Ano XVIII 01
dossiê
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A EMERGÊNCIA DO TERMO “SAPATÃO-NÃO-BINÁRIE” COMO DISPUTA DISCURSIVA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Certa vez, quando eu era ume mere trabalhadore sapatão assalariade em um prédio comercial no Rio de Janeiro, eu fui à cantina do prédio tomar um café no balcão e fiquei conversando com a atendente. Eu usava uma roupa de trabalho tipicamente “masculina”: uma calça de alfaiataria, uma t-shirt preta, cinto e sapatos de couro preto recém-engraxados. Era um momento em que eu começava a ter uma relação saudável e criativa com a minha identidade de gênero, e estava me sentindo muito bem com o meu corpo – apesar de ainda não saber muito bem o que eu era, ou o que estava me (trans)tornando. Um médico que tinha consultório no mesmo prédio onde eu trabalhava abriu a porta da cantina e se sentou ao meu lado. Era um senhor de cabelos brancos, por volta de uns setenta anos. Ele puxou papo comigo e conversamos por alguns minutos. Em algum momento ele perguntou: “você está em qual série?” e eu fiquei um pouco espantade e respondi: “meu senhor, eu já tenho até doutorado, como assim qual série?”. Eu vi o seu rosto  mudar para uma expressão incógnita, pasmo. Ele então tossiu limpando a garganta e com sua curiosidade médica questionou: “Os seus irmãos também são assim, sem barba?”. Eu olhei para a atendente com quem eu conversava diariamente, e trocamos um sorriso cúmplice, e eu olhei novamente para a entidade médica e respondi: “Não, eles têm barba”. Finalmente entendi o motivo de toda a entrevista: o médico achava que eu era um rapaz adolescente, e ao se dar conta de que eu era mais velhe, ele não concebeu outra possibilidade a não ser uma espécie de característica genética familiar que me levasse a não produzir barba e a ter uma aparência de um homem jovem. Agradeci gentilmente à atendente pelo café, me despedi do médico e o deixei com sua pulga atrás da orelha, enquanto eu me dirigi ao elevador para retornar ao meu trabalho.

Eventos como esse são constantes na minha rotina, e eu comecei a perceber que o meu corpo falava comigo, ele interagia com os outros corpos e me mostrava que ele estava em fuga constante, que ele escapava ao inteligível, que ele estava em êxodo das possibilidades que a metafísica platônica ocidental concebia para ele (e os saberes médicos ocidentais). Meu corpo ocupa uma brecha que hoje eu chamo de sapatrans não-binárie ou sapatão não-binárie, ou de simplesmente não-binárie. Sou um corpo de fronteira, um corpo que não está lá-nem-cá, um corpo que está lá & cá. A partir dessa percepção, percebi que há uma possibilidade de escapar dos gêneros binários nas micro-relações cotidianas.

Antes de falar sobre a emergência do termo sapatão não-binárie ou sapatrans não-binárie no Brasil contemporâneo, considero interessante fazer uma breve genealogia do termo sapatão para que entendamos os caminhos que nos trouxeram até aqui e para que possamos compreender as contingências socioculturais e políticas que fazem com que esse seja um assunto que tem gerado bastante polêmica dentro dos círculos lésbicos e feministas do país.

No Brasil temos a figura da “sapatão”, ou “mulher-macho”, que faz parte de um imaginário social popular. A sapatão é percebida no nosso território cultural como a lésbica que possui uma expressão de gênero que passeia por entre os gêneros e que desafia os comportamentos cisheteronormativos próprios das mulheres no mundo patriarcal. A origem do termo é incerta. No Brasil imperial, os portugueses já eram chamados dessa forma, talvez por utilizarem tamancas com grossos solados. Posteriormente os usos do termo para designar lésbicas com características de gênero ambíguas se tornaram mais corriqueiros. De acordo com o portal lésbico “Um outro olhar”:

Várias têm sido as apostas na etimologia da palavra, lembrando que os portugueses aqui em nosso país, na época da Independência, também eram chamados de sapatões, talvez em referência aos grossos tamancos que costumavam usar. A versão mais conhecida para a suposta origem da palavra é a de que lésbicas teriam os pés maiores do que os das héteros por natureza ou por usarem sapatos masculinos que lhes davam a impressão de ter pés maiores. De fato, contudo, não se sabe ao certo qual a origem do termo, mas sobre quem o popularizou não resta dúvida: foi o velho guerreiro, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, com a marchinha de carnaval Maria Sapatão, divulgada em seu programa Discoteca do Chacrinha (Buzina do Chacrinha, Cassino do Chacrinha), programa que durou, em diferentes versões, dos anos 50 aos anos 80. Maria Sapatão foi o maior sucesso do Carnaval de 1981.[1]

A marchinha de carnaval citada é amplamente conhecida e impactou o imaginário cultural brasileiro desde o seu lançamento. A letra narra a forma como a sapatão vive uma vida dupla: de dia vive uma vida de mulher, e à noite expressa toda a sua masculinidade:

Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João

Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João

O sapatão está na moda
O mundo aplaudiu
É um barato, é um sucesso
Dentro e fora do Brasil

Apesar de aparentar ser uma celebração da sapatão, a música geralmente era cantada de forma satírica. A sapatão não estava na moda, nem era um barato e um sucesso no Brasil. Ela é invisibilizada, sofre lesbofobia, violência e estupro corretivo para “virar mulher”. Por conta da marchinha e da sua repercussão, o termo passou a ser visto de forma pejorativa pelo movimento lésbico brasileiro em ascensão a partir dos anos 1980. A palavra melhor aceita internamente entre os coletivos e círculos sociais eram lésbica ou “entendida”[2].

Além disso, é preciso ressaltar a dimensão higiênica do termo “lésbica”. A figura da lésbica se cristaliza a partir dos anos 1990 como um termo politicamente correto, típico da expressão da sexualidade de mulheres brancas, femininas, “que amam mulheres”. A sapatão é associada a sujeitos racializados, que vivem nas periferias, e que sofrem menos aceitação social por engendrarem expressões corpóreo-discursivas que desafiam as expressões de gênero bem aceitas pela branquitude cisheteronormativa.

No entanto, o termo sapatão foi ressignificado e reafirmado algumas décadas mais tarde, por jovens lésbicas ativistas, sobretudo a partir do ano de 2015, quando no Rio de Janeiro surgiu o grupo de ocupação de espaços urbanos e praças Isoporzinho das Sapatão, do qual fiz parte da idealização e produção no primeiro ano. O Isoporzinho, como chamamos informalmente, era uma forma de lésbicas se reapropriarem de iniciativas de jovens que lutavam contra a austeridade econômica que levava a cidade do Rio de Janeiro pré-olímpica a se tornar uma cidade cara para a diversão e lazer. Como as bebidas alcoólicas e a entrada em festas privadas em casas noturnas estavam caras demais, grupos se reuniam com isopores térmicos e levavam as próprias bebidas para praças para consumo próprio. Foi quando surgiu esse termo “Isoporzinho”, que se referia a encontros produzidos inicialmente por pessoas heterossexuais (e dos quais hoje poucos se lembram). O Isoporzinho das Sapatão surgiu nesse contexto, também da necessidade de baratear os “rolês”, mas também de construir espaços de socialização lésbica, que são bastante raros. Foi nesse momento que o termo “sapatão” começou a ter um efeito positivo para a identidade de jovens lésbicas, que ainda tinham resistência de usá-lo, movimento parecido com o que aconteceu no inglês com o termo queer.

Em contrapartida, com a maior aceitação do termo sapatão, a palavra passou também a perder algumas conotações. Por exemplo, passou a se referir menos a pessoas que têm uma vivência mais fronteiriça dos gêneros, e começou a se tornar apenas um termo menos higienizado para se referir às homossexuais mulheres do que “lésbica”. Sapatão foi se tornando uma identidade política que ajudou os corpos de mulheres não-heterossexuais a terem mais visibilidade social, mais impacto político, mas perde grande parte da sua disrupção de gênero. É muito comum hoje, no Brasil, lésbicas femininas brancas se referindo a si mesmas como sapatão.

Ao mesmo tempo, como consequência da visibilidade e negociações culturais que combatiam as imagens “negativas” de pessoas LGBTs nas representações audiovisuais – e que viam as sapatões masculinas como imagens negativas para representar as lésbicas –, as sapatonas gênero-dissidentes começaram a rarear e a se tornarem um corpo marginalizado. Isso colaborou bastante para que a palavra sapatão fosse reapropriada por corpos femininos dentro da vivência lésbica brasileira, com um certo afastamento do seu antigo sentido.

Figura 1: <em>Thumbnail de um dos vídeos canal do Youtube "Nosso canal"</em>
Figura 1: Thumbnail de um dos vídeos canal do Youtube “Nosso canal”

Por conta disso, está em emergência no Brasil uma nova identidade política contemporânea, a sapatrans não-binárie, ou sapatão não-binárie – que pode ser relacionada ao que Audre Lorde descreve como “identidades hifenizadas”, ao se referir a mulheres racializadas na diáspora, como as afro-alemãs (Lorde, 2017).

No artigo “A emergência da cultura e da crítica cultural”, Eneida Leal Cunha (2009, p. 73) nos oferece significações dicionarizadas da palavra “emergência”: “ato de emergir, de vir à tona; situação grave, momento crítico, contingência; dispositivo de segurança que deve ser acionado em situações difíceis; combinação inesperada de circunstâncias imprevistas (ou que delas resulta) e que exigem ação imediata; o que se torna claro e compreensível, o que aparece, se expressa ou se manifesta em determinado momento.”.

Cunha propõe um adensamento do termo através do uso do termo ‘emergência’ recuperado por Michel Foucault, que mapeia em Nietzsche, mais precisamente, em sua Genealogia dos Valores, alguns termos dos quais ele se vale se negando a noção de origem como sinônimo de verdade, pureza, etc:

Como um bom discípulo do mestre que se declarava mais filólogo do que filósofo, Foucault coleciona e interpreta os termos utilizados por Nietzsche para desconstruir a idéia de origem. Proliferam, na Genealogia da Moral e em outros trabalhos, palavras como “começo” (Geburt), “proveniência” (Herkunft), “emergência” (Entestehung), cuja significação não é equivalente entre si, no sentido de que não são permutáveis nem são sinônimos de origem. Constata assim que o termo “emergência” aparece quando Nietzsche se refere ao ponto de surgimento de um valor ou de um conceito, que se produz em um determinado estado de forças; ou à entrada em cena de forças recalcadas, confinadas no silêncio dos bastidores. Nesta perspectiva, a emergência é sempre um lugar de enfrentamento e de afrontamento, de embate entre forças dominantes e forças dominadas, e, portanto, não pode ser compreendida como o ponto inaugural de alguma coisa nem como uma continuidade, mas como efeito de deslocamentos, reposicionamentos ou inversões. Para Nietzsche, a cada momento da história, o que é dominante fixa um ritual, ou seja, um conjunto de obrigações, direitos, marcas e regras, destinado a assegurar uma atribuição de sentido e de valor. Por isto, conclui Foucault, a história de uma palavra ou de uma coisa é a história das forças que delas se apoderaram, é a história de suas significações ou de suas interpretações (Cunha, 2009, p. 73)

A emergência da identidade sapatão não-binárie se aloca nesse lugar de disputas de forças, de reposicionamentos do termo “sapatão”, e de um tensionamento crítico duplo bastante frutífero tanto com o movimento trans quanto lésbico. As sapatões gênero-dissidentes são “forças recalcadas”, que sempre estiveram aí, mas que estão insurgindo neste momento para resistirem e se negarem a se colocar como ponto-cego dentro do próprio movimento LGBTQIA+.

No caso das identidades de gênero contemporâneas brasileiras, podemos tomar também como exemplo e atravessamento para o surgimento da sapatão não-binárie, o termo “bixa travesti”, conceito criado pela cantora, apresentadora, atriz e multiartista Linn da Quebrada. Linn desloca o termo “bicha” – que por muito tempo foi utilizado para se referir pejorativamente a homens gays no Brasil, e com o mesmo movimento que sapatão, passa a ser usado por homens gays brancos masculinos de forma ressignificada e positiva. “Bicha” passa a ser escrita com “x” por Linn, para se diferenciar do termo higienizado “bicha”, e o conjuga com “travesti”, uma identidade cultural brasileira que se refere a mulheres trans. Bixa-travesti é uma identidade cultural da encruzilhada, que ocupa as fronteiras das formas de identificação inteligíveis tanto por parte de uma sociedade cisheteronormativa branca, quanto por parte do movimento LGBTQIA+ hegemônico.

Tanto as sapatrans não-bináries, quanto as bixas travestis, são corpos que desafiam as concepções do norte global sobre identidades trans, que por vezes enrijecem as possibilidades de vivenciarmos nossos corpos de forma livre e criativa dentro das narrativas de transição e das fórmulas do antes e depois. Essas identidades não se comportam dentro de um conceito de trânsito que se encerra em um deslocamento de “Male to Female” ou “Female to Male”, mas se alocam nesse lugar de fronteira, ficam atravessados no meio do caminho. Somos como os corpos de fronteira de Gloria Anzaldua:

tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados. (Anzaldúa, 1987)

Somos corpos que amassam os binários em uma possibilidade nova, somos como as criaturas de um bestiário. Criaturas que não desatam de si o aspecto da monstruosidade, da ininteligibilidade. Somos corpos que fundam uma nova epistemologia e uma nova possibilidade de mundo, de vida, e de processos subjetivos. Somos como a falha de Jack Halberstam em A Arte Queer do Fracasso (2021).

A arte queer do fracasso é, conforme a descrição do próprio autor em sua introdução, “um passeio fora do confinamento do saber convencional e dentro de territórios não regulamentados do fracasso, da perda e do ‘inadequar-se’, [que] precisa fazer um longo desvio para evitar disciplinas e caminhos habituais do pensamento” (Halberstam, 2020, p. 28). É uma construção de um pensamento que parte da perda como potência, e o fracasso como lugar constitutivo e frutífero, através de uma perspectiva que se esquiva do otimismo neoliberal – que se manifesta em “positivismos tóxicos” na cultura contemporânea -, e da chamada “alta teoria”. Halberstam inicia seu livro se perguntando qual é a saída para o dualismo entre uma resignação cínica e o otimismo inocente. O que ele propõe é um entre-lugar, um “in-between”. Esse entre-lugar faz parte de um novo modo de relação que ele propõe não só com o pensamento ou a política, mas com a vida, a cultura, o conhecimento e o prazer.

Sapatrans não-bináries desafiam a concepção de que gênero e sexualidade são espécies distintas que se alocam em gavetas separadas. Para a sapatrans não-binárie, a sexualidade e o gênero são uma continuidade. Sapatrans é um resgate da potência disruptiva de gênero das nossas ancestrais que usavam sapatos masculinos, ternos, frequentavam bares e rompiam com as expectativas de gênero de corpos de pessoas designadas socialmente e juridicamente como mulheres. Sapatrans não são mulheres que amam mulheres, são trans e sapatão. Porque há uma filiação a um circuito cultural, político, de desejo a uma cena sapatão: sejam festas, referências, alianças, amizades, etc; e também a uma cena e um circuito trans*. Só que não há para es sapatrans não-bináries a necessidade de se (homo)normatizarem. Sapatrans não-bináries passeiam em ambos os circuitos (lá e cá) e não consideram ser “sapatão” as “mulheres que gostam de mulheres”, sapatão é uma forma de estar no mundo e viver o corpo que burla as concepções cisheteronormativas.

A categoria sapatão como um conceito político que também diz respeito a uma identidade de gênero. Como as ‘butches’ da cultura estadunidense, o equivalente às caminhoneiras no Brasil – pessoas que constroem seus corpos e subjetividades em um lugar fronteiriço de gênero. As sapatões ou caminhoneires não são somente uma orientação sexual, mas quando falamos delus, por muitas vezes, também temos em mente pessoas que manifestam uma vivência de deslocamento de masculinidades e feminilidades. “As lésbicas não são mulheres”, então, serve às sapatões não-bináries como uma identidade política insurgente, como uma possibilidade que se abre para uma constituição identitária e subjetiva de liberdade. O que retira, além disso, as sapatões de uma certa dependência de suas identidades ao “amor romântico” – dependência que é fruto do machismo. Sapatões não existem só em par, mas existem também em suas existências livres, que navegam no entre-lugar dos binarismos engessados. Daí violências nos banheiros, o estupro corretivo, a invisibilização se dar no cinema, na mídia, nas ruas, sobretudo em relação a esses corpos.

Alguns problemas político-identitários se abrem quando concebemos a existência de sapatrans não-bináries. Uma pessoa que se relaciona com pessoas sapatrans continuam sendo lésbicas? Este é um debate que tem sido produzido de forma bastante categórica e acalorada quando falamos de corpos trans se relacionando com gays ou lésbicas. Tenho sugerido que pensemos os corpos não-heterossexuais como corpos livres para escolherem suas identificações. Não importa se minha companheira continuar se identificando como uma lésbica, porque sei que para ela ser lésbica é uma identidade política que não se limita a uma ideia de “ser mulher” de acordo com a cisheteronormatividade (“as lésbicas não são mulheres”). As lésbicas rompem com esse sujeito engessado do feminismo hegemônico e branco. Um corpo de encontro com outro corpo não precisa necessariamente definir a sua identidade. As produções subjetivas são singulares. Eu não me sinto deslegitimade ao namorar uma lésbica. Acredito que nos encaminhamos para que as identidades sejam provisórias, estratégicas, e dizem muito mais respeito ao nosso trânsito pelo mundo e aos posicionamentos que escolhemos diante do mundo.

O meu processo subjetivo só depende de mim e do meu auto-cultivo, dos meus processos internos e da forma como nego as estabilidades que a sociedade insiste em impor aos nossos corpos. Ser sapatrans não-binárie pode ser percebide como um corpo-enqueerzilhado, para tomar emprestado o termo cunhado pelas pesquisadoras Alessandra Brandão e Ramayana Lira no artigo “Corpas-enqueerzilhadas e alianças insólitas no cinema brasileiro” (2021), ao analisarem como é a aparição dos corpos LGBTQIA+ nos curta-metragens brasileiros contemporâneos produzidos por minorias sexuais e de gênero. Brandão e Lira são

Mobilizadas por uma perspectiva crítica da interseccionalidade, [e se apoiam] na lúcida e revigorante releitura do conceito feita por Carla Akotirene (2019; 2018). A autora ressalta a matriz de pensamento negro que constrói as bases para a formulação do termo antes mesmo de ser cunhado, em 1989, por Kimberlé Crenshaw, no contexto dos estudos de direito nos Estados Unidos. Akotirene também mapeia o percurso teórico e crítico do termo ao longo dos anos, situando-o ao mesmo tempo no âmbito do feminismo negro e da cultura afro-brasileira e diaspórica. Procura, com isso, descolonizar as percepções hegemônicas da interseccionalidade, asseverando que é “da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade” (2019, p. 24). Uma vez que a interseccionalidade é lida em sua dimensão histórica e geopolítica, Akotirene o localiza na complexidade da ferida colonial e do trânsito transatlântico das populações que foram forçadas à escravidão nas Américas. É, portanto, um conceito crivado de ancestralidade, uma “ferramenta ancestral”, como sugere a autora (2019, p. 25), reconhecendo “Exu, divindade africana da comunicação, senhor da encruzilhada e, portanto, da interseccionalidade” (2020, p.20). […] Akotirene recorre à encruzilhada como “o lugar multideterminado dos trânsitos de raça, classe, gênero, sexualidade, fluxos e sobreposições de acidentes identitários” (2019, online). (Brandão e Lira, 2021, p. 58 e 59).

Brandão e Lira propõem uma justaposição entre queer e encruzilhada, como uma recusa do queer para uma apreensão normativa ou de redução identitária e a encruzilhada como “um espaço que acolhe simultaneidades de existências e temporalidades diversas” (Idem, 2021, p. 59). A encruzilhada é um espaço propício para o afloramento dos corpos des sapatrans não-bináries e para o seu auto-cultivo nem-lá-nem-cá, ou com os pés tocando múltiplos terrenos ao mesmo tempo. Um lugar de cruzamento que desafia o pensamento branco e eurocêntrico maniqueísta com sua organização binária.

Talvez seja inconcebível até mesmo para o imaginário de minorias sexuais e de gênero existências que desafiam a concepção corrente do que é uma sapatão. É possível a sapatão ser trans? É possível a justaposição da sapatonice com a transidentidade? Sapatrans não-bináries se alocam na encruzilhada entre masculinidade e feminilidade, entre identidade de gênero e sexualidade. A vivência trans não apaga a vivência sapatão desse corpo. Não é um processo evolutivo se reconhecer trans para es sapatrans não-bináries – passado e presente coexistem nos corpos que não precisam escolher entre passado e futuro.

Jack Halberstam em Masculinidad Femenina (2008), elabora o termo “butch transgênero” que pode nos servir para a compreensão da emergência de outros gêneros trans no contemporâneo, e de possibilidades múltiplas de constituição de si para corpos fora dos binômios de gênero. Quando Halberstam pensa o corpo de butchs transgênero, o autor desafia também uma concepção limitada de masculinidade lésbica que produz uma noção de “graus de masculinidade”, dentro de um contexto norte-americano. Estes graus sugerem que existe uma progressão da masculinidade lésbica que obedece a etapas: androginia butch suave butch stone butch butch transgênero FTM. É uma progressão que vai do não masculino ao muito masculino. Pensar os corpos dessa forma ainda nos deixa limitades a uma percepção binária dos gêneros, como se o corpo transmasculino das butchs e sapatões estivessem em um processo de transição que vai chegar um dia na completa transição para homem trans, e que ainda não são legitimamente trans. As fronteiras bem demarcadas entre sapatão e trans, sapatão e lésbicas, servem a quem? Essa guerra de fronteiras é interessante para os processos subjetivos e para uma prática de liberdade dentro dos movimentos LGBTQIA+ ou só servem para produzir engessamentos identitários? Não estou deslegitimando as identidades de homens trans ou lésbicas, mas abrindo a possibilidade para outras formas de existência que podem ser vividas e construídas pensando os corpos para fora dos binários instituídos nas nossas concepções acerca do esquema sexo-gênero.

Halberstam percebe que corpos de butchs/sapatões podem ter um sentimento de transitividade de gênero em relação à sua corporeidade, à sua subjetividade sexual e na legitimação de seu gênero. Esse sentimento pode ser percebido nas vivências de sapatões não-bináries brasileires. Em uma recente reportagem sobre a emergência de identidade sapatão não-binárie no Brasil, feita pela revista digital AzMina, intitulada “Sapatão não-bináries não é só sobre amar mulheres”, escrita por Helena Bertho e publicada em 26 de agosto de 2021[3], ume des entrevistades, Bê Carobinieri, contexta a percepção política que coloca o corpo da sapatão somente como um corpo de mulher que ama mulheres:

“Nos meus 29 anos, mesmo não sendo uma mulher, eu tive uma experiência na sociedade enquanto sapatão. Muitas pessoas reduzem sapatão a duas mulheres, ambas com vaginas, se relacionando afetiva e sexualmente. Mas na minha experiência pessoal eu vivi algo diferente. A sociedade me atravessou como sapatão desde criança. Muito antes de andar de mãos dadas com mulher na rua, as pessoas gritavam pra me ofender, me chamando de sapatão. Sapatão pra mim, muito mais do que com quem eu me relaciono, tem a ver com como eu fui socializada, minhas pautas políticas, a comunidade onde eu cresci e me formei”

Bê contexta a percepção higienizadora e normativa de que o corpo da sapatão existe apenas quando “ama uma mulher”, e coloca sua subjetividade em um lugar de existência plena, que atravessa a sociedade e sofre violências mesmo quando o trânsito social não envolve uma relação afetiva. Não depende de estar de mãos dadas com uma mulher ou trocar afetos com mulheres para o corpo da sapatão sofrer ofensas. Uma sapatão não-binárie em encontro com a cidade sofre lesbofobia ou transfobia? Ou é um ajuntamento das duas violências, já que a violência acontece por conta do deslocamento que seu corpo produz nas performatividades de gênero aceitas e inteligíveis pela sociedade cisheterocentrada? Acredito que esse é um desafio para as nossas reflexões políticas e para pensarmos uma sociedade possível para esses corpos.

Com a emergência dessas identidades, e a divulgação de que há sapatões que se identificam como não-bináries, têm surgido cada vez mais relatos de violências epistêmicas e exclusões dentro de espaços de socialização e culturais lésbicos brasileiros. Recentemente, em São Paulo, Formigão, ume poeta e escritore que se identifica como sapatão não-binárie e também foi entrevistade pela reportagem de AzMina pregressamente citada, divulgou em suas redes sociais que iria participar dos ensaios de um bloco de carnaval conhecido da cidade de São Paulo, chamado Siga Bem Caminhoneira, e exclusivo para lésbicas. Formigão conta que entrou em contato com as organizadoras pelo Whatsapp e que elas haviam informado o local do ensaio em uma região central da cidade. Elu, que é uma pessoa negra e periférica, precisou gastar dinheiro de passagem e se deslocar para o local do encontro. Ao chegar, as organizadoras não tiveram uma boa receptividade com seu corpo transmasculino, e o informaram que elu não poderia participar do ensaio porque elas não sabiam ainda como tratar pessoas que se identificam como sapatrans ou sapatão-não-bináries dentro de espaços de socialização feitos por e para lésbicas. O relato de Formigão nas redes sociais viralizou e teve um largo alcance (chegou a ser censurado pelo Instagram), e uma parcela significativa das pessoas que interagiram com o post de retratação do bloco[4] transmitiram que a percepção de uma continuidade entre orientação sexual e identidade de gênero tem sido algo mais bem aceito dentro da comunidade, a exemplo deste comentário de @lillianntorqueti:

“Na moral, as mina tem o direito de fazer a festa do jeito que quiserem, mas, é de observar que a festa delimita orientação sexual e não gênero, é interessante o grupo dialogar isso para ser mais acertivo em relação ao que não quer em sua festa. Pois um trans masculino pode ter orientação sexual lésbica, desse modo estaria pertencente ao rolê. Se nunca pensaram nisso meninas, chegou a hora de pensar. Esse vídeo de quem se sentiu excluído também foi um pouco de quero biscoito, podia ter dialogado de outra forma, pois também criou um ataque a comunidade lésbica e BI do rolê. Faltou e está faltando bom senso dos dois lados.”

É interessante que, mesmo não concordando com o fato de que a organização da festa precisa aceitar a presença de Formigão, o comentário citado expõe de forma bastante assertiva que lésbicas podem ser transmasculinas. É cada vez mais visto como legítimo pela comunidade LGBTQI+ brasileira que sapatões podem se identificar como trans. Como diz Formigão em um poema de sua autoria publicado em suas redes sociais: “Sapatão é ser humano / Sapatão é ser um mano.”

Com uma maior visibilidade de sapatrans não-bináries nas redes sociais nos últimos anos, os debates sobre apagamento da ancestralidade sapatão masculina, apagada pela (homo)normatização do movimento lésbico, faz com que influenciadores estejam resgatando a memória de sapatões que desafiavam o binário de gênero no passado e que são, hoje, um ponto cego dentro da pouca visibilidade lésbica na mídia, nas festas jovens, e nas pouquíssimas personagens de séries, filmes, novelas. @raizdomato é o instagram de ume influenciadore sapatão não-binárie indígena da etnia potyguara que em 27 de novembro de 2021 fez um post intitulado “Movimento transmasculine não-binárie e memória lesbi” na sua rede. O texto dizia o seguinte:

Sempre existiram pessoas de identidade masculina e não-binária em espaços lés-bi. Não apenas isso, faz parte da produção intelectual lésbica afirmar a lesbianidade como um lugar fora do binário de gênero. O próprio feminismo/movimento de mulheres não aceitava lésbicas/caminhoneiras/pessoas de buceta que não se adequavam à cisheteronormatividade, pois es consideravam uma ameaça, predadoras, doentes. A real é que na prática e teoria espaços exclusivos para mulheres e lesbianidade/caminhoneirice são coisas que se anulam. A memória lésbica é repleta de pessoas que romperam com a mulheridade e ignorar isso é um processo de higienização e apagamento. Os movimentos lés-bi AINDA são repletos de pessoas que se afastam, questionam, transicionam da mulheridade. Essas pessoas constroem o movimento diariamente, mas sua expulsão segue sendo frequente. A repetição da frase “o que um homem quer fazer num espaço de mulheres” releva como não processam o significado de transmasculino e não-binárie, muito menos o percurso dessas existências. Traidorys da mulheridade, desertorys da cisheteronorma, corpas monstras ininteligíveis, bucetas que não cumprem sua função patriarcal-colonial. Isso é memória lés-bi.[5]

O movimento de resgate de memória que sobrepõe passado e presente, faz com que novas possibilidades se abram para as identidades trans não-bináries no contemporâneo. A emergência de identidades hifenizadas dentro do movimento LGBTQIA+ brasileiro é um sinal de que há uma resistência epistêmica acontecendo no seio desses movimentos, que são atravessados pelo pensamento decolonial, produzido por intelectuais não-branques que fazem parte de minorias sexo-gênero. É um momento de muita importância para imaginarmos novas formas de existir no mundo, e de vislumbrarmos que os corpos podem ser livres e encarnar essa liberdade na forma como se auto-cultivam.

A internet tem sido uma espécie de laboratório de trocas e de produção de saberes e de resistência epistêmica para sapatões não-bináries. É um território possível, sobretudo no contexto da pandemia de covid-19, para produção de redes, comunidades, e apoio, legitimando, assim, a existência de subjetividades em trânsito e em constante (re)construção. “A transição é para sempre”, como diz a faixa criada pelo artista Miro Spinelli. A transição é um processo que não acaba, não nos leva a lugar nenhum, a não ser a nós mesmes, em um infinito inacabamento de si.

Figura 2:<em> “Transição é para sempre”, Miro Spinelli. Despina, 2018.</em>
Figura 2: “Transição é para sempre”, Miro Spinelli. Despina, 2018.

* Dri Azevedo é doutore em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, professore substitute do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ, integrante do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas da UFRJ. É autore do livro Reconstruções queers: por uma utopia do lar (2022).

 

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.

BERTHO, Helena. “Sapatão não-bináries não é só sobre amar mulheres”. Revista Azmina, 26 de agosto de 2021. Disponível em: < https://azmina.com.br/reportagens/sapatao-nao-binaries-nao-e-so-sobre-amar-mulheres/>. Acessado em 04 de fevereiro de 2021.

BRANDÃO, Alessandra; LIRA, Ramayana. “Corpas-enqueerzilhadas e alianças insólitas no cinema brasileiro”. Revista Visuais, v. 7 n. 2 (2021). Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/visuais/article/view/15945>. Acessado em 26 de maio de 2021.

CUNHA, Eneida Leal. A EMERGÊNCIA DA CULTURA e da crítica cultural. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS,. v. 1, p. 73-82, 2009.

HALBERSTAM, J. Masculinidad Femenina. Madrid: Editora Egales, 2012.

_______________. A Arte Queer do Fracasso. Recife: CEPE Editora, 2020.

LORDE, Audre. A Burst of Light: And Other Essays. Mineola, New York: Ixia Press, 2017.

 

Notas

[1] Disponível em < http://www.umoutroolhar.com.br/2012/01/origens-do-termo-sapatao.html>. Acessado em 01 de fevereiro de 2022.

[2] É possível conhecer mais sobre como lésbicas brasileiras se autonomeavam no Documento Especial: Televisão Verdade, programa jornalístico brasileiro criado e produzido pelo jornalista Nelson Hoineff, apresentado pelo ator Roberto Maya e exibido (este episódio) pela extinta Rede Manchete.

“Muito feminina” aborda a homossexualidade feminina. Reportagem de Bernadete Duarte. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=_Mt1aw3a4_E>. Acessado em 02 de fevereiro de 2022.

[3] Disponível em: < https://azmina.com.br/reportagens/sapatao-nao-binaries-nao-e-so-sobre-amar-mulheres/>. Acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[4] Disponível em: < https://www.instagram.com/p/CWykiMqPWPN/>. Acessado em 01 de fevereiro de 2022.

[5] Disponível em: < https://www.instagram.com/p/CWzPzLgtFtG/ >. Acessado em 02 de fevereiro de 2022.