Ano XVIII 01
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A INTELIGÊNCIA E A FORÇA TRANSFORMADORA DA HESITAÇÃO

1. Até que a ventania revele os contornos de uma arquitetura[1]

É tarefa exigente acolher os testemunhos de moradores da Maré sobre a violência armada e seus impactos, fazendo-os ressoar para além de truísmos, glosas e análises projetivas de conceitos previamente formulados, que muitas vezes funcionam como preconceitos. O que se oferece aqui é apenas o movimento na direção desse acolhimento, nem por isso isento de riscos, uma vez que as boas intenções não garantem fidelidade aos compromissos da consciência. Quanto ao primeiro passo não resta dúvida: é preciso escutar, outra e outra vez, apurando a recepção ao que se diz e ao que se cala, levando em conta os contextos interlocucionários e históricos, apreendendo os dinamismos estruturais na mediação performática da linguagem, deixando-se interpelar em todos os registros possíveis pelas manifestações reunidas em entrevistas e depoimentos, de tal modo que as senhas para a decodificação provenham dos próprios autores e das próprias autoras dos discursos coletados. O que se sabe com certeza é que abordar analiticamente uma comunidade criativa implica aproximar-se de uma constelação extraordinariamente complexa, cambiante e contraditória de percepções, afetos e práticas.

Além dos percalços típicos aos mais diversos segmentos das classes subalternas na sociedade brasileira, sobredeterminados pelas presenças insidiosas e combinadas do racismo e do patriarcalismo, acrescentam-se, em nosso caso, conflitos armados entre grupos civis e confrontos sangrentos provocados por incursões policiais. Sobre esse conjunto tenso de fatores incidirão a pandemia e seus impactos econômicos, intensificando o desemprego crônico, o desalento, a precarização do trabalho, a expansão da informalidade em condições críticas e o empobrecimento. Não por acaso os efeitos da Covid se distribuem desigualmente, em prejuízo dos mais pobres, sobretudo das mulheres e da população negra.

A equipe responsável pelo survey, no âmbito da pesquisa “Construindo Pontes”, para a qual esse texto pretende ser um suplemento, teve o cuidado de dividir a amostra em três segmentos, porque há três áreas na Maré nas quais, por hipótese, os moradores tenderiam a responder distintamente às questões relativas à exposição à violência armada: duas áreas onde se destaca a presença de grupos civis armados, ligados a dois diferentes comandos do tráfico de substâncias ilícitas, e uma em que atuam milicianos, cujas relações com as polícias são bem conhecidas, onde, portanto, não há incursões policiais. Os resultados confirmaram a hipótese, revelando diferenças significativas e consistentes não entre as áreas em que estão grupos do tráfico, mas entre essas e a terceira, na qual a influência da milícia bloqueia operações policiais. Ficou evidente que o fator decisivo na exposição traumática à violência armada é a brutalidade policial. Confrontos entre grupos civis são relevantes, provocam tiroteios e vítimas, produzem danos graves, mas o eixo de referência central é a relação com o Estado, o grande divisor de águas é a existência ou não de invasões policiais.

<em>Figura 1: Complexo da Maré (Vitor Paiva/Divulgação/Wikimedia Commons)</em>
Figura 1: Complexo da Maré (Vitor Paiva/Divulgação/Wikimedia Commons)

O recorte da pesquisa focalizou incidentes e sobressaltos provocados por armas e atos violentos, que interrompem expedientes, bloqueiam agendas, fecham comércio, cancelam aulas e atendimentos em postos de saúde, esvaziam ruas, interferem na circulação, ferem, mutilam, matam, abalam, aterrorizam, ameaçam e inscrevem acontecimentos dramáticos na memória coletiva, nas biografias e no curso dos dias.

Os eventos atravessados por tragédias são pontuações que inscrevem a descontinuidade com potencial traumático no fluxo incessante do tempo vivido. Em alguns casos, os relógios param, prendendo à dor as vítimas diretas e indiretas.

Por isso mesmo, o cotidiano torna-se uma conquista e uma construção.[2] Reconciliar-se com o cotidiano corresponde a tocar a vida sem fixar-se no medo e no perigo, sem permitir que a insegurança roube a serenidade, a sanidade e a fruição de prazeres e afetos, abrindo espaço para a perspectiva de mudança. Reapropriar-se do cotidiano está longe de implicar rendição impotente ao intolerável ou denegação da realidade. Não significa acostumar-se ao inaceitável, mas retomar para si a vida, esta mesma posta em risco com frequência por confrontos entre grupos armados e incursões policiais. Mulheres e homens de todas as idades exercitam, antes e em certo sentido acima da cidadania, a guarda desse tesouro precioso que é o cotidiano a ocupar, reinventar e desfrutar. Reapoderar-se do cotidiano, guardá-lo, deve ser interpretado como uma realização que liberta, porque rompe com automatismos, adaptações reativas, ajustes funcionais à ordem da necessidade, normas e expectativas estabelecidas. Liberdade é uma categoria aplicável porque o cotidiano a ser conquistado, e guardado, não é um passado edulcorado a que se queira retornar e que deva ser restituído à comunidade. Não se trata do bem viver ideal nem de projeto político delineado, mas de uma possibilidade de convívio comunitário experimentado em tantos momentos autônomos relativamente à tensão e ao medo, celebrados de forma concentrada e intensa em rituais religiosos e festas, mas desfrutados também nos encontros prosaicos nas lajes e esquinas, nos botecos e nos becos, nos almoços de domingo, nos jogos e brincadeiras, na mansidão solitária da poeta, no enlevo musical, na onipresença redentora da música, na frugalidade que vale tanto, nos espelhos do salão de beleza, no alvorecer em paz, numa noite de amor.

Identificar, valorizar e guardar potencialidades inscritas na prática diária talvez constituam etapas de uma obra coletiva em construção, ensaio de uma modalidade embrionária de sensibilidade utópica: afinal, outra coisa está ali, além do que ostensivamente se dá a ver e saber. Por isso, os testemunhos tendem a nos interpelar sobrecarregados de mundos: a abundância emana do bulir com ambiguidades, contradições e lacunas, avançando e recuando entre ditos e não-ditos, explorando por tentativa e erro os limites da linguagem, excitando a imaginação criativa. Não é fácil divisar o que está na brecha entre atos, muros, linhas e silêncios, muito menos distinguir o que a realidade exclui (por incompatível com quaisquer condições de possibilidade) daquilo que ela recalca mas traz consigo, como a sombra fértil da negação que inscreve o movimento dialético no campo da história. Não é arbitrário que a palavra potência tenha passado a figurar com tanta assiduidade no léxico popular, sobretudo entre jovens que integram coletivos. Se não é simples divisar o que está na brecha, deduz-se quão exigente seria tomar posse do cotidiano, na medida em que tal apropriação implicasse o engajamento no esforço de saber de brechas e das sombras férteis dos fatos. Apropriar-se da vida cotidiana se revela, portanto, “uma busca e uma investigação”, como diz Cavell, citado por Veena Das, em um sentido diverso mas comparável ao nosso (cf. Cavell, 1987, apud Veena Das, op. cit.).[3]

A versão da Maré que vai aqui alinhavada é simplesmente a sequência editada de flagrantes dessa obra de libertação, ou melhor, desse empenho incansável em alcançá-la, da qual o desejo de arte, embora tão importante, está longe de ser a única evidência e para o qual a tenacidade de Sísifo talvez ofereça o modelo.[4]

Uma passagem inspiradora de Veena Das dialoga diretamente com temas que são também os nossos, a despeito das distâncias geográfica, histórica e cultural entre a Índia e o Brasil, entre a trajetória individual da mulher que a autora acompanha, Asha, e as trajetórias que se entrelaçam na Maré, entre a guerra com o Paquistão e os conflitos armados nas favelas cariocas:

(…) a memória da Partição (a sangrenta divisão dos territórios provocada pela guerra) não pode ser entendida, na vida de Asha, como uma posse direta do passado. Ela é constantemente mediada pela maneira em que o mundo está sendo habitado no presente. Mesmo quando parece que algumas mulheres tiveram uma sorte relativa porque escaparam à violência física direta, a memória corporal de estar-com-os-outros faz com que o passado cerque o presente como atmosfera. Isso é o que quero dizer pela importância de descobrir meios de falar sobre a experiência de testemunhar: que se nossa maneira de estar-com-os-outros tiver sido brutalmente estragada, então o passado entra no presente, não necessariamente como memória traumática, mas como conhecimento venenoso. Esse conhecimento pode ser enfrentado apenas pelo conhecimento através do sofrimento. Como diz Martha Nussbaum (1986:46): ‘Há uma espécie de conhecimento que funciona pelo sofrimento, porque o sofrimento é o reconhecimento apropriado do modo como a vida é nesses casos. E, em geral: captar seja um amor ou uma tragédia pelo intelecto não é suficiente para ter um conhecimento humano real’[5] (p. 35).

Um dos aspectos intrigantes dessa modalidade de conhecimento -e quanto a esse ponto Veena Das não necessariamente concordaria, porque seu pensamento é mais fiel a Wittgenstein do que o desdobramento aqui sugerido- poderia ser definido como a irredutibilidade às palavras, o que o situa, em certa medida, além e aquém da inteligibilidade, numa zona incerta entre conceitos, imagens e afetos, sem que por isso o situe fora da esfera do comunicável. Pelo contrário, esse conhecimento é quase inteiramente comunicação, embora prescinda de mediações, e até mesmo por delas prescindir. Mais do que comunicação, cujo modelo esquemático é triangular (emissor, receptor e mensagem), no sofrimento está-se em comum no comum (a mensagem não tem autonomia ou objetividade própria, que permita a seu respeito o juízo de agente externo ao dueto original: a comunicação é o encontro). Também por isso é reconhecimento: não porque se reencontre o vivido, mas porque é comunhão, (re)encontro com o Outro. As mães que perderam seus filhos para a violência policial, por exemplo, sustentam-se umas às outras e nada precisam dizer, sabem que as demais sabem o que quer que se precise saber para comungar a dor indizível. A perda de um filho não cabe em palavras e situa quem a sofre num ponto não localizável, materialmente, mas consabido por quem compartilha a experiência. Trata-se de um ponto de encontro duplo: ali a mãe (ou o pai, ou os irmãos – Antígona é irmã da vítima – usualmente a mãe é a protagonista) se encontra a si mesma e às companheiras de infortúnio. Justamente porque envolve o encontro consigo mesmo e com o Outro (e consigo enquanto Outro – o que desencadeia mudança, pois incita a tornar-se Outro), o conhecimento proporcionado pelo sofrimento é também (re)conhecimento. Dá-se uma dobra porque o sofrimento incorpora uma dimensão reflexiva: o sujeito “se encontra” significa, aqui, não o triunfo da razão ou da consciência, ou a superposição entre o ser e sua “essência”, mas a entrega desarmada à supremacia da dor, movimento que pode ser libertador caso seja uma etapa do trabalho do luto, etapa sucedida pela simbolização integradora, para cujo êxito é decisivo o compartilhamento. O luto se revelaria, assim, um processo comparável, em sua estrutura dramatúrgica, aos rituais de passagem: transita-se da perda dolorosa à aniquilação, e daí, amparada pelas parceiras, ao cotidiano, de volta à vida.

Referindo-se às perdas de Asha, Veena Das escreve: “Isso só poderia ser consertado permitindo a si mesma uma descida ao mundo ordinário, mas como se de luto por ele. A recuperação não estava em empreender uma vingança contra o mundo, mas em habitá-lo num gesto de luto por ele” (Veena Das, op. cit., p. 37 e 38). Lembremo-nos de que habitar o mundo é estar com, e entre, outras e outros. E a estabilidade implícita na permanência, que é um dos significados intrínsecos ao verbo habitar, aponta para o cotidiano. Esse é o horizonte da construção coletiva da liberdade, obra minúscula, volátil e interminável, fruto do modesto e imperceptível heroísmo de tanta gente que sofre, sobretudo mulheres negras nas periferias brasileiras. Nem resignação, nem imobilismo, nada a ver com falta de fibra e de luta, menos ainda com alienação e conformismo. Diante de nós está sendo erguido, no desfiar dos dias e das noites, um monumento invisível, tão majestoso quanto diáfano, que diz sim à vida e oferece à história a fertilidade do espírito e a inteligência do corpo. O novo mundo está em gestação. A chave para intuí-lo está na disposição de experimentar a empatia com o sofrimento alheio e abrir bem os olhos, apurar os ouvidos, admitir a própria ignorância e começar de novo, mais uma vez, até que a ventania revele os contornos de uma arquitetura.[6]

Além de conhecimento, reconhecimento e comunhão, o sofrimento pode ser entendido como a matriz do valor, o que ajuda a explicar o sentido desse ponto de encontro imaterial, elaborado no parágrafo anterior. O encontro se dá no valor e como valor, mobiliza uma ética que transcende epistemologias, métodos e racionalidades, uma ética que é morada, lugar comum que abriga e compreende (sendo continente, antes de ser conteúdo e cognição):

É o sofrimento que constitui o campo de uma experiência humana que, sendo radical e responsável pela inscrição de uma diferença matricial entre momentos do processo existencial ou entre formas de vida, e, não podendo dar-se a pensar ou a traduzir-se, intersubjetivamente, transforma-se em valor, isto é, na qualificação diferenciadora por excelência, independentemente dos conteúdos específicos aos quais se associe. O sofrimento, portanto, é a referência virtual do valor (Soares, 1993: p. 98).[7]

Se o sofrimento é um tipo de (re)conhecimento, talvez previna os mais calejados, e idosos, contra o medo -o que ajudaria a explicar resultados surpreendentes do survey: os mais velhos (dizem que) têm menos medo. Contudo, devemos avançar com cautela (e não só porque a velha geração masculina fora formada na contenção dos sentimentos e de sua exibição): esse paradoxal benefício do sofrer, o conhecimento, pode mergulhá-los no veneno tóxico que conhecer traz consigo. Acompanhemos o diálogo de Veena Das com Stanley Cavell:

Nesse ponto, minha análise do que é para Asha e para a irmã de seu primeiro marido trabalhar para superar esse conhecimento venenoso (refere-se ao) sentido de ser amaldiçoado ou ficar doente pelo fato do próprio conhecimento – isto é, de saber mais que os outros sobre as condições do conhecimento. O contexto dessa reflexão (evoca a ideia do) conhecimento como infectado e (…) tem a ver com todo o tema da desconfiança do cético nas relações, suas demandas por mais e mais provas – e, no entanto, o que pode curar essa condição não é mais conhecimento, mas o reconhecimento de que algumas dúvidas são normais e que a cura da suspeita não pode vir de dentro da própria suspeita (Veena Das, op.cit., p. 37 e 38).

A autora cita Stanley Cavell (1987:196-97), que veria nisso

a questão de aceitar ou rejeitar o conhecimento. Entretanto, assim como Cavell repetidamente aponta para a condição do sujeito moderno dentro do ceticismo (assinalado pela morte de Deus na filosofia), mostrando que a questão é historicamente situada, parece-me que vir a duvidar das relações que a Partição (na India) amplificou tem uma especificidade própria (assim como os confrontos bélicos na Maré têm suas particularidades). Isso só poderia ser consertado permitindo a si mesma uma descida ao mundo ordinário, mas como se de luto por ele. A recuperação não estava em empreender uma vingança contra o mundo, mas em habitá-lo num gesto de luto por ele (Veena Das, idem, ibidem).

Se o ceticismo de que trata a autora indiana diz respeito à especificidade da Partição, na Maré, a incredulidade corrosiva – que prostra, imobiliza, despolitiza e isola as vítimas indiretas da violência armada –, detectada em alguns casos, pode ser remetida às iniquidades cinicamente toleradas, preservadas e praticadas pelo Estado ao longo das décadas em que transcorreram as trajetórias biográficas dos moradores, imigrantes ou não (cf. Soares, L.E.,O Brasil e seu duplo, Todavia, 2019). Evidentemente, nem sempre a força psíquica e a solidariedade bastam para que os indivíduos resistam ao devastador sentimento de impotência para o qual não faltam motivos. Quando o sofrimento suscita conhecimento venenoso, a esperança desaparece e a aridez que a substitui é mortificante. Nesse sentido, a depressão é um subproduto da violência, sua extensão internalizada. No polo oposto estão os modos de percepção e os regimes afetivos desenvolvidos por membros de grupos civis armados, os quais, expostos a riscos extremos e perdas sucessivas de companheiros – sofrendo, portanto –, aparentemente são contagiados pelos efeitos deletérios do conhecimento tóxico, porém metabolizando o veneno de modo inverso àquele conducente à depressão. Em vez de se abaterem, assimilam, alguns, o veneno como combustível para uma vingança imaginária, infindável e impossível. Quando isso acontece, deixam de focalizar o andamento dos negócios e de agir para reduzir tensões em favor da fluidez do comércio. Passam a atuar sob a regência da vingança, prejudicando seu próprio mercado e elevando os riscos a que se expõem, como nos disse quem viveu na carne esse drama[8]. A obsessão por vingança condena o sujeito à prisão perpétua. Entende-se a revolta que cerca a dor da perda dos parceiros mortos em confrontos com as tropas policiais, porque entre elas estão alguns sócios dos negócios ilícitos, o que denota a hipocrisia dos slogans maniqueístas.

2. Virtudes da hesitação

Palavras que definem a Maré? A entrevistada, moradora que nasceu e foi criada no complexo de favelas da Maré, não hesitou:

Potência, resistência, alegria, força. Muitas coisas boas pra jogar você pro alto, porque, apesar de tudo, tem muita coisa boa. A gente não pode focar no que existe de ruim. Faz parte, é significativo, mas tem tanta energia boa aqui dentro, tanto sorriso, tanta vibração pra cima, que me traz muito mais a sensação de resistência e intensidade, força, do que me faz pensar em dor, tristeza, violência. Mudança, a Maré é isso, mudança, desejo. Mudança e desejo.[9]

Esse depoimento poderia abrir ou fechar o presente ensaio. E talvez bastasse, porque entre “potência” e “desejo”, a primeira palavra e a derradeira, o que é decisivo está presente, resumidamente. O sofrimento, as mazelas, a violência e as iniquidades não são subestimadas, muito menos negadas, estão lá, devidamente registradas no “apesar de tudo”, e no “que existe de ruim”. É o que demonstra o conjunto da entrevista, fazendo eco a muitas outras, nas quais não faltam menções a inúmeros problemas dramáticos, entre os quais o saneamento, a saúde, a educação, o acesso a direitos, bens e serviços.

 

<em>Figura 2: </em>Outra Favela<em>, de Rodrigo Guimarães</em>
Figura 2: Outra Favela, de Rodrigo Guimarães

A despeito da nitidez desse depoimento solar, em seu espírito, repleto de afetos positivos, e iluminador para a reflexão, o diálogo inclui momentos sombrios e hesitações que apenas atestam a sensibilidade, a acuidade analítica e a inteligência da entrevistada, mais fortes do que idealizações que acabam sendo, por sua própria natureza, unilaterais e reducionistas. Nossa interlocutora sabe o que são ansiedade e depressão, sentiu na pele seus efeitos, e a pele aqui remete à problemática do racismo, enquanto estrutura profunda que ordena a sociedade brasileira, historicamente, e se manifesta em múltiplas instâncias. É aí que se inscrevem as vivências traumáticas de que ela foi vítima, seja pela disseminação do preconceito na cidade, seja pela brutalidade das polícias que não esconde seu viés de cor e classe, e costuma ser letal.

Nossa interlocutora pondera, em outras palavras: Tem quem talvez não sinta medo e quem não fale para não ter de responder as perguntas seguintes, que decorreriam da primeira resposta. Há quem mascara os sentimentos e prefere não pensar – o mesmo acontece em outras áreas da vida, outros sentimentos também são calados. Nesse caso, o que existe é mesmo a dificuldade de expressar os sentimentos, o que também bloqueia a expressão dos pensamentos. Falar muito pode ser perigoso. Ao longo da vida na Maré, aprendi que: tenho boca e não falo, tenho ouvido e não escuto, tenho olhos e não vejo. É o reinado do silêncio. Falar demais é acusação gravíssima. Houve quem foi expulso e até quem morreu.

Embora enfatize que o alvo principal de seu temor são as polícias, ela relata cenas de violência protagonizadas por membros dos grupos armados. Cenas que nunca lhe saíram da cabeça. Teme agressões policiais a ela e, sobretudo, a seus familiares, assim como ao conjunto dos moradores, quando há operações policiais, em especial cita o medo de que sua casa seja invadida, depredada e roubada, porque é comum a pilhagem de residências por parte dos autodenominados agentes da lei: butim de guerra. Em seus próprios termos:

Nas incursões, tenho medo de um familiar estar na rua, medo de alguém ser atingido, poxa, fulano estava indo trabalhar e levou um tiro, isso é tão comum; medo de policiais invadirem minha casa, de policial fazer alguma covardia comigo, com meu esposo, que é negro, com algum familiar. Medo de encontrar a casa revirada, roubada.

As declarações de nossa entrevistada suscitam uma reflexão mais ampla sobre a relação entre as palavras e as coisas, a linguagem e os fenômenos, as categorias que descrevem a experiência e a experiência da descrição por meio de categorias, o testemunho e a consciência, o depoimento e a especulação crítica. O alcance vai além dos temas imediatamente contemplados. Aqui está um exemplo: ela conta que participa de um bloco, criado em 2006, cuja “proposta é romper as fronteiras imaginárias – imaginárias entre aspas, não é tão visível, é e não é”. A fronteira referida é a divisa que separa territórios sob domínio de facções rivais do tráfico. As questões são, entre outras: o que está visível?, o que não está visível?, e o que, mesmo visível, não deve ser reconhecido ou nomeado? O que não se deve ver, ouvir e falar? Quais os limites da percepção ou da atribuição de sentido? O que é inteligível, na realidade, e o que merece esse nome? Qual o limite da transgressão?

Tudo ganha ainda mais complexidade quando associado ao conteúdo da passagem que focaliza a delicada, difícil, desafiadora convivência com as fontes armadas do medo, internas e externas à comunidade, cuja presença aponta para a iminente emergência dos confrontos, isto é, para o potencial disruptivo que pulsa sob a ordem aparente do mundo, sempre à beira do colapso, portanto. Além da incerteza tensa, essa passagem trata da convivência com os embates sangrentos que deixam atrás de si, e na memória de cada pessoa, rastros de violência, cicatrizes, quando não feridas que não saram. Apesar desse quadro ser abordado pela entrevistada em clave compreensivelmente dramática, seu relato evoca também tesouros afetivos e éticos da comunidade, trazendo à baila episódios de solidariedade entre moradores, surpreendidos na chegada à Maré por incursões policiais, e a generosidade do acolhimento aos desprotegidos em meio a tiroteios. O desconhecido, em vez de inimigo, é irmão, irmã, parceira do infortúnio e fonte, não de medo, mas de suporte e confiança.

Quanto ao convívio com as fontes da violência e a iminência da erupção que agride e mata, as considerações de nossa interlocutora são refinadas e requerem escuta cuidadosa. As pessoas têm de focar outras áreas da vida, ela diz. A música, por exemplo, a família, o trabalho. “Não porque banalizaram, se acostumaram, ninguém se acostuma com armas na sua frente, mas também você enlouquece se pensar nisso dia e noite. Não tem como mudar, é o que as pessoas acham. Como denunciar? É arriscadíssimo. Não é fácil. Nem adiantaria.”

Assim como a divisa é uma “fronteira imaginária – imaginária entre aspas, não é tão visível, é e não é –”, também as fontes do medo são visíveis e reais, e não são: são reais quando precipitam a cadeia de acontecimentos violentos e deixam de sê-lo quando se recolhem ao campo das possibilidades não atualizadas. As fontes do medo são objeto: (1) de transfiguração na memória, de onde não podem ser simplesmente apagadas, mas podem ser elaboradas, desarmadas e resfriadas para que se reduza o risco de combustão (a insistência do real não simbolizável condena o sujeito ao retorno recorrente do episódio irradiador de sofrimento excruciante); (2) de sublimação, por meio da qual (2.1) são incorporadas como índice de instabilidade sistêmica, cuja energia sem finalidade contagia a realidade com o espectro de uma negatividade disruptiva ubíqua (o anverso da insegurança constante, irmã gêmea do medo, é a introdução no princípio de realidade da expectativa -eventualmente benigna- de mudança, em certa medida um correlato do desejo), e (2.2) são ressignificadas e deslocadas, ou transpostas para a esfera das narrativas coletivas e mitologias locais. Se a ordem é tão precária e se assenta na postergação de seu colapso, há um outro que se infiltra no monólito aparentemente impermeável das coisas como elas são, uma sombra imponderável mas perceptível que se mostra em dupla face: o que é pode não ser e os cativos do destino podemos nos tornar livres de amarras e protagonistas de outra história.

Uma película discursiva, intersubjetiva, conecta e envolucra falas e atos, insinuando-se, sutilmente, entre o que acontece, todos os dias, há tanto tempo, impondo-se às percepções, cujos efeitos não admitem ilusões, e aquilo que a comunidade se dispõe a nomear – sabendo-se que nomear é designar, descrever, reconhecer, mas também evocar. Portanto, recusar-se a nomear poderia implicar o engendramento da tessitura simbólica (aqui vale dizer, estética) que operaria o feitiço de promover a atenuação ontológica do indesejado e a gestação da mudança. Essa película poderia ser apresentada, metaforicamente, como a membrana (afetiva, política e estética) que protege o corpo social enquanto o organismo, a coletividade, prepara a troca de pele: a metamorfose que tem a força e o alcance da mutação.

Aquilo que soa ambíguo e impreciso em falas vacilantes – “é e não é” – talvez ganhe nitidez e relevância, interpretado sob esse prisma. Cabe sublinhar que são inúmeras as entrevistas qualitativas em que a presença do tráfico suscita a mesma hesitação aqui provocada pela divisa. Dizer taxativamente que algo é implica assumir o compromisso com essa existência, que a nomeação consagra e, politicamente, de algum modo, autoriza. Trata-se de um pacto de quem nomeia com o nomeado – nesse caso, com as fontes do medo –, pacto cujo preço é a insensibilidade para a fraqueza dessa demanda de realidade (demanda atendida pelo ato que nomeia), é a insensibilidade para a fraqueza dessa vontade de existência, dessa ambição de mundo. Quem nomeia com o desembaraço da certeza ante evidências furta-se a ver quão débil é o pleito por vir a ser de cada fonte do medo, as máquinas entrelaçadas (que se retroalimentam) do tráfico armado, das milícias e das polícias. Sim, porque o que “é” precisa “vir a ser” continuamente, “reiterar-se”, movimento que comporta o risco de desvio embutido em toda reprodução. O que aparece sob o modo de permanência é insistência reiterada. A dinâmica pode ser lida em chave ontológica, mas se apreende mais plenamente como formação do sujeito, configurando-se entre os limites e as exigências da economia psíquica e as vicissitudes da linguagem.

Assim, não é necessariamente por medo ou incoerência que tantos entrevistados e tantas entrevistadas oscilam entre admitir o medo e abjurá-lo, confirmá-lo e negá-lo, entre falar da divisa e dos tiroteios e calar, entre pronunciar carência e preenchê-la com a fartura de esperanças, afetos, virtudes, realizações e compromissos. Esses compromissos com raízes arcaicas, idealizadas ou não, com valores, origens e histórias comuns são provas de lealdade a homens e mulheres que construíram famílias, descendência e uma comunidade. E o que soa como subestimação da gravidade da violência talvez seja exercício de resistência. Resistência a aderir ao que é como realização plena do que pode ser, como se a versão atual da realidade, tão avara, iníqua e apequenada, esgotasse todas as possibilidades inscritas no real, excluindo potenciais não realizados mas contidos no que é.

Hesitar talvez corresponda a fazer reverberar os sentidos da realidade, suas implicações e contradições, para além dos recortes e mesmo da censura que os poderes em jogo tentam administrar. A película discursiva opera como o filtro solar que submete a luz a refrações, abrindo o espectro de cores e tonalidades. Não restringe a visão, amplia o campo do visível e matiza as imagens, introduzindo gradações e variações de outro modo neutralizadas pela intensidade dos raios. Não se trata de ser mais ou menos realista ou de adotar o relativismo como abordagem, reduzindo todo enunciado a escolhas legítimas e equivalentes. Trata-se de entender a estética aplicada nessas estratégias de composição das distintas camadas de sentido, conhecimento e afeto, amalgamadas nas percepções e nas experiências que as falas comunicam e silenciam. Talvez por isso tantos jovens valorizem a poesia e o Slam (os torneios de poemas falados) faça tanto sucesso. O Slam talvez circunscreva, ritualmente, e exponencie o trabalho da linguagem que a criatividade coletiva exercita cotidianamente para dar conta da sobrevivência física e mental, ante muitos percalços, e não se deixar atolar na areia movediça paralisante que alguns confundem com “a realidade” -realidade que, uma vez consagrada na epistemologia rudimentar da capitulação, torna-se profecia que se autocumpre.

Vale descer aos detalhes de alguns exemplos: a moradora lembra-se da cena bárbara que a marcou, um linchamento perpetrado por membros de uma facção armada, mas tampouco esquece a presença do marido a seu lado, que em seguida a acompanha de volta para casa, oferecendo sua companhia como apoio prático e mediação simbólica entre dois polos: de um lado, o indizível, perturbador e inassimilável, de outro, a materialidade plena de sentido da casa que, antes de ser a palavra que a descreve, acolhe, mais que representa, realiza o acolhimento e serve de guia e modelo para toda assimilação – de que a economia psíquica não prescinde para prevenir o trauma. A casa é inteligível e previsível, como a parceria amorosa e o histórico que a sustenta, como as relações familiares e suas reasseguradoras projeções prospectivas. O trajeto entre flagrar o linchamento e voltar à casa não apagou o evento brutal nem anestesiou a indignação e a repulsa. O trajeto deu-se em dupla dimensão, física e simbólica, as duas negociando entre si e se reforçando, mutuamente. Há o assassinato covarde e o amor, o espaço da irrupção do desvario e o abrigo que liga o passado ao futuro e concretiza o presente sob a forma de proteção, traçando forte separação, ética e afetiva, do abominável. Resta a vítima, desafortunadamente entregue a seu destino. Nada havia a fazer para salvá-la ou mitigar seus tormentos, por isso, era necessário impedir que a violência despedaçasse também a testemunha, seu espírito. Aprende-se que não se pode tudo, nem mesmo em nome da justiça, da compaixão, da piedade. Realidade é também o que resiste à vontade, sendo essa opacidade, a impermeabilidade, a crispação dessa diferença, outro componente a identificar na prática cognitiva. São lições de finitude que domesticam a culpa, cujo papel seria aqui exclusivamente corrosivo e autodestrutivo. Conflitos, desespero, impotência, tudo isso é verdadeiro, dói e requer labor consciente e inconsciente, ajuda e recursos simbólicos para ser elaborado, e nem sempre se consegue elaborar, como atesta o sofrimento psíquico tão disseminado.

As ambiguidades e hesitações – que podem ser, como vimos, muito mais do que adaptações subservientes a imposições (e ameaças veladas) dos poderes locais ou a chantagens policiais – geram embaraço grave para a ideologia (a versão da realidade que simula legitimidade e dissimula contradições), na medida em que abrem um hiato pelo qual se percebe, ou intui, o atrito entre o discurso hegemônico na sociedade (deixando em segundo plano as distinções entre credos e valores, que em geral não o abalam) e as condições que lhe conferem verossimilhança. A ordem discursiva dominante, aqui denominada ideologia, carrega conteúdos que justificam as relações capitalistas, excluem alternativas do campo de possibilidades e pressupõem um acordo indisputável (definitiva e irrevogavelmente consagrado) quanto às raízes supostamente ontológicas e indisputáveis do princípio de realidade, cuja implicação primordial é a crença mistificadora na transparência da linguagem.

A hesitação mostra e recolhe o que os nomes retratam. A hesitação os justapõe a outras palavras que desdizem o dito. Esse movimento é chave, porque sua matéria o é. Decide comportamentos e orienta avaliações. Constitui a realidade em seu eixo, ou a destitui e desestabiliza. A instabilidade semântica suspende o pressuposto matricial da ideologia e sua implicação primeira: a indisputabilidade do acordo quanto ao princípio de realidade e a transparência da linguagem. Dizer que algo é e não é desloca a referência do mundo (ingenuamente tomado como o depósito das coisas que são) para a dança da vida real permeável à ação, para o dinamismo intrínseco à história. O movimento que hesita torna-se a referência da enunciação. O performativo salta sobre o uso constativo da linguagem. Hesitar propõe aos afetos e à imaginação a hipótese de que a realidade seja um continente de possibilidades, entre as quais se incluiriam aquelas incompatíveis com a armadura politicamente consolidada pela modernização conservadora e autoritária de nosso capitalismo periférico. Aqui, vale a redundância, hesitar não designa a indecisão entre dizer e não dizer, mas o movimento ativo que formula uma contradição, atribuindo-a ao real, não a deficiências cognitivas. A coisa “é e não é” não porque quem enuncia o verbo não sabe se a coisa, efetivamente, é ou não é. A simultaneidade de ser e não ser é aquilo que é, porque o que é traz consigo, nesse caso, para além das evidências positivas, uma alteridade irredutível, que é potencialidade para a ação, que convoca a ação e inscreve a mudança no campo do real. Quando se fala em esperança, é dessa abundância do real, é desse mesmo excesso que se trata. Está aí isso que é e está aí, ao mesmo tempo, a negação disso que é, sendo essa segunda realidade aquilo que não se vê porque não se afirmou enquanto prática, e nem por isso deixa de ter presença pela mediação de seus efeitos, por antecipação ou potencialização. Se o enunciado fosse unilateralmente negativo, “a divisa não existe”, seria negacionista, delírio ou manipulação; se fosse exclusivamente positivo, “a divisa existe” – “o tráfico e o medo existem” seria o enunciado correspondente em outros depoimentos –, descreveria um fenômeno existente mas de um modo limitado e correndo o risco de reificá-lo, como se a divisa resultasse de uma necessidade à qual fosse irrealista (irracional) resistir, uma necessidade imperiosa que seria impossível transformar. A enunciação dupla é aguda porque recusa o negacionismo e a reificação. Nesse sentido, a enunciação é um gesto, uma pequena obra de arte viva que mobiliza conhecimento e política, especulação e ação, contemplação e protagonismo, epistemologia e estética.

Estamos prontos, agora, para refletir sobre o que nos diz a entrevistada a propósito da categoria “naturalização”, que ela comenta diretamente ou pela categoria análoga “banalização” – cujo diálogo tácito com Hannah Arendt não esgota os significados de seu emprego. Retomemos a passagem já citada: As pessoas não naturalizaram ou banalizaram, não “se acostumaram, ninguém se acostuma com armas na sua frente, mas também você enlouquece se pensar nisso dia e noite”.

Naturalização tem dois sentidos: (1) Reificação, processo em que automatismos alcançam tamanha autonomia que substituem deliberações, as quais implicam responsabilidades, ou as deslocam para que o império dos efeitos padronizados e previsíveis se reproduza sem mediações subjetivas ou intersubjetivas, o que se verifica na medida em que a objetividade (a realidade cristalizada) anula os sujeitos, subordinando-os à ordem das coisas. (2) Atribuição irrefletida e acrítica do estatuto de inexorabilidade à rotina, ou seja, a constatação resignada de que certas dinâmicas a princípio inaceitáveis têm curso contínuo na sociedade e que, mesmo permanecendo inaceitáveis, passam a ser consideradas inevitáveis, o que implica tácita autorização para sua continuidade e cria uma estrutura de realidade em que se admite conviver com o que, entretanto, não se aceita. Na prática, passa-se a aceitar o inaceitável, por força de acomodação supostamente realista aos supostos imperativos da necessidade. Transfere-se à ordem do inevitável, como a morte de quem vive, o que é obra humana, favorecendo – e justificando – sua continuidade. Por isso, esse “acostumar-se” com o abominável tem consequências práticas devastadoras. Ao fim e ao cabo, a resignação nos devolve à reificação. Em outras palavras, a resignação é um dispositivo afetivo-cognitivo-psicológico que atesta e coonesta a lógica da reificação, enquanto modo multifatorial de produção da realidade. É, portanto, a reificação matizada pela culpa; é a rendição e a pusilanimidade que ganham corpo. O viés psicanalítico talvez propusesse uma analogia entre o mecanismo da naturalização e a compulsão à repetição, o primeiro funcionando na vida coletiva como o segundo atua nas experiências individuais. A compulsão, reconhecida ao menos em seus efeitos e repelida no plano da consciência, é mais forte que a vontade, “toma o lugar” do sujeito, assume o protagonismo e se põe em prática.

Nossa interlocutora nega que a resignação cúmplice exista na comunidade. Vai além: afirma que não há hipótese de que haja espaço para esse “acostumar-se”, quando os atores sociais estão diretamente envolvidos, como vítimas diretas ou indiretas, potenciais ou reais. Sem pôr em dúvida a acuidade do que ela diz, que faz todo sentido e é corroborado pelo conjunto de dados reunidos na pesquisa, talvez fosse pertinente sugerir que modulássemos sua constatação, introduzindo um gradiente por meio do qual diferentes formas de “não-se-acostumar” pudessem ser identificadas e analisadas. Consideremos algumas variações que encontram correspondência na experiência empírica:

(A) Há quem se abale tão intensamente ao vitimar-se ou testemunhar atos de violência que lhe faltem forças para submeter a vivência à elaboração simbólica que a elabore e integre. Sem lugar e sentido, recalcada, expelida da órbita da economia psíquica, a brutalidade do real permanece extraviada como um meteoro explosivo. A qualquer momento, um toque fortuito no elemento desencadeador (cuja presença e função se revelam somente a posteriori) pode disparar a corrente insuportável de dor e assombro, provocando pânico, prostração depressiva, a asfixia anímica da angústia, a inquietação vertiginosa da ansiedade. Eis aí o trauma, um fenômeno de repetição, que se manifesta como o histórico de padecimento que o sucede, a síndrome do stress pós-traumático. Nesse caso, atitudes que parecem caber na expressão “acomodar-se” ao inaceitável, porque soam a indiferença ou expressam a negação de sua ocorrência (ignorando os fatos ou os apagando da memória), nada têm a ver com acomodação resignada.

(B) Há quem desenvolva a capacidade de deixar-se impactar por atos brutais, elaborando-os, resistindo a seus efeitos desestruturadores, integrando-os e os deslocando para o segundo plano administrável da consciência e da memória, graças ao equilíbrio psíquico-afetivo que já logrou cultivar e a narrativas poderosas que incluam e valorizem a autoconstrução de si dos sujeitos, sem prejuízo do reconhecimento da própria finitude e, portanto, sofrendo o medo e a insegurança mas sem paralisar-se. Como disse a entrevistada: “você enlouquece se pensar nisso dia e noite”. Há que erguer uma proteção, alguma dose de anestésico pode ser salutar. Nada a ver com ausência de empatia ou “alienação”.

(C) Outro personagem típico hipotético é aquele ou aquela que não renuncia à empatia, tampouco se dessensibiliza, mas adota estratégias de sobrevivência que são também recursos de saúde mental, as quais recomendam o estabelecimento de relações pragmáticas com os poderes locais, cujas decisões incidem sobre a vida comunitária. Não se trata de valentia ou covardia, nem de juízos morais, mas de avaliações racionais de correlações de força no cálculo da própria trajetória, que prescrevem palavras e gestos. Se há tirania, é preciso não se deixar destruir por ela até mesmo para ousar reduzir-lhe o potencial destrutivo. Injunções da sobrevivência não produzem acomodação, mas modalidades de disputa por sentido e liberdade que exigem negociação com os limites -esse processo delicado e tortuoso merece ser designado resistência.

(D) Há também quem, como nossa interlocutora, apure a sensibilidade e a inteligência o suficiente para inscrever o abominável numa dobra da realidade na qual o positivo (fáctico) e o negativo (potencialidades de mudança que inviabilizem o status de sua existência mesma) se sobrepõem, indistinguíveis, como se o que aconteceu (e acontece) ocupasse o limiar entre ser e não ser, ocorresse e não ocorresse, fosse visível e não fosse visível, inteligível e ininteligível, nomeável ou inominável. Não se trata da lógica do trauma nem da estratégia de negociação para sobreviver com vetos e ameaças dos poderes locais, calibrando as palavras, mesmo dentro de casa. Aqui, a hesitação e a ambiguidade, conforme já havíamos procurado demonstrar, inauguram uma epistemologia crítica (ativa em si mesma, enquanto discurso performativo) que dialoga (sem render-se a idealizações ou ao autoengano) com o desejo, a ética e a política, em sua acepção ampla e nobre: aposta-se que o futuro esteja embutido no presente (porque potencialidade é infusão de tempo no ser, ou a melhor definição do ser) e que a reiteração, sempre em curso, do que é (aquilo que é reitera-se para ser) pode ser interceptada, uma vez que a história (a avalanche de ações interconectadas mutuamente funcionais ou colidentes em busca de uma morfologia) não é destino e não oferece garantias ontológicas.

Aí estão algumas das modalidades de relação estabelecidas entre os sujeitos e a experiência da vitimização, seja ela direta ou indireta, atual ou virtual. Nem todos os tipos listados são mutuamente excludentes e podem suceder-se na biografia de um mesmo indivíduo. Por outro lado, a experiência que provoca, assusta, choca ou traumatiza nem sempre é a violência, entendida como ato físico de agressão ou grave ameaça. Há situações passageiras ou prolongadas, derivadas das desigualdades entre as classes (como o desemprego), do racismo estrutural (como o estigma que bloqueia o acesso ao emprego), da misoginia (que se traduz, no limite extremo, em feminicídio, mas se manifesta em iniquidades competitivas com os homens, no emprego ou mesmo no mercado informal), da homofobia ou da transfobia (que matam, mas também desempregam), situações que oprimem, humilham, causam o sentimento corrosivo de impotência, levam ao desamparo e ao desespero.


* Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP. Publicou mais de vinte livros, dos quais os mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019), Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020) e o romance Enquanto anoitece (Todavia, 2023).

 

Notas

[1] O presente ensaio reúne os dois primeiros capítulos de meu livro Maré e a longa gestação do novo mundo, publicado, em 2021, pelo People’s Palace Projects, no âmbito de sua parceria com a Redes da Maré, a Queen Mary University of London, os Departamentos de Serviço Social e Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, e o Núcleo de Estudos em Economia da Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, com o apoio do Economic and Social Research Council e Arts and Humanities Research Council, através do Global Challenges Research Fund. Originalmente, o ensaio foi escrito como contribuição à pesquisa Construindo Pontes, coordenada por Paul Heritage e Eliana Sousa. Minha participação se deu no interior da equipe de cientistas sociais, dirigida por Miriam Krenzinger, para cujo relatório final também contribuí. Sou grato a Paul e Eliana pelo convite para participar da pesquisa, a tod@s @s colegas, por enriquecerem meu conhecimento sobre as comunidades, e muito especialmente a Natália Guindani e, sobretudo, a Miriam, pelo acompanhamento passo a passo de minhas análises e por inúmeras sugestões fundamentais. Devo a Miriam boa parte do que houver de positivo em meu texto – mas não lhe transfiro responsabilidade por meus eventuais equívocos. Nada teria sido possível sem a generosa disponibilidade de moradores e moradoras da Maré a compartilhar conosco suas reflexões, percepções e sentimentos. Sou grato a Paul Heritage também por sua leitura aguda, que propiciou correções e desenvolvimentos muito relevantes.

[2] Michel De Certeau (1998, original 1990) e Veena Das (2011, original 2007), em estudos primorosos que alcançaram o estatuto de clássicos, já demonstraram seu lugar estratégico na formação subjetiva e na tessitura das redes sociais. Certeau, Michel De – A Invenção do cotidiano; artes de fazer. Vozes, 1998 [Tradução: Ephraim Ferreira Alves] (L’Invention du quotidien; arts de faire. Gallimard, 1990).  Das, Veena – “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”, In Cadernos Pagu (37), julho-dezembro de 2011:9-41. [Tradução: Plínio Dentzien] (“The Act of Witnessing: Violence, Gender, and Subjectivity” In Veena Das, Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary, University of California Press, 2007).

[3] A obra de Stanley Cavell citada por Veena Das é Disowning Knowledge in Six Plays of Shakespeare. Cambridge, Cambridge University Press, 1987. Citar a apropriação que faz Veena Das da interpretação polêmica que Cavell propõe sobre a obra de Shakespeare não implica endossar sua leitura do grande dramaturgo. As teses de Veena Das valem por si mesmas.

[4] No ensaio memorável já referido, Veena Das nos dá régua e compasso, embora analisando uma realidade bastante diferente: “Essa imagem de voltar evoca não tanto a ideia de um retorno, mas uma volta para habitar o mesmo espaço, agora marcado como um espaço de destruição, no qual você deve viver outra vez. Daí o sentido do cotidiano em Wittgenstein como o sentido de algo recuperado. Como tornar tal espaço de destruição em seu próprio espaço, não por uma ascensão à transcendência, mas por um descenso ao cotidiano, é o que descreverei através da vida de uma mulher …” (p. 16)

[5] Nussbaum, Martha, The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Cambridge University Press, 1986.

[6] Há extensa bibliografia nacional e internacional em torno de luto, memória, ritos de reparação e lutas de mães que perderam filhos de forma violenta em favelas, sobretudo assassinados por policiais, ou mortos por agentes de ditaduras. Seguem algumas referências importantes:

CATELA, L. S. Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo: Hucitec, Anpocs, 2001

CATELA, L. S. Rituais para a dor. Política, religião e violência no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, P.; LEITE, M. P. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

JIMENO, M. Emoções e política: a vítima e a construção de comunidades emocionais, Mana, v. 16, n, 1, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132010000100005>. Acesso em: 21 ago. 2018.

LEITE, M. P. As mães em movimento. In: BIRMAN, P.; LEITE, M. P. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
LEITE, M. P.; BIRMAN, P. (Orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

VIANNA, A.; FARIAS, J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional, Cadernos Pagu, n. 37, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010483332011000200004&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 21 ago. 2018.

Algumas pesquisas focalizam intervenções estéticas nesse mesmo contexto, como a dissertação de Natalia Guindani:

GUINDANI, Natália. Arte e rituais de luto em contextos de violência: os trabalhos de denúncia e homenagem produzidos pelo coletivo Magdalenas por el Cauca – Colômbia. 2018. 144 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018.

[7] A citação segue: “Explico: valor não se descreve; opera, sim, como ordenador de relevâncias ou como indexador de hierarquias, instituindo e circunscrevendo arenas ou espaços de investimento afetivo e imaginário (com dimensões cognitivas, simbólicas, expressivas e comunicativas) para conflitos entre escolhas ou entre alternativas excludentes de figuração da memória humana, as quais envolvem hesitações intensas, cuja tensão corresponde, segundo meu ponto de vista, à vivência mesma da moralidade. Definido como diferenciador mais importante para o juízo, moral e afetivamente concernido – vale dizer, existencialmente radicado -, o valor qualifica a vida humana, diferenciando-a, o que lhe atribui função ordenadora para os processos de significação e um duplo papel, mnemônico e prospectivo. Não há teleologias desprovidas de valor, ou que não nasçam, em alguma medida, do valor” (Soares, L.E., “O lugar do sofrimento humano no pensamento político moderno”, In Os dois corpos do presidente, Relume Dumará, 1993). (A primeira versão deste ensaio foi apresentada por ocasião do lançamento do livro Impacto da modernidade sobre a religião [editora Loyola], no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, dia 2 de setembro, 1992, em mesa-redonda que também contou com a presença dos professores José Jorge de Carvalho e Maria Clara Binguemer [coordenadora]. A presente versão foi apresentada em 22 de outubro de 1992, no âmbito do Grupo de Trabalho Religião e Sociedade, coordenado pela profa. Maria Helena Villas Bôas Concone, na reunião anual da ANPOCS, realizada em Caxambu, Minas Gerais. O artigo foi republicado em Legalidade Libertária. Lumen-Juris, 2006.)

[8] Em depoimento a Miriam Krenzinger.

[9] O depoimento foi colhido por Natália Guindani.