Ano XVIII 01
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DA ANTROPOFAGIA À AUTOFAGIA: APONTAMENTOS SOBRE UMA TENDÊNCIA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

1. Antropofagias e autofagia

Como é bem sabido, a antropofagia da qual fala Oswald de Andrade no manifesto de 1928 é um ritual que permite englobar no sistema cultural de uma tribo (no caso, os Tupinambás) os valores do inimigo. Uma atitude absolutamente revolucionária até hoje, se a compararmos com o nosso sistema de lidar com o adversário capturado: a nossa estratégia é a de isolar, confinar, encarcerar; em alguns casos suprimir; e, em todo caso, esquecer. Quanto mais potente for o nosso inimigo, tanto mais será preciso neutralizá-lo. Excluído e recluso. Ao contrário, na sugestão de Oswald, não se trata de neutralizar mas de utilizar, de incorporar ao invés de rejeitar. Dessa forma, não se dispersa nada do que, pertencendo a quem se é contrário, é potencialmente útil. Sobretudo, o sistema axiológico do inimigo não somente não é negado, mas é ressaltado. Lembremos que se trata de uma provocação, mas por trás de cada provocação há um desejo autêntico de subversão e de novos valores: por exemplo, o “matriarcado de Pindorama” parecia ser (e talvez ainda pareça) uma miragem aliciante, e isto muito embora possa não ter sido real.[1]

É usual indicar poucas obras que tenham seguido as indicações do manifesto oswaldiano (e nenhuma de Oswald, por sinal, a não ser o próprio Manifesto, que, não por acaso, se define Antropófago e não Antropofágico), e tais obras são, como se sabe, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e, retroativamente, O Guesa errante, de Sousândrade. Substancialmente, por uma espécie de crase interpretativa, definiram-se como antropofágicas – ou antropófagas – as obras que de certa forma incorporaram as culturas indígenas.

Na realidade, observando bem, quatro anos antes do Manifesto antropófago, a Poesia Pau-Brasil já praticava a devoração da cultura europeia (inimigo sagrado) para criar quadrinhos nacionais. E, sem querer deformar um autor universal como Guimarães Rosa, vemos como Grande Sertão: veredas também se alimentou daquela cultura europeia que se encontra nos antípodas do mundo representado no romance: um texto brasilianíssimo, embora nutrido de saberes clássicos (não somente ocidentais), uma obra local e global, como indicou, entre outros, Ettore Finazzi Agrò (2001). Confirmando esta visão, Eduardo Sterzi (2022) acolhe Guimarães Rosa em seu ensaio recente sobre antropofagias.

E um estudo amplo e aprofundado sobre a reelaboração – frequentemente estereotipada – do conceito de antropofagia na cultura brasileira, desde a redescoberta do movimento nos anos 1950 até hoje, é oferecido pelo ensaio de Alessia Di Eugenio, La cultura della divorazione, estudiosa que ampliou suas pesquisas no exame da reapropriação indígena deste conceito, de certo modo inventado pelo colonizador branco a partir de sua própria visão das culturas locais.

Parece-me, porém, fundamental sublinhar que, no exame do fator antropofágico, deve-se entender como “inimigo” seja quem, antagonista e estrangeiro, é admirado (a cultura europeia, por exemplo), seja o inimigo interno (os conteúdos recalcados porque inadmissíveis). Neste caso, por exemplo, o ato de comer a própria tradição inimiga do progresso significa reconhecê-la ao mesmo tempo positivamente como criadora de progresso, carregando valores em seu próprio mundo na época em que se apresentara como novidade.

Se o moto da antropofagia literária pode ser superficialmente aproximado da mera prática da citação ou do pastiche (e neste caso as praxes pós-modernas o englobariam cabalmente), na realidade ele inclui uma segunda fase que é a do reuso, da profunda reciclagem, da metamorfose. E é através desta metamorfose que se amplia o cânone. O que era excluído agora chega a ser integrado, por um ato de vontade do artista que o resgatou.

Gostaria de propor uma reflexão ulterior que conduz ao conceito que eu definiria como “autofagia”, pelo qual quem é comido faz parte da mesma cultura de quem comeu. Observo, com efeito, que a cultura brasileira de hoje parece com frequência querer digerir a si mesma, não somente recuperando e re-ingerindo a tradição oposta à vanguarda, mas também, e especialmente, as partes mais indigestas do suposto “progresso”, tais como a escravidão, o subdesenvolvimento, a dependência ou a desigualdade social extrema, para tranformá-las numa mensagem ou um aviso para os tempos presentes.

Não se trata, portanto, da diferença aberta entre antropofagia endo e exocanibálica, porque não são as qualidades positivas dos antepassados que são ingeridas (como no endocanibalismo, ou endofagia), e sim as qualidades incômodas porém poderosas. Através da incorporação dos assuntos mais dissonantes – difíceis de serem incluídos no discurso literário ou artístico –, os momentos disfóricos não somente são mencionados e criticados, mas são encaixados no discurso criativo. O passado e o presente que incomodam serão reabsorvidos e replasmados.

Considerando bem, ainda, quando a Poesia Pau-Brasil repercorria (como diz o Manifesto homônimo) “toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil” e apresentava casos e cenas de donos e escravos num tom ligeiro (talvez o humorismo pirandelliano, o tragicômico “sentimento do contrário”), estava digerindo o intolerável – porém real – passado colonial, não renegado mas sim corajosamente exibido no estilo antirretórico das vanguardas, ousando até o sorriso.

2. Desmascarar com ironia: a Canção do subdesenvolvido

Como para criar uma trilha sonora para estas considerações, quero trazer como primeiro exemplo a “Canção do subdesenvolvido”, de Carlos Lyra e Francisco de Assis, de 1962.

Figura 1: Encarte de O Povo Canta, álbum do Conjunto CPC, do Centro Popular de Cultura da UNE (1964)
Figura 1: Encarte de O Povo Canta, álbum do Conjunto CPC, do Centro Popular de Cultura da UNE (1964)

Nesta obra atuavam ambos os tipos de antropofagia descritos acima, os mesmos que se encontram em Pau-brasil: utilizavam-se os modos do inimigo externo (que neste caso é também um adversário econômico-político) para falar de um tema local negativo e presente desde sempre, porém tão visível que não era mais percebido: a dependência.

Fagocitando diversos estilos musicais tirados do mundo anglo-saxão, o mundo dos especuladores estrangeiros, uma melodia animada por um refrão alegre lembrava como o Brasil tinha sido explorado e vendido em várias fases de sua história, portanto procurava através do humor recuperar verdades indizíveis (o inimigo interno!) e conscientizar a população, de forma que a ironizada “vida nacional” se tornasse uma realidade conhecida por todos os que nela estavam ignaramente imersos. Vale ressaltar que a longa palavra “subdesenvolvido”, fonicamente pouco apta para ser musicada, é repetida inúmeras vezes no estribilho, de modo que quase perde o sentido, tornando-se normalizada assim como fora normalizada a realidade correspondente, sobre a qual os autores quiseram despertar a atenção.

3. Cantar o inaceitável: Noites do Norte

Sempre passando da ingestão do que pertence a outros para a ingestão do que é interno à própria cultura brasilieira, podemos mencionar uma canção insólita de Caetano Veloso, que já com o movimento da Tropicália nos acostumara com miscigenações antropófagas.

A canção “Noites do Norte” dá o título ao CD de 2000 dedicado à história e à cultura afrobrasileiras. Eis a letra:

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte… É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.

São as palavras de Joaquim Nabuco tiradas de sua célebe autobiografia intelectual, Minha formação, de 1900.

A música do Caetano para esta letra é bastante anômala, pois oferece uma melodia dificilmente memorizável, justaposta ao trecho de forma a não alterá-lo, mas sofrendo pela falta de ritmo desta prosa cheia, porém, de imagens poéticas. Apesar das dificuldades em adaptar o canto a um texto tão refratário, Caetano quis oferecer, para divulgá-lo, suas capacidades de cantor e compositor, para fazer transitar a mensagem para além do restrito círculo dos leitores do grande abolicionista. Sobretudo, engolindo e reexpondo o texto a um século exato de distância, Caetano nos fazia aceitar o inaceitável: a existência de uma nostalgia da escravidão, a presença liricamente transfigurada de mulheres e homens deportados no solo americano e destinados a uma vida de sofrimento, num trecho que começava pela palavra “escravidão” e elencava uma série de termos positivos: “suavidade”, “religião natural e viva”, “encantamentos”, “alegrias”, “felicidade”, para rematar com o luar.

A figura do inimigo interno acima definida foi aqui neutralizada, e pode ser desvelado o elemento que fora recalcado (em termos freudianos) pois moralmente condenável. Sobre escravos e escravidão pode-se falar também poeticamente, e não somente em termos de violência ou condenação. Mais adiante no texto, Nabuco falava de sua ama africana e do afeto para com a população negra. A complexidade da questão do legado afetivo do regime escravista, explicitada por Nabuco, é enfrentada e divulgada por Caetano numa operação preciosa. Uma reciclagem de grande efeito que ressalta o que existia e parecia inadmissível.

4. Relembrar palimpsestos violentos: Descobri que estava morto

Um terceiro exemplo, outra digestão que também durara um século.

Quando o jovem escritor João Paulo Cuenca recupera a posição política e cultural de Lima Barreto de forma direta e indireta no romance Descobri que estava morto (2016), não está somente exibindo um jogo literário, está apontando para o fato gravíssimo de que o governo do Rio de Janeiro (e metonimicamente do país) não aprendeu a lição da História, repetindo na cidade – ironicamente e às vezes sarcasticamente definida “olímpica” em vista dos Jogos de 2016 – a demolição das moradas pobres em prol de uma política ao mesmo tempo de “depuração” e de especulação mobiliária. O protagonista autobiográfico, que atravessa todas as camadas sociais num enredo tingido de romance policial, desde os festins dos jovens de sucesso até as áreas mais degradadas, está remapeando uma cidade que se rasura a si mesma. As observações paralelas sobre o atual violento programa político-militar do Choque de Ordem e sobre as muitas demolições do início do século XX (particularmente a do Morro do Castelo), acompanhadas estas últimas pelas coevas citações de Lima Barreto, nos lembram que já passamos por isto. Devorar o escritor incômodo e corajoso de um século atrás significa reavivar um passado escabroso de destruição que fora neutralizado por uma arquitetura moderna e modernista, como provavelmente seguirá acontecendo com as construções pós-modernas e pós-modernistas que cobrem elegantemente o extermínio dos pobres.

Mas eis que, devorado o passado para transformá-lo em lição, o escritor ousa exibir-se e mostrar sua insuficiência citando-se de forma sincera e desencantada, e, de alguma forma, autodevorando-se:

[…] no fim das contas, o movimento de encarecimento da cidade e as violações dos direitos humanos me incomodavam apenas o suficiente para eu me aproveitar disso num livro antes de me mudar de cidade e país.
Ou, pelo menos, esse era o meu plano.
(Cuenca 2016: 63).

5. Reexumar vidas do lixo: Lixo Extraordinário

Música, literatura, e um exemplo das artes visuais.

O artista e fotógrafo Vik Muniz conduz há tempo uma operação de releitura das ícones da cultura ocidental, reconstruindo tais obras com materiais insólitos de forma a apontar para uma reflexão sobre a nossa relação com uma realidade frequentemente fetichizada: chocolate, ketchup, diamantes, açúcar, retalhos de revistas. A operação talvez mais extrema é a que se encontra narrada no célebre documentário Lixo Extraordinário (2010), por si já um título antropófago que engole T.S. Eliot para chegar ao material incomum empregado por Vik para criar o objeto de sua fotografia, ou seja, o lixo do aterro de Jardim Gramacho (RJ), que foi descrito como o maior do mundo e que hoje não existe mais. Como é sabido, o vídeo emocionante relata a experiência de arte compartilhada com jovens catadores de lixo reciclável: Vik teve a ideia de recuperar alguns destes objetos descartados para reconstruir, em escala gigante, imagens artísticas que fizeram a história: a Repasseuse de Picasso, o Atlas de Guercino, a Morte de Marat de David ganham vida com os vultos das meninas e dos meninos catadores, resgatando-os do olhar que vê a eles mesmos como descartes. E as imagens são tão tocantes como é tocante a consciência de que atrás daquelas caras transfiguradas pelo resultado artístico há percursos humanos tão afastados de nós como tão em primeiro plano.

Figura 2: Cartaz de <em>Lixo Extraordinário</em> (Lucy Walker, João Jardim, Karen Harley, 2011)
Figura 2: Cartaz de Lixo Extraordinário (Lucy Walker, João Jardim, Karen Harley, 2011)

Como na ação antropofágica, temos aqui um movimento circular, que parte do reconhecimento do que é alheio (“Só me interessa o que não é meu”, diz o Manifesto oswaldiano) e de sua valorização para torná-lo próprio através de uma transformação radical, uma digestão, e devolvê-lo sob a forma de um valor agregado. Para cumprir até o fim esta ciclicidade, nesta como em outras operações (por exemplo, as Crianças de açúcar da ilha caribenha de St. Kitts), Vik doa parte dos lucros da venda das obras aos protagonistas com quem trabalhou. Nada mais próximo da arte da reciclagem, nada mais mágico do que a transformação do lixo em emoção e aviso.

6. Reafirmar pertenças ancestrais: Ori/cachoeira

Para variar, um pouco de teoria, um pouco de feminino.

Na teoria feminista de estudiosas afroamericanas e afrobrasileiras como Carla Akotirene, a pertença à cultura yoruba é reafirmada com convicção como uma forte herança ancestral e existencial que marca a maneira de se aproximar da realidade seguindo modos afins aos outros seres da natureza. Akotirene, enfrentando o ambiente asséptico da teoria literária, se define corajosamente em tal sistema como a “cachoeira”, que com suas afirmações cria “estrondos” à sua passagem, ou seja, tem um efeito de subversão. O choque epistemológico pode ser avaliado se imaginarmos comparar este lance a um(a) cientista que ponha em relação sua tarefa de descobridor(a) de novos terrenos com seu nascimento sob o signo de Áries. E em seu volume Interseccionalidade, de 2018, o primeiro agradecimento da estudiosa “pela firmeza da escrita” é justamente para seu Ori, a divindade pessoal (a “cabeça”) que norteia os indivíduos desde antes de nascer até depois a morte.

Saberes complementares, frequentemente menosprezados como irracionais e portanto irrelevantes e daí risíveis, são resgatados publicamente para gerar imagens poderosas e eficazes. Em vez de o irracional rebaixar a importância do aporte intelectual, o valor deste último é inserido num sistema que reavalia o que geralmente é descartado.

7. Nota à margem e conclusão moralizante

Uma nota à margem. O objetivo do prêmio Right Livelihood Award, criado pelo sueco Jakob von Uexkull e considerado por alguns um Nobel paralelo, é o de “ajudar o Norte a encontrar uma sabedoria que corresponda à ciência que possui, e o Sul a encontrar uma ciência que corresponda à sabedoria que possui”. Ou seja, para além da mecânica divisão Norte/Sul, por vezes simplificada e estereotipada, a mensagem é: aceitar a necessidade de integração.

Pequena moral, para concluir: se aprendéssemos com “o que não é nosso”, ou com o que é nosso mas não é reconhecido, os nossos saberes seriam talvez menos impotentes.


* Maria Caterina Pincherle é professora da Sapienza Università di Roma.

 

Referências

AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2018.

CUENCA, J.P. Descobri que estava morto. São Paulo: Planeta, 2016.

DI EUGENIO, A. La cultura della divorazione: Antropofagia culturale, miti interpretativi ed eredità nel Brasile contemporaneo. Roma: Mimesis, 2021.

FINAZZI-AGRÒ, E. Um lugar do tamanho do mundo. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

NABUCO, J. Minha formação. Rio de Janeiro: Record, s.d.

STERZI, E. Saudades do mundo: Notícias da Antropofagia. São Paulo: Todavia, 2022.

 

Notas

[1] Numa conferência, Eduardo Viveiros de Castro observa que a sociedade Tupinambá tomada como exemplo pelo Oswald não estava de fato estruturada pelo matriarcado:
https://www.youtube.com/watch?v=_2E3BgHpm7o&list=PL28Xomry0aoeId03HtCjrK0JG_TAN-OAp&index=11&t=3144s