feministas pós-estruturalistas (o trabalho de Judith Butler, por exemplo) em torno da produção da diferença e de uma análise dos processos de normalização social.

No entanto, há um aspecto importante da estratégia de desconstrução, o de sustentar um devir, o de não se enclausurar em uma fórmula ou verdade absoluta. E, talvez, essa complexidade seja o aspecto mais ignorado pelas fórmulas da partilha policial nas redes sociais. Nesta partilha é muito presente, por exemplo, dois polos opostos entre si. O primeiro é quando o sujeito é tão desconstruído que se tornou, também, a rarefação que ignora como diferentes instituições e disciplinas (a psiquiatria, o direito, a pedagogia) seguem operando a regulação dos sujeitos e da materialidade de seus corpos, lhes distribuindo valores distintos, lhes relegando a diferentes espaços sociais e parcialmente condicionando os próprios regimes de agência e subversão. O oposto desse gesto de super-desconstrução, que de tão desconstruído corre o risco de não ver mais classe, nem gênero e nem raça e, portanto, vê tudo branco, masculino e de classe média, é o gesto de usar o termo desconstrução para argumentar, paradoxalmente, que as “estruturas sociais” são sempre soberanas.

Eu costumava acompanhar com avidez as publicações da jornalista Stefanie Cirne sobre militância e feminismos, até o momento em que ela publicou que estava abandonando o debate das militâncias nas redes sociais.  No entanto, antes disso, recordo de uma publicação sua na qual expunha que, quando esse modelo de desconstrução prevalece, tentativas de resistir à unificação e preservar o particular (uma nuance, um indivíduo, um caso específico) viram, dentro de alguns feminismos, “sinais de alienação” e de silenciamento. Nesse momento se abraça, contraditoriamente, o argumento da sociologia canônica no qual as estruturas de gênero e sexo são sempre intransponíveis. Isto é, pouco importa para essa “visão desconstrucionista”, criticava Cirne, se os signos e práticas da feminilidade normativa empoderaram uma mulher. O que importa, nessa perspectiva, é que estruturalmente esses dispositivos de dominação não podem ser empoderadores.

E é aqui que chegamos ao segundo termo: empoderamento. No ano de 2019, Vanessa (Figura 1), vendedora de açaí nas praias do Rio de Janeiro, viralizou com um vídeo no qual conta que foi abordada por um grupo de meninas, a maioria delas branca, que lhe disseram que ela deveria ser uma mulher empoderada. Até então, Vanessa não sabia o que era empoderamento. As meninas lhe disseram que empoderamento era deixar os pelos do corpo crescer, usar cabelo blackpower e evitar os adereços tidos como femininos. No vídeo, acusada de não ser empoderada, Vanessa diz com indignação:

Sinceramente, eu só aprendi essa palavra “empoderada” agora, na internet. Eu nem sabia o que era isso, linda. Eu tinha 12, 13 anos, ninguém falou pra mim: Ah, Vanessa, você tem que ser “empoderada”. Fiz 17 e ninguém mandou eu ser “empoderada”, fiz 18 e ninguém mandou eu ser “empoderada”, fui passando pelas situações da vida sem empoderamento nenhum. Aí, a garota, só porque ela é “empoderada”, na finalidade do sistema nem sei o que é isso, aí vem falar que tenho que ser “empoderada”. Agora, século XXI, “as garota tudo empoderada”, quer ficar ditando empoderamento pros outros. Chega devagar, explica o que é primeiro, filha.

Na finalidade do sistema, Vanessa sabe bem o que é empoderamento para uma mulher negra de sua classe e de sua geração: trabalhar, pagar o aluguel, ter uma vida-lazer. Vanessa também é consciente de que não é correto ditar empoderamento a ninguém. Em um vídeo posterior, disse que se sentiu humilhada e que agora tem lido muita coisa sobre empoderamento. De fato, a miopia geracional, de raça e classe das garotas não foi capaz de explicar para Vanessa o que era empoderamento. Talvez, essas meninas que a abordaram não saibam o que é empoderamento para além do limítrofe mimético das redes sociais e seus círculos de convivência. E esse é o problema: a ignorância é um tipo de saber que lhe dá o poder de acusar uma mulher de não empoderamento, especialmente quando tal ignorância é legitimada por posições privilegiadas de raça e classe.

Figura 1: Print Screen do vídeo de Adriana, vendedora de açaí acusada de não ser “empoderada” (Fonte: Youtube)
Figura 1: Print Screen do vídeo de Adriana, vendedora de açaí acusada de não ser “empoderada” (Fonte: Youtube)

Naturalmente, aqui não há espaço para mapear todos os usos díspares e complementares do termo empoderamento, tendo em vista que desde sua versão luterana o termo remete ao período da Reforma Protestante no século XVI. Foi o momento em que os textos bíblicos, favorecidos pela invenção da imprensa, foram traduzidos do latim para as línguas vernáculas a fim de dar poder à população europeia, isto é, permitir o acesso aos textos bíblicos, é o que conta a pesquisadora Rute Baquero (2012). No entanto, foi na segunda metade do século XX que o termo passeou pela contracultura, pela linguagem corporativa, pelas modulações da psicologia, pelos movimentos de emancipação social como os feminismos e pelas teorizações sobre pedagogia e política do brasileiro Paulo Freire. Na acepção de Freire, como também recorda Baquero, empoderamento não se trata de “dar poder” a uma comunidade ou indivíduo, mas sim de um processo de ação coletiva que se dá na interação entre indivíduos e que desequilibra relações históricas de poder.

Mas também haveria maneiras individuais de se empoderar, desde que esta tenha relação mais ampla com a sociedade e a cultura. Bell Hooks (1995), que lia Paulo Freire com animação, fez isso através da produção intelectual. Segundo ela, foi através do pensamento crítico e analítico que ela se tornou testemunha de si mesma, capaz de analisar as forças que atuavam sobre seu corpo e o corpo de outras mulheres negras. Logo, olhar ao redor, para si e para além do próprio umbigo, possibilita entender como determinados empoderamentos trazem consigo diferentes modos de agência e contingência. O problema é quando os “oprimidos”, na acepção de Freire, se deixam seduzir pelo “poder”. E, às vezes sem se dar por conta da sua condição de hospedeiro dos “valores do opressor”, ou das circunstâncias que lhe tornam “provisoriamente opressor”, reproduzem a mesma estrutura de pensamento.

Ponderar sobre nossos desejos pelo poder e sobre o próprio empoderamento é necessário, mas isso não se torna muito difícil dentro de uma concepção essencialista de esquerda? Desde a Revolução Francesa (1789-1999) e dos bancos do parlamento francês, termos como esquerda e direita vêm descrevendo espectros opostos e complementares. Em linhas gerais, o termo esquerda quase sempre descreveu, em distintos períodos da nossa história compartilhada, as lutas preocupadas com a superação de diferentes desigualdades e injustiças. Especialmente entre o século XVIII e meados do século XX, ele serviu para descrever, quase que de forma hegemônica, as lutas de classe, os movimentos sindicais operários, os ativismos proletários – e também as acepções políticas/econômicas próximas desses espectros – socialismo, marxismo, comunismo.

Foi especialmente durante o século XX que o termo também passou a descrever outros movimentos suprapartidários, a exemplo das lutas ambientalistas, as lutas antirracistas, os feminismos e os movimentos de sexo/gênero dissidentes. O marxismo, por exemplo, foi um componente crucial na composição dos estudos e dos ativismos feministas, queer e antirracistas, vide o trabalho de Gayle Rubin, Joan Scott e Angela Davis. Pois bem, se as esquerdas marxistas ensinaram muito aos estudos e aos ativismos de sexo/gênero dissidentes no século XX, para as pesquisadoras Amanda Palha (2019) e Marília Moshkovich (2019), vivemos em um momento em que as lutas de classe e as teorias marxistas precisam aprender com os estudos e as lutas das mulheres, das pessoas negras, das putas, das bichas e das travestis. “A grande tarefa do marxismo é o sexo”, disse Marília Moshkovich em 2019, afinal, pergunta ela, “por que tanta resistência em abandonar um universal quando sabemos, já, que universalidades não passam de singularidades em posição de poder?” A classe trabalhadora, prossegue Moshkovich, “não é em parte mulher, em parte LGBT; a classe trabalhadora é mulher, é LGBT, assim como é negra, e tudo o que isso implica. O homem cisgênero heterossexual branco é a minoria da minoria entre nossa classe – por que, então, trata-se as questões de gênero e a questão LGBT como ‘particularidades/identidades’ de ‘parte da classe’?”, questiona a socióloga.

Se essa é uma questão complexa para a tradicional intelectualidade branca e masculina das esquerdas, também se trata de uma fratura cognitiva bastante complexa para os militantes dos threads no Twitter. Pois, ali, o sentido da palavra esquerda se reduz a uma cartilha secular. Ser de esquerda é análogo a ser bom, saudável, salubre, verdadeiro, politicamente correto. É uma teia que reúne muitas pessoas apaixonadas pela estética da revolta e pela mitologia da luta do bem contra o mal, mas onde também se aglomera a impotência da autocrítica (o medo de olhar-se no espelho e se reconhecer machista, classista, racista e homo/transfóbico). Ao mesmo tempo, é a teia onde se projeta no outro a própria incapacidade de autocrítica e, por isso, produz intensas doses de cancelamento: o desejo de silenciar o outro porque se descobre que qualquer um pode macular a mitologia do bem contra o mal.

A cognição binária, herança do pensamento moderno, não deixa ninguém ileso, freia processos de aprendizado, aponta dedos em direção ao outro acusando-o com um sem número de jargões como, por exemplo, o de privilegiado. E falar de privilégio no Brasil exige cuidado. Pensei melhor sobre isso ao ver algumas stories no Instagram da jornalista, professora e pesquisadora Fabiana Moraes. Seja através de seus livros e artigos, seja através do compartilhamento de memes, Morais também é uma dessas pessoas que me ajudam a não cair na armadilha absolutista do “iconoclasta da militância na web”. Segundo ela, é claro que é necessário estarmos atentos aos possíveis privilégios de gênero, orientação sexual, raça e classe, inclusive para nos posicionarmos contra injustiças e preconceitos.

Porém, ressalta ela, também é preciso cuidado para não esvaziar a questão, pois, de saída, em um país tão desigual como o Brasil, ter um pouco mais de algo absolutamente necessário te transforma em “privilegiado”. Especialmente no caso brasileiro, é importante não perder de vista a efetivação de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal: nem todos que acessam determinados direitos fundamentais podem ser considerados privilegiados. No entanto, os espaços de debate sobre privilégios que acompanhei em redes sociais não parecem preparados para aceitar a complexidade dessa questão. Como observei nestes últimos anos, especialmente no que diz respeito às discussões sobre privilégio de classe, quando uma pessoa, que possui garantidos alguns direitos fundamentais previstos na constituição, é acusada de privilegiada, a reação dessa pessoa tende a ser moralizante.

Ela não apenas não compreende que, por exemplo, ter coisas básicas como trabalho, casa e comida durante a pandemia do coronavírus não pode ser considerado um privilégio, como se autodemoniza e se culpa por usufruir de direitos básicos garantidos pela constituição. E é aí que perdemos a chance de aprender. Parte-se de uma interpelação superficial que vai ao encontro de uma resposta também superficial, pois nesse caso se esquece que acusação e culpa cristã não são as melhores estratégias para compreender como a tríade raça, Estado e capitalismo podem, infelizmente, transformar direitos fundamentais em “privilégios”. Assim como se tira de campo aquele 1% da população brasileira que, historicamente, sustenta seus altos privilégios à custa da exploração e da pobreza do restante da população. Trata-se de uma palavra que precisa admitir mais de duas variáveis, assim como no caso do termo apropriação cultural.

Uma das intensas polêmicas que acompanhei a respeito da apropriação cultural nos últimos anos envolveu a empresa Havaianas, seu chinelo branco de tiras azuis e a cantora e ex-BBB Manu Gavassi (Figura 2). É um daqueles casos em que, realmente, partilhei da vontade de apenas dizer: “calma lá, descansa, militante”. No entanto, isso não pode ser dito sem algumas reviravoltas argumentativas ou até poéticas. Manu Gavassi foi convidada pela Havaianas, empresa brasileira, a participar de uma de suas campanhas publicitárias. A cantora compartilhou em seu Instagram alguns vídeos e fotos com sua havaiana preferida, aquela nas cores azul e branco, o modelo mais antigo da marca e, também, uma das peças que teriam um preço “módico”.

Em seguida, uma militante muito atuante nas redes sociais, com seu perfil verificado pelo Twitter, publicou: “Manu Gavassi fez parceria com a Havaiana. Havaiana escolhida: azul e branca, é, aquela, dissertem”. E as respostas dadas a esse tweet foram: “isso é apropriação cultural”. Essa troca de tweets é representativa sobre como funciona, hegemonicamente, a ética e a estética cognitiva da militância na web. A militante, antes mesmo de colocar sua percepção da campanha publicitária ao exame da reflexividade, consciente ou inconscientemente, conhece muito bem o pensamento monolítico de seus seguidores e apenas diz: “dissertem”. E aí, então, além da avalanche de críticas contra a “apropriadora”, a militante agrega holofotes em torno do púlpito de um julgamento. Eu aceito, ao menos provisoriamente, que há sentido em conversar sobre como pessoas jovens, brancas e de classe média alta “goumertizam” alguns elementos comuns às classes populares.

O salto que eu não executo, mas que outras pessoas podem executar, inclusive, que salto fascinante, é dizer que Manu Gavassi usando havaianas branca de tiras azuis é um exemplo de apropriação cultural. Uma coisa é lembrar que, na década de 1980, esse modelo branco de tira azul era o que havia de disponível e que ficou conhecido como “chinelo de pedreiro” por ter um valor acessível. Outra é dizer, na segunda década do século XXI, que essa havaiana de preço inflacionado e mundialmente conhecida foi – ou ainda é – um elemento intrínseco à cultura das pessoas pobres no Brasil e que, portanto, trata-se de um elemento genuíno das classes populares sendo apropriado por pessoas de classe média alta. Mas pior que isso é usar apropriação cultural, um termo muito necessário para compreender como a estética é um campo de atuação política importante nas lutas antirracistas, para produzir uma crítica meramente mimética e descontextualizada.

Figura 2: Manu Gavassi em campanha publicitária da empresa Havaianas (Fonte: Havaianas)
Figura 2: Manu Gavassi em campanha publicitária da empresa Havaianas (Fonte: Havaianas)

No entanto, mesmo quando esse debate está localizado nas reflexões sobre antirracismo, o termo apropriação cultural também é reduzido à oposição essencialista entre “coisa de branco” e “coisa de preto” ou, ainda, “pode usar” e “não pode usar”. Murilo Araújo, ativista, pesquisador, gay e negro, em seu canal do Youtube, Muro Pequeno, em alguns momentos me ajudou a desanuviar algumas dessas tensões. Em um de seus vídeos sobre apropriação cultural, Araújo argumenta que, até onde ele próprio consegue estar a par do debate, para compreender o que é apropriação cultural é necessário ter em mente dois critérios. O primeiro é que apropriação cultural tem a ver com os significados culturais, artísticos e religiosos que determinados elementos possuem para populações historicamente estigmatizadas. O segundo critério é que apropriação cultural diz respeito às relações de poder marcadas por categorias como raça, classe, etnia ou religiosidade.

Nesse caso, explica Araújo, para uma ação ser chamada de apropriação cultural, ela precisa, primeiramente, envolver o esvaziamento dos significados que determinados elementos culturais ou religiosos têm para determinado grupo cultural, étnico ou religioso que é historicamente estigmatizado. Em segundo lugar, para entender a apropriação cultural, é preciso pensar no “lugar” que o suposto “apropriador” desses elementos ocupa dentro dos marcadores de raça, classe ou religião. Como pessoas brancas gozam de alguns privilégios em relação às pessoas negras, é permitido que rapazes brancos da Zona Sul do Rio de Janeiro acessem, por exemplo, elementos da cultura Rap ou Hip-Hop sem sofrer sanções. Enquanto isso, um rapaz negro da periferia que utiliza tais elementos que, talvez, façam parte do seu cotidiano e identidade, tem grandes chances de ser abordado de forma truculenta pela polícia.

Este exemplo combina, justamente, os dois critérios expostos por Murilo Araújo: há o esvaziamento de significado desses elementos a partir das relações de poder de raça e classe. Logo, estamos falando de apropriação cultural. No entanto, destaco um dos comentários que o vídeo de Murilo Araújo recebeu de um rapaz que, como ele mesmo diz, é branco, pobre, periférico e desde criança consome Rap e Hip-Hop. No comentário, ele diz que tem sido acusado de apropriação cultural por aqueles que ele chama de “playboyzinhos”.  Ainda que esse rapaz esteja menos sujeito a sofrer sanções ao utilizar elementos da cultura Hip-hop por ser um homem branco, isso por si só não configura apropriação cultural pois, de fato, esses elementos fazem parte de sua vivência e construíram sua subjetividade. Nenhum desses elementos está sendo esvaziado ou banalizado. São casos como este que contribuem para, sempre que possível, tomar como ponto de partida uma contextualização. E não tornar, de saída, a havaiana preferida de Manu Gavassi ou o rapaz loiro de dreads das praias de Florianópolis os bodes expiatórios daquilo que, a depender do sujeito e contexto, não se trata de apropriação cultural.

Mas repito, trata-se de um exercício impossível se você não estiver disposto a vacilar nas próprias certezas quando, por exemplo, você também utiliza o termo lugar de fala. Do mesmo modo como outros termos aqui expostos, o lugar de fala também tem origem, especialmente, nas teorias feministas e nos estudos pós-coloniais da segunda metade do século XX, especificamente em textos como O problema de falar pelos outros (Linda Alcoff, 1992) e Pode o subalterno falar? (Gayatri Spivak, 2010). E há, basicamente, um ponto em comum bastante explicativo entre estes dois textos: questionar a legitimidade quando sujeitos em condições de poder ou em condições de privilégio falam por aqueles sujeitos que experimentam, em suas peles, violências racistas, machistas, homofóbicas ou transfóbicas, tendo em vista que muitas vezes se negou a estes grupos a possibilidade de falar sobre suas próprias experiências.

O que esses dois textos também informam, enquanto nas redes sociais o contrário segue sendo repetido à exaustão, é que aqueles sujeitos que não partilham de determinada experiência subalterna não apenas podem, mas inclusive devem se interessar e se engajar nas questões de raça, gênero e classe a partir das suas posições. Ou melhor, a partir dos seus trânsitos, afinal, também é preciso compreender, como lembra Donna Haraway (1995), que não há como estar em todas as partes, ou inteiramente e somente em uma das posições estruturadas por gênero, raça e classe. Entender isso também evita armadilhas identitárias, afinal, quem segue acreditando que viver é igual a entender (ou que a vivência prática é a única forma de entendimento do mundo) quando nos deparamos, durante o sangrento Governo Bolsonaro, com Damaris Alves e seu Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos!?

A conservadora Damares Alves foi uma mulher/ministra que curta-circuitou uma concepção essencialista e binária de lugar de fala, mas também desvelou a importância de dois movimentos: escutarmos a voz das bichas, das travestis e das mulheres pretas que, para além de serem mulheres ou LGBT, são sujeitos comprometidos em estudar os processos históricos de generificação e racialização; e estarmos abertos para aqueles sujeitos que estão fora dos nossos grupos e que podem contribuir, a partir de suas posições e trânsitos, para a superação dessas violências. Sei que nas redes sociais há falta de tempo, espaço e disposição para discutir sobre esses temas, mas é preciso não abraçar um antiintelectualismo, esse gesto que também é uma marca da minha geração que acessou fóruns e espaços da militância especialmente através da web.

Ainda seria possível se debruçar sobre outras palavras, a exemplo de liberal, resiliência, sororidade e empatia, as quais também pipocam nas redes sociais e, com alguma frequência, constituem polêmicas arrastadas. Todas elas estão, inclusive, sob o escudo do termo problematização. Para Michel Foucault, possivelmente o primeiro a exercitar uma operação conceitual designada por problematização, o termo descrevia um constante olhar analítico que o autor tinha sobre sua própria obra. É o que ele diz em As palavras e as coisas (2002). Para Foucault, parecia importante não fazer do seu pensamento um esquema fechado, no entanto, tendo em vista que a obra foucaultiana produziu intensas genealogias de temas que vão desde a loucura até a sexualidade, assim como de instituições como a prisão, não seria errado dizer que o filósofo francês construiu uma vigorosa problematização de valores, discursos e instituições da sociedade ocidental.

No caso de algumas posturas militantes na web, me parece que todos esses termos e palavras aqui comentados perfazem uma rota de problematização que, em alguns momentos, está mais preocupada com um desejo narcísico e obstinado de produzir qualquer conflito e menos com o de identificar um problema.  Essas práticas me levam a pensar, num gesto explicitamente teórico, sobre paradoxos conceituais. Compreendo que essas cenas polêmicas são fruto, especialmente, de militâncias que podem ser vastamente analisadas pela perspectiva dos Estudos Culturais, dos Estudos pós-estruturalistas, das teorizações pós-modernas, das políticas das identidades. Ainda que todas essas correntes de pensamento tenham suas diferenças teóricas e metodológicas, arrisco aproximá-las na intenção de dizer que todos os termos até aqui comentados jogam essas e outras escolas dentro do grande liquidificador que são as esquerdas contemporâneas. Liquidificador no qual temas como identidade e diferença, discurso e desconstrução, fim das grandes narrativas totalizantes, fragmentação e descentramentos de grupos e sujeitos constituem, todos, um único caldo.

No entanto, isso talvez não seja necessariamente ruim. Ou, ao menos, não tão ruim quanto constatar que, no fundo desse liquidificador, ainda é o caldo de uma racionalidade moderna que sedimenta, nas redes sociais, os usos dessas palavras aqui compiladas e analisadas: uma militância marcada por uma estrutura de pensamento que ainda é quadrada, cartesiana, unilateral, totalizante, binária, masculinista e anti-intelectual. Também por esse motivo, ao longo de minha trajetória, sempre preferi utilizar mais a palavra ativismo e menos a palavra militância. E isso diz mais respeito a uma impressão ótica e tátil (Benjamin, 1996) de que o termo ativismo pode designar um tipo de intervenção política que preserva a prática do dissenso, assim como valoriza a horizontalidade e a autonomia. Já o termo militante, inclusive por sua proximidade como a palavra militar, me parece, mesmo dentro de grupos supostamente progressistas, valorizar a disciplina, o moralismo e a concentração de poder.

Por fim, esse breve ensaio trata-se apenas de uma primeira tentativa, como diria Michel Foucault (1993), de fazer da escrita um intensificador do pensamento, da reflexão uma multiplicadora das formas de intervenção política, da sugestão de que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade. E, sobretudo, que não é preciso ser triste para ser um ativista.


* Dieison Marconi é professor e pesquisador em regime de Pós-Doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com período sanduíche realizado na Universidade Complutense de Madrid, na Espanha. É Mestre em Comunicação e Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria. Como pesquisador, atua no campo da imagem, audiovisual, cinema e experiência estética, sobretudo em uma intersecção com os estudos queer. É autor do livro Ensaios sobre autorias queer no cinema brasileiro contemporâneo (Selo Editorial PPGCOM-UFMG).

 

Referências

ALCOFF, Linda. The Problem of Speaking for Others. In: Cultural Critique, Nº 20, 1991-1992, pp. 5-32.

BAQUERO, Rute. Empoderamento: instrumento de emancipação social? Uma discussão conceitual. Revista Debates, Porto Alegre, v. 6, nº 1, p.173-187, jan.-abr. 2012.

BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume 3. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 103-149.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_________________. O anti-édipo. Uma introdução à vida não fascista; In: Cadernos de Subjetividade, v. 1, nº 1, São Paulo, 1993.

DERRIDA, Jaques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.

HOOKS, bell.  Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 3. p. 464-477, 1995.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5. Campinas, Ed. Unicamp, vol 5, p. 7-41, 1995.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

RANCIÈRE, Jacque. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: 34, 2018.

PALHA, Amanda. Tranfeminismo e a construção revolucionária. In: BUGARELI, Lucas; Marxismo e luta LGBT; Margem Esquerda, São Paulo, Ed Boitempo, vol 33, 2019.

MOSHKOVICH, Marilia. A grande tarefa do marxismo é o sexo. Disponível: blogdaboitempo.com.br.