Ano XVIII 01
dossiê
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FEMINISMO, A PALAVRA MALDITA

Um dos maiores problemas que as feministas têm enfrentado ao longo do tempo está na sustentação de nome que nos designa, qual seja, feminismo. Heloisa Buarque de Hollanda, em declarações públicas, disse que achava terrível a resistência que a palavra causava, mas que, de fato, via grande afastamento de parte das mulheres, em especial, as periféricas, por causa do horror que repercutia na coletividade a palavra “feminismo”. Sim, representações hostis fizeram do feminismo uma palavra que apavora e, sem dúvida, essas representações são fruto das produções simbólicas, imaginárias, discursivas que o patriarcado operou enquanto sistema linguístico.

As igrejas e suas formas de entender e explicar o princípio do mundo e a disseminação de sua moral, ao lado da linguagem entendida como neutra, para carregar esses valores favorecem a incompreensão do termo e do sentido histórico nele contido. O que chamamos de misoginia se efetiva hoje no processo de produção dessa incompreensão, na desinformação e confusão em torno da temática de gênero e tudo que ela aborda. O patriarcado, enquanto uma das faces do capitalismo, é um sistema comprometido em difundir o discurso de ódio às mulheres e outras minorias políticas, da mesma forma com que o racismo partilha da operação do capitalismo para garantir seu discurso de ódio aos negros e a outras etnias não brancas.

O feminismo tem um potencial epistemológico radical não só pela ação política nele implicada, mas também porque carrega o sentido da luta epistemológica contra o patriarcado. Acredito que a luta atual do movimento feminista plural passa, necessariamente, a ser uma luta que briga para dizer seu próprio nome. E, a partir da afirmação de sua própria existência, segue sendo atacada pelo sistema de opressão e vigilância vigente. Ouso afirmar que dizer-se feminista é, portanto, uma declaração de participação no enfrentamento ao patriarcado e não é à toa que o feminismo, assim como gênero, sejam termos utilizados contra suas próprias signatárias. Ao pautar a insubmissão das pessoas ao sistema heteronormativo branco e capitalista, a máquina de produção linguística do patriarcado transforma o problema que o feminismo cria para ele em um problema para as feministas. A violência patriarcal implica não apenas a força física ou verbal, mas todo um jogo retórico e de inversão de sentidos.

A misoginia, enquanto discurso de ódio, afeta a imagem das mulheres e das lutas feministas em favor do círculo vicioso entre violência verbal e simbólica próprias à dominação patriarcal. Se agentes da discursividade misógina usam o “feminismo” em contextos ofensivos (como o termo “feminazi”, muito popular aqui no Brasil), nessa esteira, o que o sistema consegue é que muitas mulheres passem a abominar o feminismo e outras tantas jamais se sintam seguras e confortáveis para afirmarem-se como feministas. Se, de um lado, algumas pessoas permanecem alheias à análise concreta da realidade, de outro, não querem adotar em suas vidas uma expressão desabonadora que pode vir a prejudicá-las. Se ser mulher ou ser um corpo inadequado ao patriarcado implica a misoginia, já que o patriarcado cria o feminino como um outro a ser abatido, ser e dizer-se feminista implica a possibilidade de ser alvo da misoginia duas vezes.

Não consigo parar de pensar que não é só o termo feminista que sofre com a perversidade sistêmica. Nós, as feministas, sofremos os mesmos preconceitos das mulheres em geral, e nessa matemática atrevo-me a dizer que as mulheres não feministas também sofrem preconceitos como se feministas fossem. Porque a violência patriarcal não coloca no alvo tão somente a sobrecarga política oriunda da palavra maldita, o feminismo, muito pelo contrário; a palavra “mulher” também faz parte da episteme violentada pelo patriarcado; o próprio objeto da misoginia está no corpo dissidente, neste caso, no da fêmea da espécie humana ou, melhor dizendo, das mulheres. Mulher seria, então, um dos termos marcadores de fracasso social, tanto assim que servimos como ofensa, na máxima “só podia ser mulher”, ou ainda, quando fugimos do enquadramento, na outra máxima “nem parece uma mulher”. Ou seja, enquanto corpo ou palavra, as mulheres não conseguem sair do alvo nem enquanto sujeitos mesmos de seus corpos, muito menos enquanto sujeitas de sua ação política enquanto autodeclaradas feministas. O patriarcado trabalha nas duas vertentes para impedir o gesto performativo da autoafirmação, que torna alguém dono de si, ou seja, dono de seu próprio corpo. A misoginia desempenha um papel fundamental nesse processo, impedindo o feminismo como uma mediação necessária para a produção da consciência acerca do direito ao corpo.

Para além do preconceito estrutural construído pela modernidade, que está ligado à palavra, é visível que a operação patriarcal tem buscado evitar que a luta das mulheres avance, e este é o escopo da ação de silenciamento. Usando o preconceito reiterado, atualizado, o patriarcado consegue produzir uma rejeição à luta fundada na rejeição ao termo usado para expressar a luta. Se dizer é fazer (Butler, 2021), a fala violenta é ação em si mesma, mas também incitação a violências materiais e físicas que criam e recriam condições simbólicas e concretas em um círculo vicioso. A misoginia é parte fundamental da pragmática do discurso falogocêntrico; entendendo o patriarcado estruturado com uma linguagem própria, à medida que também estrutura a própria linguagem em um movimento dialético, a misoginia garante a ordem simbólica, conceitual e moral, ou seja, as próprias condições de possibilidade do patriarcado diante das ameaças que ele sofre por parte dos que se negam à sua exigência de submissão.

No contexto atual, a misoginia é o discurso oficial, e as mulheres e os corpos dissidentes divergentes passam a ser vistos como uma fraqueza ou um erro da natureza; se assim é, só posso dar péssimas notícias, pois nós, mulheres feministas, não passamos de um duplo erro da natureza e, com a força da nossa atuação, estamos disputando para que nossa existência também não seja considerada um erro da cultura. Feministas seriam, sem dúvidas, as bruxas da contemporaneidade e portadoras de algo antinatural: sua insubmissão. Acho que dá para ver um exemplo da misoginia didática quando pensamos no ódio a livros como O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, com sua crítica às mulheres que apoiam o inimigo, e sua teoria do seu “caráter inessencial”, no patriarcado, diante do caráter essencial dos homens.

Figura 1: <em>simone de bom voar</em>, de Simone Sapienza Siss (disponível em <a href="https://www.siss1.com.br/siss-who-simone-siss">https://www.siss1.com.br/siss-who-simone-siss</a>)
Figura 1: simone de bom voar, de Simone Sapienza Siss (disponível em https://www.siss1.com.br/siss-who-simone-siss)

A misoginia, como atitude da linguagem, sempre foi providencial na organização da violência para que ela funcione efetivamente de maneira orquestrada. Ela está presente quando se associam mulheres à natureza: na imagem da natureza, no que se diz da natureza, e no prisma usado para se construírem discursos sobre as mulheres. A situação de fala não é, portanto, um simples tipo de contexto, algo que pode ser facilmente definido por seus limites espaciais e temporais (Butler, 2021, p. 15), pois ser violentado pelo discurso é perder o contexto, é não entender onde se está. A redução da imagem da mulher e sua ligação à natureza, por meio do discurso, faz com que a certeza de espaço seja abalada. Toda qualidade preferida ligada a um dado da natureza nos coloca em posição subjugada. Mas é claro que essa falta total de agência foi e é reiterada pelo patriarcado, tornando-o eficiente em providenciar espaços de insegurança para as mulheres. Esses espaços geram mais violência quando nossos corpos estão soltos, avulsos, sem localização conhecida, e a violência é uma metodologia de separação aplicada às mulheres e aos corpos que deseja controlar ou descartar. O poder é uma metodologia criada entre os homens para garantir sua coesão, segurança e proteção, algo que as mulheres não devem usar segundo as normas do sistema patriarcal. Se as mulheres usarem a confiança umas nas outras como metodologia, o sistema sustentado na diferença hierárquica entre homens e mulheres pode ruir.

O feminismo é um operador teórico-prático, que pode funcionar como dispositivo de combate à ordem patriarcal, mas desmontar a máquina misógina é como desativar um programa de pensamento, que orienta o comportamento dos corpos, porque o patriarcado é o verdadeiro articulador do pensamento misógino, que orienta a ação na direção do favorecimento dos sujeitos privilegiados dentro do sistema capitalista. O ódio ao feminismo está ligado ao sistema capitalista de forma compulsória submetendo os corpos e os dispositivos de linguagem.

Em uma tentativa de entender o paralelo entre linguagem e o sistema patriarcal, imaginemos o seguinte: mulheres sofrem com o patriarcado em geral; pessoas trans têm problemas burocráticos, legais e sociais a enfrentar com o seu “nome social” frente ao lugar do “nome” que lhes foi dado pela família em sua estrutura patriarcal; o feminismo enfrenta com seu nome, nomenclatura designada, um problema criado pelo patriarcado. Talvez seja possível tal comparação para fins de entendimento do que considero uma questão de gênero ou um problema linguístico: o feminismo, como expressão carregada de incômodo, trabalha na mesma lógica que uma pessoa trans ou um corpo de mulher no mundo patriarcal; por ser considerado um termo inadequado, o feminismo luta pelo reconhecimento de sua dignidade enquanto termo. Sendo assim, acredito que o problema do nome na cultura patriarcal sempre foi um problema de gênero. Todo problema de gênero é linguístico, mas também performativo. Pesa sobre os corpos violentados pelo patriarcado a proibição de dizerem quem são e como se veem por meio de suas próprias palavras sob pena de atingirem, de maneira manifesta e provocativa, a condição de sujeito, deixando de ser objetos do patriarcado. Entre o nome próprio e a biografia, e entre o nomear a si mesmo e o poder de definir uma autobiografia, avança a política da verdade feminista ou uma ética feminista de promoção de uma política de verdade.

A violência exercida nos corpos considerados abjetos pelo sistema patriarcal tem correspondência na violência que se faz à teoria produzida por mulheres, teorias que disputam a epistemologia e tentam reduzir o patriarcado a somente mais uma teoria. Essas teorias, que estão em rota de colisão com o sistema, ficam na mira da artilharia patriarcal, de um lado, pelo apagamento acadêmico, contra o qual as teóricas feministas vêm lutando, e, de outro, por fundamentalistas que atacam a prática feminista, organizando-se para persegui-la.

Atualmente, existe um campo de batalha em torno da expressão “ideologia de gênero”, e talvez este seja o melhor exemplo do que está em jogo. A artimanha pela qual a citada expressão utiliza uma definição conceitual para combater aquelas estudiosas e todo o campo de estudos de gênero tornou-se popular no Brasil, inclusive em meios escolares. Com que intuito? A pesada violência conceitual contra teóricas, pesquisadoras, estudantes, escritoras, a reflexão, a ciência, o mundo acadêmico e a escola adquiriu ares de verdade em um movimento de populismo patriarcal. Nessa guerra, talvez possamos dizer que estamos assistindo a um retorno da caça às bruxas, sendo “gênero” a nova bruxaria. É bom que a gente se lembre de que o uso distorcido e falacioso da expressão “ideologia de gênero” passou a ser comum a partir de uma Conferência Episcopal da Igreja Católica ocorrida em 1998 em Lima, no Peru. O tema da referida conferência foi A ideologia de gênero – seus perigos e alcances. E de volta à cena, a operação religiosa ocupa seu lugar de nortear contra quem o conjunto da sociedade deve se preocupar, quem deve ser combatido e quem está a serviço de forças obscuras. Da perspectiva da igreja católica, cria-se uma espécie de monopólio epistemológico sobre o tema da sexualidade a partir da ideia de uma natureza sexual que o termo gênero vem questionar. O conceito de gênero passa a ser entendido, do ponto de vista religioso, como uma ameaça.

O gesto da autoafirmação, dizer e contar a própria história, assume o mesmo lugar de sujeito que o herege e a “bruxa” tinham na Idade Média. Dizer-se feminista torna-se uma ousadia e, no extremo, uma heresia pela qual a pessoa é demonizada. Nomear-se é um gesto de empoderamento. Aquele que nomeia é dono do poder simbólico sobre o outro na ordem do discurso. O que está em jogo é, ainda e mais uma vez, o problema da autoridade que implica a “autorização” para dizer o que ou “quem” se é. E esse aspecto diz respeito a um problema mais que verbal: o modo pelo qual algo entra na ordem da linguagem e adquire existência no mundo humano movido pela máquina da linguagem. Pois é, não é possível desconsiderarmos o patriarcado como também um dispositivo que tem, nos termos gênero e sexo, peças de sua engrenagem para promover a dominação. O feminismo tem tentado mostrar que o funcionamento dessa máquina, movida pelo “princípio de identidade masculino” e pela “política da identidade patriarcal”, precisa ser freado. Nesse processo, a epistemologia feminista cumpre um papel fundamental, e acaba sendo tratada como alvo permanente do ódio do opressor.

A invasão das Américas, ou a “descoberta” do mundo novo, pode nos ajudar a entender a política da linguagem colonizadora em analogia com a política da linguagem patriarcal. O caráter de negação da existência de seres humanos antes dos descobridores/invasores é notório quando estudamos a nossa história, mas a negação do outro é parte intrínseca do caráter de dominação presente na política colonial. “Índio” foi o nome dado aos seres humanos encontrados por aqui, e a nomeação do outro está implicada na política da colonização própria à história das Américas. A posse da terra descoberta/invadida foi feita também através de atos de linguagem. A atitude verbal é o que permite a ação da “posse” sobre o Outro. As palavras proferidas nas cerimônias servem à legitimação da propriedade e acobertam o crime de apropriação indébita, para dizer o mínimo, do mesmo modo que os discursos cerimoniais de sedução romântica que fizeram sucesso no período do amor cortês acobertam violências sobre corpos femininos sob alegação de “conquista”. Conquistar a terra e conquistar a mulher fazem parte de uma retórica colonial de dominação, que era feita por homens; entendido assim, posso dizer que o repertório de conquista faz parte de uma retórica de dominação patriarcal.

Nessa trilha, é possível entendermos o porquê, um pouco mais à frente, de os discursos jurídicos de “legítima defesa da honra” e “crime passional” servirem para acobertar crimes de feminicídio, por exemplo. O destino das mulheres ou das terras conquistadas é a sujeição ao homem e/ou a morte, ou seja, sujeição à normatividade estética e política do patriarcado ou a morte literal. A relação entre o poder patriarcal e a violência que ele produz para se perpetuar desemboca em simbolismos e práticas de feminicídio, seja na literatura, no cinema ou na vida.

A docilização e submissão produzidas na matriz de subjetivação feminina têm relação direta com a morte à qual as mulheres estão condenadas. A perseguição às mulheres e a violência contra elas são sustentadas pelo discurso misógino; para docilizar as pessoas marcadas como mulheres, foi inventado o conceito de “feminino”. O feminino é o termo usado para salvaguardar a negatividade que se deseja atribuir às mulheres no sistema patriarcal como uma coisa inofensiva. Parece-me que a produção epistemológica da colonização e do patriarcado se utilizam de métodos e objetivos idênticos; a colonização é epistemológica e patriarcal, assim como o patriarcado é uma forma de colonização baseado em uma epistemologia da dominação. Ela se dá sobre pensamentos e corpos, sobre o espírito e a matéria, sobre a cultura e a natureza e sobre as mulheres e os territórios. Penso no patriarcado como um dispositivo com regime epistemológico e afetivo amparado na linguagem. Dentro deste dispositivo, podemos entender ou enxergar o machismo e a misoginia como um dos jogos de linguagem que exerce um controle calculado nas ideias, nos conceitos, nos textos e nas palavras para o controle dos corpos. Então vai ficando óbvio que todo o controle dos corpos precisa e passa pela linguagem e também pela língua e, ao longo da história, as instituições que dominam a linguagem dominam o corpo.

A necessidade de nomear, lá na descoberta do mundo novo, nos mostra uma forma de pensar, de se emocionar e de agir, que se funda no princípio de identidade masculina e funda com ele uma matriz subjetiva, cuja principal ação é a marcação do outro com o objetivo de submetê-lo. Tal gesto linguístico aparece e reaparece mostrando seu caráter originário e constitutivo do patriarcado colonial ou da colonização patriarcal. Definições tais como “mulher”, “homem”, “macho”, “fêmea”, “hermafrodita”, “sexo”, e toda uma terminologia que escapa à criação feminina e feminista, fazem parte da necessidade de apreender com palavras, e depois com elas hierarquizar a ação ou mesmo a própria vida. Todas as palavras importam, e em nenhum regime as palavras ocupam papéis neutros. Em última instância, isso pode querer dizer que nenhuma palavra está isenta dos jogos de poder, violência e colonização. Embora poder e violência estejam entrelaçados intimamente, e a violência possa ser exercida sem palavras, o poder precisa muito mais delas. Comumente, as mulheres são lançadas na violência e afastadas do poder. A consciência feminista não pode ser solipsista ou universalista como é a consciência patriarcal. Desse modo, proponho que estejamos atentas à intimidade entre diálogo e feminismo na superação dos jogos de poder utilizados pela linguagem patriarcal, bélica e devoradora.

Tomando o diálogo como um operador feminista, que nos permite estabelecer ligações entre os modos de pensar e fazer feministas, levando em conta nossas singularidades, penso que ele, o diálogo, poderá ser um facilitador da ascensão feminista para práticas emancipadoras e transformadoras do momento em que estamos inseridas. O feminismo conecta uma pluralidade de mundos. Em um trecho chamado “A Conversação” de seu livro Metafísica da juventude, Walter Benjamin aborda as potências do diálogo ao fazer a seguinte pergunta: “Como conversavam Safo e suas amigas?”. Essa pergunta se constrói no contexto de um elogio do silêncio que, na visão de Benjamin, as mulheres reconheceram muito melhor do que os homens. Levando em conta a oposição silêncio e diálogo, que surge nessa pergunta, e entendendo que o silêncio também é parte do diálogo no ato de linguagem, em uma relação dialética, acredito ser o silêncio parte fundamental da alegoria metodológica do que se produz em termos de uma potência feminista. Não acredito que este movimento benjaminiano aconteça à toa, pois Benjamin evoca Safo distante das conversas socrático-platônicas e desloca a atenção sobre o diálogo socrático para o desconhecido, complexo e misterioso diálogo entre as mulheres.

O diálogo é o pano de fundo de toda textualidade filosófica e literária das quais as mulheres sempre estiveram excluídas. Por exemplo, no diálogo O Banquete, de Platão, existe uma cena em que as mulheres devem se retirar para que a conversa filosófica comece a ter lugar. Trago para este texto mais dois conceitos que podem nos ajudar a entender melhor o lugar das mulheres nesta antimonologia. Dialogicidade e polifonia, conceitos que encontrei em Bakhtin: a “multiplicidade de vozes e consciências independentes” apresentam o feminismo mais como uma multiplicidade de visões, de questões e, sobretudo, de singularidades que se expressam construindo o seu campo de ação do que como uma visão unitária sob a qual devem se encaixar os discursos, as teorias e as práticas feministas. O feminismo passa a ser um espaço aberto de diálogo ou um diálogo aberto diante das regras instituídas pelo patriarcado.

O feminismo pode até continuar carregando o mal-estar de ser quem se pretende em termos de nomeação. Realmente, não existe feminista que não seja vista com olhos de condenação ou mesmo uma figura da mulher que age contra a natureza. Mas também é preciso que estejamos cientes de que o horror causado por essa palavra é proporcional à sua força. O feminismo sempre foi uma fala inadequada, porque ele é uma fala de mulheres de todas as formas e tipos, bem como de seres que escapam às denominações do patriarcado. Diante do discurso patriarcal, ele mesmo uma ideologia e um fundamentalismo, o feminismo é uma forma dialógica e uma nova episteme. A sua história é a história da luta contra a opressão epistemológica administrada pela misoginia enquanto prática astuciosa da razão patriarcal.

O embate do feminismo é também o de ressignificar corpos e palavras subjugados por uma ordem injusta, que se sustenta pela produção de um discurso de violência. Não existiria patriarcado sem misoginia. Seja imaginária, simbólica ou física, a violência é o destino das mulheres e de todos os seres inadequados à heteronormatividade traçada pelo patriarcado. Nunca houve nada mais eficaz nos processos de subjugação, e por isso podemos dizer não apenas que o poder é um dispositivo, mas que a violência é um dispositivo quando se trata de mulheres. E, mais do que isso, ela é um método que foi introjetado na forma de pensar e de sentir dos sujeitos envolvidos. Coloco minha esperança de que, contra a opressão patriarcal ancorada em seu discurso, o diálogo feminista possa ser um caminho de emancipação das mulheres e dos corpos dissidentes.


* Drica Madeira é doutora em Ciência da Literatura/UFRJ e pesquisadora do PACC – Letras/UFRJ com bolsa FAPERJ Pós-Doutorado Nota 10.

 

Referências bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução Sergio Milliet 2 ed – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.

BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do humana. In: Jeanne – Marie Gagnebin (Org.). Escritos sobre mito e linguagem (1915 – 1921). São Paulo: Editora 34, 2011, p. 212 -156

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

______. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

______. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de

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______. Discurso de ódio: Uma política do performativo. Editora Unesp, 2021.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

PINHO,  Isabela. Tagarelar (schwätzen): itinerários entre linguagem e feminino. Minas Gerais: Ed. Relicário; Rio de Janeiro:  Ed.  PUC-rio,  2021