Dossiê
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SESSENTA ANOS DO GOLPE DE 1964: INTERFACES ENTRE LINGUÍSTICA E LITERATURA

A literatura de testemunho e gêneros correlatos, tais como biografias e autobiografias, dominam o processo de construção da memória da ditadura militar instaurada no Brasil em 1964 e que perdurou até o final dos anos 70. São dezenas de narrativas dos que lutaram contra a ditadura ou foram por ela perseguidos, presos, supliciados, exilados, ou por causa dela perderam amigos, pais e irmãos. Uma produção incessante que continua até nossos dias, mais de meio século após o golpe.

Falam de si, de sua experiência, e falam pelos que não sobreviveram à ditadura ou sobre ela não conseguem falar. Testemunhas participantes, não meramente contemplativas, dos eventos que relatam, o que é uma característica demarcadora do gênero. Suas narrativas frequentemente atingem a fronteira do impensável, do que não se pode expressar por palavras.

O gênero está associado aos eventos traumáticos do século XX, em especial as duas grandes guerras e o Holocausto. É a escrita dos vencidos, dos derrotados, dos que perderam. Embora de natureza essencialmente pessoal, desencadeia processos de construção da memória coletiva ao evocar um passado traumático que a sociedade dos vencedores frequentemente faz por esquecer ou ocultar. Uma escrita naturalmente contra-hegemônica.

Os estudiosos da literatura de testemunho apontam como duas de suas características principais a ênfase no registro factual e histórico e a sinceridade dos relatos, que devem ser entendidos, no entanto, como exercícios da memória, com todas as armadilhas disso decorrentes. Uma escritura também memorialista.

Os estilos são em geral singelos e desprovidos de ambições estéticas. Não obstante, carregam na indignação contra iniquidades e atrocidades cometidas. E um forte compromisso com uma ética humanística. O apelo comum implícito nos testemunhos é o de que “nunca mais” se repita o que aconteceu.

Com frequência, o narrador expressa rancor e vergonha pelas humilhações sofridas e, mais sutilmente, sentimento de culpa por ter sobrevivido ou por não ter feito mais ou melhor por seus companheiros ou familiares mortos ou desaparecidos. É uma literatura de catarse. Tem, muitas vezes, função terapêutica, de elaboração de um trauma ou busca de sua superação.

As obras mais notáveis dessa literatura são justamente as marcadas pela função terapêutica, tais como É isso um homem, de Primo Levi, considerada paradigmática do gênero. Entre nós destaca-se Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares. Diz ele que tinha pesadelos recorrentes que só cessaram depois de escrever seu testemunho.

Capa de Querida família, de Flávia Schilling. Editora CooJornal, 1978.
Capa de Querida família, de Flávia Schilling. Editora CooJornal, 1978.

Na primeira fase dessa produção numerosa, predominaram entre nós os que chamo de livros-exílio. Com a instauração da ditadura, o exílio será a primeira vivência traumática de intelectuais, acadêmicos, pesquisadores e ativistas políticos, cassados, despojados de direitos políticos, demitidos de seus empregos ou na iminência de serem presos. E não eram dezenas e sim centenas de exilados, certamente passando da casa dos mil e quinhentos.

Memórias do Exílio, de Arthur José Poerner, foi publicado em Lisboa em 1976. Nos dois anos seguintes surgem Tempo de Ameaça, de Rodolfo Konder, cujo subtítulo é “(autobiografia Política de um Exilado)”, o primeiro tomo das memórias de Gregório Bezerra, exilado na União Soviética, onde permaneceu até a Anistia, em 1979, e Querida Família, de Flávia Schilling.

Livros-exílio refletem em primeiro lugar o espanto por se verem repentinamente afastados de seus amigos e famílias, destituídos de seus empregos e desprovidos de uma renda do trabalho. São narrativas de travessias, algumas longas e sem retorno, outras repletas de peripécias. Expressam carências, dificuldades de sobrevivência e de adaptação, e obviamente nostalgia e saudade. Alguns, como Bezerra, voltam a vivências anteriores ao trauma que os levou ao exílio e até à primeira infância, no intuito de melhor entenderem o sentido tomado por suas vidas.

O exílio seguirá habitando a literatura de testemunho pelos anos afora, mesmo nas obras em que o tempo mais longo vivido não é do exílio, como em Um Gosto Amargo de Bala, de Vera Gertel, publicado em 2013. O último livro-exílio que me chega às mãos é de 2024: Encontrar seu Lugar, de Bernardo Boris Vargaftig, minucioso testemunho das perseguições sofridas por intelectuais e cientistas assim que se instaurou o golpe de 64. Esse médico e biólogo passou os quarenta anos seguintes de sua vida em instituições de pesquisa da Europa, entre elas o Instituto Pasteur.

Com a anistia no horizonte, vai se dar uma nova onda de literatura de testemunho. Em 1979 surge O que é isso companheiro, de Fernando Gabeira, que provoca um frisson por romper com os dogmas da esquerda. Nos anos seguintes sucedem-se Camarim de Prisioneiro, de Alex Polari, e Os Carbonários, de Alfredo Syrkis, Tirando Capuz, de Álvaro Caldas, Guerra é Guerra, de Índio Vargas, e Pedaços de Morte, de Flávio Koutzii. Predomina nessa fase a denúncia das atrocidades da ditadura. Mas, já está presente a autocrítica da luta armada.

Mais de uma década depois surgiria uma segunda onda de autobiografias, começando pela coletânea de 32 depoimentos de militantes presos no Presídio Tiradentes. Seguem-se a autobiografia de Dom Paulo Evaristo Arns, Da Esperança à Utopia, e O Baú do guerrilheiro, de Ottoni Fernandes Junior, Por um Triz, de Ricardo Azevedo, Minha Vida de Terrorista, de Carlos Knapp, O Assalto aos céus, de Takao Amano, Resistência atrás das grades, de Maurice Politi, Percursos Irregulares, de Carlos Botazzo, O cão morde a noite, de Emiliano José. Em 2022, Roberto Elizabetsky publica Um dia esta noite acaba, que se detém em episódios decisivos da época, entre eles o do justiçamento de Boilesen, o empresário envolvido com a repressão.

É como se cada um que passou pelos cárceres da ditadura, ou amargou o exílio, ou perdeu amigos e parentes, sentisse a necessidade de se explicar. São confissões, ajustes de contas, algumas consigo mesmo, outras com filhos e netos, que conheceram pais e avós como pessoas, mas não como personalidades políticas. E há as que dirigem aos espíritos de companheiros mortos ou desaparecidos.

Talvez se tivesse ocorrido desde cedo um acerto de contas coletivo sobre as atrocidades da ditadura, nem todos teriam necessidade de fazer seu acerto pessoal. A tragédia que foi nacional e coletiva, acabou se manifestando, na elaboração histórica, como um sem-número de tragédias pessoais e familiares.

Antonio Candido aponta três características dos relatos dos presos do Presídio Tiradentes: nenhum de seus autores se coloca como vítima, todos tentam ser sinceros e todos escrevem num tom de “eloquência discreta”.

São narrativas de sobrevivência na dor: “Escrever sobre fatos tão dolorosos como a prisão, tortura, anos afastado da sociedade é muito doloroso. Pior ainda quando se assiste, da prisão, impotente, ao assassinato de tantos companheiros de luta”, escreve Ottoni na apresentação de suas memórias.[1]

Alguns relatos são terríveis, porque terríveis eram os métodos da repressão, poucas vezes igualados na história. Muitos foram levados à loucura ou suicidaram-se anos depois, alguns já no exílio, suas psiques irremediavelmente despedaçadas. Vários vivem até hoje no exílio, e há os que vivem numa espécie de exílio mental, não conseguindo se libertar das sequelas psíquicas da tortura e da perda de companheiros mortos e desaparecidos. “Mais de quarenta anos depois, essas lembranças ainda causam arrepios e lágrimas”, diz o deputado Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, também ex-preso político, numa breve memória recém-publicada.[2]

Ressalto a brutalidade de tudo isso porque ela explica talvez a ausência de ambições literárias nessa produção autobiográfica. É como se não se pudesse fazer poesia com coisa tão sórdida. Theodor Adorno já questionara, em 1949, se era possível fazer poesia após Auschwitz. No estilo, que Antonio Candido educadamente chama de “eloquência discreta”, a eloquência está nos fatos, a discrição está no estilo.

Irmã da autobiografia é a biografia escrita por amigos, parentes, ex-companheiros ou admiradores dos biografados, também numerosas na produção da memória da ditadura. Caracterizam-se pela técnica do jornalismo investigativo, com pesquisa de arquivos e entrevistas com familiares, amigos e companheiros dos biografados. São homenagens aos biografados. São livros-lápides.

Capa de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Oldack Miranda e Emiliano José. Editora Global, 10ª edição.
Capa de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Oldack Miranda e Emiliano José. Editora Global, 10ª edição.

Uma das primeiras é a de Lamarca, O Capitão da Guerrilha, pelos jornalistas Oldack Miranda e Emiliano José, de 1980. O Revolucionário da Convicção, biografia de Joaquim Câmara Ferreira, foi publicada por Luiz Henrique de Castro e Silva em 2010. A mais recente é a do principal líder da luta armada, Carlos Marighella, pelo jornalista Mario Magalhães, publicada em 2012. Também nesse ano foi publicada Antes do Passado, em que Liliane Haag Brum reconstitui a trajetória, até a morte, do seu tio Cilon Brun, desaparecido no Araguaia.

Há três biografias dedicadas ao jornalista Vladmir Herzog, escritas por seus colegas de ofício: o Dossiê Herzog, de Fernando Pacheco Jordão (1979), Vlado, 30 anos, de João Batista de Andrade, um roteiro de filme na forma de livro, e As duas guerras de Vladmir Herzog, de Audálio Dantas, publicado no ano passado, prêmio Jabuti.

Também homenagens são as biografias do líder de esquerda de Belém do Pará, Pedro Pomar, escrita por Luiz Maklouf e outros, e de Ricardo Zaratini escrita por José Luiz del Roio.

Renato Martinelli publicou talvez a mais tocante dessas biografias de amigos, a de Márcio Leite de Toledo, fuzilado pela própria organização a que pertencia, a ALN, por suspeita falsa de ter se tornado informante, tema já abordado por Jacob Gorender no antológico estudo da luta armada contra a ditadura, Combate nas Trevas, de 1987, mas que havia permanecido um tabu.

Em 2012, Cristina Chacel publicou a história do desaparecimento de Carlos Alberto Soares de Freitas e no mesmo ano saiu Um Homem Torturado, a biografia de Frei Tito, que se suicidou no exílio, escrita por Leneide Duarte Plon e Clarisse Meireles. Em 2015, é publicado Cova 312, de Daniela Arbex, história do militante Milton Soares de Castro, integrante da guerrilha de Caparaó.

A última que nos chega é Tempo dos Cardos, de Celso Horta, publicada em 2023. Cardos são uma espécie espinhosa de cactos. O livro investiga o mistério do desaparecimento de João Leonardo, um dos últimos militantes da MOLIPO e mergulha na história da própria MOLIPO e seu massacre pela ditadura.

Quase livros-lápide são as biografias que homenageiam militantes ainda vivos, entre elas Flávio Koutzii, biografia de um militante revolucionário, de Benito Bisso Schmidt, e a recentíssima José Genoíno, uma vida entrevista, de Silvio Kotter e Nicodemo Sena. Ambas têm base em longas entrevistas com o biografado.

* Bernardo Kucinski é jornalista e professor aposentado da Universidade de São Paulo. É autor de obras sobre economia, política e jornalismo e foi assessor da Presidência da República entre 2003 e 2005. Lançou, aos 74 anos, K: Relato de uma busca — seu primeiro livro de ficção, finalista de vários prêmios literários nacionais e internacionais — e, mais tarde, Os visitantes, ambos publicados pela Companhia das Letras.
Notas
[1] OTTONI, Fernandes Júnior. O baú do guerrilheiro: Memórias da Luta Armada Urbana no Brasil. São Paulo: Record, 2004.

[2] DIOGO, Adriano. Bagulhão – A Voz dos Presos Políticos Contra os Torturadores. São Paulo: Comissão da Verdade do Estado de São Paulo (Rubens Paiva), 2014.
Editorial
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De 1964 a 2024: Caminhos, atalhos, barricadas

Dando continuidade às discussões em torno dos 60 anos do Golpe de 1964, iniciadas pelo encontro “Ecos Contemporâneos de 1964”, realizado em abril de 2024, este número de Revista Z Cultural apresenta o dossiê “De 1964 a 2024: caminhos, atalhos, barricadas”. Em ambos os casos, no evento presencial e na presente publicação, o propósito era e é duplo: por um lado, reavivar a memória do arbítrio e da violência de Estado instaurados pelo regime militar – os anos de chumbo –; por outro lado, investigar ou apontar para dimensões de violência e autoritarismo que marcam a sociedade brasileira, confrontando o momento 1964 com o momento atual, passadas seis décadas, sendo quatro delas já em regime civil democrático.

A história do regime é recuperada pelo artigo de Bernardo Kucinski e pelo contundente depoimento de Dulce Pandolfi, em entrevista concedida a Beatriz Resende, Italo Moriconi e Lucas Bandeira. Diga-se de passagem que a presença de Kucinski se deu tanto como palestrante principal no evento de abril como através do texto aqui publicado, um verdadeiro roteiro da ampla literatura de testemunho publicada no Brasil sobre a tortura e os embates mais duros da oposição à ditadura. Uma história que não pode ser esquecida pelas gerações mais jovens. Já o depoimento de Dulce Pandolfi é particularmente relevante, por ter ela sobrevivido a sessões terríveis de tortura, tendo sido capaz, depois, de desenvolver uma trajetória exemplar de vida profissional e de engajamento com as lutas populares.

Um dos temas recorrentes quando se faz a história da ditadura militar, ao mesmo tempo ponto culminante e parte de uma história permanente de violência em nosso país, diz respeito ao conservadorismo na área de costumes e comportamento. Misoginia, homofobia, transfobia, temas ainda tão contemporâneos, foi o que não faltou durante os anos de chumbo. Comportamento e sexualidade dissidente eram oposição política a priori para os órgãos policiais repressivos da ditadura. A resistência LGBTQIA+ se dava na imprensa alternativa (que teve como marco o surgimento do jornal Lampião da Esquina em 1978), nos locais de encontro e nas ruas. Ela é aqui recuperada pelo artigo de Dri Azevedo e pela bela entrevista do grande escritor e militante da causa gay João Silvério Trevisan concedida a Sandro Aragão.

Na entrevista de Trevisan, vale ressaltar a conexão que ele lembra existir entre a repressão comportamental na ditadura e a política bolsonarista nos dias de hoje. Como consequência, temos assistido ao aumento do número de episódios de agressão e repressão no campo da cultura. Um caso recente e rumoroso foi o ocorrido no Prêmio Sesc de Literatura, aqui relatado pelo criador da premiação, o produtor cultural Henrique Rodrigues. Seja como for, a cultura sempre é campo de resistência aos obscurantismos. Também no pior da ditadura, ela desempenhou seu papel, apesar de cada vez mais perseguida, censurada, agredida, exilada. Incluem-se aqui dois documentos históricos interessantes nesse sentido: o manifesto de Glauber Rocha sobre “estética da fome”, na seção Vale a Pena Ler de Novo, e a recuperação do clima daqueles anos no livro Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo, de Heloisa Teixeira, resenhado por Felipe Quintino.

O dossiê é complementado por artigos que levam a problemática para o campo da crítica literária e cultural. Gabriel Martins comenta as circunstâncias da escrita de Em liberdade, de Silviano Santiago, romance no qual se entrançam diferentes momentos autoritários da história brasileira. Pedro Süssekind e Claudia Lage, ao refletirem sobre seus próprios processos de escrita, puxam fios que revelam aspectos cruciais na anamnese da experiência autoritária brasileira. A abordagem do tema “anistia” permite a Süssekind confrontar a memória da ditadura, aliás trazida à tona pela Comissão da Verdade por ele mencionada, com os tempos bolsonaristas, iluminando a dialética entre a pretendida superação histórica e a retomada da distopia autoritária. O jogo entre utopia e distopia é o tema de Lua Gill da Cruz, a partir da leitura que faz do romance Tupinilândia, de Samir Machado de Machado. Já Claudia Lage entrelaça a vivência da política à vivência do corpo feminino. O corpo, essa realidade dita individual, porém atravessada pelas vicissitudes sócio-históricas do gênero, também fica em primeiro plano no artigo de Catarina Lara Resende sobre cinema pornô/erótico no período da ditadura.

Como nota de pesar, registramos o falecimento, quando finalizávamos a revista, do grande fotógrafo Evandro Teixeira, que gentilmente cedeu as fotografias que ilustraram o material de divulgação do encontro “Ecos Contemporâneos de 1964” e a capa desta edição da Z. Agradecemos ao IMS pela disponibilização  das imagens. Teixeira produziu as imagens definitivas do embate entre repressão e resistência, registros que impediram e impedem que a memória se perca. Imagens que ressoam no poema de Mary Garcia Castro que abre o dossiê: “Ficaram memórias / E nossas mãos / Uma a outra / Bem dadas / E aquela manifestação / E como gritávamos”

Danielle Corpas e Italo Moriconi
Curadores do dossiê

Dossiê
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RÉ MEMORANDO

Sabe amiga
Aquela rebeldia
Onde deixada?
Netos e netas
Não a retomam
São outras suas batalhas
Lutamos a justa luta
Justa para quem?
Para muitos para muitas
Que não pediram que a lutássemos
Mas não colho
Frustrações
Ficaram memórias
E nossas mãos
Uma a outra
Bem dadas

E aquela manifestação
E como gritávamos

Capa do livro de poemas Eu, nosotras, de Mary Garcia Castro (Amitié, 2024).
Capa do livro de poemas Eu, nosotras, de Mary Garcia Castro (Amitié, 2024).
* Mary Garcia Castro é Ph. D. em Sociologia pela Universidade da Flórida, pesquisadora Visitante Emérita (FAPERJ/UERJ/NUDERG), professora aposentada da UFBA e pesquisadora na FLACSO-Brasil.
Dossiê
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BRASIL, PAÍS DO FUTURO?: AS UTOPIAS AUTORITÁRIAS E AS DISTOPIAS NA LITERATURA

Este artigo analisa a representação de narrativas utópicas e distópicas na literatura contemporânea brasileira, com foco, especialmente, no romance Tupinilândia, de Samir Machado de Machado. O objetivo é discutir como as utopias autoritárias, associadas à modernização conservadora, à exploração da terra e à “transição à democracia”, se entrelaçam com discursos distópicos na construção de uma narrativa nacional. A obra literária Tupinilândia será analisada a partir de uma temporalidade estendida das “utopias autoritárias” que, mesmo após a ditadura e até a contemporaneidade, se mantêm e se refazem.

A obra de Jaime Lauriano tem se preocupado, há algum tempo, em pensar e discutir as narrativas sobre as quais se fundam a história deste país. Um desses exemplos é O Brasil (2014), no qual reúne, em vídeo, matérias de jornais e propagandas oficiais difundidas principalmente durante o período da ditadura militar, de forma a observar e questionar como a propaganda atuou na construção e manutenção de um discurso ufanista. O Brasil “feito por nós”, conforme definem os governos militares, passa principalmente pelo reforço de premissas como desenvolvimento, nacionalismo, pátria, nação, “bom” cidadão, família, união e paz, além de toda uma imagética pertencente ao mito da “democracia racial”[1]. O campo semântico não é tão distinto daquele do último governo de Jair Bolsonaro. Na arte de Lauriano, as propagandas em que se exalta um nacionalismo exagerado e um controle total sobre as narrativas do país são recortadas por e entre matérias de jornal que demonstram as formas de censura e “excepcionalidade” praticadas a partir dos Atos Institucionais. A frase final do vídeo, “a paz se faz com quem ama o mesmo chão”, aponta para outra premissa problemática: a paz só pode existir com base em um nacionalismo, um mesmo “amor” e chão, dividido com, mas, sobretudo, imposto aos cidadãos.

A ideia de paz, lembra Carlos Fico (1997) no livro em que trata exatamente da análise da propaganda política que o regime militar brasileiro produziu, é central. Junto da paz estão outros tópicos relacionados ao campo do otimismo, ou seja, “exuberância natural, democracia racial, congraçamento social, a harmônica integração nacional, […] a alegria, a cordialidade” (Fico, 1997, p. 147). As propagandas ofereciam, de acordo com o historiador, a percepção de um acesso da população ao projeto desenvolvimentista dos militares e estabeleciam o que seriam as “bases morais” e os “valores brasileiros” que deveriam, então, formar o que entendiam ser a “identidade nacional”. Esse país, formado sobre essas bases, em comunhão, poderia, então, caminhar em direção “ao futuro”. Acima de tudo, a frase final implica que não pode haver paz se há uma divisão desse mesmo chão nacional, excludente e binário, que parte de um “amor” que exalta a família, a pátria, as forças armadas, mas também o discurso do “descobrimento” e da “miscigenação”, questões que o artista insiste em retomar neste e em tantos outros trabalhos, de forma a questionar o discurso de “fundação”, de “descobrimento” ou de “democracia racial” no país.

Se é verdade que as utopias libertárias às quais muitos dedicaram suas vidas nos anos 1960 e 1970, assim como uma certa avaliação dessas utopias no presente, a construção de um discurso utopista, por parte do conservadorismo, que trata similarmente de um “mundo dos sonhos”, de construir ou imaginar outro mundo, nada mais claro do que as utopias conservadoras e fascistas da extrema direita dos últimos anos. Conforme defende David Bell (2017),

[s]e mobilizando em torno de entendimentos nostálgicos, essencializados, racialmente exclusivos e não históricos de “Bom lugar”, supostamente sob a ameaça de “outros” — pessoas de cor, judeus, feministas, migrantes, queers, “gender non-conformers”, “babacas”, “esquerdistas” —, que são considerados como tendo sido empoderados pelas ramificações mais liberais da democracia liberal capitalista (relativa liberdade de movimento, reformas limitadas em torno de gênero e sexualidade), tal utopismo oferece visões de uma vida boa baseada em valores “tradicionais” associados ao lugar em questão. Promete “tornar a América grande de novo”, como diziam os bonés de Donald Trump. (Bell, 2017, p. 51)[2]

A pretensa criação desse lugar “maravilhoso” nas utopias da extrema direita se relaciona, em geral, de acordo com Bell (2017), ao conceito de nação. Nesse sentido, os “outros” seriam aqueles distinguíveis, diferentes, “incompatíveis culturalmente”. Esse utopismo conservador, então, seria afetivo, ou seja, organizaria a sensação de “falta de lugar” associando-se à noção reacionária de espaço que supõe unidade e/ou homogeneidade. No caso do Brasil dos anos 60, de acordo com as propagandas recuperadas por Lauriano (2014) e Fico (1997), o projeto de país utópico da ditadura militar visava uma eliminação da diferença, do outro — o comunista, aquele que não se adequava ao “Brasil feito por nós” e à “pátria”, berço do controle absoluto e autoritário.

Percebe-se, portanto, que os conceitos de “utopia” e “distopia” são relacionais e dependentes, portanto, de uma posicionalidade, conforme demonstra Gregory Claeys (2016), que argumenta, por exemplo, que a “utopia da Alemanha [nazista] era a distopia de todo o resto”. Podemos também pensar na Utopia de More, que, como lembra Bell (2017), apesar de lidar com a “utopia fundadora”, trata substancialmente de ocupação colonial. Similarmente, no caso do projeto de país da ditadura militar brasileira, a utopia pretendida (distopia para muitos) ou a “utopia autoritária” (D’Araujo; Soares; Castro, 2014) tinha como projeto o controle total e completo, a homogeneidade cultural, o monopólio da violência, o conservadorismo moral e o aprofundamento da exploração do trabalho e da natureza.

Além disso, como afirma Quinalha (2017), essa “utopia autoritária” tinha a pretensão de “totalidade e de alcance absoluto em todas as dimensões da vida social”. Não se tratava, de acordo com o autor, apenas de uma forma de governo que tinha como objetivo suprimir direitos e liberdades, mas de um projeto que “se abate sobre os corpos social, político, individual como um verdadeiro laboratório de subjetividades para forjar uma sociedade à sua própria imagem” (Quinalha, 2017, p. 28)[3]. Para tal, era necessário um aparato amplo, complexo e funcional, o que fez com que a repressão política e moral se desdobrasse em diferentes contextos e estruturações. Qualquer oposição a esse projeto de “grandeza do Brasil” só podia ser eliminada.

O projeto utópico da ditadura, entretanto, não dizia respeito apenas ao controle, à censura e à repressão, mas também a um processo de modernização intensa e conservadora pelas vias das características anteriores, conforme define Renato Ortiz (2014). A ditadura buscou um desenvolvimento acelerado da economia durante o “milagre econômico”, uma “intensa industrialização e urbanização da sociedade brasileira, uma reorganização do Estado, bem como a emergência de uma tecnocracia que dinamiza e regula as forças produtivas”, ou seja, “um conjunto de medidas que aprofundam a consolidação do que se denominava capitalismo tardio” (Ortiz, 2014, p. 226). Tratava-se, podemos dizer, de um projeto conectado com as disputas daquele tempo histórico: blocos econômicos, visões de mundo, ou “utopias de massas”, nos termos de Susan Buck-Morss ([2000]2018), comunismo e capitalismo, golpes e respostas revolucionárias, ditaduras e resistências na América Latina. Daí também a importância de ler, como demonstra Buck-Morss (2018), a construção das utopias de massa como o sonho do século XX, ou seja, “a força ideológica que conduziu a modernização industrial em ambas as formas capitalista e socialista. O sonho foi, ele próprio, o imenso poder material que transformou o mundo natural, investindo os objetivos produzidos, industrialmente, e os ambientes construídos de um desejo político e coletivo” (Buck-Morss, 2018, p. 15).

É preciso recuar um pouco no tempo, entretanto, observando atentamente à proposta de Jaime Lauriano, não se pode dizer que a violência da fundação da nação e sua proposta de “civilização”, baseada na barbárie, começou na ditadura, mas é muito anterior: estruturou-se no genocídio da população indígena e se construiu pela força de trabalho do povo negro escravizado, além de um certo discurso sobre a “democracia racial”. De acordo com Ortiz (2014), o projeto de modernização conservadora abarca vários períodos da nossa formação histórica e atravessa a nossa história. Se é verdade que, lembra Fico (1997), a ditadura “consolida e ressignifica a convicção de que vivíamos uma época superadora do atraso” (Fico, 1997, p. 84), é possível embarcar em uma perspectiva anterior que atravessa a nossa história e que tem como fundo um projeto de “longa duração” que quer construir e manter essa visão otimista do país, apagando e ignorando, ao longo do tempo, todos os problemas que supostamente podem ser resolvidos de forma mítica. Nesses processos, inventava-se uma nação que não existia, mas, sobretudo, uma nação para a qual era preciso lutar, exterminar, excluir.

Essa temporalidade, também percebemos, não se esgota com o projeto ditatorial. A “utopia autoritária”, então, mesmo depois do seu suposto fim, encontrará novos caminhos, “pós-transição”. É isso que defende Idelber Avelar (2003) em Alegorias da derrota: não houve uma oposição direta entre as ditaduras e os processos de redemocratização, já que as classes dominantes latino-americanas realizaram o que ele chamou de “transição epocal”, uma transição a saída da ditadura e de uma lógica “nacional” para um cenário complexo de inserção do Brasil na lógica capitalista de acumulação global. A ditadura teria, então, aberto caminho, de muitas formas, para a inserção do Brasil na ordem capitalista global e na estruturação neoliberal da economia, inclusive impedindo qualquer avanço contrário a essa lógica: matando, perseguindo e expulsando todos aqueles que se opunham, ou que poderiam fazê-lo, no futuro. O argumento de Avelar (2003), então, é de que a “transição epocal” não trata exatamente do momento posterior, mas da própria ditadura que, com o suposto retorno da democracia, nos manteve no lugar onde a ditadura nos deixou. A transição, afirma o teórico, seria apenas do Estado ao mercado.

Se a teoria de Ortiz (2014) não se enquadra necessariamente na proposta de Avelar (2003), ele também defende que, quem sabe, podemos dizer, o fim da ditadura militar tenha sido menos uma transição e mais uma “conquista”. Para o teórico, a ditadura possibilitou a modernização requerida pelo regime, alicerçando no país o capitalismo tardio e situando-o no mercado mundial de consumo e produção. O regime, assim, unindo formas de crescimento econômico, modernização e repressão, funcionou perfeitamente para as elites conservadoras que foram as principais favorecidas pelas políticas de Estado, antes e depois.

É o que também defende Ludmer (2013) ao perceber, no contexto da Argentina dos anos 2000, “a utopia realizada do neoliberalismo” na América Latina, um lugar cuja “posição global” se situa sempre no contexto de “atrasados”, incompletos, “instalados em outra situação e em outra história” (Ludmer, 2013, p. 22). O desenvolvimento, portanto, seria a forma de capturar o tempo histórico e estar de acordo com o tempo do capital e do império, de maneira a devolvê-lo como sentido de “progresso”, a serviço da biopolítica do tempo na América Latina, ou seja, “o corte do tempo como regime histórico faz com que a América Latina nunca esteja completa, que seu ser seja sempre remetido ao futuro, sendo essa uma das ideias-chave de nossa posição global” (Ludmer, 2013, p. 22).

Tupinilândia (2018), de Samir Machado de Machado, quem sabe, é um dos romances que mais se dispõem a analisar as formas da “utopia autoritária” no contexto histórico recente do Brasil, suas formas de reatualizações, sua relação com o passado e com o futuro, o mercado e o “progresso”: trata-se de uma espécie de ficção científica, romance de aventura e/ou distopia. Não é o primeiro (ou único) romance relacionado à temática da ditadura com um teor distópico: podemos pensar em Não verás país nenhum (1981) e Zero (1974), de Ignácio Loyola Brandão, e, mais recentemente, nas obras Sob os pés, meu corpo inteiro (2018), de Márcia Tiburi, e Meu corpo ainda quente (2020), de Sheyla Smanioto[4]. Na obra de Machado, um dos personagens principais é um parque de diversões e/ou cidade e/ou complexo de shopping center chamado Tupinilândia, construído no norte do país, perto do Xingu e da Transamazônica. O parque, inspirado na Disneylândia e na Fordlândia[5], projetado pelo magnata e empreiteiro João Amadeu Flynguer, incorpora a figuração do Brasil como “país do futuro”, o lugar da “utopia nacional” via consumo.

O livro é dividido em duas partes principais. Na primeira, intitulada Versão Brasileira e dividida em subcapítulos, constam títulos de distopias como 1984, Admirável Mundo Novo e Não verás país nenhum. O texto também faz uso de diferentes linguagens: matérias de jornal, diários, mapas, áudios transcritos, além de mencionar diferentes mídias criadas dentro do universo de Tupinilândia: bonecos, histórias em quadrinhos, tecnologias.

Conhecemos João Amadeus Flynguer a partir de um perfil feito para uma revista, escrita por Tiago Monteiro, jornalista e filho de um desaparecido político, e publicado no Reader’s Digest, agora impresso no romance. Filho de um americano, Amadeus Severo, vai para o Brasil fazer a sua fortuna em diversos ramos: usinas, móveis, tecnológicas e entretenimento. A fortuna advém desse momento inicial da família, que soube “aproveitar” as condições no Brasil para explorar a terra. Especialmente, o início de toda fortuna se deu na compra de cachoeiras por toda a Região Sul, necessárias para o desenvolvimento de hidrelétricas. O personagem, que havia lutado contra os nazistas, tinha completo desprezo pela ideologia genocida alemã e, no Brasil, isso se traduzia também no desprezo ao “autoritarismo pragmático e modernizante” do Estado Novo, representado pela ideologia própria da Ação Integralista Brasileira. O desprezo se estendia aos comunistas, claro. É já nessa matéria, portanto, que somos introduzidos à história e à ideologia do grupo, que se tornam importantes na narrativa: “nazistas e integralistas tinham cada qual sua visão autoritária de nacionalismo, mas faziam ações políticas conjuntas”; ainda, “convergiam na visão de mundo totalitária, no desejo de poder e imposição da força, e no antissemitismo” (Machado, 2018, p. 26)[6].

A narrativa segue, então, no contexto da dita transição brasileira, com o que chama de a “década perdida”: a passagem do governo militar para o civil. Faz questão de construir esse momento a partir de dois fatos paradigmáticos: o atentado à bomba na OAB, em 1976, e a tentativa de atentado do Riocentro, em 1981. No primeiro capítulo, a voz do narrador principal apresenta as tentativas de impedimento de qualquer avanço na dita transição: “o país caminhava para a abertura política. A economia, ‘para o abismo dos empréstimos do FMI’. A saúde pública, ‘para a epidemia da AIDS’, ainda assim, atentados à bomba vinham sendo uma constante nos últimos anos, desde que os militares anunciaram o processo de abertura política” (Machado, 2018, p. 37). Nesse momento, a investigação sobre atentados está sendo feita por um amigo de Tiago Monteiro, também jornalista, chamado Alexandre Gomensoro, que quer ter acesso à família Flynguer para questionar uma suposta atribuição dos atos à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que, por sua vez, de acordo com seus conhecimentos, já não estava mais na ativa havia mais de uma década. A informação que possuía, então, era a de que os atos faziam parte de uma rede ampla que tentava impedir o retorno dos civis por parte de um grupo de insatisfeitos no Exército, bem como de um grupo de integralistas chefiado pelo personagem fictício do general Newton Kruel, na época, chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI). Kruel, agora afastado do SNI, teria sido designado interventor de um município recém-criado no interior do Pará, considerado área de segurança nacional e chamado “Amadeus Severo”. O projeto, até então sigiloso, parecia se tratar de uma nova hidrelétrica. Entretanto, a tentativa de pesquisar o que acontecia no lugar foi impedida: o jornalista foi encontrado morto.

O momento parecia, para o magnata Flynguer, uma virada no contexto brasileiro: “os tempos estão mudando, um novo começo para esse país, um começo do qual gente como ele não faz parte, um começo para quem vê o futuro, como nós, e que não vive no passado” (Machado, 2018, p. 59). É diante disso que planeja a construção de Tupinilândia, nos anos 1980, e busca arquitetar esse parque de identidade nacional a partir de símbolos também nacionais, conforme demonstra o nome. Para o magnata, o “controle da narrativa” era o que definia a política, seja pela capacidade da Rede Globo em controlar o real – que ele se referia quando dizia “se não passou na Globo, nem aconteceu” (Machado, 2018, p. 80) –, seja para estruturar a forma de dizer e de contar sobre o parque. É para isso que cria também um gibi com o mesmo nome, de forma a tornar os visitantes atentos às questões propostas pelo parque: é necessário, agora, “reconstruir a narrativa nacional”. O objetivo é ter o parque e a nova narrativa prontos para a próxima eleição: “um marco de uma nova era para o país. Uma era de otimismo e modernidade. Uma época de belezas” (Machado, 2018, p. 72). O projeto de modernidade era também central, dado que o parque seria a personificação dos ideais do futurismo de Marinetti: “um canto ao amor e ao perigo, ao hábito da energia, o movimento agressivo, o salto mortal, a beleza da velocidade” (Machado, 2018, p. 72).

O romance insere os diários de João Amadeus e o processo de definição das muitas simbologias do parque. Para começar, era necessário que essa utopia (distópica) fosse construída no Brasil “profundo”: treze quilômetros quadrados próximos a Altamira, no Pará, na margem sul do Xingu, perto da Transamazônica, o que permitia um bom acesso e trazia uma “aura romântica” para o projeto. Usaria apenas “empresas nacionais” como apoiadoras e fornecedoras. Além disso, para essa recriação, seria necessário levar a modernidade e a civilização para esses lados: hotéis, transportes, hospitais para turistas, funcionários que lá morariam, sempre isolados no parque de diversões. O parque era, além disso, tomado por muita tecnologia de controle: tudo se via, se sabia e se controlava, desde a música, a temperatura, os vídeos e o som. O maquinário, trazido dos Estados Unidos, era a única estrutura “não nacional”. A utopia é, então, descrita, em oposição ao mundo fora dali, pelo narrador:

[e]m Tupinilândia, tudo sempre daria certo, pois fora planejado para ser assim, para sufocar a alegria do samba, o sabor das frutas e a rapidez de seus ritmos, aquela tão sutil e oculta tristeza brasileira, tristeza que nascia do sentimento de fracasso pela miragem do progresso do país do futuro, um futuro que projetava constantemente à sua frente e fugia para longe na mesma velocidade com que se corria atrás dele. Em Tupinilândia a realidade cinzenta de inflações e desmatamentos descontrolados, dívidas externas e generais antipáticos, oligarcas grosseiros e celebridades vulgares seria trocada por outra versão da realidade, com seu colorido hiper-realista de gibi, onde tudo funcionaria perfeitamente, tudo seria sempre feliz e animado como num programa infantil onde todos teriam direito a prêmios. Tiago sorriu com a conclusão de que, no final das contas, aquilo era uma coisa genial: se Tupinilândia já não existisse, seria preciso inventá-la. E foi o que João Amadeus Flynguer fez. (Machado, 2018, p. 105)

Na estação de boas-vindas, formada por uma “rodoviária futurista” de onde sairiam os ônibus, direto de um dos maiores empreendimentos da ditadura, a Transamazônica, entregava-se o mapa ilustrado do parque – inserido ao final do romance como paratexto. Eram cinco parques temáticos: País do Futuro, Mundo Imperial Brasileiro, Centro Cívico Amadeus Severo, Reino Encantado de Vera Cruz e Terra da Aventura. Neles, são misturadas uma série de referências: imperiais, coloniais, autoritárias e, principalmente, “nacionais” ou, ao menos, da história hegemônica e violenta do Brasil. Assim, ao mesmo tempo em que se intitula “tupi” e se faz referência à influência indígena, sobressaem-se referências ao “modernismo”, bem como às lógicas imperiais. Valorizava-se, então, uma história monumental, majestosa, de um país que nunca existiu, mas que era preciso criar, inventar, reconstruir, nem que fosse pela narrativa. Cada um dos parques temáticos abrigava ainda uma série de atrações, em grande parte, acompanhadas das marcas nacionais: Roda Gigante Phebo®, Pavilhão Aviação Varig®, Minimundo Lacta®, Piratas do Brasil Guaraná Brahma®, Barco do Amor Laka®, Castelo Encantado Piraquê® e Casa Gigante Itubaína®[7]. Lá, não se tratava apenas de valorizar o nacional, mas sobretudo de consumi-lo, já que o espírito do país, dizia João Amadeus, só poderia ser reinventado, na saída da ditadura, pelo consumo e pelo mercado. As descrições do livro, também muito vivas, coloridas e vibrantes (como a capa), são profusas: são imagens construídas para que se veja e descubra o projeto, como um visitante, à medida que o narrador acompanha os personagens que ali descobrem esse novo mundo, do futuro.

Capa do romance Tupinilândia, escrito por Samir Machado de Machado. Fonte: Todavia.
Capa do romance Tupinilândia, escrito por Samir Machado de Machado. Fonte: Todavia.
Mapa de Tupinilândia.
Mapa de Tupinilândia.

Uma das atrações mais polêmicas chamava-se Museu Brasileiro da Vergonha: ali, com animatrônicos, encenava-se a tortura, de forma bastante realista. Eram bonecos nus em que se enunciavam os métodos de tortura: pau de arara, pimentinha, geladeira, coroa de cristo, corredor polonês. Cada uma das formas era anunciada e reproduzida. João Amadeus entendia naquele lugar uma forma de “reconstruir a imagem que o país tinha de si mesmo apesar de sua história, e não com ela” (Machado, 2018, p. 164). Até porque entendia que não poderia furtar-se de contar o que havia de mais sombrio na história nacional – mesmo que não considerasse a lógica do “descobrimento” e do “poder imperial” como uma delas. Tinha um compromisso, dizia, em denunciar o que essa “corja de fascistas” havia feito e o medo que tinha dessa “mentalidade autoritária” que continuava no país. A possibilidade de recuperar esse passado recente na época faz com que o medo de regresso ao autoritarismo se manifestasse em um deputado que visitou o Museu e que se preocupava com o que fariam os militares se soubessem que Tancredo, o presidente seguinte – a visita mais esperada na inauguração – passaria por lá. O espectro do retorno e do recuo, na transição, tomava as mentes da época, principalmente porque conheciam a extensão e o poder das Forças Armadas naquele momento (e depois dele).

Enquanto isso, o narrador também se volta à figura de William da Silva Perdigueiro: antes, o responsável por evitar “assaltos a banco” ou “sequestros de embaixadores”, agora, entediado, era um oficial burocrata da censura. Sem mais o antigo inimigo, o comunismo, era hora de alargar os sentidos do seu trabalho – já amplos –: “os comunistas tinham se infiltrado nas redações de todos os jornais, com tentáculos que convertiam em oponentes aqueles que antes lutavam a seu lado, chegando até mesmo a fazer do general Golbery […] um defensor da abertura política” (Machado, 2018, p. 68). É ele quem mobiliza outras forças para responder ao projeto do parque de João.

Este projeto audacioso de “utopia futura” via mercado é, portanto, interrompido por “utopias” conservadoras do passado: um grupo de integralistas que acusa o parque de tentar fundar uma cidade comunista. Contrários à abertura e à redemocratização do país e enxergando no projeto de João uma continuidade da lógica “comunista” e da “apologia contrária aos preceitos da ditadura”, um grupo de integralistas toma a cidade e faz uma caçada, em uma das partes mais aventurescas do romance, contra a família Flynguer e seus funcionários. Para proteger a sua família e organizar a fuga dos filhos e netos, João aborta a ideia do parque e decide morrer por lá mesmo, dado o fato de que também já convive com um câncer em estágio terminal. A “utopia do futuro” é interrompida pelas “utopias do passado” integralista.

Depois de um fim que deixa o leitor quase sem fôlego, o livro dirige-se à sua segunda parte: distanciada em mais de 30 anos, inicia com Artur Flynguer (quase o mesmo sobrenome, mas de outra família), um antropólogo obcecado pelas histórias em quadrinhos feitas nos anos 80, que não conhecia a história efetiva sobre o parque, tampouco sabia se havia existido, e recebe uma bolsa de pesquisa do próprio instituto da família Flynguer para mapear e recriar, virtualmente, o que seria esse projeto empreendido por João Amadeus, antes que o lugar fosse esgotado e afogado pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. Mantendo o parque de Tupinilândia como fio narrativo, o romance opera uma ruptura temporal. Agora, não sabemos o que aconteceu com a família Flynguer, com o parque e tampouco com os integralistas. O Brasil está, no momento da narração, em outra “transição” e com intensos debates políticos: o impeachment de 2016 e sua definição como golpe ou não; o contexto da mudança política e sua relação com empresas, empreiteiras, a partir da Lava Jato; a relação que se aprofunda com as Forças Armadas; e a aproximação de novas formas de fascismo. O contexto, bastante específico, de repressão aos atos de rua, de “sigilo” sobre documentos ainda importantes, de radicalização da polarização, do retorno de discursos nacionalistas povoam as perspectivas do momento e são retomado, às vezes, de forma bastante acadêmica e didática pelo romance.

O pesquisador, ao chegar à região onde ficava o parque com sua equipe de pesquisa e família, acaba descobrindo que o lugar ainda se mantém, mas foi tomado e constituído como uma colônia e cidade completamente dominada pelos grupos integralistas, afastada do restante do mundo e parada no tempo: os militares ainda estão no poder, a Guerra Fria nunca terminou e os “inimigos comunistas” ainda devem ser aniquilados. Na primeira parte, que se dizia a construção de uma lógica utópica, nomeiam-se os capítulos com títulos distópicos; a segunda parte, com tons distópicos também evidentes, é recheada por títulos “esperançosos”. Essa ruptura temporal que opera entre a primeira e a segunda parte, portanto, é rapidamente alcançada, dado que a maior parte das questões “do passado” seguem “as mesmas”: o que moveu os integralistas, antes, continua aqui como projeto “nacional”, fundador, e as lógicas autoritárias e violentas permanecem. Não só isso: os privilégios, os problemas, a intensificação de lógicas de poder no Brasil persistem e se aprofundam, como podemos perceber no papel da família Flynguer e dos seus privilégios no romance.

São muitas as questões sobre a “utopia autoritária” da ditadura que, no deslocamento temporal entre a transição para a democracia e o contexto pós-impeachment, são recuperadas. A primeira delas, quem sabe, é um contexto amplo de apoio e complacência das elites com os regimes de governo, independente da ideologia. Conforme demonstrou Maria Helena Alves (1988), as elites brasileiras sempre estiveram engajadas com os regimes políticos, seja antes ou depois da ditadura. A “transição desde o topo” fez com que as elites fossem até mesmo responsáveis pelas negociações e reformas necessárias para “liberalizar” o regime; ou seja, a partir dessas negociações, o Estado brasileiro foi capaz de continuar os processos de abertura não “comprometendo as estruturas básicas de controle político ou alterando significativamente o modelo econômico”[8] (Alves, 1988, p. 49). No romance de Machado (2018), portanto, a figura de João Amadeus, que parece, à primeira vista, dotado de uma ideologia difusa, torna-se, aos poucos, evidente: uma ideologia que insere, como prioritária, a lógica de mercado, de consumo e, principalmente, que destaca uma lógica estrutural de poder e de privilégio das elites nacionais – e internacionais. A utopia da família Flynguer aponta para a “monopolização do poder político pela elite”, à qual remete Alves (1988), mas também para a possibilidade de controlar o discurso e a narrativa da história nacional.

Assim, apesar de declarações supostamente contrárias ao fascismo, à ditadura e ao integralismo, a família Flynguer atuou na manutenção financeira da deflagração do golpe contra João Goulart. Depois, no contexto da transição, facilmente passaram, junto a outros grupos da elite, para a defesa da abertura, junto com as mobilizações populares, a exemplo das Diretas Já, sem esquecer, claro, dos interesses financeiros que estavam em jogo. Agora, na segunda parte, é essa mesma família que está envolvida nos escândalos de corrupção das empreiteiras que adotaram, diante do contexto democrático, formas de intervir diretamente na ordem política, cultural e econômica.

Nessa parte, também retoma o contexto específico de exploração da natureza: a hidrelétrica de Belo Monte. O parque Tupinilândia, construído perto do que seria a nova grande obra, projeto da ditadura militar, e então recuperada décadas depois pelo governo Dilma – extremamente complexa e polêmica, bem como responsável por deslocar e violentar as comunidades ribeirinhas e indígenas, submetida a questionamentos de ativistas ambientalistas – está perto de ser inundado, junto com o restante da área do Xingu. Também me parece importante pensar aqui como o livro, na medida em que insere o contexto de aumento brutal do extrativismo, da expansão de latifúndios, da construção de hidrelétricas, demonstra como qualquer alternativa de futuro não só vai ser difícil como terá que, mais uma vez, tentar ultrapassar outras razões, mais fundamentais e estruturais da ordem econômica e política, que, independentemente de todo o espectro político, até agora ignoram a necessidade de uma proposta séria para as questões ambientais.

A obra do parque – que era um “sonho utópico de consumismo nacionalista e utópico” para João Amadeus – como tantas outras, descobriu o pesquisador responsável por reconstruir sua história, só poderia se dar no deslocamento até a Amazônia. A construção de Tupinilândia, como todas as obras monumentais a que nos referimos, teria se dado por e a despeito das vidas humanas perdidas: “da mesma forma como se dizia que cada pilar da ponte Rio-Niterói era também um túmulo”. Naquele momento, Artur, o pesquisador, percebia a “monstruosidade” da obra e o estrago ecológico que teria feito, caso tivesse dado “certo”. Além disso, “não havia registros de problemas em comunidades indígenas na construção de Tupinilândia, mas, como tudo na época da ditadura, a falta de registro não significa a ausência do ocorrido; muito pelo contrário. Era algo que estava implícito nas fotos que vira, mostrando o perímetro dos parques formado por um muro alto e eletrificado no topo” (Machado, 2018, p. 314).

Assim, apesar do nome do parque e da suposta preocupação com os indígenas, incluindo uma denúncia que conhecia através do Relatório Figueiredo[9], João Amadeus não tinha nenhuma preocupação com os grupos que ocupavam a área que não fosse apenas para estabelecer uma certa “negociação”, capaz de comprar o lugar “sem problemas”. Nesse sentido, o Reformatório Krenak, que era uma prisão “étnica”, não poderia ser de interesse do empreiteiro:

João Amadeus escutou aquela história com um distanciamento quase indiferente, apenas mais um pedaço da colcha de retalhos de histórias cruéis que se entrelaçavam na construção do país. Mas, pouco tempo depois, estava em Minas Gerais, cavalgando na fazenda de um dos muitos sócios de seu falecido pai, quando aquele nome voltou a ser mencionado. “Isso aqui era tudo terra de índios krenaks”, disseram-lhe. A Funai havia cedido aquelas terras aos fazendeiros locais, que, em troca, entregaram ao governo federal uma fazenda, a Fazenda Guarani. E João Amadeus se perguntou: para que a Funai iria querer uma fazenda? Ora, para ter onde enfiar todos os índios da região que seriam realocados com a cessão das terras, e mais os que vinham de todo o país para a antiga prisão indígena conhecida como Reformatório Krenak. (Machado, 2018, p. 169)

A sua postura era de “não entender e tampouco questionar” o que era feito com essas pessoas. A utopia de João Amadeus, então, seria construída em terra indígenas, mas sem se importar com o que aconteceria àquele povo, como, em geral, foram aplicadas as políticas das elites do país. Nessa utopia, portanto, não caberiam outras vivências ou experiências que não aquela de uma população com acesso, de classe alta e branca. Todas as outras formas de vida, situadas fora dessa utopia, portanto, são entendidas como retrocessos, “barbáries” ou “atrasos” no “progresso” do tempo histórico. Importante pensar aqui, também, na incapacidade, até hoje, das políticas públicas de reparação e memória de inserir as demandas específicas dos povos indígenas, um dos grupos mais atingidos pela repressão estatal, antes e depois do regime militar. A ditadura, em muitas formas, atingiu as suas formas de vida (e de morte)[10].

É o que defendem Demetrio e Kozicki (2019) quando falam da (in)justiça de transição para os povos indígenas: a ditadura significou, em números provavelmente postos para baixo, pelo menos oito mil indígenas mortos, povos inteiros e culturas negadas, a prisão e o uso de trabalho forçado indígena, bem como o início da construção de empresas que modificaram completamente as suas formas de vida, como a Transamazônica, a idealização da hidrelétrica de Belo Monte – projeto da época – bem como a construção de Itaipu e da estrada da Perimetral Norte. A resposta a uma política efetiva de justiça de transição, no caso dos povos indígenas, exigiria, portanto, não apenas o direito à memória, à verdade e à justiça, mas também ao território. Isso não quer dizer, segundo os autores, que a exploração e a violência contra esses povos tenham começado no período da repressão militar, mas é fato que os projetos políticos e econômicos da ditadura os atingiram com grande força. Ainda que não os tenha classificado como “comunistas” ou “subversivos”, dizem Demetrio e Kozicki (2019), a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) faz questão de mostrar como os indígenas também foram classificados como inimigos ou, no mínimo, obstáculos para o desenvolvimento modernizador do Estado. Essa história, até o momento, não foi devidamente contada.

Tupinilândia nos faz, então, questionar a falta de personagens indígenas e o que pretende mobilizar quando decide colocar na voz problemática de Flynguer uma avaliação desses povos. Mais: faz-nos questionar o que seria uma distopia para esses povos. Seria o agora? Seria o “Brasil”? Seria a proposta que circulou recentemente de um “marco temporal”, que quer dizer que só podem ser considerados cidadãos com direitos territoriais a partir de 1988 e da Constituição? O romance lida com a representação dessa disparidade fundamental e violenta entre os povos indígenas e as elites do país que mesmo, e sobretudo, porque e quando ocupam as terras destes povos, não têm interesse no seu destino. No presente da narração, os indígenas continuam sem acessar o espaço do parque que lhes parecia, ao que dizem os integralistas, “assombrado”.

A lógica binária que não acolhe esses corpos, típica do autoritarismo, é levada a extremos na Tupinilândia como República Integralista do Brasil. O tempo da ideologia integralista tinha encontrado a sua máxima representação ali. Junto da ideologia de João Flynguer, aprenderam que o que importava era a narrativa que contavam: o Brasil havia sido tomado por comunistas, médicos, padres e jornalistas financiados pelo empresário “comunista” João Amadeus Flynguer e liderados por Miguel Arraes e Leonel Brizola. Contra eles estava o general Newton Kruel, que teria se oposto à invasão e, por conta dessa disputa, dividido o país em dois. Foi assim que teria sido fundada a República. Qualquer inimigo da Nação que invadisse o território, ou fosse identificado, era julgado na frente de todos, mas ninguém era nunca inocentado. Quem julgava, inclusive, eram os animatrônicos do coronel Brilhante Ustra, ministro da Justiça, do general Sylvio Frota, ministro da Defesa, e do presidente da República, Newton Kruel, este último já bastante velho. A economia de governo, política e cultura de Tupinilândia era, então, baseada nisto: entre os cidadãos, aqui chamados de “consumidores”, e inimigos; entre heróis e alvos; e entre integralistas e comunistas. Não por acaso, há um uso reiterado da “saudação integralista” “Anauê”, que, de acordo com Gonçalves e Neto (2020), significa “[v]ocê é meu parente”, uma forma de integrar o movimento, além de demonstrar respeito às hierarquias. Qualquer diferença deveria ser imediatamente eliminada. A simbologia, usada também no parque de João Amadeus, é aqui transportada para símbolos importantes ao integralismo, parte fundamental da sustentação da lógica da “republiqueta”.

Para isso, usavam a estrutura de panóptico e controle criada já no parque de João Amadeus. A utopia do controle tecnológico dos anos 1980 é usada, agora, ao máximo, para o controle total das pessoas, do espaço, da história. Aqui, servia, entretanto, de forma ainda mais intensa para estabelecer toda uma estruturação do viver do “tupinilandês”, ou seja, para controlar como deveriam se portar, falar e viver, e como as “castas” e hierarquias deveriam ser seguidas. A tecnologia, ao fim, é também o que possibilita a falha, antes e agora, a perda do controle: com João Amadeus, a possibilidade de entrada dos integralistas no parque se deu dentro do sistema altamente tecnológico e, agora, é também a entrada no sistema que permite que a verdade seja dita aos cidadãos. Para isso, os jovens insurgentes, junto de Artur e sua equipe, usam a linguagem do jornalismo e organizam um vídeo com uma retrospectiva dos últimos anos. O início: a queda do Muro de Berlim, sendo anunciada por Pedro Bial, simbolizando uma suposta ruptura no sistema econômico e político do século passado, negada ali até então.

Não demorou muito até que a população, que já carregava consigo muitas de suas suspeitas, entendesse o que significava aquele vídeo e a mentira em que viviam: o seu mundo deveria abrir-se para fora de lá, e eles seriam deslocados do que conheciam até então. Deveriam reconhecer uma nova temporalidade desconhecida. Em uma tentativa de negociação anterior, por parte de Helena Flynguer, a herdeira absoluta de João Amadeus, que continuava aceitando toda essa mentira e mandando mantimentos para Tupinilândia, foi oferecida, inclusive, uma forma de anistia “ampla, geral e irrestrita para todos que eram daquela época” (Machado, 2018, p. 376), à qual o general teria negado, dado que só sairia de lá morto, acompanhado dos seus: “povo pode ser gado, mas esse é o meu gado” (Machado, 2018, p. 376). É ela quem tem que negociar uma saída “limpa”, portanto, antes que tudo fosse parar nos jornais. As duas utopias (distopias) se imbricam agora na coexistência de temporalidades, a da família Flynguer e a dos integralistas saudosos do “governo militar”. Encontram-se, sobretudo, no tempo da anistia e da injustiça. Ainda que haja interesses políticos divergentes, não tão diretos, as ideologias a que remetem dialogam entre si: queriam recriar agora o autoritarismo a partir do consumo, do mercado, assim como o da exclusão e da negação de qualquer dissidência.

O epílogo do romance E você pensou que aquele foi o ano ruim – quem sabe um prenúncio de todos os anos desde então – narra o encontro entre Artur e Tiago, os dois outsiders que puderam observar de perto a família Flynguer, e os mecanismos de proteção ordenados pelas elites brasileiras. A utopia autoritária “de longa duração” havia servido para a manutenção dos poderes e para a garantia de uma entrada no sistema global do capitalismo. Ainda assombrados com a falta de informações sobre o parque, e com as curiosidades que ainda os tomavam acerca do futuro desse lugar mágico, relembram o que dizia João Amadeus, para quem: “a vida só faz sentido quando pode ser alinhada dentro de uma narrativa. E, de certo modo, é o conflito que move os tempos atuais […]. Quem contará a história dos tempos que vivemos? O embate final da Era da Informação será sempre pelo controle da narrativa” (Machado, 2018, p. 443).

Quem sabe seja por isso, ao fim, a escolha do autor ao tratar de maneira tão próxima a política nacional e contemporânea como ficção distópica: de que outra forma poderia tentar contar a história contemporânea? Que futuro pode ter esse Brasil? Ao demonstrar que o que há de mais distópico é o nosso presente e ele assim pode ser visto como um futuro de caos, crise e ruínas, uma utopia falha, problemática, como costuma ser descrita a conceituação de uma distopia, de acordo com Claeys (2016), o que sobra de um suposto futuro prometido? Ou de que lugares ele é pensado e construído? É o que faz Tupinilândia, portanto, ao nos aproximar da história do país, denunciar os mecanismos da ditadura militar e mostrar os limites de um presente que não avalia o seu passado, mas, ao contrário, assume no entretenimento e no consumo o seu horizonte final[11]. O romance, construindo uma série de imagens de futuro, possibilita um aprofundamento do nosso olhar sobre o presente – sem que o tenha encarado na época da dita “transição”, em que as forças conservadoras mantiveram o seu poder e controle sobre as narrativas – e, como uma distopia bastante relacionada com aspectos da atualidade, aponta para as formas de sobrevivência das utopias e ideologias autoritárias e poderosas do país. Nessa perspectiva, denuncia os mecanismos autoritários e conservadores do passado e do presente, as suas formas de permanência e de reinvenção. Ao fazê-lo, também situa historicamente esses projetos e podem desarmar a lógica do catastrófico e incontornável. Interroga, assim, o seu limite, o seu projeto e mobiliza as formas de questionamento sobre esse “futuro” que apresenta.

Nesse sentido, Florencia Garramuño (2019) aponta sobre a lógica do “Brasil, país do futuro”, esse país que, em muitos tempos, se apresentou nessa obra, que

[c]om o tempo, a frase quis dizer, antes, que a promessa do Brasil está sempre no futuro e nunca se concretiza. Extrema desigualdade social, fome, persistência do racismo e violência não foram erradicados: “O Brasil é o país do futuro, e sempre será”, é a observação irônica que contém a distância entre as previsões sobre a grandeza do Brasil e suas dificuldades em alcançá-la. O Brasil seria assim o país eterno do futuro, um futuro que nunca se materializa no presente. A promessa teria se transformado em condenação, e o futuro seria um amanhã que está sempre à frente e nunca será alcançado (Garramuño, 2019).[12]

* Lua Gill Cruz realiza estágio pós-doutoral na PUC-Rio. Foi professora visitante na Universidade do Chile através do Programa Leitorado Guimarães Rosa. É doutora e mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp.
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GARRAMUÑO, Florencia. Brasil caníbal: entre la bossa nova y la extrema derecha. Buenos Aires: Paidós, 2019. (Edição Kobo).

GONÇALVES, Leandro Pereira; NETO, Odilon Caldeira. O Fascismo em Camisas Verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020.

KUCINSKI, Bernardo. A nova ordem. São Paulo: Espaço Alameda, 2019.

LOYOLA BRANDÃO, Ignácio De. Não verás país nenhum. São Paulo: Global Editora, 1981.

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ORTIZ, Renato. Revisitando o tempo dos militares. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 112–127.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Colorindo memórias e redefinindo olhares: Ditadura Militar e Racismo no Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Comissão da Verdade do Rio: Relatório. Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015. Disponível em: < https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/12/Pires-T-Colorindo-memorias-e-redefinindo-olhares-Ditadura-militar-e-racismo-no-Rio-de-Janeiro-2.pdf>. Acesso em: 17 out, 2024.

QUINALHA, Renan Honorio. Contra a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira (1964-1988). 2017. 329 f. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/101/101131/tde-20062017-182552/>. Acesso em: 22 jul. 2020.

SMANIOTO, Sheyla. Meu corpo ainda quente. São Paulo: Editora Nós, 2020.

TIBURI, Marcia. Sob os pés, meu corpo inteiro. Rio de Janeiro: Editora Record, 1ª edição, 2018.

VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Notas
[1] De acordo com Thula Pires, em Colorindo memória e redefinindo olhares (2015), a Comissão da Verdade do Rio conseguiu recuperar documentos que demonstram como a ditadura militar adotou o mito da democracia racial “como instrumento ideológico-político” e, ao mesmo tempo, apresentava o “racismo institucional […] nas observações dos agentes de segurança sobre os discursos e atividades dos movimentos negros” (Pires, 2015, p. 12).

[2] Original: “Mobilizing around nostalgic, essentialized, racially exclusive and ahistorical understandings of ‘good place’ supposedly under threat from ‘others’ – people of color, jews, feminists, migrants, queers, gender non-conformers, ‘cucks’ ‘lefties’ – held to have been empowered by the more liberal ramifications of capitalist liberal democracy  (relative freedom of movement, limited reforms around gender and sexuality), such utopianism offers visions of a good life based on ‘traditional’ values associated with the place in question. It promises to ‘Make America Great Again’, as Donald Trump’s baseball caps have it.

[3] Também recomendo o catálogo da exposição Orgulho e resistências: LGBT na ditadura. Disponível em: http://memorialdaresistenciasp.org.br/catalogo-exposicao-orgulho-resistencias/. Acesso em: maio de 2021.

[4] Penso também no romance de Kucinski, A nova ordem (2019), não diretamente relacionado à ditadura militar brasileira, mas, podemos dizer, na medida do projeto literário e ético do autor, em grande parte inspirado nos seus mecanismos da repressão militar, bem como no contexto atual brasileiro – ainda que escrito antes da posse do presidente Jair Bolsonaro.

[5] A matéria de jornal, incluída como parte do romance, explica: “[r]eferia-se à cidade planejada por Henry Ford no meio da Floresta Amazônica trinta anos antes, hoje pouco lembrada. Parte utopia, parte hubris, fora feita para baratear os custos de extração de borracha, condenada ao fracasso pelo desprezo que Ford nutria pelas pesquisas em prol de experiências práticas. Isso levou seus homens a penetrarem na selva sem conhecer nada sobre ela ou sobre o plantio de seringueiras. Mas a ideia permaneceu lá” (Machado, 2018, p. 19). Sobre o projeto da Fordlândia, também recomendo o documentário Beyond Fordlândia (2017), de Marcos Colón.

[6] Sobre a temática, recomendo o livro de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo (2020), em que constroem uma interessante e bem fundamentada narrativa sobre o integralismo no Brasil, desde sua origem, com Plínio Salgado e inspiração fascista – com seus símbolos, ideologias e formas de organização política – até os movimentos neointegralistas atuais, como o ataque à produtora Porta dos Fundos no fim de 2019.

[7] A lógica distópica da realidade de venda de lugares com vocação pública para marcas, que recebem os seus nomes, já é, há muito, parte do contexto brasileiro. Enquanto escrevo esta tese, leio nos jornais que a estação de metrô Botafogo, no Rio de Janeiro, passará a chamar-se Estação Botafogo Coca-Cola. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/estacao-do-metro-botafogo-passa-se-chamar-botafogococa-cola-24824755. Acesso em: jan. de 2021.

[8] Original: “compromising the basic structures of political control or significantly altering the economic model.

[9] O Relatório Figueiredo é um documento composto de 29 volumes e abrange as atividades do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), principalmente no que tange a violências, massacres e corrupções contra os povos indígenas do Brasil, seja em relação a abusos, escravização, contaminações intencionais, expulsões de terras, entre outros. O Relatório também foi importante como um arquivo da repressão para a construção da sessão temática sobre as violações de direitos humanos dos grupos indígenas na CNV. Para acessar o Relatório, cf. http://museudoindio.gov.br/divulgacao/noticias/225-museu-do-indio-organiza-e-disponibiliza-relatorio-figueiredo. Acesso em: jun. de 2021.

[10] Cf. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura, de Rubens Valente (2017).

[11] O Brasil como commodity é questionado no interessante trabalho de Gilvan Barreto, Postcards from Brazil (s.d.), em que a partir de cartões postais turísticos convidativos, com os estampados de “Welcome to Brazil”, também insere imagens e discursos da ditadura. Em contraposição ao Brasil que se quer vender, apresenta o Brasil da violência. Disponível em: https://www.gilvanbarreto.com/works/Postcards-from-Brazil. Acesso em: jun. de 2021.

[12] Original: “Con el tempo, la frase ha significado más bien que la promesa del Brasil siempre está en el futuro y nunca se concreta. La extrema desigualdad social, el hambre, la persistencia del racismo y la violencia no se han erradicado: “El Brasil es el país del futuro, y siempre lo será’, es la observación irónica que encierra la distancia entre las predicciones sobre la grandeza del Brasil y sus dificultades para llegar a ella. El Brasil sería, así, el eterno país del futuro, un futuro que nunca se concreta en presente. La promesa se habría transformado en condena, y el futuro sería un mañana que siempre está adelante y que nunca se alcanza”.
Dossiê
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UMA LINGUAGEM QUE PROCURA: ESTÉTICA, EXPERIÊNCIA E POLÍTICA NO PROCESSO CRIATIVO

Em 2013, assisti na televisão o depoimento de uma mulher, ex-guerrilheira na ditadura militar do Brasil, que me impressionou muito. Ela contou que, em 1971, havia se afastado da militância política, por diversas questões, inclusive por pressões familiares. Eram os anos Médici, os anos de chumbo. Um dia, ela estava voltando para casa quando foi interpelada por dois policiais do DOPS. Há muito tempo ela não fazia uma ação de militância, o seu rosto e o seu nome não eram conhecidos pela repressão, por isso, ela procurou manter a calma. Eles revistaram a sua bolsa e não encontraram nenhuma arma, panfleto, livro, nada “subversivo” no sentido político. Encontraram, porém, uma cartela de pílula anticoncepcional. Ela foi presa e torturada por isso.

Na época, eu já havia começado a escrever o romance, O Corpo Interminável. Já havia lido entrevistas e depoimentos de mulheres que participaram da resistência contra a ditadura militar no Brasil. Em todos havia a consciência e a denúncia de que ser mulher levava os torturadores a práticas mais abusivas e cruéis de violência. Nos porões, homens e mulheres eram torturados, mas “as mulheres foram submetidas de formas mais intensa à tortura sexual, como os estupros, as mutilações, inclusive com animais vivos” (Teles, 2015). Eu já estava consciente da barbárie que aquelas mulheres haviam enfrentado, já estava muito nauseada e horrorizada, mas o depoimento de uma jovem presa e torturada por causa de uma pílula anticoncepcional em sua bolsa me levou a outro lugar de repugnância e de reflexão.

Um lugar histórico, ou coletivo, não apenas de um recorte definido no tempo, como se a violência contra as mulheres na ditadura militar nas décadas de 60 e 70 pudesse ser justificada pelo calor e horror da época, com início, meio e fim fincados em datas específicas. E sim um coletivo atemporal, no sentido de que há procedimentos e marcas de opressão que persistem no decorrer do tempo, das histórias, se intensificam, se ajustam, se transformam e permanecem. No caso, permanecem atuando nos corpos das mulheres. Lembro de Silvia Federici (2023), em Calibã e a Bruxa: “Enquanto na Idade Média as mulheres podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o parto, a partir de agora [século XVI] seus úteros se transformaram em território político, controlados pelos homens e pelo Estado”. Se o domínio da mulher sobre a maternidade, a gravidez e, consequentemente, a sua sexualidade e desejo foram, de certa forma, recuperados ou reconquistados na segunda metade do século XX, há ao menos quatro séculos de uma misoginia profunda instaurada na consciência humana e na mentalidade estatal, que trata o corpo feminino como um território político. Os policiais que prenderam e torturaram a jovem que tinha uma cartela de pílula anticoncepcional na bolsa carregavam essa misoginia construída no decorrer dos séculos, e a puniram com a violência correspondente. Essa jovem, como todas as mulheres pertencentes àquela geração, da revolução sexual, pagaram um preço alto nos porões por suas escolhas pessoais e políticas.

Durante o processo da escrita do romance, tentei inúmeras vezes transcrever a situação da jovem da pílula anticoncepcional para o livro, como fiz com outros relatos de guerrilheiras, que me inspiraram diversas passagens e cenas, mas não consegui. Talvez eu tenha suposto, a princípio, que seria menos difícil fazer isso do que as outras passagens, que continham, de forma geral, a ameaça iminente, a consequência ou a própria violência física descrita. Hoje compreendo que não consegui por haver nesta cena uma carga simbólica muito grande e sofrida para nós, mulheres. A cena contém em suas camadas muitas instâncias da misoginia: a violência contra a liberdade, o desejo, o prazer, o amor, a maternidade domesticada, a gravidez, a liberdade de ação pessoal e política, é uma síntese assustadora da apropriação e exploração do corpo feminino. “A mulher, em sua perigosa proximidade com a natureza, é identificada no mundo como recurso e riqueza, que deve ser dominado para o desenvolvimento da civilização”, diz Claudete Daflon (2022), que estabelece em seu livro O meu país é um corpo que dói, a relação entre a objetificação do corpo feminino e as “diferentes formas de extrativismo fomentadas na modernidade”. Essa relação exploradora do “feminino equacionado ao corpo biológico, e este, por sua vez, reduzido à utilidade e tratado como um aparte, seriam dotados de uma humanidade menor”.

Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, Editora Caros Amigos/Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2010.
Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, Editora Caros Amigos/Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2010.

A violência contra a mulher não era apenas a decorrência de uma situação social e política, era a decorrência de uma desvalorização da vida feminina, uma humanidade menor. Outra certeza se estabelecia de um modo mais orgânico, que amalgamava a visão estética do livro com a minha própria experiência como mulher: a escrita deste livro não poderia ser realizada por caminhos intelectuais, de fora para dentro, trazendo o tema para uma perspectiva criativa e formal, elaborada mentalmente, ou por meio de uma narrativa mais tradicional e linear, teria que ser uma escrita de dentro para fora, uma escrita do corpo.

“Não existe separação entre vida e escrita”, Gloria Anzaldúa (2024) disse no ensaio Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, sugerindo aquilo que eu havia compreendido de maneiras diversas durante a escrita do meu romance: há uma conexão orgânica entre a vida e a escrita. “O perigo ao escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com a nossa vida interior, nossa história, nossa visão. O que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras.”

Durante o processo de escrita do meu romance, eu só li mulheres. Fui aos poucos criando um campo de força estética literária ao meu redor de escritoras que, de alguma forma, haviam vivido em tempos de repressão social, e escrito sobre essas experiências, antes, durante ou depois. Eu comecei a buscar e a perceber como as experiências pessoais delas diante desses tempos afetava, atingia, impactava e se materializava em suas narrativas. A leitura que eu havia feito de Anzaldúa me acompanhava: a conexão entre a vida e a escrita pode se desdobrar em diversas manifestações artísticas e caminhos estéticos. Considerando que várias forças atuam dentro de um processo criativo, a própria experiência de quem escreve – vendo essa experiência como a forma de viver no mundo, de estar, pensar/sentir/reagir ao ontem, ao futuro, ao aqui e agora – é também uma força criativa, conectada, por sua vez, de algum modo, às decisões estéticas tomadas pelos escritores (de forma consciente ou inconsciente) em uma obra literária. Experiência pessoal e estética estariam assim relacionadas.

A escritora italiana Natalia Ginzburg escreveu num dos seus ensaios uma frase que volta e meia retornava à minha mente. “Nunca seremos gente sossegada.” Esta frase foi escrita no texto O Filho do Homem, um ano após o fim da Segunda Grande Guerra. Ginzburg perdeu o marido, torturado e assassinado pelo regime nazista, dois anos antes de escrever este texto. “Jamais se esquece a experiência do mal”, ela disse. “Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas.” Para ela, para a sua geração de escritores, não se podia mais viver nem escrever negando a precariedade da vida, disfarçada sobre uma falsa aparência de solidez, assim como é falsa a ideia de que, de alguma forma, a controlamos. “Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos, e talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. […] Nós estamos perto da substância das coisas” (Ginzbur, 2015, p. 68).

Eu estava no meio do processo da escrita do livro e o texto de Natalia Ginzburg me fez olhar de forma diferente para o que eu estava escrevendo. O Corpo Interminável, no início, era um livro sobre a memória. Um rapaz tenta resgatar a história da mãe, uma guerrilheira desparecida na ditadura militar. Mas o que ele encontra nessa tentativa de resgate? Quase nada, rastros, restos, peças, partes, é impossível recompor o quadro, nem a história pessoal nem a coletiva. A história pessoal estava corrompida pelas relações, sentimentos, perdas, a História coletiva estava corrompida pelo Estado, pela brutalidade, pelo silenciamento. E havia um entrelaçamento: a história coletiva impactava a pessoal, e a pessoal também impactava a coletiva. Então, o livro não podia ser sobre a memória, como se fosse possível resgatá-la, descrevê-la, mas sobre a perda violenta dessa memória. A violência do estado, a violência da cumplicidade, a violência do silenciamento, a violência sobre os corpos das pessoas, a violência exacerbada sobre os corpos femininos, eram muitas violências. Muitas vezes, eu me senti paralisada por essa percepção. Incapaz de colocar em palavras, numa forma literária, todo esse universo devastador que emergia a partir das minhas leituras e pesquisas.

No texto “O meu ofício”, Natalia Ginzburg (2015, p. 73) conta o início de sua experiência com a escrita, ainda muito jovem, e como pensava que o que ela escrevia eram histórias corriqueiras e cotidianas, “nada a ver com cultura”. Geralmente, os seus protagonistas eram masculinos, e ela se esforçava para escrever como os escritores que lia, cheios de uma linguagem irônica e cruel para com a vida e com o mundo. Natalia entendeu que aquela era a forma de reação apropriada na literatura. “A ironia e a maldade me pareciam armas muito importantes ao meu alcance; achava que me seriam úteis para escrever como um homem, tinha horror que percebessem que eu era uma mulher pelas coisas que eu escrevia. Fazia quase sempre personagens masculinas, para que fossem o mais possível distantes e separadas de mim” (Ginzburg, 2015, p. 82).

A leitura dessa passagem da Natalia Ginzburg foi perturbadora, contraditória. Se em “O filho do homem” ela cobrava dos escritores um comprometimento literário e estético com o seu tempo, dizendo frases como “Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos […] Nós estamos perto da substância das coisas”, em “O meu ofício”, ela confessava que ao escrever se distanciava de si mesma, tinha horror de ser reconhecida como uma mulher pela sua escrita. Nas frases seguintes, ela desenvolve ainda mais essa forma de escrita que aprendeu distanciada do feminino (e de si mesma, e do próprio corpo): “Eu me tornara bastante hábil em esquadrinhar um conto. […] escrevia contos secos e lúcidos, bem conduzidos do início ao fim, sem desarranjos, sem erros de tom”.

Natalia Ginzburg havia internalizado a escrita do ponto de vista masculino, rejeitando a sua própria visão de mundo, a sua própria experiência no mundo como mulher. A fala dela revela os elementos da narrativa feita pelos homens de sua época, ao menos, pelos escritores da sua estante: “lúcida”, “seca”, ou seja, racional, controlada, organizada de modo a descrever e a reproduzir o mundo dado pelo sistema patriarcal. É preciso esclarecer que, nesta parte de “O meu ofício”, a escrita se refere à sua vida antes da Segunda Guerra e, em “Os filhos do homem”, ela se refere a depois da guerra. E pela diferença das perspectivas dos dois textos em relação à escrita, há contradições fundamentais, é dedutível que a escritora passou por experiências profundas e transformadoras nesse período. Em “Os filhos do homem”, ela fala especificamente da guerra como experiência de ruptura com um modo de viver, de escrever, de estar no mundo, mas em “O meu ofício”, a experiência transformadora é outra: a maternidade.

Natalia conta que quando teve os filhos ficou totalmente envolvida com eles, e parecia impossível voltar a escrever. Algo que comprova como a autora estava condicionada à estrutura patriarcal. Antes de ter filhos, escrevia como homem. Depois de ter filhos, havia se “tornado” uma mulher (ser mãe não deixa escapatória neste caso), então todo o tempo teria que ser dedicado aos filhos (como o patriarcado ditava) e, por isso, não podia escrever (ela só se permitia fazer isso antes, quando podia escrever como um homem). No entanto, um movimento subterrâneo acontecia na escritora enquanto cuidava dos filhos e não escrevia, um movimento feito da sua experiência da gravidez e maternidade, que havia transformado não só o seu corpo, mas também a sua visão do mundo. O que a motivava anteriormente lhe parecia, de repente, opaco e sem graça, e o que começava a estimular a sua imaginação eram outras coisas muito diversas. Descobertas que faziam parte da experiência que a maternidade lhe trouxe, mas não necessariamente diziam respeito especificamente a ela, mas vinham de um saber que essa experiência havia gerado. “Eu recomeçava a escrever como alguém que nunca tinha escrito, […] as palavras estavam como que lavadas e frescas” (Ginzburg, 2015, p. 84).

Penso que Natalia parou de lutar contra o feminino a partir do momento em que o mundo masculino lhe trouxe diversas decepções: as literárias, como contos lúcidos, impecáveis e secos, um modo de escrever que com o tempo se tornou para ela infértil; a humana, como a guerra e os seus desdobramentos devastadores; e o lugar domesticado (e não apenas doméstico), desvalorizado, da maternidade no patriarcado. “A minha personagem principal era uma mulher. Agora não desejava mais escrever como um homem, porque tinha tido meus meninos e a sensação de saber muitas coisas sobre o molho de tomate, e também parecia que as mulheres sabiam sobre seus filhos coisas que um homem nunca poderá saber. Ainda que não as colocasse no conto, sempre era bom que soubesse disso para o meu ofício: de um modo misterioso e remoto, isso também servia ao meu ofício” (Ginzburg, 2015, p. 84). Neste caso, a maternidade apesar de atuar como o plano cumprido do patriarcado dentro do sistema capitalista, pode agir também, em outro nível, como uma forte experiência da mulher com o próprio corpo, e, ao invés do esperado, que seria aprisionar ainda mais a mulher nessas exigências e demandas, pode servir como um despertar da consciência em relação à própria vida e lugar no mundo. No caso da Natalia Ginzburg, serviu também para uma valorização da experiência do feminino, o avesso do que lhe ditava a sociedade, assim como uma forte experiência da sua potência criativa.

No meu caso, escrevi grande parte do meu romance durante a gravidez e, depois que o meu filho André nasceu, amamentado. O corpo à flor da pele, à flor do mundo, em contínua transformação. Na época, quando eu contava para as pessoas que estava escrevendo sobre a ditadura, a tortura e a violência contra as mulheres guerrilheiras, geralmente me perguntavam preocupadas como eu conseguia escrever sobre aquilo estando grávida, mas na verdade era o contrário, era justamente porque estava grávida que conseguia escrever um romance sobre este tema. Não há nenhuma romantização nisso, a gravidez é uma experiência brutal, sofrida, prazerosa, íntima com o nosso corpo, que nos tira do mundo racional cartesiano de forma definitiva, ao menos foi assim que senti. Ao ler e escrever durante a gravidez e amamentação, ao entrar em contato com os depoimentos das guerrilheiras que foram torturadas, às vezes grávidas, às vezes amamentando, ou, se não grávidas nem amamentando, expostas e ofendidas sexualmente em todos os sentidos, no corpo violentado, estuprado, menstruado, pois todas as violências narradas tinham como alvo o corpo da mulher, não tinha como não sentir em meu próprio corpo o embate que se dava entre a opressão e a liberdade, a criação e a destruição, a morte e a vida.

Junto a isso tudo, outro processo acontecia, fora do meu corpo, que me atingia em todos os sentidos, inclusive fisicamente: o Brasil.

Eu comecei a escrever o romance em 2011, data que não ao acaso coincide com a CNV, iniciativa do governo Dilma Rousseff, e, por conta de diversas interrupções por causa de outros trabalhos, terminei em 2018, uma semana antes do terrível segundo turno que elegeu Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. Entre 2011 e 2018, dois fatos muito importantes aconteceram na minha vida pessoal e na vida do país. Engravidei em 2014, meu filho nasceu em 2015, eu o amamentei até 2017, enquanto escrevia grande parte do romance. Em 2016, o segundo acontecimento: o golpe que derrubou a presidenta Dilma Roussef, que levou o Brasil ao pesadelo e horror em que estamos hoje. Então, este era o cenário: enquanto escrevia o livro sobre guerrilheiras torturadas, desaparecidas e mortas na Ditadura Militar no Brasil, escutava os berros das pessoas nas ruas pedindo a volta da Ditadura Militar, ao mesmo tempo que amamentava o meu filho. Um entrelaçamento de coisas tão diferenciadas e indizíveis, um cruzamento do horror do passado e do presente com o imenso amor aflorado na gestação (o que ele carrega de esperança também), todas as experiências da gravidez e da maternidade à flor do corpo ainda, as expectativas, o futuro, e tudo acontecendo de forma tão bruta, material, na vida, nas ruas, no corpo, na escrita, que provocou em mim uma paralisia, um bloqueio criativo de vários meses.

Volto às constatações ditas no começo do texto. Se a violência contra a mulher na ditadura não era apenas uma decorrência de uma situação social e política específica, mas de uma desvalorização da vida feminina construída como uma humanidade menor, como disse Claudete Daflon, no decorrer do tempo, iniciada especialmente a partir do século XVI, como pontuou Silvia Federici, essa construção permanecia na sociedade e se revelava de forma assustadora nos pedidos de retorno à ditadura escutados nas ruas em 2016. Foi também em 2016 que o atual presidente do Brasil exaltou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais torturadores da Ditadura, em pleno congresso nacional, antes dar o seu voto para afastar a então presidenta Dilma Rousseff do seu cargo. Dilma, como Lúcia e Amelinha, foi uma das militantes torturadas pessoalmente pelo coronel Ustra.

Durante a minha paralisia criativa, aumentava a percepção e a certeza de que eu não podia mais escrever da mesma forma, ao mesmo tempo, tudo parecia insuficiente diante da realidade do Brasil naquele momento. Eu olhava para o Brasil, para o passado do nosso país, para o meu corpo, para o meu filho, para o livro, e intuía que havia algo em todas aquelas experiências que eu ainda não havia materializado na escrita. Ao menos, não da forma como eu vislumbrava intuitivamente que deveria ser, uma forma atingida pelo cruzamento de tudo aquilo. No entanto, uma transformação acontecia, sem que eu a percebesse de imediato. E ela tem a ver com as palavras de Anzaldúa no início deste texto. “Não existe separação entre vida e escrita”. E eu sentia isso como uma verdade sendo gestada na minha visão de mundo, de país, de literatura, nos meus sentimentos, no meu corpo e na minha escrita.

Sem liberdade, eu não vivo: Mulheres que não se calaram na ditadura, Laura Beal Bordin e Suelen Lorianny. Editora Compactos, 2013.
Sem liberdade, eu não vivo: Mulheres que não se calaram na ditadura, Laura Beal Bordin e Suelen Lorianny. Editora Compactos, 2013.

O escritor argentino Julio Cortázar tem um livro chamado Teoria do túnel, no qual ele reflete sobre a sua formação de escritor. Cortázar saiu da Argentina antes do golpe, e foi proibido de voltar enquanto durou a ditadura. Neste livro, ele questiona a literatura tradicional, especialmente a do século XIX, dizendo que ela é incapaz de acessar as profundezas e complexidades da vida e do ser humano. “A literatura tradicional não havia atingido uma extensão capaz de cobrir as mais sutis, as mais profundas e remotas intuições humanas? A linguagem que permite a Proust sua introspecção, a Dostoiévski suas decidas ao inferno, a Henry James seu bordado de sentimentos, não é já um instrumento ilimitado e talvez ilimitável?” (Cortázar, 1998, p. 52).

Cortázar responde que não. Para ele, mesmo o irracional em Proust aparece racionalmente traduzido. Dostoiévski desce ao inferno com a narrativa protegida e sob controle. Henry James descreve sentimentos sem se aproximar esteticamente deles. Essa reflexão de Cortázar lembra bastante o que Natalia Ginzburg disse a respeito da escrita masculina, do modo que ela se esforçava para escrever como um homem. Mas dificilmente Julio Cortázar entraria neste assunto, por motivos óbvios. Para ele, assim como para muitos escritores, a questão do gênero passa longe das reflexões voltadas à estética literária. Cortázar se referiu à conhecida e antiga relação entre o tema e a forma questionando o quanto a subjetividade dos personagens e o universo temático do livro poderiam impactar e modificar a sua forma, a sua materialidade estética. A questão da relação entre vida e escrita não entra também plenamente no questionamento do escritor argentino, como encontramos na Gloria Anzaldúa. Cortázar aponta a literatura tradicional como limitada para expressar as dimensões humanas, é verdade, mas sem distinguir o quanto essa forma de escrita foi engendrada pelo discurso racional e científico herdado do Iluminismo. Uma estética patriarcal, portanto. Já Anzaldúa e Ginzburg destacam na literatura tradicional ou realista o discurso masculino, que se tornou majoritário e dominante, estabelecendo regras de linearidade, ordem e lógicas narrativas, que aprisionam as dimensões mais profundas das experiências e da imaginação.

A minha primeira percepção foi a que eu tinha escrito até aquele momento, em 2016, olhando apenas para trás. Para a memória silenciada da ditadura militar, para a violência praticada no passado. A linguagem estava formada a partir dessa matéria da memória. Uma memória partida, impossível de ser recuperada em sua completude. Nesse sentido, já havia a estrutura lacunar, sem linearidade, sem encadeamento lógico, que fugia do realismo, das descrições dos fatos e das lógicas cronológicas e históricas. Portanto, não era uma estrutura narrativa tradicional. Qual era o problema da perspectiva memorialista então? Após a leitura dos textos da Natalia Ginzburg entendi: o problema da memória como núcleo da narrativa, neste caso, era que trazia a realidade, mesmo da memória, como dada, pronta para o leitor. Era uma visão que não unia totalmente a experiência à escrita, como sugeria Anzaldúa. Os personagens Daniel e Melina olhavam o passado da ditadura como memória trágica e sofrida, mas não como algo que poderia se repetir. Eles não se sentiam em risco. Não estavam atingidos, em seus corpos, em suas presenças no mundo. Até 2016, eu também não me sentia em risco. Quando comecei a escrever em 2011, eu olhava para o romance como um resgate do passado, e não como um passado que assombrava o presente. Quando engravidei, em 2014, imaginava que era possível um país mais democrático para o meu filho. Só quando escrevi, em 2016, escutando os apelos na rua de retorno à ditadura enquanto amamentava, que senti concreta e literalmente o monstro do passado se aproximando do presente. O chão tremer. O chão da democracia que de algum modo eu já considerava garantida, como muitos brasileiros. O medo dessa proximidade, desse horror, o abismo, o tremor, nada disso estava no livro, em sua forma, matéria, e precisava estar.

Os personagens precisaram olhar para os traumas herdados, as sequelas, os silenciamentos, os bloqueios emocionais, olhar para seus corpos, seus desejos, suas vitalidades e sonhos para o futuro. É possível ter um futuro digno e feliz quando não se conhece o passado? O próprio passado e o passado de seu país? É possível ter um futuro digno quando se vive num país (num mundo) onde não se reconhece o valor da vida e da humanidade de todos, e no caso do livro, especialmente das mulheres? Os personagens precisavam ter essas questões e conflitos em seus pensamentos e em seus corpos, e o livro precisava também ter essas questões e conflitos em seu pensamento e em seu corpo, quer dizer, na linguagem.

Outra percepção e transformação estética foi em relação à personagem da Julia, mãe de Daniel, a guerrilheira desaparecida. Nas primeiras versões, ela era uma personagem visível no livro, tinha presença e corpo. Só depois da paralisia criativa, só depois de todos os cruzamentos das experiências vividas me atingirem completamente que eu entendi que Julia deveria ser uma ausência no livro. Quando retirei todas as passagens que ela aparecia como personagem, com seu corpo e a sua voz, o que resultou foi um grande buraco no livro, um grande vazio. Eu não podia mais preencher este vazio com a presença da Julia, era a sua ausência que tinha que estar ali presente. A partir daí o livro se modificou completamente, porque tudo que foi escrito depois disso foi a partir dessa ausência. E vieram as outras mulheres. Os fragmentos das guerrilheiras anônimas apareceram neste momento. E as presenças das experiências das guerrilheiras tornou o romance não apenas a história de uma guerrilheira, mas de todas, saindo da perspectiva pessoal para coletiva. Neste processo, assumi esteticamente algo que estava apenas sugerido nas primeiras versões do livro, que era intuitivamente a busca por uma escrita fora do discurso patriarcal capitalista. Claro, eu já o rejeitava, por ele ser parte dos sistemas geradores das ditaduras, violências, misoginias e a mais diversas explorações. O romance se fez ,a partir daí, de narrativas partidas, interrompidas, incompletas, incapazes de entregar aos leitores o resultado de uma investigação, apenas o processo dos esfacelamentos e perdas, da luta e da necessidade de afirmação da vida, terminando em estado de suspensão, em uma pergunta para o futuro. Uma narrativa mais movida pela procura da linguagem do que por sua apresentação e afirmação. Caminhar na direção oposta da narrativa gerada pelo patriarcado na escrita seria também agir contra essa opressão, seria um gesto de revalorização da vida feminina, de suas experiências e de suas perspectivas, de virar ao avesso os modos de fazer, de ser, de escrever dominantes, e ressignificar a linguagem como resistência.

* Claudia Lage é escritora e roteirista, formada em Teatro (UNIRIO) e Letras (UFF), mestre em Literatura (PUC-Rio) e doutoranda em Literatura (UFF). Autora de A pequena morte e outras naturezas e Mundos de Eufrásia, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2010. Em 2013, lançou Labirinto da Palavra, com ensaios-crônicas sobre literatura, que recebeu o Prêmio de Brasília e foi semifinalista do Portugal Telecom (atual Oceanos) em 2014. Em 2019, lançou O Corpo Interminável, que recebeu o Prêmio São Paulo Literatura 2020. Trabalhou como roteirista em produtoras como TV Globo, Conspiração Filmes e Teleimage. Desde 2004, ministra cursos de roteiro e escrita criativa presencialmente e on-line.
Referências bibliográficas
LAGE, Claudia. O Corpo Interminável. Grupo Editorial Record: Rio de Janeiro, 2019.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Violação dos direitos humanos das mulheres na Ditadura. Revista de Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 23, n. 3, p. 1001-1022, dez. 2015.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. Editora Elefante: São Paulo, 2023.

DAFLON, Claudete. Meu país é um corpo que dói. Relicário Edições: Minas Gerais, 2022.

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, [S. l.], v. 8, n. 1, p. 233, 2000. DOI: 10.1590/%x. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880. Acesso em: 11 out. 2024.

GINZBURG, Natalia. As pequenas virtudes. 1ª. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

CORTÁZAR, Julio. A Teoria do Túnel. In: CORTÁZAR, Julio. Obra Crítica I. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
Dossiê
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UM LIVRO DENTRO DE UM LIVRO DENTRO DE UM LIVRO: ESCRITURA, CÁRCERE E ARQUIVO EM SILVIANO SANTIAGO (1975-1981)

A história contada no romance Em liberdade (1981), do escritor Silviano Santiago, poderia ser verdadeira, poderia corresponder ao que, de fato, aconteceu com Graciliano Ramos após a saída da prisão ― suposição alimentada por um falso diário, inscrito dentro do próprio romance, cuja história verossímil é recheada de dados biográficos. O encavalamento de suportes, do diário ao prosaico, a flutuação entre personagens e tempos históricos, a exibição exemplar de técnicas de composição alheias ou ainda os fraseados poéticos do livro não são gratuitos, prestando-se simplesmente à verborragia, mas figuram como nó górdio do experimentalismo ficcional de Silviano, a membrana que amarra os diversos núcleos narrativos que convivem e competem na prosa: um texto que aglutina, de uma só tacada, o escritor Graciliano Ramos, o poeta Cláudio Manoel da Costa, o jornalista Vladimir Herzog e o próprio autor Silviano Santiago, como tentaremos defender. De maneira a tentar reconstituir a composição do livro, devemos remontar o momento em que a ideia do romance emerge no horizonte ficcional de Silviano, salientando a forma como as instâncias narrativas foram concebidas, planejadas e montadas.

Em 1975, em plena ditadura militar brasileira, Silviano decide escrever um diário íntimo apócrifo de um escritor brasileiro cujo mote fosse o corpo encarcerado. O autor, após um longo período como professor nos Estados Unidos, andava às voltas com o romance La peste (1947), do escritor franco-argelino Albert Camus. A célebre epígrafe do livro tinha sua origem anglófona, vinda do romance Robinson Crusoé (1719), do escritor Daniel Defoe, em que se lê: “É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe” (Defoe apud Camus, 1996, p. 5). O corpo aprisionado, portanto, deveria ser o motivo fundador do texto experimental.

O primeiro personagem que lhe vem à cabeça é o poeta mineiro Cláudio Manuel da Costa, figura importante do arcadismo para a formação da literatura brasileira. O que certamente atraiu os olhos do crítico foi a morte do poeta ― àquela altura, preso político sob a guarda do Estado-colônia e réu da Inconfidência Mineira no século XVIII ―, cujas versões soavam contraditórias de acordo com os Autos de devassa: nos registros feitos no Rio de Janeiro, em 1789, o poeta seria suicida, já nos documentos vindos das instâncias embarcadas em Lisboa, teria sido morto. Além disso, o auto de corpo de delito dava margem a questionamentos acerca de sua morte, como anota Laura de Mello e Souza em um perfil biográfico do poeta: “[…] a descrição do cadáver encontrado consta de um dos documentos mais discutidos da história da Inconfidência Mineira”, e continua, “[sob o aspecto] da autenticidade ― seria forjado ― à verossimilhança ― seria mentiroso, relatando um suicídio para, na verdade, encobrir um assassinato” (Souza, 2011, p. 190). Quer dizer, tratava-se de um escritor que, assim como Silviano à época, construía sua obra sob um regime de exceção.

Como era residente no exterior, Silviano viveu o golpe de 1964 e o recrudescimento da ditadura em terras estrangeiras. Longe da celeuma política, os acontecimentos-chave da vida nacional militarizada o afetaram ainda de longe, em exílio voluntário, fato que se majorou pelo convívio, na França, com intelectuais acossados pela ditadura brasileira. Somado a isso, seu irmão caçula, Haroldo, militante atuante do Partido Comunista em Belo Horizonte, foi preso e torturado em 1975, no mesmo ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto pelas forças da ordem num suicídio forjado. Assim, após seu retorno definitivo ao Brasil, quando se tornou professor do recém-criado Mestrado em Literatura Brasileira da PUC-Rio, a ditadura acertou Silviano em cheio, chamando-o a pensar seu tempo histórico e, no limite, posicionar-se diante dos acontecimentos que o cercavam politicamente e o implicaram do ângulo biográfico.

A forma literária, assim desenvolvida, marcaria uma distância da narrativa realista e “engajada” ou confessional, quer dizer, a pergunta que ecoava era: como tratar da violenta relação entre Estado e intelectual sem necessariamente produzir uma literatura realista, explicitamente engajada e comprometida com a verdade dos fatos?

Os anos finais da década de 1970 foram marcados pela volta dos guerrilheiros e pelo surgimento da literatura dos resistentes à ditadura, cujas narrativas, de caráter testemunhal e de denúncia (Sant’Anna, 1979), não interessavam a Silviano por implicações ideológicas e de estilo (Santiago, 2019, pp. 424-425) ― veja-se o livro de maior expressão do período, O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira, lido, aqui, como tipo ideal dessa safra literária. O livro de Gabeira é lançado no ano da sanção da Lei de Anistia, mecanismo aprovado graças à pressão popular, mas que, ao que consta, apesar de trazer de volta parte dos exilados e presos políticos, favoreceu a impunidade dos militares, que se safaram dos julgamentos e condenações após a abertura política. Além disso, outros livros lançados a reboque do de Gabeira funcionaram quase como um antídoto à tímida reabertura, comprometendo-se em contar a verdade que não havia sido assentada pelo Estado, como Cartas da prisão (1977), de Frei Betto, A Festa (1976), de Ivan Ângelo, Reflexos do Baile (1976), de Antônio Callado. Em liberdade se insere dentro e fora desse quadro, já que, apesar de tentar responder às mesmas questões, ele as responde de maneira diferente.

Capa da primeira edição de Em liberdade.
Capa da primeira edição de Em liberdade.

Como foi dito, o livro de Gabeira é publicado logo após a Anistia, como anota o autor no prefácio datado de 1996 (Gabeira, 2009, p. 9), o relato autobiográfico ganha uma dimensão histórica que serve a um desenlace específico arrolado pela crítica literária. O livro de 1979, a partir de seu aspecto eminentemente informativo, teria como intuito “contar a aventura coletiva da resistência à ditadura militar no Brasil” (Gabeira, 2009, p. 9), nas palavras do próprio autor, ou como uma espécie de “informe político” (Waizbort, 2019, p. 142). Assim, O que é isso companheiro? se transformou, à luz de seu autor e de seu público leitor, numa experiência literária que traduziria o momento de liberação da abertura, abarcando o desejo represado pelos anos de chumbo e o manancial de palavras de ordem ligadas aos direitos sociais que ecoavam no mundo. As ficções ditas confessionais ou documentais tendiam a se enclausurar no tempo histórico, cristalizadas como um documento de época, revelando um certo esgotamento diante das mudanças dos arranjos políticos e sociais.

Apesar do desejo de escrever algo que estivesse intimamente ligado ao engajamento contra o regime militar, Silviano não tinha interesse no registro jornalístico de tendência testemunhal dos livros em alta. Sua mirada artística tinha outros alvos que fossem menos explícitos em seu modo de apresentar-se e mais engenhosos do ponto de vista da composição. Em relação a esse tipo de literatura produzida no final da década de 1970, Silviano parece distanciar-se propositalmente das características de composição e escrita apontadas, por exemplo, por Leopoldo Waizbort (2019, p. 143) na obra de Gabeira:

É sempre um narrador homogêneo e claro quem fala ― e, melhor ainda, sabemos que o Gabeira autor assume a forma do narrador. Essa aproximação […] cria um laço de aproximação com o leitor, nas proximidades do “pacto autobiográfico”. O estilo de Gabeira não provoca nem quer provocar tensões nesse pacto, e o leitor não encontra obstáculos: seja na leitura propriamente dita, seja no equacionamento narrador-autor-Gabeira, seja no teor de verossimilhança daí advindo.

Assim, justamente por não colocar em xeque o dito “pacto autobiográfico”, ou seja, a coincidência nominal entre autor-narrador-personagem, a obra ganha abrangência do ponto de vista de mercado, mas perde em qualidade literária. Isso tudo se agrava e se confirma se levarmos em conta o epicentro da composição de Em liberdade, quer dizer, justamente o problema da autoria e sua consequente atribuição. Dessa forma, o texto de Silviano, inscrito em um outro registro, buscava anacronicamente aproximar diferentes cenas da história do Brasil, ganhando uma expressão rica e uma embocadura singular para um livro de literatura publicado sob uma ditadura militar.

Durante entrevista ao Jornal de Letras em novembro de 1975, Silviano responde a algumas questões sobre sua, ainda incipiente, carreira como ficcionista. O crítico já tinha alcançado certa notoriedade nos círculos de literatura e crítica de cinema de Belo Horizonte antes dos anos 1960, uma relativa projeção como teórico e ensaísta graças aos seus textos publicados ainda quando professor no exterior e algum destaque como professor na PUC-Rio, com a recente vinda da French Theory de solo norte-americano. Porém, sua carreira como ficcionista estava desabrochando. Ao final da conversa, Silviano é perguntado sobre os projetos de escrita que estavam sendo gestados, momento em que conta um pouco dos seus desejos mais imediatos como escritor: “Planos de criação propriamente, tenho-os e muitos. O tempo para executá-los é que vai se encurtando. Gostaria de terminar uns contos que tenho na gaveta […], e de realmente começar um romance sobre o século XVIII mineiro (e adjacências como, por exemplo, o nosso próprio século)” (Santiago; Coelho, 2011, p. 17). Em meio a outros projetos deste período, o crítico destacou sua vontade de escrever algo ― à época, um romance ― sobre o passado mineiro. O interesse pelo período não se restringia simplesmente ao passado, mas a uma continuidade extemporânea que o conectava com o presente, com “o nosso próprio século”, implicado nele, empreitada que parece se realizar no seu Em liberdade, anos depois.

Então, o projeto ganhou concretude ainda nos anos 1970, e logo mais de trinta páginas do diário íntimo ficcional do poeta inconfidente foram escritas (Santiago, 2020, p. 45). No entanto, Silviano desistiu. Aquele texto o desagradava. A linguagem ambígua e a confusão histórica não lhe pareciam interessantes. A distância entre o século XVIII mineiro e a recente morte de Herzog, no DOI-CODI paulista pela ditadura militar, criava uma lacuna difícil de ser preenchida no espaço ficcional. Além disso, a distância poderia tornar a associação entre os dois períodos históricos e suas respectivas implicações com a vida intelectual demasiadamente cifrada ou sutil para os leitores de então, constatação que veio à tona em conversa com o poeta Geraldo Carneiro, à época aluno da graduação em Letras da PUC-Rio, onde Silviano lecionava. Portanto, faltava algo ao projeto.

15 de Agosto de 1979. Prof. Silviano Santiago. Fotógrafo Antônio Albuquerque. Acervo Núcleo de Memória da PUC-Rio.
15 de Agosto de 1979. Prof. Silviano Santiago. Fotógrafo Antônio Albuquerque. Acervo Núcleo de Memória da PUC-Rio.

Em abril de 2022, Em liberdade é relançado, agora pela editora Companhia das Letras, após quarenta anos desde sua primeira edição. O livro é comemorado com o lançamento online promovido pela editora e pela Academia Mineira de Letras. A live conta com a presença do crítico e pesquisador Wander de Melo Miranda, do escritor e jornalista Rogério Faria Tavares, além do próprio autor do livro, todos membros da Academia Mineira de Letras. Já no início do lançamento, incitado por uma provocação de Wander, Silviano conta a trajetória da ideia do livro antes propriamente de sua redação. Reconta, digamos assim, o backstage da composição, aquilo que vinha sendo gestado durante anos na cabeça do escritor até atingir a maturação correta para, enfim, tornar-se obra. Em primeiro lugar, foi por ocasião do trabalho de Silviano, como professor nos Estados Unidos, que Graciliano Ramos entrou no seu radar ainda no começo dos anos 1960. Como professor na University of New Mexico, entre 1962 e 1964, o brasileiro precisou montar alguns cursos para as turmas de que ficou encarregado. Como conta Silviano na live, é aí que surge a ideia de ministrar uma disciplina que cruzasse A rosa do povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade, e Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos. A junção entre os dois autores brasileiros e seus diferentes livros ― inclusive em estilo e gênero ― foi oportuna pois, ao final do curso, um aluno, filho de pais mexicanos, disse desejar escrever sua dissertação de mestrado sobre o livro de Graciliano Ramos. O aluno era Carlos E. Cortés, hoje especialista em questões latino-americanas e professor emérito do Departamento de História da University of California, em Riverside. Numa recente troca de e-mails (28/07/2022), Cortés conta que conheceu Silviano no outono de 1962, em Albuquerque ― durante o primeiro ano do brasileiro como professor. Naquela época, Cortés realizava um mestrado em português e espanhol e um doutorado em história, que defendeu, respectivamente, em 1965 e 1969. Silviano acompanhou seu aluno até meados de 1964.

Dessa forma, define-se de maneira mais ou menos precisa a leitura, nos anos 1960, de Memórias do cárcere, o que permitirá, já nos anos 1970, mais especificamente 1975, que Graciliano seja acionado para resolver os impasses criados na escrita do diário apócrifo de um escritor brasileiro encarcerado.

Então, após muito matutar, o xeque-mate foi dado: a ideia formalizada era escrever o diário de Graciliano Ramos, suposto último capítulo perdido de Memórias do cárcere, que narrasse o período imediatamente após a saída da prisão, em 1937, no Rio de Janeiro, momento em que o Graciliano precisaria se haver com a estranha liberdade reconquistada. É do autor alagoano que Silviano toma emprestada a voz, dando sobrevida ao projeto interrompido, alojando-se na coincidência dos eventos políticos – a Inconfidência, o Estado Novo e a Ditadura Militar – e seu alinhamento macabro na macropolítica brasileira, dado que sopra nos ouvidos atentos de Silviano a força necessária para seu projeto engavetado. Assim, Silviano narraria a experiência da liberdade, aprisionado na grafia-de-vida de Graciliano, amordaçado pelo seu estilo ríspido e preciso. Trocando em miúdos, Silviano faria um pastiche de Graciliano Ramos, demorando-se no estudo da sua escrita, imitando-a e falando a partir de sua embocadura, tal como havia aprendido com Marcel Proust, em Pastiches et mélanges (1919), durante sua formação à la française (Barile, 2022). Estava desenhado o projeto definitivo de Em liberdade.

Silviano realizou durante seis meses uma pesquisa exaustiva sobre a escrita do autor para, assim, copiá-la. Quer escrever um diário que nunca foi escrito e, para isso, precisa escrevê-lo como Graciliano, fazendo, por exemplo, do próprio estilo um motivo do diário ficcional (Santiago, 2013b, p. 29-30).

Em entrevista para a nova edição do livro, em 2022, para o jornal Estado de Minas, Silviano conta um pouco sobre esse esforço de pesquisa: “Não era suficiente a narrativa dos fatos, banais na aparência. Tinha de conhecer bem todos os personagens que o rodearam. […] Entreguei-me à pesquisa em documentos e jornais. Reli a obra dos romancistas nordestinos. Anotei detalhes” (Barile, 2022). O projeto exigia um cuidado com os fatos para que o efeito ficcional fosse bem sucedido, o que lançava a composição do livro num paradoxo importante. Apesar de alicerçado numa ficção declarada – um diário apócrifo –, o livro precisava ser o mais verossímil possível, dado que demandou um cuidado dobrado, com close reading de guias da cidade e revistas de época (Santiago, 2002, p. 166), com anotações sobre percursos de ônibus, bondes, os tipos de árvores em cada bairro, etc.

Assim, vai registrando informações até então triviais, como o clima de cada dia, o que aconteceu em cada um deles, as manchetes de jornal, os filmes em exibição, medindo, dessa maneira, a extensão e fundura do romance. À guisa de exemplo, Silviano conta como a anotação dessas minúcias ordinárias e prosaicas deram sustentação e profundidade literária para sua empreitada:

De repente, o detalhe de que tal dia chovia acabou sendo importantíssimo. No dia em que Graciliano saiu da casa de José Lins do Rego e foi para a pensão no Catete, naquele dia, caiu um pé d’água no Rio de Janeiro. Para mim foi ótimo, porque eu queria manter a prisão como metáfora. Mesmo estando ele fora da cadeia, ainda continuava prisioneiro. O personagem é obrigado a fechar todas as janelas porque estava chovendo demais. Não me ocorreria essa mise-en-scène, se não soubesse que naquele dia tinha chovido tanto. (Santiago, 2002, p. 166)

Repetindo-em-diferença Memórias do cárcere, suplementando sua leitura, Silviano desenvolve uma escrita-pastiche e escreve, ao estilo de Graciliano, as páginas do diário apócrifo.

Então, Graciliano é ensanduichado por Cláudio Manoel e Herzog, preenchendo a lacuna temporal e de linguagem que incomodava Silviano, reduzindo o espaço entre as experiências históricas alusivas e garantindo uma outra inteligibilidade para o romance em confecção.

Já com um relativo controle da obra de Graciliano, Silviano resolve escrever o período imediatamente após a saída da prisão. É ali que reside o nó górdio da grafia-de-vida de Graciliano, o ponto oculto, nunca trabalhado pelo autor, e que, justamente por isso, torna-se tão potente. Justamente por esse vácuo literário na obra do alagoano, Silviano pôde projetar sua imaginação nesta negatividade, produzindo, a partir dela, uma outra história – apesar de falsa –, alicerçada em dados biográficos, garantindo a verossimilhança do texto, tanto em estilo como em fatos.

Memórias do cárcere é redigido anos depois da saída da prisão, um livro, portanto, fruto da memória, fruto do trabalho de anamnese do trauma, feito a duras penas. Entre a redação do livro e o evento em si, existe uma lacuna que pode ser preenchida ― mesmo que ficcionalmente. A ausência de texto sobre a experiência do cárcere no imediato após a prisão é, inclusive, tema da própria construção do diário apócrifo, quer dizer, a dificuldade de escrever e formular aquela experiência. Além disso, não há, segundo Silviano, nenhum indício, na obra de Graciliano, sobre o momento de liberdade do autor, quando sai da prisão e precisa se haver com as dificuldades emocionais, financeiras e políticas. É nessa toada que Silviano escreveu recentemente sobre a condição aparentemente paradoxal de prisioneiro: “A liberdade do prisioneiro político não depende apenas da vontade do homem. […] Fora do cárcere, o prisioneiro continuará prisioneiro” (Santiago, 2020b), e continua arrematando o raciocínio incluindo a liberdade nessa dimensão paradoxal: “Não terá a liberdade que julga poder usufruir na condição de interno que se julga inocente. Ser prisioneiro é consequência da condição linguística, e sociopolítica e econômica, do humano” (Santiago, 2020b).

Silviano, naquele período, horrorizado pela barbárie da ditadura com o assassinato do jornalista Herzog, precisava se manifestar politicamente. Sua intenção, porém, não se alinhava às opções estilísticas dos chamados romances de testemunho, em alta na época, como mencionado. Politicamente, Graciliano tinha algo de um engajamento pela escrita. Seu trabalho como político aparecia mediado pelo procedimento escritural, seja numa dimensão burocrática da redação de relatórios (Freitas, 2015) obrigatórios nas funções públicas, seja no engajamento explícito de sua obra, mais tomada pela dimensão social de fundo dito realista. Assim, dentro de um quadro específico da ficção brasileira, e interessado em mecanismos formais e de criação literária próprios, Silviano acaba por fazer uso do passado e presente políticos como matéria de composição artística, tal como precisa o crítico e professor Wander de Melo Miranda (2009, p. 18):

O recuo estratégico de Em liberdade ao passado funciona como um recurso eficaz e inventivo do qual o autor lança mão para ampliar a repercussão do seu testemunho da história recente do Brasil, indo além do registro imediato dos fatos concretos, mediante sua contextualização num decurso temporal mais abrangente e num espaço de configuração literária mais amplo e complexo.

O livro de Silviano parece suprir a vontade de se manifestar politicamente através de um uso abalizado da ferramenta escritural, produzindo, dessa maneira, um engajamento a partir da forma, da realização do estilo literário, do domínio da palavra e do fraseado alheio.

Em “Mestre Graça não é piedade”, texto de 2013, publicado no jornal O Globo, Silviano, ao discutir a política na obra e na biografia de Graciliano, sublinha a dimensão inseparável entre escrita e política para o alagoano, na qual o engajamento ou a força política não pode existir se não numa dimensão escritural:

Em Graciliano, a política é senhora de poucas palavras e mãe de muitos equívocos linguísticos que, lançados na folha de papel, devem ser imediatamente borrados e corrigidos pelo escritor atento e reflexivo. A política não pertence à família dos GPS, que querem direcionar a vida e a obra do cidadão. Ela é infatigável exercício das mãos e da caneta, unidas às evidências da criação literária, em que os defeitos/qualidades da vida cidadã e social, da vida histórica e econômica da nação, são postos à prova na folha de papel em branco. (Santiago, 2013c, p. 3)

Há aqui um detalhe importante a ser sublinhado. É no mesmo ano decisivo para a escrita do Em liberdade, 1975, que Silviano, já na condição de professor efetivo da PUC-Rio, oferece um curso de introdução a diversos autores franceses – identificados com o que ficou conhecido como pós-estruturalismo. Ao fim, o curso termina por se tornar uma espécie de introdução à obra de Jacques Derrida. O curso, tornado uma espécie de grupo de estudos, tem como resultado, no fim do semestre, a partir de uma proposta visionária do próprio Silviano, um glossário “conceitual” do pensamento de Derrida – obviamente, no que diz respeito à obra do filósofo publicada até meados de 1975. No ano seguinte, Glossário de Derrida (1976) é publicado pela editora Francisco Alves, um dos marcos dos estudos sobre Derrida fora da França, além de constar como um documento sobre a recepção do pensamento do filósofo na América Latina, em especial no Brasil. O primeiro livro apresentado para aquela turma de mestrandos em literatura brasileira foi La pharmacie de Platon (1968), texto que trata da relação entre fala e escrita – e entre escrita e verdade – a partir do Fedro de Platão. Em outubro de 2014, junto com uma série de outros textos que tratam da presença do pensamento de Derrida no Brasil, o jornal O Globo publicou um artigo de Anamaria Skinner, que fez parte do grupo de alunos que participou da feitura do Glossário de Derrida na década de 1970. A então jovem pesquisadora tinha bom domínio do francês – e foi fundamental na leitura e tradução dos trechos de Derrida citados no glossário. Mais tarde, ela se tornaria uma importante tradutora do pensamento francês, com um currículo que vai do próprio Derrida a autores como Roland Barthes e Jean Baudrillard. No seu artigo, Skinner conta, à luz dos acontecimentos políticos da época, a importância de Silviano para o florescimento de um público leitor do filósofo franco-argelino no Brasil, além de esquadrinhar rapidamente uma hipótese sobre a fertilidade de certas ideias derridianas em solo brasileiro:

Se tivesse de imaginar motivos para o sucesso de Derrida nos estudos literários, ressaltaria, sobretudo, esse primeiro contato com a filosofia, contada em prosa por Derrida, e o gesto preciso de Silviano diante do momento político brasileiro, em 1975: apresentar aos estudantes de Letras um texto em que é encenado o poder subversivo da escrita. Já que é disto que se trata. (Skinner, 2014, p. 3)

Assim, tanto a leitura de Derrida como a confecção de Em liberdade são mediadas pelo problema da ditadura, da exceção, da brutalidade e das formas de resistências possíveis num ambiente governado sob a égide da barbárie. Não apenas isso, mas uma resistência que estivesse intimamente ligada à escrita, às formas literárias de composição, aos desdobramentos dessas formas e às contaminações da experiência escritural. Assim como a política em Graciliano Ramos, a política em Derrida também precisaria estar mediada pelo gesto da escrita. Precisamos ter em mente que, em termos concretos, a palavra é o instrumento de luta do personagem/narrador de Em liberdade, já que, no momento da “falsa” feitura do diário, Graciliano ainda se via como um trabalhador do jornal , um operário do signo, que usa a escrita, ainda que ceticamente, como modo de sobreviver e lutar. Já na primeira entrada do diário existe uma importante discussão sobre o estatuto da palavra nos meios de comunicação tradicionais dos anos 1930 e sua relativa liberdade (Santiago, 2013b, p. 34). Graciliano via que, comprometido politicamente, não conseguia espaço para se sustentar nos meios de comunicação tradicionais. Além do mais, tudo o que fosse escrito precisaria passar pelo crivo dos patrões, que, em última instância, determinava o que seria ou não publicado. Dessa forma, a “liberdade” e o consequente combate que deriva da atividade laboral de escrita estariam fadados a girar em falso, uma vez que obedeceriam ideologicamente – não simplesmente de direito, mas de fato – aos ditames dos detentores dos meios de comunicação. Acredito que, tendo em vista o período de formação em que estamos nos demorando, não é de se ignorar a presença de um autor como Derrida no horizonte crítico de Silviano no momento de elaborar um diário apócrifo. Ou seja, se na frase de abertura, tornada célebre, de La pharmacie de Platon – “Um texto só é um texto se oculta ao primeiro olhar, ao primeiro que chega, a lei da sua composição e a regra do seu jogo” (Derrida, 1995, p. 257) – Derrida insiste na condição de todo texto cifrar sua própria lei de composição e as regras do seu jogo, um livro como Em liberdade parece realizar o programa derridiano: um livro que se propõe um diário apócrifo, de início parricida, já que falsifica a autoria, ao mesmo tempo, oculta diversos subtextos que precisam ser escavados e desvendados no nível da composição, evidenciando o tipo de expediente que Derrida parece demandar da escritura.

15 de Agosto de 1979. Prof. Silviano Santiago. Fotógrafo Antônio Albuquerque. Acervo Núcleo de Memória da PUC-Rio.
15 de Agosto de 1979. Prof. Silviano Santiago. Fotógrafo Antônio Albuquerque. Acervo Núcleo de Memória da PUC-Rio.

Todo o projeto de Em liberdade é baseado nos supostos capítulos finais de Memórias do cárcere. A chamada “Nota do Editor do Manuscrito”, assinada por Silviano Santiago – que, na economia interna do romance, “tratou” os manuscritos perdidos de Graciliano –, escrita na abertura do livro, explica justamente a origem daquilo que se apresenta na forma de diário. Graciliano, alguns anos antes de morrer, teria oferecido a um amigo aqueles originais, solicitando-lhe que só fossem revelados ao público vinte e cinco anos após a sua morte. Anos depois, em 1952, às vésperas de sua morte, quando já padecia de câncer no pulmão, Graciliano teria escrito para o mesmo amigo pedindo-lhe que queimasse os originais deixados, remontando ao gesto de Franz Kafka a Max Brod. Alinhado a Brod, o amigo ocultado de Graciliano não queima os papéis e preserva-os, tornando-se, ele mesmo, arconte. Anos mais tarde, a família do amigo teria entrado em contato com Silviano, à época professor na Rutgers University nos Estados Unidos, confiando-lhe aqueles originais. A escolha por Silviano se deve ao fato de ele já ter trabalhado com o tratamento de manuscritos. A nota, apesar de ficcional, tem um forte lastro biográfico.

Ainda quando graduando em Letras Neolatinas na Universidade Federal de Minas Gerais, Silviano é indicado pelo seu professor Damien Saunal a estudar na Maison de France, no Rio de Janeiro, no Centre d’Études Supérieures de Français, durante o biênio 1960-1961, curso organizado pela CAPES, que concedeu uma bolsa a Silviano para custear sua estada no Rio (Santiago, 2021, p. 181-182). O curso de especialização era uma espécie de preâmbulo para o doutorado no exterior, já que a pós-graduação estava ainda engatinhando em solo brasileiro. Durante esse período, aproxima-se de Alexandre Eulálio, que lhe conta da existência de um manuscrito inédito da chef-d’oeuvre do escritor francês André Gide, Les faux-monnayeurs (1925), no Rio de Janeiro. Informado por Eulálio, Silviano vai atrás dos manuscritos, seu passaporte de entrada para o mundo francófono e para a pesquisa genética em literatura. Por um período de seis meses durante o curso de especialização, Silviano irá se ater à pesquisa daquele manuscrito. Examinando de perto os inéditos, o autor toma gosto pelo estudo da gênese da obra e das formas de composição. O resultado parcial do período no Rio de Janeiro foi publicado, anos mais tarde, na Revista do Livro – criada por Alexandre Eulálio –, intitulado “Fragmento de Les faux-monnayeurs: (Edição de um manuscrito inédito)” (Santiago, 1966), no qual transcreve os documentos encontrados e ensaia algumas incursões na composição gideana. O doutorado realizado posteriormente terá esse problema como centro, intitulado La génèse des Faux-Monnayeurs d’André Gide (Santiago, 1968) e defendido em abril de 1968 na Université de Paris (Sorbonne), sob supervisão do professor Pierre Moreau. O período no Rio de Janeiro e o de doutoramento podem ser entrevistos no livro de 1981, como sugere a nota do editor, peça fundamental para sua compreensão.

Em artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo, em 2007, Silviano, ao apresentar os mecanismos escriturais de Gide, explica o conceito criado para designar a chamada “estrutura em abismo” (mise-en-abyme), usada também para descrever sua própria obra:

Do ponto de vista retórico, a estrutura de Os Moedeiros Falsos se inspira […] na composição de brasões. A peça de nobreza pode trazer no seu interior, em miniatura, o desenho global. O todo se confunde com a parte. A parte se confunde com o todo. Questão de perspectiva. Em heráldica, a técnica se chama “em abismo”. Em retórica pop, o procedimento se encontra na lata de aveia Quaker. Um religioso vestido a caráter mostra uma lata de aveia. Nesta, está estampado um religioso que mostra a mesma lata de aveia. E assim infinitamente. A estrutura em abismo é comum nas obras de arte do Ocidente. Apenas os historiadores a desconheciam até a anotação de Gide no próprio diário íntimo. Lembremos alguns exemplos. “Hamlet”, de Shakespeare, em que há uma peça dentro da peça, “As Meninas”, de Velásquez, em que a pintura retrata o ato de pintar, e ainda “O Primo Basílio”, em que o personagem Ernestinho escreve uma peça sobre adultério, em tudo semelhante à trama criada por Eça de Queirós. (Santiago, 2007)

De modo a ainda recuperar sua primeira ideia de livro, Silviano, ao estilo de Gide, planejou a segunda metade do romance em mise-en-abyme, fazendo com que o seu Graciliano escrevesse um conto narrado por Cláudio Manoel da Costa, num interessante jogo de espelhos. Dessa maneira, surge, ao longo do livro, um livro dentro de um livro, no qual Graciliano, ao sonhar ser o poeta mineiro, vê-se identificado com a figura do inconfidente perseguido que, por sua vez, ressoa ainda a imagem de Herzog nos anos 1970. A morte trágica do poeta mineiro se torna musa literária do diário íntimo – desde pelo menos a entrada de 3 de março, dentro do romance ― do narrador/personagem Graciliano Ramos que sonha ser Cláudio Manuel da Costa (Santiago, 2013b, p. 215). O projeto do diário apócrifo é repensado mantendo, ao mesmo tempo, as referências a Cláudio Manuel da Costa e Vladimir Herzog. Quer dizer, o livro sobre Cláudio Manoel da Costa aparece dentro do livro sobre Graciliano que, ao mesmo tempo, contém a morte de Herzog e sua respectiva discussão histórica e política. Um livro dentro do livro, texto duplicado, estrutura em abismo. A discussão sobre a ditadura militar, por sua vez, aparece cifrada nas querelas com o governo Vargas, espelhadas também nas tensões da Inconfidência Mineira com a Monarquia portuguesa. Escrito num sábado, dia 20 de março, lê-se em Em liberdade: “Cláudio será Graciliano. Graciliano redige, mas quem escreve é Cláudio” (Santiago, 2013b, p. 252). Os personagens são também duplicados, performando um e outro, confundindo-se na prosa. É neste ponto que a engenhoca Em liberdade ganha um estatuto político e estilístico interessantes. Numa só tacada:

[…] o projeto alegórico inicial se transforma numa espécie de grande painel da história do Brasil. Em três épocas distintas, três intelectuais brasileiros padecem nas mãos de governos paranoicos, autoritários e violentos. Final do século XVIII (Cláudio falece no dia 4 de julho de 1789); década de 1930 (Graciliano passa preso o ano de 1936); década de 1970 (Herzog é suicidado no dia 25 de outubro de 1975). (Santiago, 2020a, p. 46)

Se Silviano buscou procurar na biografia e nos escritos de Graciliano Ramos ― e Cláudio Manoel da Costa ― algo que dissesse sobre o corpo, entrevendo a forma de compor o texto, caçando as intermitências da escrita, este ensaio buscou também, na composição de Silviano, nos seus textos ficcionais, a forma pela qual investigou a composição de Graciliano e investiu na escrita alheia.

Tentamos, aqui, pensar o emaranhado de circunstâncias que estavam ao redor da composição do livro Em liberdade, encontrar os pontos essenciais na biografia do autor para a constituição deste trabalho tão singular em sua carreira. Quer dizer, retrocedendo alguns anos da publicação, indo até 1975, onde parece estar o início de tudo, e escavar os acontecimentos e textos que o circundaram no período da composição. Assim, descrever como as ideias se formaram e se transformaram no cruzamento com a história, as instituições, os textos e as pessoas, garantindo uma melhor compreensão da longevidade desse livro que já completou mais de quarenta anos e que continua atual.

Silviano Santiago em “A sociedade secreta dos biógrafos”, relembra de uma passagem de Historia Universal de La Infamia (1935) de Jorge Luis Borges, na qual o escritor argentino diz fazer parte, junto a outros escritores, de uma espécie de “sociedade secreta” de devotos de Marcel Schwob, autor de Vies imaginaires (1896). Isso porque Schwob figuraria como o primeiro a retirar o gesto biográfico de um registro simplesmente histórico, de coleção de dados e comprometido com a verdade enquanto finalidade da literatura. Schwob realizou uma série de minibiografias e as eternizou no livro de 1896, no qual não estabelece uma distinção entre grandes figuras e personagens medíocres da história, e até de criminosos. Todos são passíveis de serem biografados. Não apenas isso, mas o ponto de partida dos perfis biográficos não é calcado num universalismo que daria conta de maneira absolutizante das figuras em questão, mas são antes incitadas por pequenas curiosidades, esquisitices triviais que, combinadas ao estilo do escritor e a uma certa dose de fatos reais, conseguem compor um quadro satisfatório que faz as vezes do gênero clássico da biografia. Assim, Borges seria um autor herdeiro de Schwob, que produz genealogias bastardas, biografias inventadas, que constitui sua prosa desafiando os limites entre a ficção e o mundo. Ao final do pequeno texto, após descrever alguns mecanismos de composição biográfica e apresentar de que maneira diversos autores se colocam junto a Schwob como seus herdeiros, arremata colocando-se, ele mesmo, ao lado do autor, como seu herdeiro também: “ao publicar o romance Em liberdade, assinei ficha de inscrição na sociedade secreta a que Borges se refere” (Santiago, 2013, p. 98).

* Gabriel Martins da Silva é professor de sociologia e doutorando em Letras (PPGLCC/PUC-Rio). Mestre em Letras (PUC-Rio/CAPES) e graduado em Ciências Sociais (PUC-Rio). Foi assistente de curadoria da mostra de cinema Ecos de 1922: Modernismo no Cinema Brasileiro, realizada no primeiro semestre de 2022 pelo Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.

 
Referências bibliográficas
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GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MIRANDA, Wander Melo. Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

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SANTIAGO, Silviano. Mestre Graça não é piedade. Edição Especial Prosa e Verso, Jornal O Globo, 20/07/2013c.

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WAIZBORT, Leopoldo. “Fernando Gabeira e sua trilogia do retorno” In: MICELI, Sérgio; MYERS, Jorge. Retratos latino-americanos: a recordação letrada de intelectuais e artistas do século XX. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019, p. 140-153.
Dossiê
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ANISTIA PARA QUEM?

Este artigo, baseado numa palestra, propõe fazer um comentário a respeito do meu romance Anistia, que talvez possa ser considerado como um dos ecos, na literatura brasileira contemporânea, do golpe militar de 1964 e do período sombrio que se seguiu a ele na história do nosso país. Farei uma consideração inicial sobre o tema do livro, para depois tratar da sua origem e, por fim, do nome escolhido. Com base nesse nome, proponho como título do artigo esta provocação: “Anistia para quem?”. A pergunta me parece resumir, agora, uma ambivalência no significado do termo “anistia” que se mostra decisiva nas reflexões sobre a ditadura militar e sobre o peso do legado político e cultural do golpe de 1964.

Qual a relação entre o início da Odisseia, de Homero, uma frase de Marx sobre a história mundial e a Comissão Nacional da Verdade, criada no Brasil do século XXI tanto para recuperar a memória dos mortos e desaparecidos, no período de ditadura militar, quanto para responsabilizar os agentes da repressão política? Pretendo responder a esta pergunta ao longo do comentário a seguir sobre meu romance Anistia, que foi escrito em 2020, durante o período de isolamento social decorrente da pandemia de coronavírus. Usei como base para o enredo do romance os rascunhos de um roteiro, apenas esboçado alguns anos antes, provavelmente em 2014, depois de um curso que ministrei sobre a Odisseia na faculdade de filosofia da Universidade Federal Fluminense.

A motivação para contar uma história situada na minha cidade natal, num período do qual tenho muitas lembranças, surgiu, na verdade, de inquietações ligadas ao momento em que o livro foi escrito e, portanto, ao contexto cultural e político brasileiro de 2020. Assim, quando comecei a reelaborar os rascunhos do que viria a ser o livro, embora eu tivesse decidido situar os acontecimentos no Rio de Janeiro do final da década de 1970, meu interesse não era escrever uma autoficção a partir das memórias da minha infância, nem propriamente um romance histórico. Mas, aos poucos, me vi às voltas com jornais antigos, textos de historiadores, discos, livros e imagens daquela época. Usei esses materiais e as minhas recordações à medida que se faziam necessários para a narrativa.

Acerca do período de aproximadamente um ano em que o livro foi escrito, basta mencionar a data para todos saberem que foi um momento marcado, no mundo inteiro, pelas consequências da pandemia de coronavírus, com a situação forçada que vivemos de isolamento social. Num primeiro momento, enquanto ficava fechado em casa, acompanhei obsessivamente as notícias por redes sociais, sites e canais de tevê, todos estes meios telecomunicativos que traziam para dentro do ambiente isolado as reverberações do que acontecia no mundo exterior. Depois, com o passar de algumas semanas me recuperando da Covid-19 – que peguei logo no início da pandemia, apesar do isolamento quase total, convivendo só com a família –, fiquei cansado demais para ler tanta notícia. Então resolvi reler alguns dos meus livros preferidos, entre eles a Odisseia. E, quando fiquei bom, passei a dedicar todas as manhãs a escrever. Cada pessoa lidou de uma maneira com essa situação e com as angústias provocadas por ela. Essa foi a minha.

Nos meus cadernos do início da pandemia leio a constatação de que o Brasil devia ser um dos poucos países em que as notícias alarmantes sobre a calamidade sanitária não eram a principal preocupação de quem lia os jornais e acompanhava as redes sociais. O que mais preocupava os brasileiros, ou pelo menos uma parcela significativa da população, eram as informações jornalísticas que evidenciavam o negacionismo e o reacionarismo do governo de extrema-direita, conduzido por um presidente menos preocupado com a saúde pública do que com teorias da conspiração, frases de efeito moralistas e a celebração patriótica da época da ditatura militar. Ou seja, a calamidade política era ainda pior do que a sanitária.

Na origem desta calamidade política que estava ocorrendo era evidente um movimento reacionário, ou seja, uma tentativa de resgate do passado como reação contra as mudanças culturais e sociais dos últimos anos. Não do passado como ele de fato ocorreu, evidentemente, e sim de uma versão mitificada, no sentido de uma repetição, como farsa, da tragédia do passado, para usar uma célebre formulação de Marx que parte de uma citação de Hegel (Marx, 2011, p. 25).

Pois bem, a ideia de retomar aquele roteiro que mencionei antes, baseado numa leitura anterior da Odisseia, veio desta constatação de um retrocesso político assustador. O nosso passado sombrio, não resolvido, recalcado, se fazia presente de maneira inegável. Então a ideia por trás desse livro, Anistia, era tratar de memória e esquecimento, da herança da violência da ditadura e da esperança num futuro democrático: um futuro que é o nosso presente, num momento em que estamos ainda às voltas com aquela herança.

Posso tentar explicar melhor esse projeto fazendo um resumo do romance. Ele conta a história de um filho em busca de notícias sobre seu pai, desaparecido nos anos de chumbo da ditadura. Este protagonista, Emílio, é um estudante de História que reluta em se engajar no movimento político estudantil contra o governo militar. Seu pai, Luís, tinha participado de ações da luta armada no Rio de Janeiro até 1969, quando ele ainda era criança, e Emílio não sabe como lidar com o trauma dessa perda, que permanece como uma interrogação ou uma ameaça.

A história se passa nos meses que antecederam o decreto da Lei de Anistia, um marco inicial do processo de redemocratização do país. Aos poucos, os eventos que levaram ao desaparecimento de Luís vão sendo desvendados por seu filho, mas isto traz à tona conexões insuspeitadas com a tentativa de assassinato de um amigo dele, de modo que a ameaça identificada no passado se mostra ainda presente. Destaco aqui um trecho do livro que aborda essa presença:

A sequência de palmeiras imperiais da rua Paissandu, com seus troncos compridos, dava a impressão de dividir a paisagem em faixas verticais, pequenos quadros muito diferentes uns dos outros, cada um com seus detalhes. Contra o céu nublado de fim de tarde, os vultos das folhas que se erguiam acima dos prédios em frente pareciam mãos enormes, prestes a se precipitar sobre sua presa.

Emílio se lembrou então, de repente, do que a Aline tinha dito no dia da manifestação. Não dá pra ser assim, ela repetia. Imagina, no futuro, se os reacionários de plantão forem tratar os torturadores como se eles fossem heróis. Todos grandes patriotas, e homens de bem, que acreditam em Deus e defendem a família tradicional brasileira. Mesmo se a gente voltar a viver numa democracia, o que eu ainda acho que vai demorar muito pra acontecer, ela disse, o fantasma da ditadura vai ficar assombrando o Brasil pra sempre. Não dá pra ser assim. (Süssekind, 2022, p. 174)

A ideia que serviu de base para o enredo deste romance me ocorreu a partir de uma combinação que considero bastante inusitada, sobre a qual vale a pena me demorar um pouco mais. A primeira anotação em torno dessa ideia foi feita em 2014, sob a influência da divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade, acompanhada por depoimentos de pessoas que foram presas e torturadas durante o período da ditadura militar.

Naquele momento, minha impressão era a de que, finalmente, havia uma vontade política no Brasil de lidar com essa memória traumática, tanto com a questão da identificação dos crimes cometidos pelo governo durante a ditadura quanto com o restabelecimento e com a narrativa do que realmente ocorreu com suas vítimas. Enquanto eu acompanhava histórias dos desaparecidos que estavam sendo resgatadas nesse contexto, me lembrava do curso que tinha acabado de dar na universidade sobre a Odisseia, de Homero. Uma coisa que sempre me chamou atenção no começo desta epopeia é que tudo gira em torno de uma ausência: os quatro cantos de abertura têm como tema o desaparecimento de Ulisses, o único dos heróis da Ilíada que, mesmo tendo sobrevivido à guerra, ainda não voltou para casa. Ele só aparece no início do quinto canto do poema, então toda a parte inicial constitui uma preparação, cujo tema é a ausência do protagonista.

Essa parte inicial da Odisseia costuma ser chamada de Telemaquia, porque o personagem principal é Telêmaco, o filho de Ulisses. Faço um pequeno resumo da situação narrada, porque foi dela que me apropriei. A instabilidade gerada pela ausência do rei, dez anos após o final da guerra de Tróia, motiva os eventos que ocorrem em Ítaca. Porque ainda têm esperança no retorno, a esposa fiel tenta adiar indefinidamente sua escolha de um novo marido, e Telêmaco, o filho ainda jovem, reluta em tomar alguma atitude. Porque duvidam do retorno, vários pretendentes querem forçar Penélope a escolher um deles, que deveria então assumir o governo do reino. Então Palas Atena, divindade protetora de Ulisses, incita Telêmaco a buscar a longínqua informação que algum dos heróis da guerra de Troia poderiam dar acerca do paradeiro de seu pai. Seguindo as recomendações da deusa, ele viaja para encontrar Nestor e Menelau, que já retornaram para suas casas, e é recebido pelos dois reis com gestos de hospitalidade. Tanto em Pilos quanto em Esparta, esta visita desperta recordações que exaltam a glória do herói ausente.

Portanto, em linhas gerais, Telêmaco precisa resgatar a memória do que aconteceu com Ulisses, saber se o seu pai está morto ou se tem chance de voltar. Em vista disto, ele precisa decidir se o pai é pertencente ao passado ou ao presente. E é só no quarto canto, no final da sua viagem, e por uma via muito tortuosa, que Telêmaco chega a ter a notícia de que Ulisses está vivo, na Ilha de Ogígia, retido pela Ninfa Calipso. Em seguida, a partir do canto V, começará a ser contada, propriamente, a história desse retorno, até o momento em que o herói reencontra o filho e a mulher em Ítaca, mas meu interesse estava voltado apenas para a parte inicial, em que a ausência de Ulisses parece ser o eixo de todos os acontecimentos.

Ora, o curso que dei sobre este poema da Grécia Arcaica, um dos arquétipos de toda a literatura ocidental, tinha uma conexão com o pensamento contemporâneo. Li com os alunos e comentei a releitura da Odisseia feita por Adorno e Horkheimer em seu livro Dialética do esclarecimento, de 1944, escrito quando os dois autores, intelectuais judeus vindos da Alemanha, tinham escapado da perseguição nazista e estavam exilados nos EUA, de onde acompanhavam os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. No prefácio, eles declaram que seu objetivo é “descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”, que conduz a uma calamidade triunfal. Nesse contexto, reler a Odisseia não visava a uma reconstituição histórica da Grécia Antiga e de sua situação cultural, mas a uma genealogia da racionalidade moderna feita a partir do “texto fundamental da civilização europeia” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 11, p. 55).

Voltando ao meu assunto, fiz uma primeira anotação em 2014 a respeito de um projeto, que depois serviu de base para a tentativa de escrever o tal roteiro, chamado “Telemaquia”. A anotação dizia respeito ao que me pareceu ser uma conexão entre o trabalho da Comissão Nacional da Verdade e minhas reflexões sobre a Odisseia, no curso mencionado. Afinal, para um leitor brasileiro nascido na década de 1970, como eu, o tema do pai desaparecido e do resgate da memória, elaborado no poema homérico, remete inevitavelmente ao que ocorreu no período da ditadura militar.

Comecei a escrever um roteiro que era, basicamente, uma espécie de versão contemporânea da Telemaquia, com um militante desaparecido no lugar de Ulisses, e, no lugar de Telêmaco, um estudante que relutava em se engajar nos protestos políticos pela redemocratização. No entanto, não levei adiante este projeto. As anotações que fiz para o roteiro ficaram, por muito tempo, num arquivo, entre muitos guardados na memória do computador, sob o título “rascunhos”. Só fui retomar o projeto e de fato escrever a história em 2020, vários anos depois da primeira anotação, já na forma não de um roteiro, mas de um romance.

O que me impressiona nesse processo, avaliando-o retrospectivamente, é o quanto o momento em que o livro foi escrito era diferente daquele em que a ideia tinha me ocorrido. Não só diferente, aliás, mas oposto, do ponto de vista da situação política brasileira. Em 2020, iniciativas como o relatório da Comissão Nacional da Verdade, políticas de cotas, regulamentações trabalhistas etc. tinham alimentado, durante anos, um reacionarismo raivoso no Brasil. O caos político gerado pelo golpe de 2016 tinha levado – em oposição à busca da verdade – a uma regressão à mentira. Um político que exaltou publicamente um torturador foi eleito presidente e, com a extrema-direita no poder, o governo comemorava a data de início da ditadura com desfiles e fanfarras.

Angelus Novus, do artista Paul Klee (1920), mencionado no ensaio Sobre o Conceito de História de Walter Benjamin.
Angelus Novus, do artista Paul Klee (1920), mencionado no ensaio Sobre o Conceito de História de Walter Benjamin.

Esta situação me fazia pensar no último texto escrito por Walter Benjamin, outro intelectual judeu que fugiu do nazismo, mas não teve a mesma sorte de seus colegas frankfurtianos Adorno e Horkheimer, que conseguiram sobreviver no exílio. Nas teses sobre o conceito de história, de Benjamin, há uma passagem em que ele diz: “também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. Os mortos, os desaparecidos, os torturados, os oprimidos são de novo violentados, esquecidos ou vilipendiados pelo revisionismo histórico que glorifica a violência dos vencedores. Benjamin acrescenta, em 1940: “e esse inimigo não tem cessado de vencer” (Benjamin, 2020, p. 37).

Que inimigo é esse? Podemos nomeá-lo como faz o ensaísta, já que ele estava escrevendo sobre a busca de um conceito de história que melhore nossa posição na luta contra o fascismo, que praticava uma mitificação do passado. O reacionarismo fascista, tanto na Alemanha da década de 1930 quanto no Brasil de 2020, tem um grande interesse pela História, porque sua ideologia se apropria do passado para narrar uma versão triunfante e mentirosa, cujo objetivo é justificar uma política destrutiva e repressiva.

Foi em 2020, durante o governo Bolsonaro, que resgatei aquele roteiro sobre um filho que, como Telêmaco na Odisseia, busca notícias de seu pai, um participante da luta armada desaparecido nos anos de chumbo da ditadura. Hoje penso que pude escrever a história naquele momento por dois motivos:

1) Porque se tornou urgente e necessário falar sobre memória, luto, reparação, herança, sobre a procura de um passado perdido, ou sobre a disputa acerca do sentido desse passado;

2) Porque em 2014 eu não sabia responder muito bem àquela pergunta: que inimigo é esse? Só em 2020 ficou claro para mim quem era o antagonista da história que eu estava escrevendo. Mais do que isso, entendi que o mais importante era mostrar como a grande questão do protagonista, o filho de um desaparecido, não era lidar com o passado, e sim lidar com o fato de que aquele passado continua presente.

Pois bem, o romance foi publicado em 2022, ano das eleições presidenciais que encerraram o governo da extrema-direita. Acontece que, quando eu escolhi o título, nem sonhava que ouviria o coro “sem anistia” cantado por milhares de pessoas em Brasília, na posse do presidente Lula, no final daquele ano. Este grito “sem anistia” surgiu como um slogan voltado para a condenação dos crimes cometidos pelo governo anterior, que justamente pretendia retomar as diretrizes políticas da linha dura dos governos dos generais durante a época da ditadura militar.

Ressalto, então, os deslocamentos de sentido do termo “anistia” nas maneiras como esta palavra foi usada. Basta pensar, em contraste com o coro “sem anistia”, nos cartazes que, naquele tempo, pediam “anistia ampla geral e irrestrita”, ou “anistia antes que tardia”, referindo-se à liberdade para os presos políticos e ao retorno dos exilados. Ao escolher o nome Anistia para o romance, uma das questões políticas importantes que eu pretendia trazer à tona era justamente a disputa em torno do sentido da Lei da Anistia.

Foi pela importância simbólica desta lei, como signo da reabertura política brasileira, que decidi situar a história da procura por um desaparecido em 1979. A sua aprovação foi o marco inicial do movimento de redemocratização do país, mas foi também um acordo político para livrar os torturadores e os assassinos que integravam o governo. E, anos depois, alguns deles voltaram ao poder.

Militantes com cartazes na década de 1970 com os dizeres “Anistia ampla geral e irrestrita”. Fonte: Antônio Nery, Agência O Globo (1979).
Militantes com cartazes na década de 1970 com os dizeres “Anistia ampla geral e irrestrita”. Fonte: Antônio Nery, Agência O Globo (1979).

Por isso, fiz a pergunta “anistia para quem?” no título deste artigo. O problema está no complemento. Como prova disso, recentemente, o ex-presidente, envolvido numa série de processos jurídicos ligados à tentativa de golpe que ele fomentou e à apropriação indevida de jóias presenteadas à presidência, sugeriu passar a borracha no seu passado, expressando, à sua maneira, os anseios da militância política que trabalha, atualmente, para tentar anistiá-lo (o termo é usado assim pela imprensa).

Antes de concluir, faço uma consideração pessoal, relacionada às minhas lembranças do período em que se passa o romance. Como eu era criança na década de 1970, as primeiras noções mais ou menos políticas que se formaram na minha cabeça a respeito do Brasil estavam ligadas às palavras “ditadura”, “censura”, “exílio” e “anistia”. No Primário, numa escola da Zona Sul carioca, cantávamos o hino nacional todos os dias, e a ideia que eu fazia do que era ser brasileiro, misturava o ufanismo em torno da seleção vitoriosa de Pelé, vestindo a camisa amarela com desfiles militares e presidentes fardados.

Uma palavra especialmente misteriosa para mim, naquele tempo, era justamente “anistia”. Talvez eu a tenha encontrado pela primeira vez nas histórias da Graúna, no jornal O Pasquim, que lembro de ler na casa dos meus avós. E eu não sabia o que esta palavra significava.

O grande acontecimento político que acompanhei na minha vida foi o processo de redemocratização iniciado com a campanha das Diretas Já, que começou quando eu tinha por volta de dez anos de idade. Em seguida, houve a Constituinte, liderada por Ulysses Guimarães, e depois disso pude votar, aos dezesseis anos, na primeira eleição direta realizada no Brasil depois de duas décadas de ditadura.

Considerando que a minha geração é profundamente marcada por esse processo de redemocratização, atribuo a isso, pelo menos em parte, uma certa ilusão otimista que eu tinha a respeito do processo histórico que vivemos. A formação da minha visão política girou em torno da ideia de um progresso coerente, uma luta por avanços sociais na qual era possível nomear as forças que atuavam – a oposição e a situação –, forças que pareciam anunciar a superação de conflitos e desigualdades.

Hoje sinto uma certa nostalgia desta minha crença no avanço político e no fio condutor da História, à maneira de Hegel. Pensando nas repetições históricas, na memória e no esquecimento de quem luta contra o fascismo, termino este texto citando de novo Walter Benjamin: “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como de fato foi. Significa apropriar-se de uma recordação tal como ela relampejou no instante do perigo” (Benjamin, 2020, p. 36).

Num país dividido, numa sociedade desigual e injusta, sob um governo reacionário alimentado por mitificações e mentiras, em tempos de celebrações patrióticas elitistas, de glorificação da violência e de regressão social, econômica, política, cultural, educacional – em outras palavras, no Brasil, atualmente, é preciso repensar a História. O passado corre o risco de ficar esquecido, obliterado, de ser falsificado para servir como instrumento de dominação.

* Pedro Süssekind é professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPQ. Doutorou-se em Filosofia pela UFRJ em 2005, após um estágio de pesquisa no Departamento de Literatura Comparada da Freie Universität em Berlim. É autor dos livros Anistia (Harper Collins, 2022), Litoral (7letras, 2006) e o romance Triz (Editora 34, 2011).
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar; 1ª edição, 1985.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história: Edição Crítica. São Paulo: Editorial Alameda, 1ª edição, 2020.

HOMERO. Odisseia. São Paulo: Penguin-Companhia e Companhia das Letras, 1ª edição, 2011.

MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 1ª edição, 2011.
Dossiê
Tempo de leitura estimado: 19 minutos

DA INTERDIÇÃO, UM NOVO CAMINHO

Quando passei no processo seletivo de Assessor Técnico de Literatura IV do Sesc Nacional, em 2002, estava defendendo o mestrado na PUC-Rio sobre o humor político em Millôr Fernandes e participava do movimento de saraus poéticos que estouraram no Rio de Janeiro a partir do fim dos anos 1990. A bolsa do CNPq estava no fim, de modo que a tranquilidade do emprego e a cuca fresca me davam muito gás para contribuir com o que me mandassem fazer. Minha colega de equipe, que já contava com muitas décadas de empresa e (quase sempre) demonstrava paciência para suportar minha curiosidade sobre tudo, comentou que tinha vontade de criar um prêmio literário. “Então vamos criar um prêmio!”, eu disse com uma empolgação quase adolescente.

Quase junto comigo havia chegado uma nova gerente, Marcia Costa Rodrigues, aberta a novas ideias. À época, o principal projeto da área eram as dezenas de feiras de livros infantis do Sesc realizadas país adentro, formato de evento que em breve seria alterado em todo o território por conta de uma tal Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acabava de surgir.

Ao desenhar o projeto, primeiro pensamos no que o prêmio do Sesc não poderia ser. Descartamos a ideia de dar um prêmio para livros já publicados. Para isso já existia o Jabuti, há não muitos anos tinha acabado o famoso Prêmio Nestlé, e ainda estava nascendo o Portugal Telecom (atualmente Oceanos). Considerando a política da empresa de dar acesso a artistas que não têm espaço, decidimos que deveria se voltar para aqueles que nunca publicaram.

O que dar como premiação? Dinheiro, impressão do livro na editora caseira do Senac? Apesar de ser uma solução fácil, não me parecia que era isso que escritores inéditos buscam.

Eu não havia publicado um livro ainda. Era daquela geração (depois chamada de 00) que escrevia seus textos nos blogs. A tecnologia restringia a publicação de livros com qualidade e rapidez, por isso o estalo veio ao pensar como um possível candidato: a premiação será a publicação do livro por uma editora grande. Para quem é inédito, não tem contatos ou apadrinhamentos, e com uma internet ainda incipiente que tornava o país distante de si mesmo, seria uma boa oportunidade.

Nesse meio tempo, foram feitas reuniões com a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a fim de conferir peso acadêmico ao projeto. Acreditava-se que o nome Sesc sozinho não iria chamar a atenção, e entendi depois o motivo: a empresa, entre os anos 1980 e 1990, não costumava se mostrar muito, provavelmente por medo de que Brasília quisesse se apropriar dos suntuosos recursos do Sistema S (Senai, Sesi, Senac, Sesc, Sebrae, Senar, Sest, Senat e Sescoop), ameaça que retorna a cada mudança de governo. Por alguma burocracia que me escapa, a parceria com a universidade não andou, mas a ideia era tão boa que não podia morrer na praia. Faltava achar a editora. Após um primeiro contato esquisito com uma editora média, que fez muitas exigências para colocar o seu selo no então romance vencedor, me lembrei de uma conhecida que trabalhava na Record. Logo na primeira reunião, Luciana Villas-Boas, então diretora executiva, topou a parceria, com um argumento bem sincero, mas também com aquela visão que fez dela o grande nome do meio literário brasileiro na época: “Vocês vão fazer o que eu não posso, que é vasculhar nesse país imenso quem tem uma boa literatura e merece publicação”. O projeto estava pronto.

Conversa de maluco

Para aprovação interna, foram necessárias muitas tramitações e defesas. Um projeto novo era algo que não surgia com frequência, de maneira que houve desconfiança entre os diretores. Eles passaram uns bons meses jogando o processo de um lado a outro, furando o nosso cronograma. Ainda me lembro do diálogo com um deles:

— Por que você está apresentando esse projeto, se ele não existe?

— É porque é um projeto novo – respondi.

— Mas como assim, se esse projeto nunca existiu?

— Justamente, por não ter existido que ele é novo, mas daí vai passar a existir.

O restante do diálogo desapareceu da minha mente, como costumam acontecer com traumas ou as coisas desimportantes. Mas não seria a única vez em que o Prêmio Sesc traria fatos inusitados.

Lançamos o edital, e foram recebidos mais de trezentos  livros. Administrar aqueles caixotes com quatro vias impressas e espiraladas, como eram os concursos de então, dava um baita trabalho. Criamos o modelo de subcomissões, que fazem uma triagem, cujo resultado segue para a comissão final, permitindo que os livros sejam lidos de fato. Essa primeira foi formada por Antônio Torres e Italo Moriconi, que selecionaram o romance histórico Santo Reis da Luz Divina. O autor era um professor de Engenharia Química da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), oriundo do interior do Paraná. Marco Aurélio Cremasco, de 40 anos, mostrava que o “novo autor brasileiro” poderia vir de qualquer lugar, ter qualquer idade e atuar em outras áreas. O livro foi finalista do Jabuti e recebeu uma resenha bem positiva do crítico Wilson Martins. Ao que parecia, deu certo.

O cu de deus

Na segunda edição do Prêmio, a obra As netas da Ema, da advogada paulista Eugênia Zerbini, fez os leitores revisitarem a ditadura – o que, feliz ou infelizmente, torna o livro bem atual. Logo saiu uma segunda edição, confirmando que o formato do projeto funcionava. No terceiro ano surgiram o jovem estudante goiano André de Leones (Hoje está um dia morto) e a professora carioca Lúcia Bettencourt (A secretária de Borges) em Conto, categoria que conseguimos incluir.

Tudo parecia seguir bem até que, numa sexta-feira, perto do fim do expediente, o diretor Álvaro Salmito veio até minha mesa com um exemplar de Hoje está um dia morto cheio de marcações. Meio esbaforido, ele me mostrava trechos com palavrões e cenas de sexo no romance, que trata de jovens do interior do país cercados de desprezo e tédio. O presidente da Federação do Comércio da Bahia estava reclamando porque sua mulher pegara o livro e tinha se deparado com tal conteúdo. Não consegui segurar o riso quando ele leu alto o título de um capítulo:

— Olha aqui, ó, “o cu de deus”, Henrique! O cu de deus!

A ordem era que eu fizesse um texto explicando o motivo de aquele livro ter vencido o Prêmio Sesc. E lá fui, já com um “sextou” me acenando no horizonte. Além de ter sido selecionado por Luiz Antônio de Assis Brasil e Moacyr Scliar, escrevi sobre as qualidades do livro, tomando a liberdade de inventar alguns termos teóricos para tornar o documento bem hermético. Imaginei que ninguém teria coragem de dizer que não entendeu. O diretor leu com um “humm, está ótimo”, o texto seguiu e nunca mais se ouviu falar do assunto. Posteriormente, o romance de Leones virou filme, e o autor se consolidou com uma carreira sólida.

Em 2009, saí do Sesc ao receber o convite para um cargo de chefia na Secretaria de Estado de Educação do Rio. Não durei muito por conta do caos e de imoralidades, mas isso é outra história. Depois comecei o doutorado e fui para o Oi Futuro. Por volta de 2012, a gerente do Sesc me mandou mensagem informando que havia uma vaga de Literatura aberta, e precisavam de alguém com mais experiência para tocar os projetos. Passei no processo e, mesmo com salário menor, retornei. Estar mais perto de casa (moro em Jacarepaguá, mesmo bairro do Departamento Nacional) me garantia duas horas e meia por dia: o tempo vira moeda valiosa quando ficamos mais velhos.

Uma das minhas missões era dar uma atualizada no Prêmio Sesc. Foram feitos vários ajustes administrativos, mudamos o modelo de inscrições físicas para o formato on-line e foi sistematizado o circuito dos vencedores, que passou a ser um tipo de premiação a mais, uma vez que os autores receberiam também um cachê em cada viagem, estimulando a ideia de profissionalização nesse processo. Os vencedores começaram a ter grande destaque na programação da Flip. Como resultado, a média de inscritos triplicou.

Mas havia a difícil luta contra as burocracias internas, ainda que hoje possam soar anedóticas. Uma das implementações foi a criação da fanpage do Prêmio no Facebook, o que foi aprovado, mas o acesso a essa rede social era proibido dentro da empresa. Esse paradoxo, que me fazia trabalhar de casa à noite para responder mensagens dos candidatos, me fez solicitar umas quatro vezes o acesso, mesmo porque não pagavam horas extras. Na quinta, escrevi em formato de soneto, repetindo a estratégia de quando havia feito um parecer técnico em cordel. Creio que a piada chamou a atenção, pois só aí me liberaram a rede do Zuckerberg.

Herdei um processo de gravação das obras vencedoras em audiolivros. Quando estive no Oi Futuro fui gerente de projeto do Prêmio Portugal Telecom, e um dos trabalhos legais tinha sido transpor os livros finalistas para o acesso a pessoas cegas. O problema no Sesc era que a empresa vencedora da licitação por menor preço fez um trabalho muito ruim. E o pior: internamente impediram que fosse feita a gravação do vencedor de contos Parafilias, do psicólogo Alexandre Marques Rodrigues, em função do conteúdo sexual do livro. Ninguém sabia ao certo de onde vinha a ordem. Pela época, ainda havia certo pudor em proibir livros.

Em 2018, quando o gaúcho Tobias Carvalho venceu em Conto com As coisas, que trata das vivências de um jovem homossexual numa metrópole, vivíamos um momento em que a pulsão censora começava a não ter vergonha de se mostrar. Regionais devolveram exemplares ao Departamento Nacional, e outros se recusaram a receber o autor. Conseguimos redirecionar os recursos para outros estados. Confesso que tive vergonha de dizer ao Tobias o ocorrido, revelando tudo a ele apenas recentemente.

Anatomia de uma queda

Em 2023, comemoraríamos os 20 anos do Prêmio Sesc de Literatura com dois autores belamente selecionados. Giovana Madalosso e Sérgio Rodrigues, que compuseram a comissão final de Conto, estavam entusiasmados com O ninho, livro da advogada pernambucana Bethânia Pires Amaro, que logo venceria o APCA na categoria. Em romance, pela quarta vez no projeto, foi revelado um autor do Pará, estado geralmente esquecido no mapa da literatura brasileira. Airton Souza, professor e vencedor de vários prêmios menores, realizava um sonho com o seu ótimo Outono de carne estranha, chegando a tatuar “Prêmio Sesc de Literatura 2023” no pulso.

Airton Souza (divulgação).

Nessa última edição da Flip, o Sesc passou a dar R$ 1,5 milhão para custear a programação da Flipinha/FlipZona, em vez de fazer atividades em vários lugares, o que sempre sufocava a pequena e competente equipe local. Na parceria, a única condição seria que fizéssemos uma curadoria coletiva com equipes do Sesc e da Flip. A programação para crianças e jovens se concentrou no auditório Flip + Sesc, deixando o Casarão para programações adultas.

Estava no camarim com os dois novos vencedores, os do ano anterior (Taiane Santi Martins e Pedro Augusto Baía), que contariam como havia sido o “ano de miss”, como brincávamos, além do Rodrigo Lacerda, editor da Record. Pedi que os estreantes selecionassem trechos para serem lidos na mesa. Quando Airton disse que leria o início, cheguei a sugerir que ele escolhesse outra passagem, já sabendo do conteúdo mais explícito e das nossas chefias “conservadoras” que estariam na plateia. Como o autor fez questão de ler o trecho, mesmo porque já havia lido naquela tarde na Casa Record, não seria eu a cerceá-lo, e decidi tocar a mesa naturalmente. Assim fizemos, e todos bateram palmas para a leitura, especialmente após terem ouvido a trajetória de vida tão difícil de Airton. A mesa foi um sucesso para todos, exceto na primeira fileira.

Logo em seguida, a gerente de cultura, Luciana Salles, minha então chefe imediata, me puxou para uma sala, acompanhada do coordenador do Sesc Paraty, Antônio Garcia. Estava nervosa, dizendo que o diretor-geral, João Carlos Cirilo, e a diretora de programas sociais, Janaina Cunha, estavam se sentindo ofendidos com aquela leitura, e que seríamos demitidos caso o fato chegasse aos ouvidos do presidente da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), o empresário amazonense José Roberto Tadros. A CNC está acima dos departamentos nacionais do Sesc e do Senac. Descobri, sem surpresa, que os diretores e a gerente nem sequer haviam aberto os livros vencedores do Prêmio até aquele momento. Tentei explicar que, ocasionalmente, havia esse incômodo com o conteúdo das obras por parte de diretores não habituados à literatura, e que estava à disposição para conversar com eles sobre o conteúdo e o contexto dos textos vencedores. Desesperada, a gerente não queria ouvir, argumentando que eu deveria ter evitado a leitura de qualquer jeito, até tirando o microfone do escritor. Respondi que, se fosse para ser braço de censores, eu não serviria mais para o Sesc.

Havia outra diferença naquele dia: o coquetel do Prêmio, geralmente oferecido para o público presente na sessão, não seria mais realizado. Em seu lugar, decidiram fazer outro, fechado, numa pousada chique, para onde deveríamos levar os vencedores. Fui contra esse formato porque, justamente na celebração de 20 anos do projeto, viraríamos as costas para a plateia, mas era ordem superior e ponto. Voltado para apenas 100 pessoas, das quais cerca de 80 eram funcionários do Sesc, muitos dos quais viajaram a Paraty sem trabalho, como presente de fim de ano, o coquetel nababesco (ao custo de R$ 900 por pessoa, segundo me informaram) estava com um clima estranho. Não houve uma foto, um pronunciamento das chefias do Sesc para os cerca de 10 vencedores do Prêmio, novos e de outros anos. Estavam todos atônitos com a cena entre Zuza e Manel lida por Airton. Mas o pior estava por vir.

No dia seguinte, comecei a sofrer uma perseguição. Logo no café da manhã, a gerente começou uma sequência de acusações. Segundo ela, alguns fatores teriam me levado a permitir a leitura do romance: eu estaria pensando como escritor, e não como funcionário do Sesc; não ligava de perder o emprego pois tinha x anos de empresa e um bom FGTS. E a cereja do bolo: eu permiti a leitura do livro porque tenho “uma casa própria e um carro na garagem”. Foi difícil digerir o desjejum.

Ao longo do dia, praticamente todos os colegas do Sesc se afastaram de mim. Afinal, eu havia causado um constrangimento aos pobres diretores, que até retornariam mais cedo para o Rio, coitados. Uma das poucas conversas que tive foi com o chefe do setor de Comunicação, André Valle. Para ele, eu deveria esquecer “o meu passivo” (a experiência na área) e entender que o Sesc tem um dono que não gosta daqueles assuntos. Como se me desse uma grande dica, sugeriu que a gente fizesse uma pré-seleção na inscrição para que obras “como aquela” não passassem mais.

Ao retornar para o trabalho, meu colega de setor, também devidamente insuflado e temendo perder o emprego, veio agressivamente com as mesmas pedras (eu havia agido como autor etc.). Saí de férias logo em seguida. Novamente, tive vergonha de dizer ao Airton o que havia acontecido.

Ao retornar das piores férias que tive, em que fui acometido por uma insônia que me assolou por meses, a gerente me disse que haviam vasculhado a biografia de Airton, a fim de encontrar algum descumprimento do edital que valesse retirar o prêmio dele, e que sua circulação seria restrita em 2024. Em seguida, a coordenação do projeto iria mudar para Paraty, e seria criado um grupo de trabalho para realizar as mudanças do Prêmio Sesc, sendo que as comissões apontariam uma lista de obras, cuja seleção final seria feita por esse grupo. Caso não concordasse, eu poderia não participar. Já percebendo que estavam esvaziando o meu trabalho para a iminente demissão, me recusei, lembrando que o nome correto ali seria “grupo censor”. Dei ainda dois alertas para a gerente (que, posteriormente, também seria demitida): a Record não toparia participar do projeto dessa forma, e a repercussão externa seria muito negativa. Não deu outra.

Xilindró para os escribas

Durante dois meses evitei expor publicamente a minha demissão e suas circunstâncias, a fim de não ser criada uma bola de neve, atingindo o Sesc como um todo de forma injusta. Sou um fã da instituição, tendo acompanhado como as atividades fazem diferença na vida de tantas pessoas. A rede de bibliotecas oferece um serviço incrível, ainda que o BiblioSesc, de unidades volantes, esteja sucateado em diversos estados. Criamos o Arte da Palavra, maior circuito literário do país, ajustamos a revista Palavra para uso em escolas, ajudei na criação de inúmeros projetos pelo país com uma equipe dedicada e batalhadora. Vale dizer que o Sesc São Paulo, único Regional vocacionado para a Cultura, é uma das forças mais expressivas do que a instituição deveria ser em todo o país. Não por acaso, seus representantes na Flip ficaram alheios àquela celeuma: o saudoso Danilo Santos de Miranda, que sempre foi fã do Prêmio Sesc, devia estar se revirando no túmulo.

As inscrições do Prêmio 2024, previstas para início de janeiro, estavam suspensas até que o diretor-geral decidisse sobre as mudanças no projeto. Com o silêncio do Departamento Nacional sobre a edição 2024 do Prêmio (cujo edital estava pronto desde novembro/2023, já com a nova categoria Poesia), a Record soube do ocorrido e fez questionamentos que culminariam no fim da parceria. Conforme Rodrigo Lacerda já tornou público, em reunião para esclarecimentos a diretora Janaina Cunha disse que, por ela, “Airton e Henrique teriam saído presos da Flip”, causando espanto no editor. Ao que parece, a diretora não se dava conta do quão grave é, sobretudo hoje, explicitar a um parceiro externo de duas décadas o desejo de encarcerar artistas.

Houve repercussão grande em muitas mídias, e o caso se juntou à censura que o escritor Jeferson Tenório estava sofrendo por conta do seu romance O avesso da pele. Airton Souza, que jamais recebeu uma ligação do Sesc para pedido de desculpas ou esclarecimentos, viu seu sonho virar pesadelo. Conforme me relatou, ainda vem sendo boicotado pela instituição, que oficialmente nega o inegável, argumentando que o caso foi a preocupação com crianças e adolescentes da plateia – de uma programação adulta à noite na Flip. Todo censor está sempre protegendo as criancinhas.

O meio literário, em geral, se manifestou em solidariedade ao ocorrido, com a natural exceção de produtores e curadores temerosos de “se queimar com o Sesc”, uma vez que há relações de todo tipo atrás das verbas suntuosas da instituição. Mas o fato é que, após 20 anos consolidado como um dos mais importantes prêmios literários do país, e até com articulações internacionais que conseguimos fazer, o projeto foi manchado irreversivelmente pela visão míope e falta de escuta técnica de gestores para quem, como é prática em diversos Regionais, basta demitir o responsável. Aliás, se fôssemos falar em censura e demissões injustas do Sesc pelo país, precisaríamos de um outro texto.

Alteraram o Prêmio Sesc. Segundo o edital, o novo prêmio oferece R$ 30 mil aos vencedores – algo que, na prática, já existia, uma vez que eles recebiam cachês perfazendo mais ou menos esse valor ao longo do circuito. E a publicação será pela editora… Senac Rio, cujo único livro que pode ser chamado de literatura é um livro de crônicas de Gabriel Chalita.

Dar dinheiro para atrair inscrições e publicar numa edição da casa. As duas opções descartadas, há duas décadas, são a grande inovação. Para espanto de quem sabe ler, ainda fizeram uma alteração meio escondida no edital: as obras inscritas devem “ser para todos os públicos”, algo difícil de definir, mas cujo objetivo é simples de entender. Com isso, é possível eliminar oficialmente, em alguma etapa da seleção, livros cujo conteúdo possa agredir a família tradicional brasileira, mesmo ao custo da credibilidade do prêmio.

Novos caminhos

Ação do youtuber Felipe Neto contra censura na Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2019. (Fonte: Omelete.)
Ação do youtuber Felipe Neto contra censura na Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2019. (Fonte: Omelete.)

O caso do Prêmio Sesc, infelizmente, está longe de ser isolado. Quando vemos nomes como Ziraldo, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e tantos outros aparecendo na mídia por casos de tentativa de censura, precisamos acender um alerta. Sempre pensei que deve haver inúmeros casos não divulgados. Instituições, escolas públicas e privadas, e mesmo o ambiente familiar se tornaram arenas de uma difícil luta, onde o pouco (ou torto) entendimento sobre leitura vem definindo o que pode e o que não pode ser aceito como literatura.

Se esse problema afeta escritores e profissionais estabelecidos, pensei numa consequência desastrosa: uma geração de novos autores que, temendo a desclassificação em concursos literários, iriam evitar cenas, estéticas e técnicas literárias que causassem “polêmicas” nos seus livros. Por essas e outras que decidi, mesmo sem patrocínio, criar o Prêmio Caminhos de Literatura, em parceria com a editora Dublinense. A primeira característica está bem clara, ainda que estejamos falando do que deveria ser óbvio: os candidatos são totalmente livres para escrever e inscrever seus livros.

* Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É doutor em Letras pela PUC-Rio e curador de programações literárias. Foi um dos idealizadores do Prêmio Sesc de Literatura, do circuito nacional Arte da Palavra e outros projetos. Publicou 24 livros, entre poesia, crônica, romance, infantil e juvenil, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. Seu romance O próximo da fila (Record) foi adotado em escolas de todo o país e publicado na França. É curador do Prêmio Pallas e idealizador do Prêmio Caminhos de Literatura, além de colunista do portal PublishNews, onde escreve sobre a vida literária.
Dossiê
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SIAMESES OPOSTOS: CINEMA PORNÔ/ERÓTICO E DITADURA

Pornô? Erótico? Pornô/erótico?

Desejo, erotismo, obscenidade, pornografia e seus correlatos: dimensão humana fundamental – e também assunto (lucro) dos produtos na indústria cultural, seja pelo escracho ou pelo silêncio, enfrentando ou reforçando a moral. O Cinema não fica de fora desse panorama paradoxal e oferece um cenário extremamente particular nos anos 1970, convidando-nos a assistir ao flerte ambíguo entre alguns regimes autoritários e o cinema pornô/erótico. Traz uma faca de dois gumes: o campo permeia ideais regulatórios em meio à exploração da sexualidade e o transgredir acaba por se interligar à moral.

De início, vale comentar a velha dicotomia entre pornografia e erotismo, discussão sempre efervescente. Maria Filomena Gregori faz uma brilhante passagem por algumas dessas discussões no início de seu livro Prazeres Perigosos: Erotismo, gênero e limites da sexualidade (2004), na qual explica sua opção pelo uso das nomenclaturas de maneira indistinta, “seguindo a orientação dos estudiosos da tradição de escritos e imagens eróticas desde o Renascimento” (p. 30), apesar do senso comum fazer essa distinção. Gregori se refere ao uso corrente que relaciona o erotismo à literatura libertina do século XVIII, insinuando reflexões da filosofia e das artes e remetendo ao erudito, enquanto a pornografia seria a “contraparte empobrecida”, ligada à produção mercadológica e vulgar.

Segundo Freire (2000, p. 70), estaria em pauta também a questão da explicitude: o erotismo seria onde “o verbo nunca se faz carne”, se deixa e não se deixa ver, enquanto a pornografia pode mostrar… tudo. Ou tudo que o âmbito público comporta, chamando a atenção para outra dualidade, com a esfera privada: há autores que caracterizam a pornografia como permanentemente marginal, legitimando-se justamente em não se pretender artística. Menos sobre como e mais sobre onde, seu aspecto transgressor se daria justamente por cruzar os limites do doméstico, sem jamais superar o tabu (Ayla, 2013). Por outro lado, os grandes mestres do erotismo, como lembra Eliane Robert Moraes, eram também muito explícitos (A parte maldita brasileira: Literatura, excesso e erotismo, 2024). Onde e por que se traça o corte?

De maneira geral, essas categorias discursivas dependem de onde se faz o discurso, por quem e sob quais motivações, especialmente em se tratando da produção de cultura material e das estratégias mercadológicas aí imbricadas. Um mesmo cartaz ou filme poderia receber diferentes alcunhas se visto no Cine Íris[1] ou mencionado em um trabalho acadêmico, por exemplo. A teia de sentidos é densa e tensa, e muitos pesquisadores evitam a distinção entre pornografia e erotismo, a fim de desviar da legitimação os gostos e espaços da classe dominante, se tomamos uma visão bourdiana. Em vez de relegar a pornografia e seu público ao banal e sem crítica, buscam “tomá-la como o resultado de um longo percurso histórico, [o que] significa inseri-la na trama das representações do erotismo e da sensualidade no Ocidente sem deixar de reconhecer as especificidades que a particularizam e diferenciam de seus antecessores” (Maçaranduba, 2017, p.9). “A pornografia é o erotismo dos outros”, diz a famosa frase de autoria insegura, atribuída em suas variações a André Breton, Georges Bataille, Millôr Fernandes, entre outros.

Aqui, elegemos a denominação “pornô/erótico”, marcada pela barra, como maneira de sustentar a problematização e evitar reduzir as produções cinematográficas a uma ou outra classificação. Mais vale uma mirada ampla sobre as produções que tatearam a sexualidade – comercialmente ou não, explicitamente ou não – para pensar a relação dessas com a censura vigente então (e atualmente, com novas facetas) na América do Sul e no restante do globo.

Antes e durante a pornochanchada brasileira

A década de 1970 é marcada por dicotomias. Enquanto uma onda de liberação dos costumes se mostrava na militância organizada e nos movimentos artísticos e culturais, ditaduras violentas se consolidavam em vários países. No Brasil, o milagre econômico, a televisão e uma vitória na Copa do Mundo disfarçavam as atrocidades do regime instaurado em 1964 e suas censuras, mas grupos de teatro, música e cinema não deixavam o moralismo passar totalmente impune. É justamente aí que a exploração do pornô/erótico nas telas ganha vigor, amparada por uma tendência internacional e pelo interesse do próprio Estado em lucrar com esse tipo de produção.

O cinema latino-americano passa a retratar suas contradições nacionais com mais força nessa época: contradições individuais, daqueles atormentados pelos regimes militares, em meio à juventude transgressora; contradições políticas dos próprios regimes em suas permissões e proibições; contrastes nas famílias latino-americanas em seu encontro com o número crescente de produções e produtos importados – o paradoxo, tônica do erotismo, é também a tônica do período. Por alto, podemos dizer que persistem filmes questionadores e guiados por temáticas sociais, muitos com tom mais intimista, em relação à pegada épica da década anterior. Mas, humor, paródia e ironia também tomam papéis fundamentais, na tentativa de aproximar o universo popular das telonas.

Na Europa, esses elementos são observados no cinema pornô/erótico desde meados dos anos 1950, quando despontam as commedias all’italiana, com seus personagens típicos como o “malandro” e o “cornud” (Couto, 2023). Essas comédias populares, que viriam a ser sucesso mundial até meados dos anos 1970, consistiam em “lidar com os termos cômicos, engraçados, irônicos e bem-humorados em relação a assuntos que são bastante dramáticos”. Foi como explicou Mario Monicelli, um dos diretores-chave do gênero, completando: “é isso que distingue a comédia italiana de todas as outras comédias” (Monicelli, 1999, tradução nossa). E claro, em meio ao riso e ao drama, circulavam as muitas cenas eróticas all’italiana.

A Espanha não ficou de fora desse tipo de produção nem durante a ditadura franquista (1936-1975), mas foi nos anos de abertura, em meados da década de 1970 que o cine de destape espanhol inundou o país com filmes de humor grosseiro e absurdo, referências a personagens populares e paródias sociais. Eram trabalhos permeados por nudez, conteúdos sexuais e eróticos, baratos para produzir e lucrativos, que tiveram sua circulação permitida sob a classificação “S”[2], a partir da aprovação do então presidente Adolfo Suárez.

As pornochanchadas brasileiras são diretamente influenciadas por essas produções italianas e espanholas, tanto nos conteúdos quanto nos tratamentos gráficos dos cartazes, escolhas de cenário, figurinos etc. Inegável também que os três países de língua latina em algum momento banharam-se do Golden Age of Porn (1969-1984), época em que a pornografia comercial estadunidense alcança níveis de distribuição assombrosos. Com as primeiras exibições de sexo explícito nas telas, os filmes pornô/eróticos norte-americanos se espalharam pelo mundo e atraíram a atenção positiva da mídia, do público e até de críticos em geral. A circulação dos filmes tornou-se mais fácil depois de uma decisão da Suprema Corte dos EUA relaxando a definição de “obscenidade”, dando espaço não só para produções consideradas “intelectualizadas”, como de Andy Warhol e Bernardo Bertolucci, mas para filmes bastante comerciais.

Garganta Profunda (1973), dirigido por Gerard Damiano e estrelado pela atriz Linda Lovelace, foi um desses sucessos de bilheteria e tornou-se símbolo da “era dourada” sob o rótulo de “pornô chic” (Paasonen; Saarenmaa, 2017). Anos depois, Lovelace revelou que tinha sido obrigada pelo então namorado a participar do filme e a submeter-se a atos sexuais indesejados. O relato brutal de Linda traz à tona a faceta mais perversa do mercado pornográfico, não raro escondida sob o “entretenimento” exibido nas telas (Ribeiro, 2022).

Cartaz original de autoria desconhecida para o filme Garganta Profunda (1973), dirigido por Gerard Damiano. Fonte: Wikipedia.
Cartaz original de autoria desconhecida para o filme Garganta Profunda (1973), dirigido por Gerard Damiano. Fonte: Wikipedia.

A nomenclatura “pornochanchada” surge fazendo referência às tradicionais chanchadas brasileiras dos anos 1940 e 1950, nas quais problemas do cotidiano popular eram tratados com comédia e ironia. Esse tipo de filme teve forte influência das comédias italianas em episódios, fonte da qual também beberia o sucessor mais “ousado” – ainda que “pornô” tenha sido adicionado como mero chamariz, prometendo algo que, para os menos conservadores, quiçá nem se cumprisse nas telas. O rótulo “pornochanchada” foi uma mera “expressão da liberação dos costumes da época. Uma tematização da ‘revolução sexual à brasileira’” (Abreu, 1996, p. 75). Também à brasileira, ficou escrachado o falso moralismo: se a pornochanchada fez sucesso, não foi por corromper o respeitável público, mas por dar rosto e corpo ao que já pairava no imaginário predominantemente normativo do público.

Um olhar cuidadoso nota que a tal “pornochanchada” se caracteriza menos como gênero cinematográfico, estanque em sua definição, e mais como movimento. As pornochanchadas se aproximam não necessariamente pela comédia ou pela pornografia, mas por uma maneira particular de fazer cinema. Com a censura baforando no cangote de um lado e as produções estrangeiras de outro, surgiram os “roteiristas de suvaco”, andando com suas ideias em busca de um produtor que os financiaria do próprio bolso. Essas produções artesanais e comunitárias tiveram seu principal reduto na Boca do Lixo, em São Paulo, onde trabalhadores da indústria do cinema consolidaram uma espécie de Bollywood pornô/erótica.

O baixo orçamento, os títulos chamativos e a provocação com a obscenidade para atrair bilheteria, tudo contribuiu para uma homogeneização das produções em questão. Foi a legitimação do gosto dominante, no entanto, que determinou quais filmes teriam cravado o rótulo em geral pejorativo de “pornochanchada”. Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), celebração do livro de Jorge Amado ao som de Chico Buarque, por exemplo, ocupa um lugar mais “ao sol”, considerado o clássico do cinema brasileiro que de fato é. Poderia, entretanto, ser lido também à luz de seu tempo: mescla de comédia e erotismo, bem explorada no cartaz também clássico que remete a outros títulos da pornochanchada. Na série Boca do Lixo: A Bollywood Brasileira (2011), o ator Adriano Stuart menciona o filme de Bruno Barreto seguido de algo como “me perdoem, mas aquilo é pornochanchada!”. Não se trata de qualificar e classificar um ou outro filme, mas justamente de refletir sobre o reducionismo que assola certas nomenclaturas e restringe novas leituras.

Cartaz de Benício para o filme Dona Flor e seus Dois Maridos (1973), dirigido por Bruno Barreto. Fonte: Cinemateca Brasileira.
Cartaz de Benício para o filme Dona Flor e seus Dois Maridos (1973), dirigido por Bruno Barreto. Fonte: Cinemateca Brasileira.

Benício, nome artístico de José Luiz Benício da Fonseca, foi o responsável por esse e muitos outros pôsteres de divulgação cinematográfica na época, consagrando-se como principal criador dos cartazes da pornochanchada – muitas vezes mais “bem-trabalhados” que os próprios filmes. Utilizando guache, fotografias e desenhos, sua linguagem visual, sempre atravessada de erotismo, serviu muito bem à divulgação intensa das películas e acabou por sintetizar e reunir o “gênero” graficamente. Benício é um dos poucos artistas gráficos do período que recebem crédito pela autoria dos cartazes fílmicos.

Outro cartaz que se tornou símbolo internacional e marcou o início da carreira da protagonista, Vera Fischer, foi o de A Super Fêmea (1973), filme de Aníbal Massaini Neto. Os cabelos esvoaçantes e o olhar penetrante da atriz miram o espectador e fazem a pin-up à brasileira quase saltar do fundo branco. Elementos reduzidos contrastam com a ilustração entre realista e kitsch, carregada em sombra abaixo do título colorido e irregular, no estilo de histórias em quadrinhos. No título mesmo se vê a busca pela insinuação e pelas curvas, ingredientes que também valiam para a figura feminina desse e de outros cartazes. Benício foi “direto ao ponto”, fazendo de Vera, em sua caricata feminilidade, objeto inevitável do olhar.

Cartaz de Benício para o filme A Super Fêmea (1973), dirigido por Aníbal Massaini Neto. Fonte: Cinemateca Brasileira.
Cartaz de Benício para o filme A Super Fêmea (1973), dirigido por Aníbal Massaini Neto. Fonte: Cinemateca Brasileira.

Outro cartaz interessante, de um filme bem menos aclamado e até “malvisto”, é o de As Taradas Atacam (1978), dirigido por Carlos Mossy. Mulheres nuas, com poses insinuantes e novamente como objeto do olhar, enquanto a direção dos filmes é majoritariamente assinada por homens. Aqui, o personagem masculino aparece de maneira central, servindo de espelho para o espectador, em clássico retrato da orgia de um homem só (a julgar por sua expressão, a fantasia é, no mínimo, inquietante).

Cartaz de Benício para o filme As Taradas Atacam (1973), dirigido por Carlos Mossy. Fonte: Cinemateca Brasileira.
Cartaz de Benício para o filme As Taradas Atacam (1973), dirigido por Carlos Mossy. Fonte: Cinemateca Brasileira.

A Embrafilme, principal órgão de regulação e financiamento do cinema brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, nasceu em 1969 e tangibilizou ainda mais a dualidade das produções pornô/eróticas com o Estado, além de sedimentar essa legitimação ambígua. Havia uma docilização para com o órgão: era preciso driblar possíveis censuras, sem deixar de oferecer o “segredo do sucesso” da pornochanchada – leia-se, o sexo. Sacanagem condenada, mas financiada. Ainda assim, a Embrafilme reservou seus recursos principalmente a filmes com polêmicas apaziguadas, seja pela legitimidade conferida pela literatura, convocando atrizes respeitadas pelo grande público ou vislumbrando a possibilidade de destaque internacional. Dessa maneira, a pornochanchada acabou não perdendo seu caráter marginal de todo, circulando pelas beiradas do regime, ainda que não o combatesse diretamente.

O crivo da Embrafilme, tanto para censura quanto para a distribuição de financiamentos, é parte do retrato das “irmãs gêmeas de comportamentos opostos”, na expressão do crítico brasileiro José Carlos Avellar, que nos demos ao luxo de adaptar para o título, a partir da leitura de Katharine Trajano. A relação de “siameses opostos” é cerne das produções eróticas paródicas em meio a ditaduras: “repetição em termos grosseiros dos ideais do poder, e também (…) forma de oposição ao apelo para os bons modos contidos nas mensagens produzidas pelo governo” (Avellar, 1980, p. 70 citado por Trajano, 2019, p.8).

As sexi comedias argentinas

Partindo para a Argentina, as sexi comedias marcaram a última ditadura do país (1976-1983) com seus roteiros eróticos, cômicos e esteriotipados. Atrizes sedutoras no papel de amantes, esposas traídas ou infiéis, contracenavam com garanhões “malandros” e irresistíveis. Os cartazes não deixam mentir: com influências hollywoodianas e do teatro de revista, como no caso brasileiro, são geralmente dominados por uma mulher seminua a ser observada por outros personagens e pelo próprio espectador. No cartaz de Los Hombres Piensan Solo En Eso (1976), a dupla cômica Alberto Almedo e Jorge Porcel segura as mãos da atriz Susana Gimenez, em uma versão mais perturbadora do cartaz de seu contemporâneo brasileiro já mencionado, Dona Flor e seus Dois Maridos. A figura feminina no centro, cores vibrantes, tipografia brincalhona e chamativa são alguns dos elementos que se repetem nos cartazes satíricos e populares das sexi comedias – “amador” também é adjetivo comum.

Cartaz de autoria desconhecida para Los Hombres Piensan Solo En Eso (1976), dirigido por Enrique Cahen Salaberry. Fonte: Cine Nacional.
Cartaz de autoria desconhecida para Los Hombres Piensan Solo En Eso (1976), dirigido por Enrique Cahen Salaberry. Fonte: Cine Nacional.

A legislação também se alinhava ao caso brasileiro e delineava a duplicidade do regime em relação a essas produções: ao passo que fomentava o Cinema nacional e financiava extensivamente as sexi comedias, mantinha um discurso agressivo de repressão ao sexo e à “imoralidade”. Em 1971, o Decreto-Lei n° 20.170 traça cortes orçamentários a películas que abordassem sexo e drogas experimentais; em 1978, um Decreto-Lei da Comisión Asesora Legislativa (CAL) reforça o desenvolvimento da cinematografia como “um meio positivo de educação para a comunidade e de difusão da cultura nacional no país e no estrangeiro” (D’Antonio, 2015, p. 915-918). No mesmo período, as sexi comedias representavam 17% da produção cinematográfica argentina durante o Proceso de Reorganización Nacional (PRN) – como era chamada por seus líderes essa última fase da ditadura – e apenas três foram censuradas, ainda que houvessem órgãos específicos criando listas de atores ou diretores considerados perigosos e obscenos.

As sexi comedias não se caracterizavam propriamente como propaganda governamental, no estilo da Alemanha Nazista, mas ensaiavam uma relação cortês com o Estado (Avellar, 1980). Por vezes um sorriso amarelo e um engolir seco, quando desafiavam a censura com temas homoeróticos, por exemplo, mas jamais o cuspir da bebida no anfitrião – aquele que “gentilmente” financiava a festa e acabava por justificar a existência mesma das sexi comedias na época. Sem deixar de brindar o público com uma ansiada quebra de tensão cotidiana (“pão e circo”), esses filmes eram também “forma de mascarar a brutalidade do regime – servindo, então, a um suporte ideológico” (Avellar, 1980, p. 7). Quer em Buenos Aires ou na Boca do Lixo, lembremos que as obras desse período apresentam, em diversas manifestações culturais, “contradições internas às próprias concepções estéticas engendradas pela Censura” (Novaes, 1980, p. 3) e refletem, embora nem sempre claramente, o pensamento desafiador, mas também o pensamento dominante.

Não se pode negar os efeitos dos filmes pornô/eróticos em nossos vecinos: assim como no Brasil, foi aquecida a discussão sobre os vínculos entre sexo e política. No final dos anos 1970, o nome destape, trazido da Espanha, se populariza na Argentina e ganha sentido para além das sexi comedias: contamina revistas, televisão e outros meios de comunicação que acendem os questionamentos sobre as relações entre censura, cinema, erotismo e Estado. Como dizia a revista porteña Somos, a única diferença entre o destape latino-americano e o espanhol era a tarja, que ainda cobria as mulheres argentinas – timidez quiçá compensada pelo tom mais grosseiro nas terras do Sul. As afinidades entre “os destapes” eram facilmente reconhecíveis, temáticas e formais, apesar das produções espanholas jamais haverem circulado nos cinemas da Argentina (Manzano, 2019).

Novamente caminhando em passo similar às coletâneas brasileiras, as sexi comedias são progressivamente divulgadas no exterior, na tentativa de distorcer ou distrair o olhar internacional. Como poderiam as cenas hilárias e coloridas, tão libertárias, serem filmadas sobre os porões de tortura? Se havia denúncia, essa costumava ser menos explícita do que as cenas picantes.

Permanece, então, a crítica de que o destape, num geral, seria uma forma de meramente “tapar” problemas sociais, através de retratos sexistas e moralistas. Continuam a sobrar dualidades: se a nudez das mulheres foi parcialmente permitida pelos censores durante a década de 1970 e principalmente nos filmes de 1980, não foi assim nos cartazes. A mulher manteve-se objeto chamariz do fetiche normativo enquanto o falo era “protegido” dos espectadores, um dos motivos pelos quais muitas teóricas feministas não inserem a maioria das sexi comedias e das pornochanchadas no âmbito dos filmes pornô “libertários”. A estética “amadora” foi outro alvo de comentários duais, sendo assim chamada ora de maneira pejorativa, ora para ressaltar a qualidade proposital dessas representações “toscas”:

Quando a câmera estica o olho para ver os seios de uma secretária por trás de um decote amplo, (…) não é a possível excitação provocada pela imagem do peito meio coberto, ou da calcinha entrevista. O que importa é a grosseria da construção da cena. O sexo de dimensões imensas. (…) E a visão ruim mesmo, o plano mal construído, a imagem indefinida por um erro de exposição ou por um defeito na lente. (Avellar, 1980, p. 77)

Sem necessariamente julgar as qualidades éticas ou estéticas das sexi comedias, antes é preciso assumir seu valor de testemunho histórico. São registros tangíveis de um período conturbado e fértil, atualizados no cinema pornô/erótico de outros países latinos até hoje e nas inúmeras pesquisas acadêmicas que vêm sendo desenvolvidas sobre o assunto. Se são “hipócritas” de essência, são também reflexo da hipocrisia inerente ao período de seu nascimento.

O apagão chileno

Com Brasil e Argentina já mergulhados em autoritarismo, em um contexto de Guerra Fria e Revolução Cubana, militares chilenos decidem abandonar sua neutralidade e intervir diretamente nas instituições democráticas do país andino. O Palácio Presidencial La Moneda é bombardeado no dia 11 de setembro de 1973, culminando na saída do então presidente Salvador Allende e na tomada de poder do general Augusto Pinochet.

Nos anos que se seguem, as políticas dos Chicago Boys, grupo de economistas chilenos adeptos das ideias do professor Milton Friedman, da Universidade de Chicago, se instauram no país e transformam-no em um “grande experimento do neoliberalismo econômico no século XX” (Memória e Resistência/USP, 2017). A tática da “terra arrasada” foi sanguinária ao ponto de solapar um sentido de identidade cultural e coletiva para a população chilena. A perseguição e tortura aos opositores do regime e o forte autoritarismo se consolidaram juntamente ao “reforçamento da ordem tradicional no que tange ao gênero e à sexualidade, expressado na difusão e defesa do modelo heterossexual, da família nucelar e dos valores conservadores e católicos” (D’Antonio; Eidelman, 2017, p.3).

O Chile, porém, não se eximiu totalmente da liberação dos costumes, ainda que muitas vezes normativa, característica dos anos 1970: pipocaram nos centros urbanos vários estabelecimentos na linha dos cafés con piernas, lugares que até hoje atraem homens em Santiago ou Valparaíso para tomar drinks caros servidos por mulheres de mini saia. Também não eram poucos os clubes de striptease, saunas gays e cabarés. O país hospeda convívio e confronto comuns a vários países latino-americanos, onde um cenário “subversivo” ao mesmo tempo choca e se mescla ao rígido controle da moral e dos costumes.

No caso do Chile, esse controle foi especialmente rigoroso com as temáticas ligadas à sexualidade e ao sexo, já duramente reguladas no âmbito cinematográfico desde o início do século XX, quando a Liga das Damas Chilenas avaliava filmes e opinava nas proibições. As formas de vigilância e censura foram se modificando e persistindo ao longo do século: no âmbito estatal, através do Código Penal e das normas e instituições regulamentadoras (eram muitas para fiscalizar o Cinema), bem como por meio de estratégias agressivas de normatização mascaradas como conquista de direitos. É o caso das cirurgias de redesignação sexual realizadas nos anos 1970 em hospitais públicos de algumas capitais, sob a vista grossa do Estado. Mais do que a liberação dos costumes, esse “deslize de permissividade” ilustra a preocupação do regime em “normalizar as sexualidades ambíguas e ressituar essas pessoas no marco de um dos gêneros aceitos socialmente” (D’Antonio; Eidelman, 2017, p. 22). Os siameses se embrenham.

Um parêntese para esse “deslize de permissividade” é o caso de Marcia Alejandra: a legislação chilena deixava um “vazio legal” no tema das intervenções cirúrgicas, o que acabou por viabilizar a realização, caso a caso, de cirurgias de redesignação sexual nos anos 1970. Marcia Alejandra foi a primeira. Não era apenas uma brecha: além de extensas coberturas midiáticas sensacionalistas, a Sociedad Chilena de Sexología Antropológica endossou as cirurgias (jamais falando em transsexualidade, mas em “mudança de sexo”) como via para resolver a “indefinição sexual” e os conflitos legais “causados” por pessoas que não se enquadrassem no esquema binário de gênero (Edwards, 2016). Como explicar que um regime ditatorial dos mais violentos da América Latina, em uma época em que coletivos heterodesviantes eram praticamente inexistentes no país, tenha apoiado estas cirurgias? A indefinição, mais do que qualquer inversão, perturba a ordem. Se o Estado se valeu das cirurgias para reforçar sua lógica normativa, Marcia resistiu “(…) com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes” (Derrida, Roudinesco; 2004, p. 9). Virou vedette, foi ao Egito, se apaixonou pelas canções de Maria Bethânia, abriu um então raríssimo espaço de inteligibilidade para pessoas trans, ainda que pela via medicalizante do regime. Como escreveu Pedro Lemebel sobre a amiga: “Para mis verdes abriles de mariquilla poblador, la Marcia Alejandra era casi Marilyn Monroe, casi Liz Taylor, casi Eva Perón, casi la Venus marica del norte, casi la virgen cola de las arenas que ocupaba las portadas de los diarios, después de que la ciencia médica de un hachazo le había cortado el sobrante masculino, pero le dejó el casi” (Lemebel, 2003, p. 152).

A julgar pelos exemplos argentino e brasileiro, poderia se imaginar que o momento de liberação sexual teria ressonância na tela dos cinemas chilenos, fazendo frente ao passo que baila com a censura. Os filmes nacionais teriam sido também cabos de guerra entre polos de uma mesma corda? A discussão sequer pôde tomar forma no contexto do Chile: o “apagão cultural” foi implementado com tamanha violência no país que basicamente minou a produção cinematográfica local na década de 1970 e o “Novo Cinema Chileno” dos anos anteriores ao golpe, quando estava no poder a Unidade Popular. Com a ditadura de Segurança Nacional instaurada, produzir filmes no Chile tornou-se tarefa extremamente árdua de maneira geral, que dirá no caso de filmes eróticos ou pornográficos. Diferindo dos vizinhos do Cone Sul, o cinema pornô/erótico chileno não foi ferramenta para distrair do cotidiano opressivo ou instrumento para promover os interesses morais do governo – autores como Jacqueline Mouesca (1992) e a já citada historiadora D’Antonio (2017) sugerem que houve um movimento radical e bastante eficaz de eliminação do Cinema.

Vale comentar que durante o governo da Unidade Popular (1969-1973) houve grande fomento à produção cinematográfica nacional, de cunho altamente político-social, em concomitância à censura de filmes estrangeiros que promoviam ideais capitalistas e burgueses. No entanto, conteúdos homoeróticos ou considerados demasiado obscenos eram também motivações explícitas para a censura das películas importadas. Vê-se que os temas sexuais no Cinema foram alvo da censura sob diferentes governos – sem relativizar as atrocidades da ditadura militar, podemos pensar que a década de 1970 ilustra bem como vertentes políticas radicalmente diferentes podem acabar se aproximando em alguns de seus discursos proibitivos.

O efeito do reforçamento das políticas sexuais do regime militar se fez profundo na sociedade chilena. O Cinema resistiu com o pouquíssimo que se alcançava, ao produzir localmente e através do “cinema chileno de exílio”, feito fora do país por chilenos exilados, como o nome entrega. Já o cinema pornô/erótico essencialmente se extingue e só vem a desabrochar nos anos 2000. Nos anos 1970, de produção local com algum cunho erótico restam apenas programas como Jappening con Ja (1978), exibido inicialmente pela Televisão Nacional, mostrando cenas de flerte entre um chefe bonitão e sua secretária sedutora.

Devido ao “atraso” de décadas, o cinema pornô/erótico chileno tem sua “era de ouro” apenas no início do século XXI e acaba por resgatar estética e temáticas das sexi comedias e pornochanchadas dos anos 1970. Valendo-se do humor e “escracho” típicos das produções latino-americanas, o pioneiro Leonardo Barrera filma em 2000 Historias de una Adolescente Ninfomaníaca e Hanito, el Genio del Placer. São considerados os primeiros filmes pornô/eróticos chilenos, ou ao menos os primeiros filmes do gênero a serem aprovados pelos órgãos de regulamentação e vendidos em sex shops ou locadoras (o primeiro cinema a exibir pornô, Cine Apolo, só chegaria em Santiago em 2001).

O cartaz de Hanito, el Genio del Placer é um ótimo exemplo do resgate da época-não-vivida pelo país do Pacífico: a figura central feminina “sendo vista”, título chamativo e certo exagero de elementos gráficos (destaque para o “selo” da bandeira do Chile e a palavra “CHILENO”, ressaltando a produção nacional). Outros cartazes exibiam ilustrações, títulos com grafismos exagerados e, de uma maneira geral, a estética improvisada ou “amadora” inconfundível das sexi comedias argentinas e pornochanchadas brasileiras – agora ainda mais improvisada, como se verifica pela dificuldade de encontrar uma imagem do cartaz em alta resolução. A maioria desses filmes chilenos foi feita com baixo financiamento e ajuda de amigos, não contando com o apoio do Estado como seus antecessores. Já o retrato cômico das mudanças sociais de seu tempo (propositalmente ou não) permanece visível como nas produções de trinta anos antes. Mesmo que muitos considerem “alienada” toda sorte de produções do gênero, o distanciamento histórico evidencia a possibilidade de ler alguma carga de reflexão sobre o período histórico e político da época.

Cartaz de autoria desconhecida para Hanito, El Genio Del Placer, dirigido por Leonardo Barrera. Fonte: Escáner Cultural.
Cartaz de autoria desconhecida para Hanito, El Genio Del Placer, dirigido por Leonardo Barrera. Fonte: Escáner Cultural.

As “irmãs gêmeas de comportamentos opostos” afagam e enforcam: se por um lado a última década trouxe importantes conquistas no campo dos direitos civis para algumas vivências não hegemônicas, foi marcada também por um avassalador avanço do conservadorismo em nível nacional e global, institucionalizado pela eleição de governantes de extrema-direita e marcado por tentativas de apagão cultural e implementação de medidas autoritárias e de censura que remetem às ditaduras militares do último século.

O cinema pornô/erótico dos anos 1970, bem como seus cartazes, conserva algo de resistência ao autoritarismo, sem perder seu status de ferramenta poderosa de controle de massa a serviço dos mesmos regimes autoritários que critica. A pornochanchada sintetiza muitas dicotomias que marcaram o período e até hoje se fazem sentir no nosso país tropical: quente, bem-humorado, permissivo; assolado pelo autoritarismo e pela busca incessante de agradar ao público internacional. Não se trata de crucificar os filmes, tampouco de relevar seus aspectos normativos, machistas e propagandistas, mas de tomar o paradoxo como modo de pensamento e construção do mundo. Lançar um olhar cuidadoso (crítico e atento) sob e sobre o emaranhado que envolve e move o cinema pornô/erótico dos anos 1970 até hoje é tentativa de refletir sobre os “siameses opostos” do presente e questionar a herança maldita e sorrateira das ditaduras, sessenta anos após o golpe militar – como a resistência, a herança pode ser encontrada nos lugares mais insuspeitados. A ponderação sempre arrisca resvalar para a covardia, mas aqui buscamos apenas traçar um primeiro panorama: “essa aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras” (Rodrigues, 1992, p. 223).

* Catarina Lara Resende é graduada em Artes & Design pela PUC-Rio e mestranda em Teoria da Literatura na Universidade do Estado Rio de Janeiro (UERJ). É professora, tradutora, escritora e já colaborou em veículos como Revista Prumo, Ruído Manifesto e Editora Ficticia.
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Notas
[1] “O Cine-Theatro Íris é o cinema mais antigo do Rio em atividade. Inaugurado em 1909, o edifício centenário que fica na Rua da Carioca, 49, no Centro, sediava espetáculos de teatro de revista. Em 1985, decidiu mesclar a exibição de filmes pornográficos explícitos e obras de ação e no ano seguinte adotou de vez a veiculação de conteúdo adulto e inseriu shows de striptease” (Verissimo, 2018).

[2] “Se adverte ao público que este filme por sua temática ou conteúdo pode ferir a sensibilidade do espectador”, segundo a Junta de Clasificación da Espanha. A letra S se referia primeiramente à Sensibilidade, porém rapidamente ficou associada à palavra sexo pelo público, e permitiu que filmes pornô entrassem no circuito mainstream de cinemas (Barker, 2018).
Dossiê
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IMPRENSA ALTERNATIVA NA DITADURA BRASILEIRA: O CASO CHANACOMCHANA

Em 1980, José Wilson Richetti assumiu a delegacia da polícia do centro da cidade de São Paulo. O policial civil, que ganhou, posteriormente, a fama de ser um dos mais cruéis agentes do regime ditatorial brasileiro, foi classificado pelo colunista da Folha de S. Paulo, Vicente Vilardaga, em texto publicado em 20 de junho de 2024, como “um preconceituoso empedernido que posava de paladino antiaids, que tentou limpar a cidade de tudo que fosse considerado por ele como ‘ofensivo à família brasileira’ e atentasse contra os ‘bons costumes’”. No mesmo ano em que toma posse do cargo, em 15 de novembro, instaura uma ação que ficou conhecida como “Operação Sapatão”. O objetivo era prender o maior número de mulheres lésbicas possível, agindo principalmente nos bares que costumavam frequentar, cujos nomes eram Cachação, Bexiguinha e Ferro’s Bar. Os grupos Terra Maria, Ação Lésbico Feminista e Eros divulgaram e distribuíram um panfleto datilografado, registrando a perseguição da ditadura contra as lésbicas de São Paulo:

Sábado, dia 15 de novembro de 1980, por volta das 23 horas, entrou novamente em ação o aparato repressivo comandado pelo delegado Richetti.

Dessa vez o alvo das incursões noturnas de nossa polícia foram os bares Cachação, Ferro’s Bar e Bexiguinha. As mulheres que lá se encontravam, munidas de todos os documentos, inclusive de carteira profissional, foram levadas indiscriminadamente sob o seguinte argumento:

“VOCÊ É SAPATÃO”.

Na 2ª delegacia de polícia foi constatado que os policiais recebiam dinheiro para libertarem as pessoas, sendo que aquelas que não o possuíam lá permaneceram. Estamos novamente às voltas com a ação violenta da polícia, ação essa que outra vez ficará impune no que diz respeito às autoridades.

Denunciamos neste documento esta impunidade e repudiamos tais atos. Neste sentido, conclamamos a população a se solidarizar conosco;

“PELA LIVRE OPÇÃO SEXUAL”
“PELO LIVRE DIREITO DE IR E VIR”
“CONTRA A REPRESSÃO SEXUAL”
“CONTRA A REPRESSÃO POLICIAL”GRUPOS
Terra Maria
AÇÃO LF
EROS
Panfleto datilografado dos grupos Terra Maria, Ação LF e Eros. Fonte: Acervo Lésbico Brasileiro.
Panfleto datilografado dos grupos Terra Maria, Ação LF e Eros. Fonte: Acervo Lésbico Brasileiro.
“Operação Sapatão”, matéria assinada por Osmar Cupini Júnior no jornal Repórter, número 37, em janeiro de 1981.
“Operação Sapatão”, matéria assinada por Osmar Cupini Júnior no jornal Repórter, número 37, em janeiro de 1981.

O “Ação Lésbico Feminista”, que assina o panfleto de denúncia, era uma célula do grupo SOMOS-SP (Grupo de Afirmação Homossexual de São Paulo), que foi fundado, inicialmente, a partir da criação do jornal Lampião da Esquina (1978 – 1981). O Lampião nasceu em meio ao cenário da imprensa alternativa no final dos anos 1970, no contexto do processo de abertura política e do enfraquecimento da censura imposta, durante a ditadura militar, no Brasil. Entre seus editores e colaboradores estavam jornalistas como Adão Acosta, Aguinaldo Silva, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt, Gasparino da Matta, João Antônio Mascarenhas, o escritor João Silvério Trevisan e o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet. O ano de criação do Somos e do Lampião da Esquina, 1978, é considerado, na historiografia do movimento LGBTQIAPN+ no Brasil, o marco canônico do início dos movimentos políticos pela liberação sexual no nosso país. O Lampião foi lançado mais precisamente em abril daquele ano e, de acordo com Carlos Eduardo Figari, no texto intitulado “Somos, grupo”, do Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe:

Concomitantemente, no mesmo mês de abril, realizava-se em São Paulo a Semana do Movimento da Convergência Socialista, organizada pela revista Versus. Com a pretensão de assentar as bases para a fundação de um partido socialista, realizavam-se discussões que iam desde a anistia e uma futura Constituinte até a imprensa alternativa. Um setor da organização não via com bons olhos a inclusão da questão homossexual na agenda, pois achava que de alguma maneira isso afastaria a classe operária. Por essa razão, foi descartado o convite ao jornal Lampião. Isso gerou uma moção de protesto e um vivo debate sobre a questão. Um grupo mais organizado de homossexuais participou da discussão, chegando-se afinal a um acordo sobre o apoio às “minorias”, então enumeradas como: mulheres, negros, índios e homossexuais. Essa participação em uma discussão sobre a posição da homossexualidade no contexto da “luta maior” colocou a questão homossexual na arena do debate político e motivou o grupo a prosseguir com a discussão.

A resistência da militância de esquerda, conhecida como ‘luta maior’, que defendia a prioridade dos temas relacionados ao proletariado e via as questões minoritárias como potenciais divisoras da luta central contra o regime autoritário, despertou um alerta entre os homossexuais presentes. O escritor João Silvério Trevisan, um dos colaboradores do Lampião da Esquina, era um dos homens gays que estavam na Semana do Movimento da Convergência Socialista. Ele relata, no mini documentário produzido pelo canal do YouTube da USP sobre LGBTs na ditadura, que, durante o debate, ao se deparar com os preconceitos da esquerda, que temia dividir a causa operária, subiu em uma cadeira e, revoltado, gritou que não estava ali para converter ninguém, mas para resolver problemas que precisavam ser discutidos. Em seguida, pediu que, se houvesse homossexuais na sala, eles se manifestassem. Gays e lésbicas levantaram aos poucos, se assumindo publicamente, além de fazerem denúncias sobre professores e colegas de esquerda que não aceitavam bem a homossexualidade. Naquele momento, o SOMOS estava se formando. Uma dessas estudantes era Marisa Fernandes, uma mulher lésbica que se juntou ao grupo e que, mais tarde, faria parte do GALF e do boletim ChanaComChana.

A partir de 1978, muitas mulheres começaram a participar das reuniões do SOMOS, e logo surgiu a necessidade de organizar suas próprias pautas, o que levou à criação de uma célula interna do grupo. Marisa Fernandes relata que as discussões nas reuniões eram, em sua maioria, focadas nos homens homossexuais e, para ela, o mais inadmissível era o uso de termos misóginos, como ‘rachas’ ou ‘rachadas’, ao se referirem às mulheres lésbicas cisgêneras.

As lésbicas do SOMOS foram convocadas pelo Lampião da Esquina a ocuparem o número 12 do jornal, de maio de 1979. Elas reuniram vinte e cinco integrantes do SOMOS que antes estavam dispersas e produziram alguns textos para a publicação. Ao se darem conta, de forma conjunta, dos frequentes problemas com homens gays que compunham a militância homossexual, decidiram construir um subgrupo que chamaram de Lésbico Feminista, ou LF, como era conhecido.

Lampião da Esquina, Ano 1 - Número 12, em maio de 1979. Fonte: CEDOC – Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott.
Lampião da Esquina, Ano 1 – Número 12, em maio de 1979. Fonte: CEDOC – Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott.

O texto assinado pelo coletivo de lésbicas foi intitulado “Nós <também> estamos aí”. Com o “também” adicionado na tipografia do jornal com letra escrita à mão, em cima de uma seta curvada, utilizada para conectar visualmente a adição manuscrita (“também”) ao resto da frase (“Nós estamos aí”), indicavam estrategicamente uma continuidade ou uma expansão do significado original. O primeiro texto assinado pelo coletivo de lésbicas do SOMOS parece expressar a chegada tardia das sapatões ao espaço de visibilidade e discussão produzido por homens gays. O artigo parece tomar uma forma de resistência e luta por reconhecimento, em contraste com o silenciamento histórico.

Como você sabe, depois de um ano de existência do jornal, é a primeira vez que viemos dar nossa contribuição. Adiantamos que é brincadeira do seu vizinho, do seu primo ou daquela amiga, dizer que aparecemos porque nós, mulheres, adoramos festinhas de aniversário. Quer dizer, de festa nós gostamos e muito, mas garantimos que não foi por isso. Vamos nos conhecer e você verá.

Nós estamos chegando atrasadas e não é apenas porque o Lampião já tem um ano, já anda, fala muita coisa, balbucia outro tanto. Nós estamos atrasadas porque existimos, mas sempre abdicamos de existir.

Existimos nos cochichos, nos bochichos, em algum barzinho, em algumas boates, n’alguma cama com algum corpo, nas fantasias e sonhos que, na maioria das vezes, arquivamos desde sempre.

Ao chegarem atrasadas, as autoras ainda afirmam que “ninguém melhor do que nós para lutarmos contra a opressão a que estamos submetidas”, afirmando, finalmente, através de um dos principais veículos da imprensa alternativa brasileira, que é necessário trilhar um caminho próprio, ao invés de se contentar com atrasadas migalhas.

Lampião da Esquina, Ano 1 - Número 12, em maio de 1979. Fonte: CEDOC – Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott.
Lampião da Esquina, Ano 1 – Número 12, em maio de 1979. Fonte: CEDOC – Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott.

A insurgência das mulheres lésbicas contra as opressões que sofriam na sociedade – sobretudo a invisibilidade, o apagamento – motivou o grupo do LF a se desvincular do SOMOS e a fundar um grupo próprio, GALF – Grupo de Ação Lésbico-Feminista, que mais tarde viria a fundar o seu próprio jornal que chamaram, de forma humorada e transgressiva, de ChanaComChana.

Imprensa alternativa e o surgimento do primeiro jornal lésbico no Brasil

A imprensa alternativa desempenhou um papel crucial durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), funcionando como um importante canal de resistência à censura e à repressão imposta pelo regime. Enquanto os veículos de comunicação tradicionais estavam sujeitos ao controle direto do governo, a imprensa marginal – ou nanica, como era chamada por vezes – produzida por coletivos, movimentos sociais e grupos minoritários, oferecia espaço para a disseminação de ideias críticas, denúncias de violações de direitos humanos e a promoção de discursos contrários à narrativa oficial. No caso das mulheres lésbicas, publicações como o jornal ChanaComChana, criado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), serviram como ferramentas de visibilidade e articulação política, enfrentando tanto o machismo e o heterossexismo da sociedade quanto o autoritarismo do Estado. Esses veículos não apenas documentaram as lutas de seus tempos, mas também contribuíram para a formação de redes de solidariedade e resistência, tornando-se fundamentais para a preservação da memória de movimentos de resistência e das vozes marginalizadas.

A ditadura civil-militar no Brasil, instaurada em 1964, foi marcada por intensas violações de direitos humanos, censura e repressão a qualquer forma de dissidência política. Durante mais de duas décadas, o regime silenciou opositores por meio de prisões arbitrárias, tortura e assassinatos, ao mesmo tempo em que controlava rigidamente os meios de comunicação de massa. Nesse cenário, movimentos sociais e minorias, como mulheres, negros, trabalhadores e a população LGBTQIA+, encontraram nas formas alternativas de expressão um espaço vital para a articulação de suas lutas.

O Lampião da Esquina, fundado em 1978, foi um dos jornais alternativos mais expressivos do movimento LGBTQIA+ no Brasil durante a ditadura, reunindo intelectuais, jornalistas e ativistas gays que buscavam enfrentar o preconceito e dar visibilidade às questões da população homossexual. Relacionado ao grupo SOMOS, uma das primeiras organizações do movimento homossexual brasileiro, o jornal tinha como objetivo combater a homofobia e discutir temas como política, cultura e sexualidade. No entanto, tanto o Lampião da Esquina quanto o SOMOS enfrentaram críticas por sua exclusão e marginalização das mulheres lésbicas. A única e supracitada edição do Lampião da Esquina dedicada inteiramente à questão lésbica foi a edição número 12, de 1979. Além dessa exceção, a organização do jornal era amplamente dominada por homens gays, e as pautas lésbicas, quando presentes, eram muitas vezes tratadas de forma secundária ou estereotipada.

Sendo assim, para as mulheres lésbicas, especificamente, a repressão se manifestava em várias camadas: além da perseguição política, enfrentavam o machismo dentro das organizações de esquerda, dentro dos grupos homossexuais, a lesbofobia dentro dos grupos feministas, além do heterossexismo na sociedade em geral. Esse apagamento motivou a criação de iniciativas próprias, como o GALF e o ChanaComChana, que procuravam dar voz às demandas específicas das lésbicas feministas, oferecendo um espaço de resistência autônomo e voltado à sua realidade.

Em seu texto “Breve resenha de algumas teorias lésbicas” (2014), Jules Falquet nos ajuda a entender um pouco sobre o contexto do surgimento do movimento social lésbico nas metrópoles ocidentais e sua relação estreita e ambivalente com o movimento homossexual, mas também com o movimento feminista:

O lesbianismo, como movimento social, aparece em finais dos anos 60, no mundo ocidental e em muitas metrópoles do Sul. Nasce em uma atmosfera de prosperidade econômica e de profundas mudanças sociais e políticas que incluem tanto o desenvolvimento da sociedade de consumo e a “modernidade” triunfante, como a descolonização e um auge das mais variadas perspectivas revolucionárias. Embora haja sido bastante menos estudado que o movimento dos direitos civis, negro, indígena, estudantil ou de mulheres, é um dos chamados “novos movimentos sociais” que surgem na época, desbordando as organizações de corte classista que dominavam até aquele momento. O movimento lésbico se desenvolve em estreita vinculação ideológica e organizativa com outros dois movimentos muito fortes: por um lado, o movimento feminista chamado de “Segunda Onda” e, por outro, com o movimento homossexual, que se vai construindo rapidamente depois da “insurreição urbana” de 1969 em Stonewall (“insurreição” que responde a uma provocação policial em bares homossexuais de Nova Iorque, e que hoje é celebrada a cada ano ao redor do mundo com as manifestações do “orgulho lésbico e gay”). (Falquet, 2014, p. 6)

Marisa Fernandes, mestre em História Social e uma das integrantes do GALF, diz em entrevista ao documentário LGBTs no Regime Militar – As Lésbicas Feministas (2018), do Canal USP no YouTube, que três meses “atuando junto com os gays” do SOMOS foram suficientes para que percebesse as atitudes machistas e discriminatórias dos companheiros de militância. Ela diz que esses dois componentes, ser mulher e ser homossexual, a levava a sofrer uma dupla discriminação. Nesse contexto, as mulheres lésbicas do GALF sentiram a necessidade de trilharem um caminho próprio tanto no que diz respeito à militância, como no que diz respeito à produção de uma mídia própria, com o boletim ChanaComChana, que se insere no contexto da imprensa alternativa lésbica e feminista dos anos 1980. Segundo Elizabeth Cardoso, em seu artigo “Imprensa Feminista Brasileira Pós-1974” (2004):

Tradicionalmente, a imprensa feminista é localizada entre os cerca de 150 jornais alternativos da década de 70. A existência concomitante com os alternativos e seu engajamento social e político nas questões da época fizeram com que a imprensa feminista fosse classificada como uma expressão da imprensa alternativa. Assim como existiram os alternativos voltados para a ecologia, para o humor, para o prazer, para a política, para a economia, haviam os jornais voltados para a questão feminista. Porém uma pesquisa específica sobre a imprensa feminista, desvendou a continuidade do gênero durante as décadas de 80, de 90 e até os nossos dias, enquanto a imprensa alternativa perdeu força, segundo o mesmo autor. (Cardoso, 2004, p. 37)

Ao examinar o conjunto desses periódicos de expressão feminista que emergem no contexto da ditadura pós-1974, Cardoso chega a uma classificação em dois grupos: “a primeira geração, contemporânea dos jornais alternativos e, de forma geral, voltada para a questão de classe, e a segunda geração, grupo de periódicos feministas editados a partir de 1981, de forma geral, voltada para a questão de gênero” (Idem, p. 37 e 38). Cardoso afirma que é importante considerar que a divisão proposta é apenas estratégica e com fins analíticos, e que não pretende encerrar os periódicos nessas duas linhagens. No entanto, é importante observar as características que ela encontra nos marcos temporais que propõe:

Em linhas gerais, porém, foi possível traçar características das publicações da primeira geração e características das publicações da segunda geração. Nota-se que, enquanto a primeira está marcada pelo debate entre “questão da mulher” versus “questão geral”, feminismo liberal versus feminismo marxista ortodoxo, por reivindicações de ações públicas que coloquem as mulheres em igualdade com homens, pela questão da autonomia partidária e pelo combate à ditadura, já a segunda geração da imprensa feminista incorpora o conceito de gênero, assume os temas relacionados direta e exclusivamente às mulheres (como sexualidade, planejamento familiar e violência contra a mulher); tende para a especialização por temas; luta pelo direito à diferença e opera em parceria com um novo ator social, a sociedade civil organizada, na forma de ONGs e associações voltadas para a questão de gênero. (Cardoso, 2004, p. 38)

Quanto ao contexto do regime político em vigor, ela ressalta que a primeira geração se dedica com mais vigor à denúncia da repressão, ao pedido por anistia, autonomia partidária; enquanto a segundo aborda temas como abertura democrática, constituinte, maior participação da mulher no sistema partidário etc. (Idem, p. 39).

Já o marco histórico para a divisão em duas gerações é tido como o II Congresso da Mulher Paulista, que ocorreu em 1980 e foi marcado por embates entre as demandas das mulheres e as da esquerda tradicional que vinham há algum tempo lutando contra a ditadura.

Para Cardoso, o ChanaComChana possui as principais características da segunda geração dos periódicos feministas pós-1974 por focar exclusivamente na questão da mulher e sua diferença (a lesbianidade), e ao se contrapor ao tema da busca por igualdade entre homens e mulheres. O conteúdo do ChanaComChana se dedica a relatar eventos lésbico-feministas no Brasil e no mundo, a debater questões e enfrentamentos próprios de lésbicas – como sexualidade, relacionamentos, afeto –, além de tirinhas que questionavam com humor as relações tensionadas entre lésbicas e feministas tradicionais, entre lésbicas e instituições de atendimento à mulher, entre lésbicas e o aparato policial.

É importante ressaltar ainda que o nome ChanaComChana pode ser interpretado como uma provocação linguística e política que reflete o espírito subversivo do movimento lésbico em tempos de repressão e invisibilização. “Chana” é uma gíria popular e vulgar para a genitália feminina, e seu uso duplo, reforçado pela preposição “com”, subverte a linguagem normativa ao afirmar explicitamente a união entre vulvas. Esse título transgride os padrões morais e sociais da época, ao mesmo tempo em que assume uma postura de empoderamento e visibilidade lésbica. Ao utilizar uma palavra carregada de conotações populares e sexuais, o boletim reposiciona o desejo e a identidade lésbica em um espaço de resistência cultural e política, rompendo com a invisibilização imposta às sapatões.

O ChanaComChana é muito bacana

O jornal paulistano ChanaComChana, de edição única, publicado em 1981, precedeu o boletim que foi produzido um ano depois, a partir de 1982 até 1987. Na edição 0 do jornal, temos na lateral esquerda da capa uma faixa preta com o título em branco e, após o título, um desenho de uma maçã partida, com sua polpa exposta, e uma mordida. O desenho do interior da maçã sugere a forma de uma vagina, a “chana”, que dá título ao periódico. No centro da capa a chamada para a entrevista exclusiva com Angela Ro Ro com as aspas da própria: “Não me envolvam, eu me envolvo”. Logo abaixo há uma fotografia P&B da artista cantando com intensidade na frente de um microfone.

Ro Ro era lésbica assumida e sofreu quatro vezes agressões das polícias civil e militar. Em uma dessas agressões, em 1984, perdeu a visão de um olho e a metade da audição. Em 1979, a cantora e compositora havia lançado seu primeiro LP, Angela Ro Ro, com a canção “Cheirando a amor”, que fala abertamente do preconceito sofrido por lésbicas: “Amor apertado, sou sua / Trancada com medo da rua / Se isso é pecado me puna / A culpa de amar livre e nua / Que preconceito barato / Que o cão caça o gato / Me morde e me desafia / Só meu olhar lhe arrepia”.

Na entrevista, um grupo de seis lésbicas do GALF e do jornal entrevistam Ro Ro: Marisa, Maria Serrath, Silvana, Miriam, Cris e Conceição. A primeira pergunta expõe a naturalidade com que a cantora expunha o tema de sua sexualidade em seus shows, e como foi que começou essa relação entre artista e público:

GRUPO — Angela, nos seus shows observamos uma alternativa na relação artista-público. Há toda uma práxis contra a repressão. Todos se manifestam, existe um espaço aberto. Há inclusive muitas colocações suas literalmente lésbicas…

ANGELA — Eu, honestamente, não falo aquelas loucuras no show intencionalmente (rindo) sai porque sai. Quando em maio de 79, frente a 350 pessoas, a maioria amigos, eu subi ao palco do Teatro Ipanema para dar início a um trabalho, meus pés, minhas mãos, meu corpo todo tremia. Eu estava tomada de emoção, muito comovida. O coração aqui (na boca). Não dava mais. Aí eu gritei — SOCORRO! — e descobri que conversar ajudava a descontrair. Quando dei por mim estava no meio de uma história – da minha. Uma certa hora, eu ia usar o termo “a pessoa que eu amo”, mas lembrei que era um termo tão entendido, tão gay. Curti com a brincadeira dizendo no lugar “a mulher que eu amo”. (Jornal ChanaComChana, São Paulo, LF, n. 0, 1981)

A segunda página, onde continua a entrevista com a cantora, mostra um pouco da estética de zine e colagem do jornal. Nesta parte da conversa, as militantes do GALF perguntam a Ro Ro se ela se coloca como lésbica publicamente, ao que ela recusa o título, e diz que não se diz lésbica “hora nenhuma” e que todos somos dúbios e anfíbios, mas que ela não quer usar um nome que lhe foi dado, e que ela não escolheu. Existe então uma disputa de ideias entre um movimento identitário (as seis entrevistadoras), por um lado, que afirma a identidade emergente “lésbica” publicamente e defende essa afirmação política, e a cantora do outro lado, que pouco se importa com o termo e diz que é “até muito bonita e a ilha [de Lesbos] mais ainda”, mas prefere expressar sua sexualidade sem amarras e classificações.

Há mais dois textos na primeira edição do jornal, um intitulado “Quem tem medo de Virginia Woolf”, escrito por Maria Carneiro da Cunha, uma advogada feminista e heterossexual. Com tom de conversa, o texto é uma resposta a uma carta de uma amiga de Maria, que ficou horrorizada com um grupo de mulheres intitulado Lésbico Feminista. O outro é de Miriam Martinho, uma das integrantes do GALF e editoras do jornal, que escreve um relato sobre o grupo militante com o título de “Exercício de Liberdade”. Em uma espécie de balanço, ela narra como o GALF já havia alterado a vida de suas integrantes, além de ter conseguido um espaço para as lésbicas no movimento feminista brasileiro – trazendo à pauta a questão da sexualidade que, segundo ela, era “sempre tão esquecida.” Além disso, conta que também conseguiram levar a pauta do feminismo para o Movimento Homossexual, “demostrando estar a opressão do homossexual inteiramente ligada à opressão da mulher pelo homem” (Martinho, 1981, p. 4).

Marisa Fernandes, uma das integrantes do GALF e do ChanaComChana, relata que o movimento lésbico brasileiro teve um papel muito importante diante do movimento feminista brasileiro, porque trouxe ao debate a questão da sexualidade e tirou a pílula anticoncepcional do centro das pautas. As pautas da “luta maior”, das esquerdas, não eram a única questão que interessava às mulheres das classes populares. Questões sobre corpo, sexualidade e liberdade sexual também interessava a elas (Canal USP, 2018 – [LGBTs no Regime Militar] – As Lésbicas Feministas).

O movimento lésbico brasileiro ecoou, em suas reuniões e periódicos, reflexões que estavam sendo empreendidas por duas teóricas importantes para o pensamento lésbico internacional: a estadunidense Adrienne Rich em seu texto “Heterossexualidade compulsória e a existência lésbica” originalmente escrito para o dossiê “Sexualidade” da revista Signs (1980), e a francesa Monique Wittig que escreveu “O pensamento hétero”, lido pela primeira vez em Nova Iorque, em 1978, na Modern Language Association Convention e dedicado às lésbicas estadunidenses.

Wittig e Rich fazem parte do movimento de teóricas lésbicas que vão se multiplicando nos Estados Unidos e França no final dos anos 1970. Em sua produção teórica, passam a enxergar a heterossexualidade não só como uma mera sexualidade, mas como um sistema de poder. Nas palavras de Rich, a heterossexualidade é “[u]m feixe difuso de forças que abarcam desde a brutalidade física até o controle de consciência”. A heterossexualidade, pra Rich, deixa invisível a possibilidade lésbica. Esse é um dos muitos meios de reforço da heterossexualidade, que funciona como uma força de assegurar o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional das mulheres. A heteronormatividade faz com que a nossa sociedade suponha que mulheres são heterossexuais de modo inato e isso acaba se tornando um obstáculo teórico e político para o feminismo (Rich, 1980, p. 35). Dentro deste sistema, a existência lésbica tem sido apagada, ou catalogada como doença, ou tratada como algo excepcional. Então, para as mulheres, a heterossexualidade acaba sendo algo imposto, administrado, propagandeado e mantido por força.

Wittig pronunciou, na leitura de seu texto “O pensamento hétero”, uma das frases mais conhecidas da teoria feminista: “As lésbicas não são mulheres”. Em seu texto, a autora propõe que o pensamento hétero é uma ideologia da diferença sexual, dando importância particular ao discurso como prática social, e às categorias discursivas que importam para a sua reflexão: “mulher”, “homem”, “sexo” e diferença. Ela deseja fugir da classe das mulheres, como parte do projeto de abolição do sexo como categoria de organização dos corpos.

No primeiro número do boletim ChanaComChana, publicado em dezembro de 1982, dando continuidade ao jornal de 1981, mas com um formato mais informal e econômico, temos uma tirinha de Miriam Martinho que exemplifica esse lugar social da lésbica, fora da categoria social “mulher”, conforme sugerido por Wittig. Na cena do quadrinho, três lésbicas entram em uma sala de atendimento do SOS Mulher. Uma senhora está sentada em uma escrivaninha e pergunta: “Como posso ajudá-las?”. Ao fundo, há um cartaz colado na parede onde está escrito: “Não sofra calada. Denuncie aqui o seu caso de discriminação”. As três mulheres alegam que uma foi demitida do emprego, outra expulsa de casa e a terceira expulsa da escola. A atendente questiona o motivo alegado, ao que elas, em uníssono, gritam: “SOMOS LÉSBICAS!”. Espantada e ruborizada, a funcionária pede para que elas voltem no dia seguinte, sob o argumento de que “À tarde só atendemos mulheres”. As três personagens terminam a tirinha confusas e frustradas: as lésbicas não são mulheres?

O ChanaComChana, em formato de boletim, era composto por uma capa feita de colagens, a logo escrito CHANACOMCHANA, tudo junto no topo, abaixo a inscrição “Grupo de Ação Lésbico Feminista” e, ao lado esquerdo, dois símbolos do feminino entrelaçados. Eram publicados textos ensaísticos, artigos, poemas, contos, resenhas, notícias, entrevistas, tirinhas, anúncios, informes e cartas das leitoras. Na seção de poesias, era comum ver poemas de Vange Leonel, de Miriam Martinho e na edição número 5, de maio de 1984, há até mesmo um poema de Ana Cristina César.

Jornal ChanaComChana, publicado em São Paulo pelo Grupo Lésbico-Feminista (LF), número 0, em 1981 e Boletim ChanaComChana, publicado em São Paulo, pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), número 1 em 1982.
Jornal ChanaComChana, publicado em São Paulo pelo Grupo Lésbico-Feminista (LF), número 0, em 1981 e Boletim ChanaComChana, publicado em São Paulo, pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), número 1 em 1982.

A Revolta do Ferro’s Bar

O boletim passa a ser distribuído por correios, através de assinaturas ou no boca-a-boca, nos guetos lésbicos do centro de São Paulo – sobretudo nos bares que foram alvos da “Operação Sapatão” de Richetti. Um dos principais bares era o Ferro’s Bar. O dono do Ferro’s passa a proibir a distribuição do ChanaComChana e também que as lésbicas frequentem o local. Rosely Roth, uma das integrantes do GALF e do Chana, encabeça então um levante, que ficou conhecido como “Revolta do Ferro’s Bar”, chamado também de Stonewall Brasileiro – em menção à revolta LGBTQIAPN+ contra a violência policial nos Estados Unidos, um marco histórico do movimento internacional. Na edição número 4 do boletim, com a capa dedicada ao ocorrido, há um longo relato do episódio. Em um trecho, Vanda, como assina a autora, descreve as violências que as integrantes do GALF e editoras do boletim vinham sofrendo no recinto:

O que Rosely denuncia começara há quase dois meses. Todos os sábados, quando íamos vender o boletim ChanaComChana no Ferro’s éramos agredidas pelo porteiro — com ameaças ou com puxões de braço para que nos retirássemos. Até que no dia 23 de julho último, a barra pesou mais: um dos donos do bar, seu segurança e seu porteiro tentaram concretizar a expulsão, através de agressões físicas. Mas não foram felizes nesse primeiro intento. Enquanto nos puxavam para o lado de fora, parte das lésbicas — que compram o boletim e conversam com as moçoilas do GALF — nos seguravam lá dentro. Belo corpo-a-corpo: dos que têm a força da ordem e da lei contra os que ganharam no dia-a-dia uma força física e interior para poder ‘viver’ numa sociedade onde a regra é ser heterossexual. Quem foge desse padrão, é pervertida (o), louca (o), imatura (o) sexualmente. E, definitivamente, não merece compartilhar das benesses desse paraíso terrestre.

Alegando que nós estávamos fazendo “arruaça” dentro de tão comportado ambiente, o dono chamou a polícia. Os policiais chegaram, ouviram as argumentações do dono, as nossas, as das lésbicas não militantes que nos apoiam. E, estranhamente, um deles respondeu que, como deviam ser imparciais, pois ‘os direitos são para todos os brasileiros’ não tomariam qualquer atitude contra nós. Puxaram o carro e pudemos jantar em meio às outras lésbicas, como sempre fazemos. Há também dias – ainda raríssimos, que são os da caça e não do caçador…

Foi uma vitória. Depois dela, muitas discussões no GALF. Já estávamos cheias de sermos agredidas ‘injustamente’ e pensávamos que o incidente podia se repetir mais vezes, talvez com mais apoio da polícia. Não queríamos ficar na defensiva. Precisávamos reconquistar nosso direito de vender o ChanaComChana no Ferro’s. Não só vendê-lo. Mas conversar com as lésbicas dos mais distintos estratos sociais e vivências pessoais. Não somos e não queremos ser elite ou vanguarda. (Boletim ChanaComChana, São Paulo, GALF, n. 4, 1983)

Depois desse ocorrido, elas prepararam um protesto, que chamaram de “happening”, por um mês. Distribuíram panfletos na porta do Ferro’s denunciando as violências que sofriam no local por serem lésbicas. Militantes de esquerda frequentavam o local e não sofriam as mesmas represálias ou constrangimentos. O evento ficou agendado para o dia 19 de agosto daquele mesmo ano. Elas convidaram integrantes de variados partidos comprometidos com causas democráticas: a deputada Ruth Escobar (PMDB), a vereadora Irene Cardoso (PT), o deputado Eduardo Suplicy (PT) e o líder da bancada do PT na Assembleia Legislativa, Marco Aurélio Ribeiro. Além disso, convidaram também a advogada Zulaiê Cobra Ribeiro, representante da OAB e da Comissão de Direitos Humanos.

Rosely Roth dentro do Ferro’s Bar, com demais manifestantes e frequentadoras do estabelecimento. Fonte: Acervo – Folha de São Paulo.
Rosely Roth dentro do Ferro’s Bar, com demais manifestantes e frequentadoras do estabelecimento. Fonte: Acervo – Folha de São Paulo.

Marisa Fernandes descreveu aquele dia como uma grande aglomeração na frente do bar. Junto ao GALF também estavam homens gays integrantes do Grupo Outra Coisa – Ação Homossexualista. O porteiro do Ferro’s Bar usava um quepe, símbolo de sua autoridade. Um dos amigos gays das militantes, em um momento de descuido do porteiro, tomou seu chapéu e o arremessou longe. Ele foi correndo buscar. Nesse momento, com as portas livres de seu cuidado, todas as pessoas que se aglomeravam do lado de fora adentraram o espaço interno do bar. Rosely Roth subiu em uma cadeira e discursou. Com imprensa e convidados de diversos partidos políticos, o dono do bar é convencido, publicamente, a permitir a presença das militantes e a distribuição do jornal no bar.

A repercussão do happening político do Ferro’s abriu espaços sociais para o GALF em dois sentidos. Entre as lésbicas, muitas vieram participar do grupo. As que ainda não querem militar já leem nosso boletim com outros olhos e discutem mais conosco. Sabemos que a libertação individual é um processo a longo prazo. Sabemos, também, que na História a militância sempre foi um gesto de muito poucos e dentro de espaços delimitados – por exemplo, os partidos políticos. (Boletim ChanaComChana, São Paulo, GALF, n.4, 1983)

O dia da Revolta do Ferro’s Bar ficou marcado na história do movimento LGBTQIAPN+ brasileiro. Em 2003, na esteira de suas conquistas e lutas, essa data foi oficializada e passou a ser comemorada como o Dia Nacional do Orgulho Lésbico, um momento de celebração, mas também de reflexão sobre as lutas e conquistas das mulheres lésbicas no Brasil. É um dia para reforçar a visibilidade lésbica, lembrar os desafios históricos enfrentados, como a violência e discriminação, e para continuar lutando por igualdade de direitos e inclusão. Além disso, o 29 de agosto também é uma data importante: o Dia da Visibilidade Lésbica, que marca a fundação do primeiro Encontro Nacional de Lésbicas, ocorrido em 1996. Assim, agosto passou a ser considerado o “Mês da Visibilidade Lésbica”, com diversas ações e atividades de conscientização e resistência.

Por fim, GALF e seu boletim tinham um comprometimento muito grande com a produção de rede, conscientização e acolhimento para mulheres lésbicas. Fazê-las sentir que possuíam um meio de comunicação que pudesse produzir um sentimento de coletivização era fundamental. Em um tempo anterior à internet, a circulação da materialidade do jornal, os guetos, as assinaturas, a possibilidade de escreverem cartas que eram publicadas no boletim, dava às lésbicas de todo o país a possibilidade de pertencimento e de que podiam ser ouvidas. Em meio a tanta invisibilização, à esquerda, no feminismo, no movimento homossexual, o ChanaComChana trouxe visibilidade e afeto.

* Dri Azevedo foi prof. substitute de Teoria Literária na UFRJ e atualmente é pesquisadore de pós-doutorado pelo departamento de Ciência da Literatura na mesma instituição, além de fazer parte da equipe de coordenação do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC-UFRJ.
Referências bibliográficas
BOLETIM CHANACOMCHANA, São Paulo, GALF, n. 1, 1982.

BOLETIM CHANACOMCHANA, São Paulo, GALF, n. 4, 1983.

CARDOSO, Elizabeth da P. “Imprensa feminista brasileira pós-1974”. 2004 Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 12 (N.E.): 264, setembro-dezembro/2004.

COLAÇO, Rita. Operação Sapatão – Richetti 15 nov 1980. Disponível em: <https://memoriamhb.blogspot.com/2009/04/operacao-sapatao-richetti-15-nov-1980.html> Acessado em 11 de outubro de 2024.

FALQUET, Jules. “Breve resenha de algumas teorias lésbicas”. Site Heresia Lésbica, 2014. Disponível em: <https://heresialesbica.noblogs.org/files/2014/04/breve-resenha-teorias-lesbicas-jules-falquet.pdf> Acessado em 11 de outubro de 2024.

FIGARI, Eduardo Cardoso. “Somos, grupo”. Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe. Disponível em: <https://sites.usp.br/portalatinoamericano/espanol-somos-grupo-2>. Acesso em 11 de outubro de 2024.

JORNAL CHANACOMCHANA, São Paulo, LF, n. 0, 1981.

JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA, Rio de Janeiro, n. 12, 1979. Disponível em: <https://cedoc.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/tainacan-items/1104/2458/16-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-12-MAIO-1979.pdf> Acesso em 11 de outubro de 2024.

KUMPERA, Julia. Sociabilidade lésbica e violência policial em São Paulo. Memorial da Resistência de São Paulo. Disponível em: <https://memorialdaresistenciasp.org.br/sociabilidade-lesbica-e-violencia-policial-em-sao-paulo/> Acessado em 11 de outubro de 2024.

OLIVEIRA, Juliana Farias. “Quem tem medo de sapatão? Resistência lésbica à Ditadura Civil-Militar (1964-1985)”. Periodicus: n. 7, v. 1 maio-out. 2017p. 06-19.

RICH, A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas – Estudos gays: gêneros e sexualidades, [S.l.], v. 4, n. 05, 2012. Disponível em: <https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309.> Acesso em: 11 out. 2024.

SÉRIE “LGBTS NO REGIME MILITAR”. Canal USP, YouTube, agosto de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/playlist?list=PLAudUnJeNg4vYW7jaYtUnXdl22TYHqUdS> Acessado em 11 de outubro de 2024.

VILARDAGA, Vicente. A vergonhosa Operação Tarântula. Folha de São Paulo, 20 de junho de 2024. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/blogs/andancas-na-metropole/2024/06/a-vergonhosa-operacao-tarantula.shtml> Acessado em 11 de outubro de 2024.

WITTIG, Monique. “O Pensamento Hétero”. 1980. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7546660/mod_resource/content/2/Wittig%20-%20O%20pensamento%20h%C3%A9tero.pdf> Acesso em 11 de outubro de 2024.
Dossiê
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NA CONTRAMÃO, NOSSO AMOR É POLÍTICO: CONVERSA COM JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

João Silvério Trevisan, nascido em Ribeirão Bonito (São Paulo), no dia 23 de junho de 1944, mergulha com sua sensibilidade artística por diferentes campos da escrita: ficção, ensaio, roteiro, jornal. Ativista dos Direitos Humanos/LGBTQIA+, carrega em sua experiência de vida uma trajetória extensa de luta e resistência, sendo um dos fundadores do Somos (1978), primeiro grupo de liberação homossexual no Brasil, e, ainda na mesma década, um dos editores fundadores do jornal que deu início a uma imprensa voltada para e sobre a comunidade homossexual brasileira, o Lampião da Esquina (1978-1981).

A primeira vez que tive contato com a sua obra foi em 2017, quando ainda estava na graduação. Nesse período, comecei a dar os primeiros passos para o que posteriormente se tornaria o meu interesse de pesquisa: literaturas LGBTQIA+ no Brasil. Nesse ano, conheci um de seus trabalhos ensaísticos mais famosos, o Devassos no paraíso (1986), mas só iniciei a leitura após um acontecimento que atravessou o meu existir: descobri que estava convivendo com HIV. Assim como os que recebem esse diagnóstico ainda hoje, me vi diante da morte e da impossibilidade de conexão com os outros. Foi um período de grande solidão e, na busca por algum auxílio, os ensaios de Trevisan serviram como apoio duplo: contribuíram com minhas leituras acadêmicas, mas, sobretudo, em minhas reflexões internas sobre o “eu” e o “outro” em um período de crise.

Conversei por e-mail com Trevisan para pensar como há, ainda hoje, reflexos das violências praticadas durante o golpe militar de 1964 na repressão à comunidade LGBTQIA+, principalmente após a ascensão da extrema direita e com os desafios políticos e sociais que surgiram desde então. Na conversa, buscamos traçar um paralelo entre o ontem e o hoje, com temas que perpassam, enquanto ferramenta política, os movimentos sociais, a imprensa, o corpo e o amor.

João Silvério Trevisan (divulgação)
João Silvério Trevisan (divulgação)

Sandro Aragão: Você identifica ainda hoje resquícios de uma coerção/repressão às nossas existências LGBTQIA+, similares às praticadas durante o regime de ditadura em nosso país?

João Silvério Trevisan: Sim, há uma clara continuidade. Para mim, não existe um paraíso onde chegamos e seremos felizes para sempre. Como qualquer outra atividade política tirânica, a ditadura militar brasileira de 1964 aprofundou as raízes da repressão sexual já presentes no DNA de toda cultura normativa. Mesmo que os períodos ditatoriais passem, a capacidade repressiva dessas culturas continuará e sempre irá encontrar novos pretextos para garantir sua paranoia sexual e restringir as fronteiras do gozo. Uma das perversidades maiores da repressão institucional é que o próprio gozo a ser combatido se transfere para a repressão, através do sadismo. Sejam ditaduras explícitas ou quaisquer organizações repressivas (inclusive religiosas), todas praticam o prazer sádico de oprimir nossos corpos. Reprimir se torna, então, uma forma de sequestrar o nosso gozo e usufrui-lo contra nossos corpos. Daí porque nossa resistência amorosa não se restringe aos períodos mais duros. Como se pode constatar nas democracias atuais, sempre que houver normas amorosas restritivas e impositivas, dissidentes como nós estarão sendo visados e oprimidos. Como eu disse: o paraíso é uma quimera, daí a resistência como parte do nosso amor.

SA: O Lampião da Esquina foi precursor de uma imprensa LGBTQIA+ no Brasil. Não se destinava apenas a dialogar com pessoas homossexuais, propunha-se como uma ferramenta para pôr em visibilidade questões que se referiam às nossas experiências dentro da sociedade a partir de perspectivas individuais/coletivas postas à margem. Pensando o período e o contexto político em que o Lampião foi criado e a forma como a imprensa LGBTQIA+ ― ou que se destina à comunidade ― está hoje, o que você percebe de mudança? Levando em consideração todo o caminho já feito até aqui, o que você vê como avanço e o que ainda precisa ser repensado?

JST: Acho que parte da minha resposta já está dada na anterior. Os avanços que tivemos são reais, mas também os recuos. A sólida bancada evangélica que integra a direita política brasileira é uma comprovação disso nos dias atuais. Ela tem um claro projeto de poder. Não há como fazer-de-conta. Pablo Marçal está aí e deve ser mais um de uma longa lista de influencers de direita insanos e vorazes pelo poder falocrático, na linha bolsonarista. A conquista mais preciosa que a comunidade LGBTQ+ ostenta hoje encontra-se nela mesma. Nas muitas décadas da minha trajetória, nunca vi entre LGBTs um nível de consciência política tão alto como na atualidade. Isso é o que mais assusta a direita extremista. Isso é também nossa maior força de resistência. Sim, ainda existem muitos problemas afetando a comunidade quanto à sua inserção política, inclusive por seu baixo amor próprio e seu narcisismo exacerbado, que é uma arma de defesa equivocada. Mas conseguimos uma representatividade razoável no Congresso Nacional, que é das mais corajosas em nossa democracia, e tem muita gente inteligente levando adiante o debate político dentro da comunidade, sem depender das parcas lideranças, partidárias ou não. Acho muito animadora a grande quantidade de LGBTQs anônimos pensando criticamente e debatendo ideias nas redes sociais, sem esquecer de bloggers, podcasters e influencers de todas as regiões e categorias. Essa consciência crítica em ebulição é nosso maior trunfo.

SA: As reflexões teóricas e sociais que surgiram, e estão surgindo, a partir da comunidade trans propõem perspectivas que desestruturam a nossa percepção sobre o corpo, o gênero, o comportamento, a cultura, entre outros aspectos. Nesse sentido, como você percebe esse movimento? Você consegue criar um paralelo entre o surgimento dos estudos gays e lésbicos durante as décadas de 60-70 e o que vem sendo feito hoje por teóricos como Paul B. Preciado?

JST: Sim, claro. Mais do que paralelo, vejo um desdobramento. Historicamente, por mais sutil que seja, há uma corrente de resistência dos oprimidos. Tente imaginar como era a sexualidade entre os gregos ou entre os tupinambás. Não sabemos com exatidão absoluta, pois sempre existe a sombra do apagamento. Se esse cuidado extremo em nos tirar do mapa do amor universal perdura até hoje, também devemos puxar o fio da meada das resistências, que sempre existiram e existirão. Sim, o nazismo varreu da Alemanha a intensa atividade LGBT do período e tentou apagar uma história longínqua que pessoas como o médico e ativista Magnus Hirschfeld vinham resgatando. Até a biblioteca especializada do seu Instituto de Estudos Sexuais foi queimada em praça pública. Mas nem por isso a história dos amores e gêneros dissidentes desapareceu. Sim, Paul Preciado continuou o que fazíamos desde os anos 60-70, com a eclosão das lutas de Stonewall, e nós demos continuidade a tudo aquilo que as multidões LGBTs vinham conquistando por séculos, em meio a inúmeros percalços, obscuros ou mais claros, como a condenação de Oscar Wilde. Era essa mesma convicção que, ainda no século XIX, levava o poeta Walt Whitman a exortar as multidões de amantes dissidentes do futuro, da qual fazemos parte. Nós o ouvimos e espero que sejamos ouvidos pelas multidões do futuro. Quero dizer que, se há um fio condutor dessas culturas repressivas, também existe um fio condutor em nossa capacidade de resistência. Com certeza, nós somos a Fênix do amor.

SA: Em seu livro Devassos no paraíso, você fala sobre como a Parada LGBT+ celebra o amor. Muito da luta LGBTQIA+ parte de um lugar que se refere ao direito de “ser” e de “amar”. Esse aspecto faz com que o amor seja levado para um campo político, de modo que nos faça refletir sobre quem ou quais corpos têm o direito de vivenciá-lo livremente. A partir disso, qual o papel do amor ou de uma ética amorosa dentro da comunidade atualmente? É possível dizer que o nosso amor continua obsceno/pornográfico aos olhos daqueles para quem a única possibilidade de existência é a norma?

JST: Se o nosso amor vem na contramão de uma cultura secular, então ele contesta essa cultura e, portanto, será obrigatoriamente político. Ocorre uma grave omissão quando a sociedade normatizada não se dá conta de que nossa luta não é um passatempo, nem algo de importância exclusiva de LGBTQs. Por uma série de fatores, nós estamos mexendo num dos pilares dessa cultura, que é justamente a capilaridade do amor nas vidas humanas, em qualquer momento da história e em qualquer parte do planeta. Ao reivindicarmos nosso direito ao amor e ao desejo, reivindicamos automaticamente a singularidade da nossa forma de existir. Nós somos reservatórios de resistência dos vulnerabilizados, em vários sentidos, por se tratar de uma luta em várias frentes. Um dos resultados menos notados da nossa batalha política é que gente como Jair Bolsonaro sabe que nós sabemos quem eles são. O raio X do nosso olhar os aterroriza porque nós os desnudamos de suas dissimulações ideológicas: nós aprendemos a olhar com o filtro do desejo. E podemos perceber que chegamos onde eles tanto cobiçam chegar, caso não se autossabotassem. Ou seja, politicamente nós temos nas mãos a criptonita capaz de revelar as fadinhas que existem no interior dos Bolsonaros de todos os padrões – e Pablo Marçal é o mais recente, ainda que não o último da cepa mais resistente desses “armários ambulantes”. Gostemos ou não, pela nossa condição de marginalidade, nós temos a capacidade profética de revelar. Somos o grupo secularmente jogado na cova dos leões, como os profetas bíblicos, e sobrevivemos para escancarar a natureza do amor humano e comprová-la com nossa diversidade. Esse é o nosso campo de batalha prioritário, no qual revelamos como o amor e o desejo se atualizam em múltiplas formas – o que para essa gente é aterrorizante. Lembro de dois parâmetros recentes que podem ilustrar esse meu raciocínio. Pouco depois da eleição de Jair Bolsonaro, no carnaval de 2019, houve o escândalo da exibição pública de um golden shower praticado entre dois homens, no centro de São Paulo. A mídia registrou o assombro do presidente eleito ao tomar conhecimento dessa prática erótica para ele inusitada. Aquele início de desgoverno vivenciou um rito de iniciação erótica no coração mesmo da direita radical, que se desconcertou ante nossa liberdade sexual, algo que seus corpos desconhecem. O segundo parâmetro da nossa capacidade profética ocorreu em 2024, como uma espécie de encerramento de ciclo. Foi quando a Parada LGBT–SP promoveu uma campanha para incentivar o uso do verde-amarelo, como forma de resgatar algo que nos tinha sido sequestrado pela direita extremista. O efeito gozoso, que eu vivenciei presencialmente, é que havia um mar de verde-amarelo, usado desde as roupas e fantasias até as bandeiras brasileiras que ostentavam na parte traseira as cores do arco-íris.  E isso veio acompanhado de uma onda de bate-leque trans praticado pela multidão presente. Do alto de um trio elétrico, eu pude testemunhar a orquestração de leques batendo furiosamente, como uma admoestação. Ali, inclusive, aprendi a bater meu próprio leque. A campanha de resgate foi um sucesso tal que os extremistas de direita passaram a temer o verde-amarelo patriótico, receando serem confundidos com “gente anormal”, quer dizer, nós.  Tanto que nas eleições deste ano juro que não vi uma única fantasia “patriótica” de verde-amarelo, tal como acontecia com a direita fanática. Esses dois momentos me parecem exemplos da capacidade profética, quer dizer, reveladora, que nós, agentes da dissidência, temos condição de praticar.

SA: “Que país é esse?” foi uma das perguntas que o moveu durante a criação do seu filme Orgia ou o homem que deu cria. Em que lugar essa pergunta se encontra em você hoje?

Cena de Orgia ou o homem que deu cria, de 1970 (divulgação)
Cena de Orgia ou o homem que deu cria, de 1970 (divulgação)

JST: Devo dizer que essa pergunta nunca deixou de ser feita por mim, nem mudou de lugar. A cada dia descubro novos nichos repressivos que me levam a renovar a minha perplexidade. Ela tem a ver com outra pergunta: onde fica o nosso país? É uma pergunta que faz sentido enquanto nos sentirmos exilados em nosso próprio país. A sensação de exílio, que mais experimento quanto mais vivo, é também o que me leva incansavelmente adiante. Porque vivemos em permanente estado de diáspora amorosa, esse exílio amoroso é que nos move adiante. Eu quero pertencer àquele país que me tem sido vetado. Se ele não existir, então eu vou inventar. Há uma comunidade inteira inventando diariamente esse país do nosso amor. Você acha possível existir alguma força capaz de nos conter? Claro que não. Essa mesma busca que não parece ter um final feliz é, na verdade, aquela que impulsiona nossa capacidade de inventar um mundo. Então, essa nossa capacidade de criar permanentemente não é algo secundário. Tratar-nos como gente de segunda classe é um grave equívoco das culturas repressivas – e um grave desperdício de energia que poderia mover adiante sociedades sem esperança como as que nos excluem e sequestraram a nossa pátria. Daí porque conquistar aquele verde-amarelo durante a Parada de 2024 é mais do que emblemático. É uma metáfora que aponta para o caminho do futuro, num mundo que parece em estado de agonia. Quando o filósofo grego Arquimedes propunha “Dê-me uma alavanca e moverei o mundo”, eu não tenho dúvida em identificar essa alavanca como sendo o amor. Porque, na voz visionária de Walt Whitman: “Uma vasta similitude entrelaça tudo”. Se o universo está em permanente estado de ebulição, ele é movido por uma força da agregação. E essa força que agrega tem um nome: amor universal. Entenda-se: em diferente escala, assim acontece com o nosso pequeno planeta Terra. Quando estamos falando da sobrevivência do nosso amor, falamos também da sobrevivência do planeta e do próprio gênero humano. Não se trata de triunfalismo, mas de alternativas para evitar a catástrofe. Retornar ao princípio do amor universal é o que nos resta.

* João Silvério Trevisan é roteirista, ensaísta e ficcionista. Autor do fundamental Devassos no paraíso (1986) e de Ana em Veneza (1994), publicou recentemente A Idade de Ouro do Brasil (romance, 2019) e Meu irmão, eu mesmo (romance, 2023, finalista do Prêmio Oceanos). Sandro Aragão é mestre em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Vinculado ao Programa de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atua em pesquisas voltadas para o campo dos afetos e da literatura LGBTQIA+.
Resenha
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Heloisa Teixeira e o olhar para a cultura na ditadura

Uma foto da professora Heloisa Teixeira, de cabelos longos pretos, aos 27 anos, em 1967, abre o seu mais novo livro Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970), publicado pela Editora Bazar do Tempo, com um projeto gráfico de qualidade assinado pelo designer Thiago Lacaz. É a primeira obra que ela assina com o sobrenome materno Teixeira (antes Buarque de Hollanda), iniciativa anunciada próxima da sua eleição para a Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2023.

Capa de Rebeldes de marginais (divulgação).
Capa de Rebeldes de marginais (divulgação).

Com uma foto da atriz Helena Ignez na capa, em trabalho realizado para o filme A família do barulho, do cineasta Julio Bressane, o livro reúne textos escritos pela professora durante o período da ditadura militar, abordando as produções da cultura, os sinais de turbulência, visões estéticas e as dinâmicas do cenário artístico brasileiro. No texto de apresentação do livro, dedicado aos seus três filhos, Heloisa disse que se sente como se estivesse dividindo também uma grande parte da sua vida, “que se mistura às experiências e pesquisas em torno desse tempo de medos e sonhos”.

Testemunha dos acontecimentos, ela acompanhou e escreveu, no calor do momento, sobre várias questões do cenário cultural, em panoramas que se interligaram com a conjuntura política e seus dilemas. O grande mérito do seu trabalho envolveu a capacidade de observação, mediação e escuta atenta dos diversos atores envolvidos no campo cultural, como cineastas, cantores e escritores. É importante contextualizar a trajetória da professora para a compreensão da sua produção, influências e redes de sociabilidade, embora a marca da observação dos fenômenos, no aqui e agora, tenha sido seu potencial de investigação.

Nos seus tempos de estudante de Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Heloisa fez amizade com a equipe que produzia o jornal Metropolitano e integrou o grupo universitário de teatro. Foi assistente do professor Afrânio Coutinho, seu orientador no mestrado e doutorado em Literatura, na antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). Os seus primeiros cursos e trabalhos acadêmicos mostram predileção por dois autores: José de Alencar e Lima Barreto. No final dos anos 1960, os textos de Roland Barthes começaram a aparecer como referência em suas aulas e estudos. Na UFRJ, construiu uma longa trajetória acadêmica em projetos variados, entre eles, a criação na Escola de Comunicação (ECO) do Centro de Documentação Cultural, que mais tarde daria origem ao Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos. Dirigiu documentários, assinou coluna em jornal e organizou exposições (Hollanda, 2009).

A avaliação da professora a respeito do cenário cultural instaurado com o golpe militar de 1964 tem forte afinidade com a visão do crítico literário Roberto Schwarz, autor do texto Cultura e política, 1964-1969, em que ele fez uma contextualização da produção cultural brasileira da década de 1960 levando em conta as limitações e contradições das iniciativas surgidas no período. Schwarz propõe o conceito de “hegemonia cultural de esquerda” para explicar as dinâmicas culturais nos primeiros anos da ditadura militar. Apesar do comando da direita no Brasil, que derrubou o governo de João Goulart, Schwarz argumentou que a esquerda conduzia grande parte dos processos culturais e, em suas próprias palavras, dará “o tom” nos “santuários da cultura burguesa”.

Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras.
Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras.

No texto “O que fazer?”, Heloisa afirmou que o golpe traz consigo a reordenação dos laços de dependência, a intensificação do processo de modernização, a racionalização institucional e a regulação autoritária das relações entre classes e grupos e, nesse cenário, a dinâmica da produção cultural dificilmente poderia ser avaliada senão em confronto com as questões de ordem política, colocadas pelos movimentos sociais. Na avaliação da professora, houve uma situação até certo ponto paradoxal: “o país, encaminhado pelos trilhos modernos da industrialização dependente, encontra suas elites cultas fortemente marcadas por uma disposição que, em sentido ampliado, poderíamos dizer de esquerda”.

De autoria de Armando Costa, Oduvaldo Vianna e Paulo Pontes, o musical Opinião, que estreou no Rio de Janeiro em dezembro de 1964, foi apontado como a primeira resposta ao golpe, trazendo uma novidade importante, diferentemente do teatro realizado pelo Centro Popular de Cultura (CPC) na fase Goulart: o contato com setores da classe média e estudantil. Segundo a autora, a mobilização desse novo público, formado em sua maioria por estudantes e intelectuais, “revelava os limites da nova conjuntura e deixava entrever a formação de uma massa política que conheceria seu momento de força e radicalização nas passeatas de 1967 e 1968”.

Para a professora, os movimentos do Cinema Novo e do Tropicalismo ganharam relevância diante do momento de readequação dos trabalhos intelectual e artístico, e de dificultada relação entre a produção cultural e a militância política. Com o Cinema Novo assumindo um papel de frente, no campo da reflexão política e estética, e expressando o conflito e as ambiguidades que dilaceravam as práticas políticas e culturais naquele momento, e o Tropicalismo, ao catalisar os impasses da situação pós-1964, iria explodir no movimento de renovação da canção popular. No teatro, a encenação da peça O Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina, aproximava-se do cinema de Glauber Rocha e da renovação conduzida na MPB pelo grupo tropicalista e do trabalho de vanguarda das artes plásticas. Heloisa considerou que se configurava uma vasta área de afinidades no campo da produção cultural que envolvia uma geração sensibilizada pelo “desejo de fazer da arte não mais o instrumento repetitivo e previsível de uma veiculação política direta, mas um espaço aberto à invenção, à provocação e à procura de novas possibilidades expressivas, culturais e existenciais”.

Em “O vazio cultural: ame-o ou deixe-o”, Heloisa fez considerações do cenário cultural que divergem das interpretações do jornalista e seu amigo, Zuenir Ventura. Em reportagem na revista Visão, com base em depoimentos de intelectuais, Zuenir cunhou a expressão “vazio cultural” para explicar os impasses e desafios da produção e criação cultural frente às pressões do mercado e aos entraves do governo militar na década de 1970. Para a autora, o cenário de interferência do Estado no processo cultural e do rigoroso controle político da veiculação das mensagens passa a exigir dos intelectuais e artistas uma série de redefinições, recolocando em novas bases o debate de suas funções e de seu lugar social, o estabelecimento de novas táticas, a composição de novas alianças e até mesmo a opção por experiências formais e de linguagem.

Em especial, como forma de demonstrar que o “vazio” não se sustentava, Heloisa esteve atenta às produções da poesia marginal e aos comportamentos e valores da contracultura de liberação sexual, experiência com drogas e busca da liberdade. Frequentou os eventos e reuniões da geração do mimeógrafo, lançando, em 1976, a antologia 26 poetas hoje, com textos de Ana Cristina César, Torquato Neto, Chacal, Waly Salomão, entre outros. A poesia marginal, de acordo com a autora, se afirma na segunda metade da década de 1970 de maneira independente, tanto do mercado cultural aquecido do momento quanto das novas políticas culturais “amigáveis” anunciadas pelo governo do presidente Ernesto Geisel.

As suas pesquisas sobre o período da ditadura militar, realizadas em parceria com Marcos Augusto Gonçalves, indicaram que, nos anos 1970, surgiram condições para a consolidação de um mercado para a produção cultural e outras características, como indícios da profissionalização do escritor, o “surto” da poesia, a promoção de concursos literários, a proliferação de revistas da área, o lançamento de obras por editoras do ponto de vista mercadológico e a abertura de espaço da imprensa para os suplementos literários.

Na avaliação de Heloisa, as características da poesia marginal, que passam pela quase identificação entre vida e arte, vão encontrar forte semelhança com o teatro alternativo do Asdrúbal Trouxe o Trombone, criado no Rio de Janeiro em maio de 1974, e com o grupo musical Novos Baianos. Em outra frente, diversa do ethos marginal, ela apontou também o papel da imprensa alternativa na resistência ao controle de informações e divulgações político-culturais do período de forte censura da grande imprensa.

A trajetória e a produção da professora envolveram os desafios de apontar e interpretar as dinâmicas culturais, em um diagnóstico que as ligassem com contextos políticos na abordagem de assuntos até mesmo pouco observados (ou renegados) pelo meio acadêmico. Os textos ajudaram a abrir a discussão nos espaços onde fluíram e deixaram, em grande medida, caminhos e sugestões que podem ser avaliados e interpretados por novos leitores e interessados nas relações entre cultura e política. Os textos representam uma visão (entre outras possíveis) ao se lembrar daquela época.

Com estudos que caminharam para outros temas (a cultura produzida nas periferias urbanas, as relações de gênero e o impacto das tecnologias digitais na produção e no consumo), Heloisa fez algo importante neste livro, pouco ainda notável no meio universitário: o compartilhamento das suas fontes de pesquisa, em uma abertura de gavetas e arquivos onde se encontram potenciais de novas pesquisas. Ao final do livro, com o título “O livro vivo: entrevistas e documentos audiovisuais”, o leitor encontrará QR codes para interação que levam a vídeos, entrevistas, depoimentos, áudios e imagens do acervo da autora, em uma iniciativa que demonstra a generosidade e a partilha de própria parte da sua vida, dedicada a compreender o campo cultural brasileiro.

* Felipe Quintino é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).
Referências bibliográficas
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Escolhas: uma autobiografia intelectual. Rio de Janeiro: Carpe Diem; Língua Geral, 2009.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

TEIXEIRA, Heloisa. Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.

VENTURA, Zuenir. O vazio cultural. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.
Resenha
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Onde pastam os minotauros

Onde pastam os minotauros (Todavia, 2023), de Joca Reiners Terron, se insere no conjunto de romances brasileiros que, desde 2021, têm tentado dar conta da experiência coletiva da pandemia da Covid-19. Misturando um thriller bem construído com elementos de fábula, produz uma alegoria sobre os efeitos da exploração da natureza, como a desigualdade social e o surgimento de desastres “naturais”.

Joca Reiners Terron em foto de Renato Parada
Joca Reiners Terron em foto de Renato Parada

O romance conta a história de três trabalhadores de um matadouro em Mato Grosso (“um Mato Grosso a um só tempo imaginário e perturbadoramente próximo da realidade”, conforme consta na orelha). A empresa domina a economia da cidade onde moram os protagonistas, Crente, Cão e Lucy. A narrativa acompanha os três desde as 5h26 da manhã até a meia-noite da última segunda-feira útil de 2021, dia em que planejam roubar o matadouro. O frigorífico tem se especializado em abate halal, e para isso os abatedores não muçulmanos foram despedidos ou rebaixados a cargos com salários menores. Interessados em vender também carne kosher, os proprietários vão receber naquele dia a visita de adidos da embaixada israelense e de um especialista nesse tipo de abate.

O enredo do thriller é entremeado pela história pregressa dos três personagens e pela história da região onde fica matadouro, que se afasta do realismo ao incluir a fábula de um Minotauro nascido no Centro-Oeste brasileiro. Além disso, cinco capítulos, os únicos narrados em primeira pessoa, assumem o ponto de vista de um touro que observa os trabalhadores.

Os capítulos narrados pelo touro reforçam a alegoria. Num recurso irônico ao naturalismo, o narrador-touro vê os trabalhadores do frigorífico como um sujeito coletivo, incapazes de transcender a condição de animais humanos, sujeitos ao determinismo do ambiente, da genética ou da história. Afinal, “desde o nascimento” esses humanos “estão acorrentados à paisagem invariável que se estende até o horizonte” e “seus dias são embrutecidos pela fadiga”. O touro-narrador, porém, sabe que a origem dessa tristeza e desse embrutecimento não está apenas na paisagem, mas no fato de que os donos da terra são também donos “do tempo que se esvai”, ou seja, do tempo dos trabalhadores.

A pandemia torna-se, assim, símbolo da autoimolação de uma sociedade que não sabe mais se alimentar sem produzir pobreza, como diz o touro-narrador. Há a tirania dos oprimidos pelos ricos e poderosos, no que se incluem as igrejas evangélicas, já que é numa delas que a mulher e a filha do Crente são contaminadas pelo vírus, o que causa a morte da primeira. Essa tirania produz um desastre civilizatório, assim como a crise da Covid-19. Como contraponto a essa tirania e a esse desastre, o romance nos oferece a revolta de alguns oprimidos.

Ao misturar convenções de gêneros literário como o thriller e a fábula, Joca Terron tenta dar conta das contradições que levaram a sociedade ao atual impasse que enfrentamos. Ao terminar a leitura, porém, o romance reforça o que o leitor já sabe: que não evitaremos o destino se não mudarmos nossa relação com o mundo que nos cerca.

* Lucas Bandeira é professor adjunto do Instituto de Letras da UERJ e editor da Revista Z Cultural;
Entrevista
Tempo de leitura estimado: 45 minutos

É preciso falar: Entrevista com Dulce Pandolfi

A professora e historiadora Dulce Pandolfi recebeu a Revista Z para uma corajosa conversa sobre a violência política da Ditadura Militar de 1964-1985 no Brasil. Entre amigos, ela falou da importância, sobretudo neste momento de ascensão da extrema-direita no mundo, da responsabilização dos agentes que promoveram a ruptura democrática, a repressão política e a tortura como método para calar os opositores do regime. “Meu problema não é prendê-los, é reconhecê-los como torturadores. […] Não fazer isso foi muito ruim para a sociedade brasileira, porque dá uma sensação de impunidade muito grande”, defendeu.

Dulce é filha de um professor universitário e crítico literário e cresceu convivendo com a intelectualidade progressista de Pernambuco na época do Governo Arraes. Ingressou na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco em 1967 e logo se envolveu com o movimento estudantil. Procurada pela polícia pernambucana, fugiu para o Rio de Janeiro. Foi presa em agosto de 1970 e levada para o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna), no quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Nos três meses que esteve ali, foi barbaramente torturada, fatos que relatou em depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro em 2013. Ao sair da prisão, voltou a estudar Ciências Sociais, agora na Universidade Federal Fluminense (UFF), e formou-se em 1975. Em 1976, entrou no CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, onde atuou até fevereiro de 2018. Em 1981, concluiu o mestrado em Ciência Política pelo IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e, em 1981, o doutorado em História na UFF. Dulce foi ainda diretora do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e é autora, entre outros livros, do clássico Camarada e Companheiros: História e Memória do PCB, editado pela Relume Dumará em 1995. Em 2003, publicou em coautoria com Mario Grynszpan, A favela fala, pela Editora FGV. Hoje, está à frente da Rádio Cidadania, onde se relaciona com o coletivo de vozes de comunidades periféricas.

Foto de Dulce no DOI-CODI em 1970 (Acervo Pessoal)
Foto de Dulce no DOI-CODI em 1970 (Acervo Pessoal)

Italo Moriconi: Você acha que a sociedade brasileira fez o ajuste de contas com o que houve de pior no período da ditadura, que foi a repressão? E como é o seu ajuste de contas? Seu relato é muito impressionante, assim como sua capacidade de resistência, resiliência, para usar essa palavra da moda, e de reinvenção e reinauguração. Como você se situa diante desse ajuste de contas tão parcial?

Dulce Pandolfi: Fico muito honrada com essas palavras do Italo. Às vezes me sinto um duplo – usando uma expressão do Luiz Eduardo –, às vezes parece que não fui eu que passei por aquilo tudo, parece que foi com outra pessoa. Realmente foi uma barra impressionante. Eu faço questão de dizer sempre, quando fui presa, não é que eu não sabia. Não, acho que todos nós que militávamos sabíamos que a barra era muito pesada, que tinha uma tortura estabelecida no Brasil. Então quem estava em organização, assim como eu na ALN [Aliança Libertadora Nacional], sabia que, no dia que fosse preso, seria um massacre, mas a teoria na prática é outra. O negócio é um absurdo tão desumano que chegava naquele limite, enfim… Então foi pauleira mesmo. Às vezes, penso: como é que eu posso estar aqui hoje? E, como você falou, com esperança e com vida. Acho que sou uma pessoa que gosta muito da vida. Isso para mim é até um pouco de mistério. Ouço alguns depoimentos de pessoas que dizem: “Ah, eu queria morrer ali.” Eu nunca tive vontade de morrer na tortura. Tentava me fingir de morta, é diferente. Mas queria viver ao me fingir de morta. “Eu tenho que sobreviver a isso tudo”, pensava. Então, montei uma estratégia de sobrevivência. Eu já contei em alguns depoimentos da tortura. Em algumas horas, achei que ia enlouquecer, porque você sai da tortura e fica ouvindo outras pessoas sendo torturadas, sabendo que vai voltar a qualquer momento. É uma coisa terrível aquela espera.

Lembro de fazer duas coisas na Polícia do Exército: uma era contar os ladrilhos da cela no quartel. Não tinha nada para fazer ali. Acho que era saudável. Inventei também de tirar palhas do colchão. Fazia isso escondida, porque tinha medo de alguém ver. Tudo era proibido, qualquer coisa ou qualquer tentativa de sobrevivência era impedida. Pegava as palhas e fazia tranças, amarrava e amarrava. Depois desamarrava, botava de novo no colchão. Enfim, fui bolando esse tipo de coisa. Quando saí da prisão, contava minhas torturas para todo mundo, era algo meio louco, mas também uma maneira de extravasar. Eu chorava. Lembro da empregada horrorizada comigo. Eu falava tanto que, um dia, denunciei as torturas, falando dos meus castigos, e fui transferida da PE [Polícia do Exército] para o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social]. Eu não sabia se ia ser transferida de vez, a gente não sabia de nada, eles eram donos da nossa vida ali. Me levaram para o DOPS e fiquei encantada com o que vi, porque não tinha tortura, a cela era limpa. Foi aí que conheci a Germana Figueiredo, que o Luiz Eduardo conhece. Ela limpava a cela com primor. Quando fui depor, comecei a denunciar as torturas para o cara que estava me interrogando. Aí ele virou para mim e disse: “Você é louca, senhora?”. Eu digo: “Não, por quê?” “Você está denunciando tortura para mim? Então, significa que você não está curada, vai ter que voltar para a PE e apanhar mais para entender que não é assim. Você tem que ficar quieta, tem que responder as minhas perguntas e não denunciar tortura.” Então voltei para a PE.

Uma coisa que me ajudou muito, que falei no primeiro depoimento que dei para o Luiz Eduardo, é que foi muito bom ter voltado a estudar. Havia certo preconceito com o estudo, quer dizer, as pessoas saíam e ficavam naquele gueto dos ex-presos, achando que a universidade era toda vendida. Consegui transferência para a [Universidade Federal Fluminense] Fluminense e, como eu era pernambucana, voltei a estudar sem ninguém saber da minha história, como uma anônima qualquer. Entrar naquele universo foi um choque cultural positivíssimo, porque eu tinha passado um ano e meio presa, vivi um pedaço da clandestinidade em Pernambuco, e cheguei aqui na UFF, onde estava o centro cultural: drogas, homossexualidade, uma esquerda sem estereótipo, de cabelos grandes, o que para mim era então inadmissível. Enfim, era um mundo completamente diferente, que me fez um bem enorme. As pessoas foram me descobrindo aos poucos, até porque o meu caso se tornou público, mas eu já estava bem enraizada na universidade, com novas amizades. Voltar a estudar foi muito saudável, mas voltei apenas porque deu vontade de estudar, e ter caído na Fluminense, que acho que era o melhor curso de Ciências Sociais no Rio na época, foi muito bom. Lembro em detalhes, a gente estudava [Karl] Marx e Lenin e eu ia com o livro encapado porque não tinha coragem de deixa-lo à mostra. Achava aquilo uma loucura, como é que alguém podia estudar Lenin em 1972? Ia tremendo de medo porque tinha processos correndo contra mim e eu podia ser presa a qualquer momento. Mas foi uma experiência que me ajudou muito.

Eu me tornei um case. Atualmente esse é um assunto muito recorrente na minha vida, sou muito solicitada a contar, a falar. Eu sei que meu depoimento [na Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro] foi bombástico. Hoje mesmo, acabei de gravar um vídeo para uma série de televisão sobre a Zuzu Angel. Quem vai ser a âncora é a Rita Von Hunty. Na minha entrevista, claro que perguntaram sobre as torturas etc. e tal. No início, eu contava mais no particular, não queria publicizar porque aquilo também me incomodava um pouco. Lembro que estava na Fundação [Getúlio Vargas] quando fui chamada porque tinha um torturador ligado ao governo do Rio que tinha me torturado barbaramente e depois deu um depoimento terrível na Comissão da Verdade. O Grupo Tortura Nunca Mais tinha acabado de ser montado, estávamos em 80 e pouco, no governo Brizola, era o início da redemocratização, mas ainda ditadura, e me perguntaram se eu topava dar um depoimento sobre como tinha sido torturada por ele no Palácio Guanabara. Eu fiquei em pânico, lembro que me desesperei, tinha televisão, mídia. Como é que eu vou denunciar esse homem de público? Mas também não conseguia não ir. E o pessoal: “É importante, o seu depoimento é chave”, o pessoal queria denunciá-lo, porque ele estava em um cargo de confiança do governo Brizola, imagina! Ele estava no BANERJ [Banco do Estado do Rio de Janeiro], mas as pessoas não sabiam. Realmente os torturadores e a tortura foram abafados. Jamais Brizola colocaria um torturador no governo se soubesse da história. Então, a ideia era essa, que a gente fosse ao Palácio [das Laranjeiras] para denunciar o torturador. Me lembro que fui, mas sofri muito. Quase entrei em parafuso com isso, foi uma semana de indecisões, mas resolvi ir e obviamente saiu na primeira página do Jornal do Brasil: “Dulce Pandolfi dá depoimento dizendo que seu torturador que fez isso e aquilo”. [O JB publicou, no dia 29 de junho de 1985, a seguinte chamada: “Major do Banerj é tido como o maior torturador”, referindo-se ao major da PM Riscala Corbaje, então assessor de segurança da presidência do Banerj.] Nessa época, a diretora do CPDOC, a Celina [Vargas], foi nota mil. Ela foi super solidária a mim. A Fundação [Getúlio Vargas] não sabia que tinha, entre os seus quadros, uma pessoa que tinha passado por aquilo tudo. Ela veio me dizer: “Estou te chamando aqui para prestar solidariedade a você e, se precisar de alguma coisa, me fale”.

Recorte da capa do Jornal do Brasil de 29 de junho de 1985 (Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional)
Recorte da capa do Jornal do Brasil de 29 de junho de 1985 (Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional)

Sei que sou uma referência. Sei que sou tachada como aquela que teve a hora da tortura, aquela que foi marcada. No início, falava como uma maneira de extrapolar aquilo, mas evitava ter um papel público. Lembro de negar quando fui convidada para o Grupo Tortura Nunca Mais. Eu era muito ligada à Cecília Coimbra, uma das articuladoras do grupo, que o coordenou muitos anos, e na minha cabeça ser do Tortura Nunca Mais era viver em função desse passado que não quero viver. Quero construir para a frente. Não quero ficar vivendo a tortura. Eu falava como desabafo, não queria que a sociedade soubesse, não queria viver em função disso, mas depois me tornei uma referência. Sei disso e hoje sou bastante solicitada para falar sobre o que aconteceu. Me dói profundamente, por isso acho que a luta não tem fim e temos um papel educativo.

Lembro que uns dos dias marcantes na minha vida foi quando fui assistir a um filme da Lúcia Murat, que depôs comigo na Comissão Estadual da Verdade, um depoimento bombástico. É só saber que tem um filme sobre a ditadura que vou assistir. Vou, choro, me debulho toda, mas tenho que estar lá! Fui ver o filme da Lúcia Murat uma noite no Cine Paissandu, que era uma referência da nossa geração. Era a última sessão, das dez da noite. Pego um táxi com o Agostinho [Guerreiro], meu companheiro, e estou totalmente tomada. No táxi, era uma mulher dirigindo, eu chorando muito e ela apavorada. Ela perguntou: “O que aconteceu?” Falei aos trancos e barrancos: “Assisti um filme agora sobre as torturas e estou super tomada”. A mulher, que você não pode dizer que é uma alienada, porque é uma motorista, uma mulher dirigindo um táxi à meia-noite, uma mulher trabalhadora, falou: “Tortura?” Eu disse: “Sim, sobre tortura”. “Esse filme é sobre a Argentina?”, ela perguntou, e eu respondi que era sobre o Brasil. “Mas teve tortura no Brasil? Eu só sei da Argentina.”, ela disse espantada. Foi aí que chorei mais e disse: “E a nossa luta, gente? Como é que uma mulher dessa não sabe do que aconteceu”. Eu perguntei a idade dela, e era um pouco mais nova do que eu, havia morado em Brasília, onde tinha feito um curso não sei de quê. Ela me disse que nunca havia sabido de ditadura no Brasil, que ela votava, e me perguntou se eu tinha certeza do que falava. “Eu tenho certeza, fui uma das torturadas e ainda estou aqui”, respondi para ela, que ficou desconcertada.

Tive experiências como essa também com alunos. É duro e por isso acho que a gente não pode parar, é isso que me move. Nunca nego quando sou convidada a falar sobre essas coisas, porque tem um lado pedagógico para as pessoas mais jovens. A gente viveu um período que espero que não volte, mas a democracia brasileira vive sob ameaça e agora, fazendo um link com 2023, o que aconteceu com aqueles vândalos em Brasília tem a ver com o pouco sucesso da nossa luta, por não termos levado aqueles torturadores para a condenação, para a prisão. Hoje tenho horror a prisão, horror, então nem sei se a prisão é a solução. Meu problema não é prendê-los, é reconhecê-los como torturadores. Afastá-los de cargos públicos, impedi-los de ocupar qualquer cargo público. Não fazer isso foi muito ruim para a sociedade brasileira, porque dá uma sensação de impunidade muito grande. A polícia se sente dona do mundo, dona da vida dos outros, essas chacinas em favelas, a maneira como abordam as pessoas pobres e negras é terrível, e acho que tem uma relação com esse fato. Por isso, acho que a gente tem que lutar para que aqueles caras que fizeram o 8 de janeiro em Brasília não sejam anistiados, não podem ser, e tomara que a gente consiga agora, depois de muita luta. Em 1964, eu achava que o mundo era linear e caminhava para o socialismo, que o governo Arraes, com o Paulo Freire e aquela turma toda, era um caminho sem volta e que os camponeses iam ter seus direitos. Fui muito engajada e lembro de ter tomado um susto enorme no dia do golpe: “Não, esse negócio não pode parar, como é que pode parar?”. Hoje sei que são idas e vindas. Tomara que neste momento a gente consiga retomar essa luta, porque é uma luta sem fim mesmo. Agora foi reativada a Comissão dos Mortos e Desaparecidos, a Comissão da Verdade chegou a fazer algumas recomendações, tomara que elas tenham algum desdobramento agora, porque na época não teve. A Dilma foi impedida, depois veio o governo Bolsonaro.

IM: A primeira vez que seu caso específico veio a público foi nessa ocasião do governo Brizola ou já tinha vindo antes?

DP: Não, denunciei minhas torturas quando ainda estava presa. E também em uma publicação na Alemanha. Depois, meu caso saiu no livro Brasil: Nunca Mais. Denunciei as torturas também nas auditorias militares. Essa é uma outra particularidade da nossa sociedade. Aqui se montou, durante a ditadura, um Estado que tinha, apesar do arbítrio, um lado altamente legal. Isso não aconteceu na Argentina. Fiquei três meses no DOI-CODI, ninguém sabia que eu estava presa, aquela coisa totalmente ilegal. De repente, vou para um presídio e começa uma vida “legal”. Como presa, a gente ia para as auditorias militares e havia um processo que corria legalmente. Porque no Brasil temos a Justiça Militar. Nós, os presos políticos, éramos atendidos pela Justiça Militar. Havia as auditorias militares, onde a gente depunha, e os advogados orientavam, a quem tivesse coragem, a denunciar as torturas. Nem todo mundo fez isso, e entendo por quê. Nossa situação era constrangedora. Era uma fila de militares datilografando na máquina de escrever enquanto a gente falava. Era um interrogatório clássico: nome, sua minibiografia, e depois começavam a perguntar: “Você fez isso?”, “Você fez aquilo?” etc., e, no final, tinha aquele: “Mais alguma coisa a declarar?” Era quando a gente declarava as torturas. Era tão burocrático que o escrivão continuava batendo à máquina e pegava seu depoimento, que era assinado por todos aqueles caras. É incrível esse arquivo, que é o arquivo Brasil: Nunca Mais. É uma das coisas mais ricas do mundo, porque talvez seja o único lugar em que você tem depoimentos, provas de torturas registradas e assinadas pelos próprios torturadores. Formou-se uma comissão quando começou a redemocratização, antes da Anistia, que era um grupo de pessoas coordenado por Dom Evaristo Arns, com o Jaime Wright, Paulo Vannuchi, a advogada Eny [Moreira]. Eles se juntaram e começam a retirar aquele material dos acervos das autoridades militares e do Superior Tribunal Militar. Eles pegavam aquelas pastas clandestinamente e xerocavam os documentos. No dia seguinte, devolviam escondido as pastas. Com isso, montaram um acervo monumental. Foi quando o meu depoimento veio a público. O livro Brasil: Nunca Mais foi coordenado por Dom Evaristo Arns e pelo Jaime Wright e lançado em 1985.

Um dia, estava na sala de espera do dentista e uma amiga me mostrou o livro e disse: “Olha, Dulce, que barra, não sabia que você estava aqui no livro.” Levei um susto porque não sabia do livro. Nele tinha inclusive a minha aula de tortura. E antes, na Fluminense, teve outro episódio. Entrei em 1972, era 73 ou 74, já não sei, e meu nome sai no jornal, porque a gente ia ter auditoria militar. A diretora viu. Na minha cabeça de ex-presa, achava que, como era uma diretora de instituto, só podia ser uma mulher de direita. Era o governo Médici. Quando lembro que voltei a estudar no governo Médici, que ia de noite para a UFF, pegava barca, penso quanto de coragem eu devia ter também, com os processos rolando, porque fui solta por um relaxamento de prisão preventiva, mas meus processos continuavam na auditoria. Então ela me chama na sala dela, para saber se eu era aquela pessoa, e aí eu falei que não. Olha a maluquice! “Aquela jovem?” “Não sei quem é não, não sei do que se trata.”. Quando cheguei em casa, pensei: “Como você falou que não era você? Você tem que dizer que é você.” Porque foi pior ainda, porque sonhei. No dia seguinte, voltei para dizer que era eu e foi incrível porque ela falou: “Dulce, sei que é você, claro. E você nem me deixou continuar. Te chamei porque imagino a sua barra, é um processo barra pesadíssima. Um processo bem longo. Assalto a banco, ação armada. Eu só quis garantir que posso te ajudar.” Toda vez que tinha alguma audiência, eu escapava, fugia, pois não queria voltar ser a presa, se fosse condenada a dois anos teria que cumprir seis meses. Se eu fosse condenada a quatro anos, ficaria um ano e meio presa e não queria nunca mais passar por uma prisão. Então, minha ideia era nunca me apresentar na auditoria, porque quem se apresenta, se for condenado, já sai preso de lá, algemado. Então, eu escapava toda vez. Cada vez que tinha uma audiência dessa, acho que tive cinco processos, escapava. Enfim, não sei quem leu, quem não leu, mas ela, a diretora ficou sabendo. Depois disso, fiquei mais aliviada e ela ficou muito amiga minha. Nunca poderia imaginar que, sendo diretora do Instituto de Filosofia em 1973, no governo Médici, ela pudesse ser uma pessoa bacana.

Lucas Bandeira: Antes de passar a palavra para o Luiz Eduardo, queria pedir que você falasse mais sobre o momento antes da prisão em Pernambuco. Qual era a sua proximidade e da sua família com o momento político antes da prisão?

DP: Acho que Pernambuco foi o principal laboratório de uma postura mais avançada em relação àquelas bandeiras importantíssimas das reformas de base, que eram as grandes bandeiras do governo Jango [João Goulart], cujo centro era a reforma agrária. Havia aquela ideia de que o Brasil era um país muito atrasado, muito desigual, muito injusto, e que, se não se fizesse uma reforma agrária, não conseguiria avançar, para inclusive atingir o capitalismo. Em várias análises, inclusive a do Partido Comunista, a gente era um país ainda pré-capitalista. E Pernambuco foi uma experiência incrível, porque, com o governo Arraes, foi também um celeiro de quadros. A gente tinha um prefeito, o Pelópidas Silveira, muito interessante, muito progressista, e uma série de pessoas que giraram em torno disso, como o Paulo Freire, que é o pai de alfabetização de adultos. O Movimento de Cultura Popular de lá também foi muito interessante. Eu era muito jovem, não participei dessas coisas, mas estava muito engajada. Fui de um colégio de freiras super tradicional, minha família era bem tradicional. A minha mãe era ligada a engenho, meu avô era senhor de engenho, e meu pai era um acadêmico, um intelectual, professor de direito e muito voltado para a literatura, foi até crítico literário.

Tinha um grupo que transitava muito lá em casa. Um grupo formado nos anos 50 que hoje é objeto de estudo, o Gráfico Amador, que tem umas figuras incríveis, como Aloísio Magalhães, Orlando [da Costa Ferreira], a Ana Mei [Barbosa], o pessoal de São Paulo, Glauco Campello, o Osman Lins. Eles me chamavam de Dulcinha. Sebastião [Uchoa Leite] frequentava lá em casa. Eles se reuniam todo sábado e, como minha casa tinha um terraço muito grande, eles se revezavam entre a minha casa e a casa de Gastão de Holanda, que era compadre do meu pai e uma figura incrível. O Gastão foi poeta e romancista. Eu muito garota convivi com essa turma. Me lembro que minha mãe dizia assim: “Vai dormir, menina!” Eu sentava em uma janela baixa e ficava ouvindo aqueles papos, porque achava incrível. Às vezes, até o Ariano Suassuna ia lá, o João Cabral [de Melo Neto] também chegou a ir nessas reuniões. Era um pessoal progressista, mas não era filiado a partido. Pelópidas era nosso vizinho, a gente se frequentava, eu adorava ir na casa dele. Meu pai também era um cara progressista, e aquilo tudo me encantava muito. Era professor da faculdade de direito. Meu irmão já estudava direito quando entrei para a universidade. Então, o meu trajeto já estava quase decidido. Também tinha uma prima que militava muito, que fazia medicina e era muito próxima a mim.

Então, eu vivia um pouco esse clima. Por outro lado, tinha a família da minha mãe, essa coisa de engenho, usina, um lado mais reacionário. Eu gostava muito deles, mas tinha alguns comentários que me chocavam. Quando começaram as greves camponesas no final do governo Arraes, em 1963 ou 1964, uma tia minha entrou em parafuso: “Os trabalhadores vão parar de cortar cana, porque agora vão ter direitos!” Isso me marcou profundamente. No dia do golpe, fiquei arrasada, fiquei deprimida. Eu tinha 14 anos e não queria nem voltar para a escola, porque era um colégio muito tradicional. Eu devo minha militância também a essas freiras, porque o colégio era tão reacionário que eu fazia umas revoltas lá dentro. Ficava inconformada. A gente tinha dois modelos de freira, uma que a gente tinha que tratar bem porque era rica e a outra que a gente tinha que tratar mal porque era pobre. Uma era soror e a outra era a ma soeur, até a roupa era diferente. Essa ma soeur era quem limpava o banheiro, varria as coisas, atendia na cantina, e as outras davam aula pra gente. E a gente levantava e abaixava a cabeça quando passava a soror. Aquilo me dava uma revolta, até que um dia eu chamei as meninas da minha sala para a gente fugir, fazer uma incursão pela clausura e descobrir como era lá dentro as diferenças de classe. Foi um choque! A gente fugiu, subiu a escada e montamos um esquema de segurança. Eu liderando, imagina. E aí descobrimos que até a mesa era diferente, as camas eram diferentes, minha revolta ficou monumental. Então, devo um pouco a essas freiras do Colégio Damas, dissidência do Sacré-Coeur do Rio, a minha consciência de classe, a minha militância.

Luiz Eduardo Soares: Tenho uma imensa admiração pela Dulce, ela sabe disso. Tive a oportunidade de entrevistá-la para o livro Rio de Janeiro, que é dedicado a ela. O capítulo que escrevi foi agora muito bem elaborado pela Dulce na primeira exposição, que é essa relação problemática entre o público e o privado quando se trata da exposição do sofrimento pessoal da dor, no nível de radicalidade, de brutalidade, de vileza, de crueldade que é o da tortura. Então, é alguma coisa extremamente problemática e isso para mim sempre esteve presente, porque sou amigo da Dulce desde que a conheci em 1972 por meio da Germana Figueiredo, companheira de cela e de infortúnio dela, que também merecia mais reconhecimento, agora post mortem, do que ela teve até aqui. As famílias eram amigas e nós nos encontrávamos regularmente. Convivemos eu e Bárbara, com quem era casado, Dulce e Agostinho. Nossos filhos cresceram, brincando, se encontrando etc. A Dulce seria depois madrinha do meu primeiro neto. Nós éramos próximos e jamais tinha ousado fazer qualquer pergunta a ela sobre tortura. Achava que seria uma indelicadeza, um desrespeito até. Mas, durante muitos anos, tive curiosidade, não mórbida, mas no sentido de ajudar a trazer à tona, porque também acho que esses relatos e a memória reapresentada são absolutamente fundamentais na luta política contemporânea. São cruciais particularmente porque nós não tivemos justiça de transição, como a Dulce já disse. Nós não tivemos um momento de reconhecimento da verdade, porque, como ela disse também, a punição é uma segunda questão, mas o fundamental, como Mandela reconheceu, é o reconhecimento da verdade. Isso retorna como trauma a nos assombrar, e só é possível a reemergência do fascismo no Brasil, embora haja mil condicionantes para isso, porque há esse negacionismo histórico. Então, quando a Dulce corajosamente deu aquele depoimento a Comissão da Verdade do Rio, tomei coragem. Eu estava escrevendo sobre o Rio de Janeiro e não queria escrever sobre cartões postais ou trivialidades, queria trazer cenas que eram eloquentes, pouco conhecidas e mais trágicas. Ela generosamente me concedeu várias horas de entrevista e uma parte sintética, que está lá no capítulo “A mulher em comum”. Dado esse contexto, como é que você avaliou essa resistência do governo Lula em retomar o esforço de memória? Isso ficou muito claro nos eventos aí de cinquenta anos do golpe e toda a orientação para o governo não se manifestar. Nós entendemos as motivações táticas em função da correlação de forças, isso tem sua lógica política, mas causou muita revolta. Talvez essa decisão tenha expressado um tipo de avaliação do que vale a pena enfrentar, mesmo com o preço do desgaste, e o que não vale a pena.

DP: Eu estava vendo televisão quando Lula deu aquela entrevista, porque sou uma lulista. O Lula vai falar, estou sabendo, vou lá assistir. Quando ele falou aquilo tomei um susto: “Não podemos remoer o passado.” Gente, o que que é isso? Tomei um susto, não gostei, claro. Então, vou fazer uma pequena avaliação. Acho que essa não é de fato a pauta do Lula, nunca foi. Não é uma pauta que ele toca normalmente. Essa pauta é nossa. Tortura, mortos e desaparecidos, a luta por memórias de justiça e de verdade. O Lula está muito mais com a pauta da desigualdade social. Melhorar a vida dos pobres, essa é a grande pauta do Lula. Então, esse é um lado, mas eu fiquei chocada, e até surpresa, porque tem pessoas, inclusive no governo, que admiro profundamente e tem educação nessa pauta. Mas acho lamentável. Me doeu, embora explique por esse lado. Acho que as pessoas, às vezes, não têm muita ideia da barra que é ser presidente da República pós-Bolsonaro, em um momento delicado, onde essas forças estão vivas e atuando. E tinha tido atentado no ano passado. Coisa inacreditável que eles fizeram em Brasília. Fico imaginando o que deve passar na cabeça de Lula. Se alguém estivesse ali, naquele Palácio, poderia ter morrido com uma pedra, com uma foice.

Felizmente, agora, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos foi reativada. Como estava falando, a história não é linear, é um processo com vindas e voltas. É uma pena, porque o governo Bolsonaro acabou com a Comissão da Anistia. Ele fez uma coisa pior ainda, porque tentou destruir por dentro as instituições, deu àquela instituição uma função que não era dela. Acho que o caso mais irritante é o da Fundação Palmares. Ele botou um negro na Fundação Palmares, que é o resultado da luta do movimento negro, e o Sérgio Camargo dizia que o movimento negro era a escória da sociedade. E ele fez o mesmo com a Comissão da Anistia. Botou Damares para ficar lá, para pegar casos das pessoas sendo anistiadas e “desanistiar”, digamos assim. Então, o Lula tomou o poder em uma conjuntura em que a máquina do Estado está muito detonada. Como sou lulista, sofri, discordei, critiquei, mas entendo um pouco a situação dele. Felizmente temos figuras como o Nilmário [Miranda), assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade], que fez algumas coisas. Eu participei de um ato em que o Nilmário estava presente. O Nilmário, para quem não sabe, é de Minas Gerais. Ele fez caravanas lá em Minas, em alguns lugares. Não teve nada de oficial do governo, isso não teve, foi proibido, mas algumas pessoas do governo fizeram alguma movimentação, inclusive em uma marcha para Juiz de Fora. Mas acho que temos chance de ganhar o Lula para a nossa pauta, acho que a gente tem que convencê-lo, porque essa pauta é decisiva, inclusive para não corrermos o risco de ter outro 8 de janeiro de 2023. Acho que ele deve assumir essa luta por memória, justiça e verdade, porque isso vai fazer bem para o Brasil e para o governo dele.

Beatriz Resende: Dulce, quero falar muito dos seus depoimentos. Estive, na semana passada, no lançamento do filme da Lúcia Murat, O Mensageiro, um filme muito bonito. É todo passado em Niterói, com isso tirou um certo realismo às vezes excessivo e tornou o filme mais poético. É muito importante continuar a falar, é muito importante dar depoimentos, é muito importante escrever, é muito importante fazer cinema. Nós tivemos pouco disso, a Argentina tem muito mais, tem muito mais cinema e muito mais literatura. Não falo daquela literatura do primeiro momento, não, que era uma literatura mais de depoimento. Eu digo de uma ficção que relate todo o sofrimento, o golpe, o exílio. Agora ela está começando a aparecer e fiquei muito impressionada com o seu depoimento na Comissão da Verdade. Inclusive, por exemplo, a história do jacaré, que a gente achava que era uma metáfora ou não era exatamente isso, ou era um certo delírio. Quando você conta que o torturador traz um jacaré para, sobretudo, colocar em cima das mulheres, eu achei aquilo de uma força, levei alguns dias para me recuperar. Eu sofri o golpe, sofri o golpe na família, perdi minha avó. Pois quando invadiram a casa dela pela primeira vez para pegar o tio Francisco, ela enfrentou. Quando voltaram, já estavam buscando os netos. Ela subiu, teve um infarto e morreu. Meu pai perdeu todos os cargos que tinha, eu saí do país e tudo o mais, mas nunca senti o golpe como quando eu li o seu depoimento. O impacto que aquilo me deu, nem a ficção consegue atingir. A ficção poderia até ter mais liberdade em relação a tudo isso, mas aquilo é fundamental. A partir do seu depoimento, eu queria que você falasse como mulher sobre isso. A vulnerabilidade não por ser mulher, mas porque era uma presa.

DP: Ah, Beá, primeiro queria falar uma coisinha relacionada ao depoimento. Eu sei que foi uma construção, mas tão dolorosa para mim. Você não tem ideia. Passei quinze dias enfurnada, batendo aquilo no computador e chorando. A sorte é que tem computador, porque se fosse na máquina nem sei como seria. Eu fazia, desfazia, fazia, desfazia. Que coisa, gente, que sofrimento. Acho que a minha vida parou. Porque tinha a responsabilidade pública também, aquele drama que falei, entre o público e o privado. Eu ia expor todo mundo, sabia que ia ser um negócio na Assembleia Legislativa, com mídia, com tudo. Tinha meu papel de mulher, meu papel de historiadora, meu papel de mãe, de avô. Mas, acho que depois consegui, até com muito orgulho. Não sei se vocês sabem, ele foi publicado, no ano passado, pelo pessoal do MASP [Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand], que fez um livro coordenado pela Lilia Schwarcz.

Quando me chamaram para autorizar a publicação, eu disse: “É claro, fico super orgulhosa por isso”, e comentaram: “Ah, um primor literário”, mas foi muito duro.

Dulce Pandolfi com a cineasta Lúcia Murat no dia em que deram depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 2013.
Dulce Pandolfi com a cineasta Lúcia Murat no dia em que deram depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 2013.

LB: Você usa a forma do “Eu acuso”, do Emile Zola, não é?

DP: Foi o meu alívio! Então eu parei o choro… Porque tinha chegado em um ponto em que via se aproximando o dia e não conseguir fazer. Sempre odiei esse papel de vítima, de mulherzinha vítima, também não queria falar de sexo, não achava que era por aí. Também não queria me expor demais, mas queria me expor, queria denunciar. Então o “Eu acuso” me fez sair do papel de vítima. Encontrei um caminho que me confortou. Tanto que conto sobre o jacaré naquela parte do “Eu acuso fulano que colocou o jacaré em cima de mim nua.” Foi uma maneira de contar que fiquei nua, obviamente que a gente ficava nua, porque eles tiravam as nossas roupas. Mas é coisa de mulher. Imagina o que era o Recife em 1968. Como meu pai era professor universitário, chegava aos ouvidos dele que a filha estava no Savoy, um bar bem famoso na época, na Guararapes. “Ah, sua filha foi vista tomando cerveja”, o que era impossível para uma menina de classe média. Foi complicado esse papel. A gente lutando por emancipação, mas o preconceito em relação à participação da mulher era enorme. Na prisão você sente isso muito forte, até porque acho que o ódio era maior contra nós, mulheres. “Você é uma menina assim, assado, bonita, não sei o quê, tinha tudo para estar não sei onde, e se mete em uma coisa dessa.” Havia um ódio. Não sei se existia essa coisa de bater mais ou menos, mas acho que para cima da gente eles descarregavam para valer, então você sente ali o machismo em um nível! Os comentários, os deboches. Lembro que, apesar de toda noite ter uma visita dos comandantes, eles abriam a cela, entravam lá, alguns com cachorros lambendo a gente, era uma coisa barra pesada. E vinha o deboche, com o seu corpo, com você. Eu me lembro como falavam assim: “Ah, uma mulher tão bonita toda machucada, ou ela gosta de dançar muito ou ela gosta de descer de tobogã para ficar nesse estado. Chega aqui toda quebrada, é porque requebrou muito.” Comentários terríveis, terríveis. Uma companheira nossa, a Maria do Carmo Rezende, que estava grávida, ela apanhou e a gente chamou o médico para dizer: “Não dá para bater nela, ela está grávida.” E a resposta dos caras era sempre: “Teve filho porque quis, comunista não pode ter filho. Vocês não são mulheres, vocês são homens, então a gente tem que tratar como homem.” O machismo que a gente sente na pele é barra pesada. Então, senti muito, enfrentei e nunca me senti inferior. Acho que nós todas que chegamos aqui, chegamos exatamente por isso, porque, embora pusessem a gente em um lugar abaixo, a gente nunca aceitou esse lugar. E daí eles terem mais raiva da gente.

IM: Já ouvi você dizer que não faz questão de ter uma leitura linear da vida. Tanto que disse que às vezes pensa nesse período de 1964 como se fosse uma outra pessoa, e, no entanto, [sua pesquisa] está completamente ligada a esses mecanismos de cura, pela fala. E quanto a 2024, como é que você se situa? Bom, primeiro, houve uma reinvenção, porque você fez a sua carreira de historiadora, depois saiu da FGV. E agora está engajada na Rádio Cidadania, que serve como um farol, em termo de memória. Não sei se você faz algum tipo de conexão com esse tipo de militância ligada às comunidades, às periferias, às identidades.

DP: Esse mundo foi uma grande descoberta para mim. Não que eu não soubesse de nada, mas agora estou muito mais próxima. Quando fui demitida da Fundação Getúlio Vargas (FGV) – vocês sabem, aquele grande movimento etc. e tal – passei a dar aula de história em casa para pessoas da nossa geração. É uma pena eu não ter tirado foto. Uma amiga, a Flávia Martins, que foi casada com o Roberto Machado, que me propôs isso. O Roberto fazia muito isso. Então, eu dei a aula aqui pra ela nos domingos. A gente arrumava a sala e eram quarenta pessoas. Dei vários cursos de história para uma geração até mais velha do que eu. Como posso dar aulas para essas pessoas? Vários psicanalistas, o Claudius Ceccon, a Carmen da Poian. Foi um sucesso. Era um negócio tão incrível que me deu um gás danado. Até hoje eles cobram uma continuidade para o curso, mas não vai ter não. Cada coisa no seu lugar e a seu tempo, tudo tem começo, meio e fim. Logo depois fui convidada para trabalhar nesse projeto. Um dos braços do Fórum de Ciência e Cultura [da UFRJ] é a Universidade da Cidadania. Ela, na verdade, tem poucas funcionalidades, mas a ideia é que seja uma ponte entre a universidade, o saber acadêmico, e o saber popular, o mundo não acadêmico, os movimentos sociais. Fui convidada e logo depois veio a pandemia. Foi, então, que tivemos a ideia de criar uma rádio. Uma rádio onde se faz tudo on-line. Começamos com os grandes movimentos sociais, o primeiro entrevistado foi o João Pedro Stédile, o segundo foi o [Guilherme] Boulos e, depois, começamos a sacar o seguinte: faltavam as pessoas pequenas.

Hoje, acredito piamente que a saída do país é muito por aí. Esses movimentos têm uma riqueza. As pessoas não têm ideia do que tem nessas comunidades, não é pouca coisa não, é tanta coisa que a gente não consegue nem dar conta de todos os setores, o setor cultural, o de artes. A próxima entrevista que vai ao ar é inacreditável, é de uma senhora da Favela de Manguinhos que tem oitenta e tantos anos. O nome dela é Celeste, ela é poeta. A Conceição Evaristo é super fã dela. Ela foi super perseguida enquanto negra. Imagina! Oitenta e tantos anos, contando que ela foi de um orfanato onde a mulher gritava: “As negrinhas atrás, as negrinhas não podem se misturar com os brancos”. Hoje, ela volta para a cidade em que nasceu, acho que é Carangola, para ser homenageada como poeta, e conta isso com um prazer enorme. Então, é uma descoberta muito grande e acabei virando estudiosa de movimento social. Eles são chaves, são fundamentais, porque aí é que está a alma da sociedade. Então, quando as pessoas dizem que a sociedade brasileira é amorfa, não é o que acho, há aminhos. A gente não conseguiu ver a nossa pauta de memória e verdade incorporada à sociedade. A gente não conseguiu de fato. Participei de um debate com argentinas e elas falaram para mim: “Nossa, acho muito interessante, porque na Argentina o desaparecido não é o desaparecido da fulaninha, da viúva tal, é da sociedade. Aqui vocês falam como se fosse ‘meu desaparecido político’.” Aí você saca que é diferente mesmo. Na Argentina, a sociedade incorporou essa pauta, oxalá a gente consiga chegar lá. Acho que até a gente consegue, é um caminho longo. Mas tem essa outra grandeza da sociedade em nessas causas pequenas, pessoas que tinham tudo para estar desesperadas e estão atuando. São museus que elas estão construindo nas comunidades, cursos, rádios comunitárias, levantamentos. No passado, quando uma pessoa mais pobre conseguia chegar num nível X, ela largava aquilo. Hoje, está acontecendo um movimento belíssimo. Essas pessoas viram doutoras, mas ficam nas comunidades trabalhando. Temos vários casos. Tem, por exemplo, a Redes da Maré. A última moça que entrevistei de lá criou o Museu da Maré. É impressionante! O Itamar Silva, do Santa Marta, tinha tudo para não estar lá mais, mas mora lá e bota seu conhecimento para tentar melhorar a vida daquelas pessoas. Eu encontrei muita gente que faz isso, vários professores, universitários que estão morando em comunidades, no lugar de origem deles, produzindo material didático para aquelas comunidades. É um movimento realmente muito bonito. Então, nunca fiz um link disso com minha história de vida, mas acho que, como Italo falou, tem tudo a ver, porque é uma grande forma de militância também. A gente milita com nossa atitude diante do mundo, diante da vida, pode ter a ver com a questão ambiental, a sala de aula, acho que o professor é um grande militante, aliás, um dos maiores.

Para mim dar aula é um grande prazer, porque ali você consegue um diálogo muito bom com as pessoas. A militância é isso. Então, [a Rádio Cidadania] é uma forma de militância que encontrei e me dá um prazer enorme. E agora, até Luiz Eduardo vai participar, a gente vai montar um Cine Cidadania, também da Universidade da Cidadania. O nosso primeiro projeto é passar o filme Notícia de uma Guerra Particular, que é impressionante. Como o filme já tem mais de dez anos, vamos discutir o que avançou na sociedade, pouquíssimo, em relação a essa guerra particular: o tráfico de drogas. O João Moreira Salles já topou e Luiz Eduardo também, então vamos discutir com os dois e o Itamar [Silva, do Santa Marta], e passar o filme em uma sala de cinema. A ideia é que a cada mês a gente apresente um filme com pessoas que atuaram e que têm a ver com o tema do filme, com o território, porque estou muito preocupada com a questão do território. Acho essa questão-chave para termos uma cidade um pouco mais democrática.

BR: Esse material Rádio Cidadania está sendo guardado aonde?

DP: No Spotify, você encontra tudo lá. São podcasts. Você os acessa pela Rádio Cidadania. Em alguns deles, fiquei até entalada no meio da entrevista. Olha, tem um menino, que é gari comunitário, gari não, né? É lixeiro. Pega lixo. Ele se chama Felipe e estuda Ciências Sociais na PUC, conseguiu uma bolsa. O discurso dele é uma coisa. No meio da entrevista, parei e disse: “Eu vou tomar uma água e volto daqui a pouco”. O garoto é de uma garra. Ele diz: “Eu conheço esse macacão amarelo, aqui, laranja, mas as pessoas me acham invisível.” Ele atende a população do Leblon, então conta que passa naquelas ruas e conhece as pessoas e as pessoas não falam com ele. Ele dá bom dia, boa tarde e ninguém responde. “Mas será que, com essa roupa, as pessoas não conseguem me enxergar?”. Aí eu perguntei como ele estuda na PUC e qual é a reação das pessoas lá. Ele disse: “Eles é que estão perdendo mais do eu. Eles podiam aproveitar muito mais o meu convívio aqui e aprender muito comigo.” Esse menino montou um pré-vestibular que se chama Círculo Laranja, para os garis. Inacreditável a vida desses caras. O cara mora em Acari, trabalha em um depósito, já fez quatro cirurgias no joelho, porque eles caem daquele caminhão. O caminhão começa a andar e eles caem. O menino tem 40 anos e já fez quatro cirurgias na perna. Um cotidiano barra pesadíssima, com um trabalho insalubre e um discurso lindo, uma alegria de viver e uma garra. Até o motivo do nome dele perguntei. “Porque você se chama Felipe Luther?” Achei que era o nome de verdade, mas não, era uma homenagem ao Martin Luther King, que é um dos ídolos dele. A gente também já fez um primeiro livro, com os trinta primeiros depoimentos, se chama Combates na Pandemia: Os Movimentos Sociais. Estamos juntando e organizando o segundo livro, que vai sair pela editora da UFRJ.

IM: A Dulce é apaixonada por lideranças, pessoas que têm uma força de mobilização e ela adora isso. Esse trabalho que ela está fazendo agora é isso, né? Acho que isso também é um sinal dessa saúde que ela tem. Agora um comentário político mais geral, voltando pro Lula e aquela dualidade. Claro que isso aí remonta às discussões políticas de muito antigamente, em que a gente investia nas organizações políticas e na prática para tomar o Estado. Mas o que é mais necessário é esse trabalho no interior da sociedade. O próprio processo histórico fez com que os partidos se tornassem partidos de governo. Então a única maneira de você realmente recolocar o problema político, de maneira mais ampla, em termos de uma mobilização social, é através desses trabalhos que estão sendo feitos. É preciso que a gente ouça e recolha o que vem das lideranças, que, como a Dulce está mostrando aí, não precisam de ninguém. Elas já estão fazendo as coisas e elas crescem sem parar, tanto intelectual quanto praticamente. Não estou falando em burocratização, não estou falando em crítica, não estou falando criticamente, acho que foi um processo natural. Nós tivemos dois governos do Lula e estamos novamente com o Lula, mas a gente sente que precisa de uma visceralidade maior na luta política. Acho que ela acontece nessa esfera cultural mesmo, dando ouvidos e estando presente, ajudando, digamos assim. 

DP: Certo, concordo. Só acho que a gente não pode deixar de lado a grande política, que tem grande importância. Eu brinco sempre que uma canetada resolve coisas que a gente fica suando a camisa para conseguir.

IM: Você acha que existe preconceito ou disposição dessas novas lideranças a se vincularem a um jogo mais institucional?

DP: O universo é muito variado, não posso falar por ninguém. Não gosto desse papel, mas observo que é super importante continuar esse trabalho de formiguinha. Algumas dessas lideranças estão um pouco distantes do mundo da política e outras, não, nem tanto. Outras estão até filiadas a partidos. Mas é sempre essa garra. Entrevistei uma vez um cara que é DJ, Salada Maleiko. Eu perguntei: “De onde vem esse nome?” Esse cara vendia salada aqui na Praia de Copacabana. Ele começou a ouvir música e hoje é uma referência, tem um canal de TV. Ele conservou o nome de salada. Salada Maleiko! Genial! São pessoas incríveis. Agora vai perguntar se ele quer votar em A, B ou C, eu acho que não.

LB: Quero fazer uma pergunta para a historiadora. Estamos falando da questão da memória oral, da história oral, dessa memória individual. Você já escreveu no livro sobre o PCB sobre a disputa da memória coletiva, que mencionamos quando falamos do Lula e da questão da Comissão dos Mortos e Desaparecidos. Eu queria saber, do ponto de vista da historiadora, qual a importância da memória e da história oral para as disputas da memória coletiva e o que você, que disse ver todos os filmes sobre a ditadura, acha da ficção, que é um outro regime de verdade, para a disputa da memória coletiva da ditadura, ou de qualquer memória coletiva do país.

DP: Eu acho que essa disputa se dá o tempo todo, em várias camadas, digamos assim. É algo permanente, uma coisa bem ingrata, porque nós estamos do lado daqui, digo, das minorias. Quer dizer, não é minoria física. É minoria do ponto de vista dos projetos. Mas acho que a ficção é fundamental. Se a sua mensagem chega através de um filme, através de um poeta, através de um poema, através de um texto literário, você está cumprindo um papel enorme, e essa disputa é permanente. Um exemplo disso é a questão da democracia racial. Que mito é esse tão forte que perpassou séculos? E é agora que ele está começando a ser desmontado. Quer dizer, um país como o Brasil, que é campeão da discriminação racial, ser considerado o da democracia racial? Então, é um trabalho realmente constante, que foi sendo detonado por vários caminhos. Cinema, literatura, política, enfim, debate. Então, é isso, tudo isso tem importância muito grande. Acho que a memória é a chave. A questão do testemunho, por exemplo, é fundamental no caso da repressão. Tanto que a Comissão da Anistia começou a fazer um trabalho lindo com o Paulo Abrão, quando ele entende que aqueles depoimentos têm que ser gravados e divulgados, que não bastava apenas a gente chegar lá e denunciar. Era importante divulgar, até porque fomos abafados. A memória é isso, a memória é disputa. Você tem várias camadas, vários níveis, e a memória oficial precisa ser combatida. E não é pelo fato de ter o governo Lula que nós conseguimos chegar lá, a gente não consegue chegar lá com facilidade, a gente consegue chegar lá através desse nosso trabalho permanente, constante, que vai da sala de aula ao que a gente escreve e comunica. Eu vejo por aí, esse trabalho de vocês, fazendo uma revista de literatura voltada para 1964, que é o marco da nossa sociedade, quando tem gente que acha que nem teve uma ditadura no Brasil.

* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Dulce Pandolfi possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, IUPERJ e doutorado pela Universidade Federal Fluminense; Lucas Bandeira é professor adjunto do Instituto de Letras da UERJ e editor da Revista Z Cultural; Italo Moriconi é crítico, curador literário, ensaísta, poeta e professor da UERJ; Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP.
Vale a pena ler de novo
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Eztetyka da fome

“Eztetyka da Fome” talvez tenha sido o texto que oferece um retrato mais fiel da vibração dos anos 1960. Inovador, guerreiro, sonhador, utópico. Claramente anti-hollywoodiano, o manifesto foi o grande sucesso do Festival de Cannes de 1965. Desafiava a noção de cinema político e contrapropunha uma estética revolucionária que espelhasse a realidade brasileira. Legitimava a violência do oprimido e a resistência cultural terceiro mundista. Não há como ler esse texto e não voltar imediatamente ao sonho e ao ethos da idade de ouro da cultura brasileira. Experimente agora!

Heloisa Teixeira
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das discussões sobre a América Latina, prefiro situar as reações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.

Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político.

Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista.

A América Latina permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que armam futuros botes.

O problema internacional da AL ainda é um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência.

Esse condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a histeria.

A esterilidade: aquelas obras fartamente encontradas em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não despertaram do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocaram inclusive falências)… O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os títulos.

A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e autodevastador esforço de superar a impotência; e, no resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador; e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez, o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento.

A fome latina, por isso, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que essa fome, sendo sentida, não é compreendida.

De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais, pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. Esse miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Esses são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem esse tipo de filme. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas) ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco Vezes Favela), ao experimental (Sol sobre a Lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o período das grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendem. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isso; e, sobretudo, não sabe de onde vem essa fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.

A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e da ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais.

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?

Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para o francês perceber um argelino.

De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que essa violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação mas um amor de ação e transformação.

O Cinema Novo, por isso, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge de guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os filhos; Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês e para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre.

Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta, e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência.

Não temos, por isso, maiores pontos de contato com o cinema mundial.

O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas consequentes da sua existência.

* Glauber Rocha (1939-1981) foi um cineasta brasileiro e um dos líderes do Cinema Novo. Dirigiu, entre outros filmes, Terra em Transe (1967) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). O texto seguiu a versão publicada em Revolução do Cinema Novo (Rio de Janeiro, Alhambra/Embrafilme, 1981, pp. 28-33).
Dossiê
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DISSIDÊNCIA, MASCULINIDADE E PELES NEGRAS: RECONSTRUÇÕES VISUAIS DE FANON

Em meio à tragédia pandêmica que já assolava nossas vidas, o Brasil assistiu, entre 11 e 12 de maio de 2020, à exibição do doc-filme Frantz Fanon: Black Skin, White Mask (1996), do cineasta afro-britânico Isaac Julien (1960-). O filme compôs o arranjo de películas, instalações audiovisuais, combinações entre cartoon e street art, apresentações musicais, teatrais e de coletivos inteiros da Mostra Perspectivas Vila Sul (2020). Organizada pelo Goethe-Institut, com sede em Salvador, a Mostra reuniu 22 ex-residentes de diversas nacionalidades do Programa de Residência Vila Sul, que visa agregar artistas, escritores e cientistas de vários campos do saber que acolhem como tema gerador de sua produção intelectual o Sul global. O isolamento social provocado pelo coronavírus obrigou os volumes I e II da Mostra a assumirem um formato virtual[1].

O filme e a radicalidade do pensamento de Frantz Fanon (1925-1961) voltaram a assombrar e sacolejar os acadêmicos brasileiros, que estão despertando novamente para a insurreição que Peau Noire, Masques Blancs [Black Skin, White Masks] (1952) e Les Damnés de la Terre [The Wretched of the Earth] (1961) produziram no Movimento Negro brasileiro dos anos 1960, bem como nas obras de Lélia González, Paulo Freire, Florestan Fernandes e tantos outros pensadores daqui.

Nascido na Martinica, Frantz Fanon foi discípulo do poeta maior da Négritude, Aimé Césaire. Numa França pós-Segunda Guerra, marcada pela emancipação das colônias europeias, Fanon terminou seus estudos em psiquiatria na Universidade de Lyon e, tempos depois de exercer o ofício na metrópole, assumiu, na Argélia colonial, a direção do hospital psiquiátrico Blida-Joinville. Isso foi o bastante para que ele percebesse o quanto as instituições coloniais afetavam a psiquê daqueles que viviam sob seu regime, o que o incentivou a alistar-se na Front de Libération Nationale (FLN) [Frente de Libertação Nacional da Argélia] e integrar, em 1956, a luta contra o colonialismo.

Por consequência de sua expulsão da Argélia pelo governo francês, Fanon decide viver na Tunísia, local onde sua obra e atuação política se lançam definitivamente da clínica para a mobilização da luta armada em prol da superação do regime colonial, tendo a escrita de The Wretched of the Earth como símbolo maior de tal transição. Fanon pode ter falecido antes da publicação deste livro e da independência da Argélia, mas sua atuação cosmopolita e panafricanista fez com que seus escritos continuassem a repercutir em todo o projeto teórico-crítico pós-colonial, encabeçado pelos estudos culturais, subalternos, visuais, de teoria literária, psicanalítica e psiquiátrica, de raça e diáspora ainda hoje.

Quando o Goethe-Institut hospedou a película para apreciação gratuita na plataforma Vimeo por 24 horas, a sensação era de que a paralisia causada pelo coronavírus e pela escancarada desigualdade social que se intensificou no Brasil em 2020 foi colocada em suspensão no plano das redes sociais: rapidamente, iniciou-se uma profusão de compartilhamentos pelo Facebook, grupos de WhatsApp e e-mails do link onde o filme estava disponível para a audiência brasileira. Isso revelou não só o ineditismo daquela produção cinematográfica para a academia situada aos trópicos, mas também o completo desconhecimento sobre quem o produziu e o significado de Fanon para todo o ativismo e produção teórico-artística anticolonial e antirracista que se desvincula de abordagens falocêntricas e hetero-cis-normativas em espaços anglófonos, sobretudo aqueles retalhados pela máquina colonial do império britânico.

Consagrado por seus filmes Looking for Langston (1989), Young Soul Rebels (1991), The Attendant (1993) e The Darker Side of Black (1993), Isaac Julien (Figura 1) desenvolve em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask uma intensa pesquisa arquivística que mescla identidade, história e estrutura narrativa (Fusco, 1997). Embora este seja seu trabalho mais próximo e direto relacionado ao legado de Fanon, seu projeto enquanto cineasta é totalmente perpassado por questões levantadas pelo pensador martinicano em se tratando da racialidade, da violência contra a corporalidade negra e de suas representações no discurso colonial (Julien; Nash, 2000). Tal como o fotógrafo Rotimi Fani-Kayode (1955-1989), ele pertence à geração de artistas afro-britânicos queer, oriundos dos anos 1960, que encontraram em Frantz Fanon suporte teórico de criação artística.

Figura 1: Isaac Julien. Fonte: Isaac Julien Studio. (Disponível em: https://www.isaacjulien.com/about/.)

Com a tradução para o inglês de Les Damnés de la Terre, seguida de Peau Noire, Masques Blancs, entre 1965 e 1967, respectivamente, nos Estados Unidos e Reino Unido, as obras mais difundidas de Frantz Fanon alcançaram não somente o público estadunidense e britânico, como também intelectuais da África Oriental que estudavam nos Estados Unidos nos anos 1960, imprimindo ao movimento e à intelectualidade negros destes espaços um impulso análogo àquele produzido no Brasil na mesma época (Batchelor, 2017). Ao estabelecerem contato com obras de escritores e pensadores afro-americanos e com o movimento Black Power, esses estudantes africanos conheceram, por consequência, a obra fanoniana e a disseminaram no retorno à África anglófona num momento em que as lutas pela independência das colônias africanas emergiram. O capítulo “Concerning Violence”, de The Wretched of the Earth, conferiu, por exemplo, um enorme impulso aos movimentos anticoloniais em prol da independência do Quênia e maior compreensão dos danos psíquicos sofridos pelos sujeitos colonizados na condição de combatentes da guerra (Mazrui, 2017).

Artistas estadunidenses, ingleses e africanos de territórios anglófonos, negros e queer, se utilizam das principais ideias de Black Skin, White Masks para compor investimentos artísticos que rompem com aspectos hegemônicos em torno da homossexualidade, masculinidade e feminilidade negras (Furtado, 2018). O livro destaca

[…] o colonialismo e seu impacto como sendo amplamente compostos por experiências visuais. Esse olhar colonial, segundo [Fanon], se apropria e despersonaliza seus sujeitos, ignorando seu modo de ver. Por sua vez, os teóricos [e artistas] queer, especialmente do cinema, têm se apropriado e aplicado esses termos às questões de gênero (Furtado, 2018, sem paginação)[2].

A curadoria e direção do filme feita por um dos cineastas afro-britânicos mais aclamados da cena gay inglesa, bem como sua respectiva dedicatória à memória do escritor afro-americano Essex Hemphill (1957-1995), também assumidamente gay, dão a tônica metodológica e temática que Julien empregaria em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask. O cineasta se aproxima do procedimento utilizado em Looking for Langston, no qual lhe interessava “complementar” a obra do poeta afro-americano Langston Hughes (1902-1967) e suas ressonâncias no Renascimento do Harlem, sem se apegar às especulações críticas sobre a sexualidade do escritor. Esta é a razão pela qual ambos os filmes se tornam textos visuais, experimentais e poéticos.

Ao tentar capturar o espírito de Fanon enquanto “a experiência vivida do negro” (Fanon, 2008, p.103-126) através de sua retórica teórico-pessoal, Frantz Fanon: Black Skin, White Mask exibe, em 70 minutos, uma montagem de arquivos fotográficos, fílmicos (encenados pelo elenco do filme ou resgatados de outras produções ficcionais), depoimentos de personalidades acadêmicas que tiveram Fanon como seu precursor, além de entrevistas com entes familiares e amigos próximos do martinicano.

A ausência de arquivos fílmicos sobre Fanon foi a força-motriz para que o diretor pusesse em prática o que chamou de “reconstrução visual” [visual reconstruction] (Julien; Nash, 2000, p. 14): o preenchimento da falta da imagem pela ficção encenada. A reconstrução foi uma estratégia visual encontrada pelo diretor para dar corpo à vida e à teoria fanoniana através do ator Colin Salmon (Figura 2), bem como ao embate entre a presença de Fanon no hospital psiquiátrico colonial e o olhar ocidental racializado frente aos nativos das colônias. A tentativa de conferir visualidade ao corpo e à teoria de Fanon pela encenação revelam que

o ato de visualização pode ser encarado como uma forma de produção teórica, aquela que faz do corpo em particular um local privilegiado de poder imagético e mediação. Ou seja, não é uma questão de simplesmente encontrar uma maneira de representar Fanon no cinema, mas de usar o cinema para se envolver com as ideias fanonianas e talvez, de alguma forma, transformá-las (Julien; Nash, 2000, p. 14).[3]

Figura 2: Colin Salmon, intérprete de Fanon. Fonte: Isaac Julien Studio. (Disponível em: https://www.isaacjulien.com/projects/frantz-fanon-black-skin-white-mask.)

Todo o material ficcional utilizado por Julien foi tratado como material arquivístico no doc-filme, pois as encenações e os trechos de outros filmes auxiliaram não só na construção de “um documentário poético com uma abordagem ficcional” (Julien citado em Fusco, 1997, p. 57)[4], como também no desmantelamento do arquivo colonial (Julien; Nash, 2000, p. 15). Assim, a abordagem visual de Julien se torna, de certa forma, queer: não se trata de uma filmografia que revela a “verdade” sobre Frantz Fanon no plano pessoal e teórico-crítico, mas que constrói um Fanon cuja identidade é multifacetada, personagem e atuante, que entra e sai do plano da ficção, que não se restringe simplesmente à psicopatologia do colonizado e à descolonização dos povos argelinos, mas se dispersa em múltiplos “eus” que se confrontam, inclusive, na conjunção entre vida e obra. Tornar Fanon “queer” seria, portanto, tomá-lo fora da simples dimensão de herói da revolução ou da primazia de um enfoque masculinizado sobre sua vida e obra crítica. Seria, ainda, torná-lo passivo de contestação, de trazê-lo para o debate contemporâneo através da reconstrução visual proposta por Julien.

As cenas tiveram como suporte textual excertos de Black Skin, White Masks, The Wretched of the Earth, L’An V de la révolution algérienne [A Dying Colonialism] (1959) e Pour la Revolution Africaine [Toward the African Revolution] (1964), sendo dramatizadas na Argélia, Martinica, França e Tunísia. De modo não linear, elas se mesclam a depoimentos de familiares e amigos próximos de Fanon; às cartas que ele escreveu ao irmão Joby, pouco antes de falecer; aos depoimentos de mulheres da região do Magrebe, que atuaram na guerra anticolonial; às fotografias do arquivo pessoal do filho de Fanon, Olivier (Figura 3), e às do Musée Régional d’Histoire et d’Ethnographie de la Martinique; se entrecruzam a extratos das películas Algérie em Flammes (Les Films du Village), Battle of Algiers (BFI Distribution) e J’ai Huit Ans (les Films Grains du Sable).

Figura 3: Olivier Fanon e seu filho. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Tais cenas reconstituem o hospital Blida-Joinville e abrem o filme com relatos pessoais de Fanon e de sua atuação enquanto psiquiatra (Figura 4). Elas também aproximam o espectador de seus pacientes, cujos traumas foram relatados em The Wretched of the Earth. Na sequência, as cenas se apoiam no depoimento do pai dos Estudos Culturais, Stuart Hall (1932-2014), no qual ele expõe a relação colonizador-colonizado, fruto da dialética hegeliana senhor-escravo, como o pilar do pensamento fanoniano (Figura 5). Em desdobramento à fala de Hall, a teórica decolonial Françoise Vergès (1952-) traz à tona aspectos relevantes na formação pessoal e acadêmica de Fanon (Figura 6).

Figura 4: Frantz Fanon (Colin Salmon) no Hospital Psiquiátrico Blida-Joinville. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

As aparições em sequência de Homi Bhabha (1949-), outro grande nome dos Estudos Culturais e Subalternos, surgem como intervenções à parte, tendo em vista que a fala de Bhabha se assemelha a um ensaio, onde o crítico se coloca à procura do espectro de Fanon nas ruas (Figura 7), na simulação do velório do martinicano, entre fotografias e flashes de cenas do evento All Africa’s People Conference (1961) em Acra, Gana, onde Fanon foi participante e representante da FLN (Figura 8). Através de reflexões acadêmicas, contornadas por concordâncias e críticas, ficção e arquivo, Julien resgata as ferramentas que estes teóricos herdaram de Frantz Fanon para pensarem o mundo pós-colonial e a força contracultural que suas reflexões promoveriam logo após a morte daquele que os inspirou.

Além da descoberta da psiquiatria enquanto instrumento posterior de libertação dos combatentes em guerra, é através dela que Fanon descobre o racismo. Em carta a seu irmão, o psiquiatra relata um incidente com um paciente francês, que se negou a ser atendido por ele devido à cor de sua pele. O olhar da metrópole francesa sobre ele causava verdadeira despossessão de si, e o fez descobrir-se como um outsider dentro do plano genealógico da “cultura europeia” (a “máscara branca”), mesmo tendo sido educado à imagem e semelhança do Ocidente. A rasura na imagem da “máscara branca”, que é o verdadeiro nó do livro que nomeia o doc-filme de Julien, se reflete na cena clássica narrada por Fanon em Black Skin e reproduzida no filme, na qual ele é surpreendido pela exclamação de uma criança que o vê (“Mamãe, olha um preto, estou com medo!”). O episódio se caracteriza como metáfora maior do racismo sofrido por ele no período em que viveu na França (Figura 9).

Figura 5: Stuart Hal. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O preenchimento ficcional desta cena e o caráter outsider do corpo negro na ocidentalidade se aliam aos comentários de Stuart Hall no filme, à medida que a experimentação do racismo, caracterizada no plano do olhar e do visível, fez com que Fanon lesse a dialética senhor-escravo como “uma espécie de releitura histórico-hegeliana do complexo de Édipo”, pois “Fanon também está profundamente preocupado com a luta com o pai. Esse é o cerne do texto: a luta entre o filho negro e o pai colonizador. É essa relação filho negro/pai branco que concede profunda masculinidade a seu modo de ver o mundo” (Hall citado em Frantz Fanon…, 1996)[5].

A menção do complexo de Édipo evocada por Hall no documentário, revestida de uma masculinidade patriarcal e sexista, é reflexo das imagens, comentários e trechos que aparecem na sequência do filme em torno das controvérsias e do lugar ambíguo das mulheres, da relação entre homens e da homossexualidade na obra de Fanon. É nesse momento que o filme contesta Frantz Fanon e dele se apropria ainda mais em sua forma “queer”, ao convocá-lo novamente para um debate iniciado antes do lançamento da película.

Figura 6: Françoise Vergès. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Apesar de dispormos de estudos que abordam a evasão epistemológica de Frantz Fanon sobre os impactos do peso colonial em se tratando das questões de gênero e sexualidade (Fuss, 1994), parece-nos pertinente retomar o assunto a partir do doc-filme em evidência, uma vez que a entrada de Fanon no Brasil e nos espaços anglófonos mencionados, bem como sua abordagem na academia brasileira, ainda se limitam fundamentalmente ao contingente da raça, deixando escapar a ambiguidade que a dimensão de gênero e a corporalidade dissidente assumem em sua obra. Este é um momento em que nós, pesquisadores brasileiros, estamos nos aproximando cada vez mais de discussões que entrelaçam corpo, raça, gênero e sexualidade, iniciadas com maior intensidade na ambiência anglófona do final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Esse mesmo debate tem nos proporcionado entrar em contato com outras figurações possíveis do aparato teórico fanoniano em espaços anglófonos, que promovem meios de vê-lo para além do caráter heroico da revolução argelina. Não pretendemos revisar as críticas já apontadas, muito menos promover uma petição em defesa de Fanon sobre elas. O que está em pauta é a forma que a curadoria de Julien e sua conversão em película foram capazes, a partir de seus preenchimentos ficcionais, de evidenciar tais traços como diálogos inacabados, tomando os escritos de Fanon como ponto de vista teórico inesgotável, múltiplo, capaz de ser lido/visto para além da superfície.

Figura 7: Homi Bhabha. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Em se tratando das mulheres, há dois pontos em que Julien entrecruza o debate teórico com a ficção. Françoise Vergès enfatiza a leitura hostil que Fanon realiza em Black Skins, White Masks da narrativa semiautobiográfica Je suis Martiniquaise (1948), da escritora Mayotte Capécia (1916-1955). Fanon considera autora e obra frutos de uma alienação e rendição da mulher negra ao homem branco e colonizador: “Je suis Martiniquaise é uma obra barata, que preconiza um comportamento doentio” (Fanon, 2008, p. 54). A leitura feita por Fanon se restringe aos aspectos biográficos do romance, tornando-o uma representação totalizante da mulher antilhana, de seu desejo pelo colonizador e pelo ideal de “brancura” que ele representa. De modo análogo a Vergès, a escritora antilhana Maryse Condé (1937-) ressalta no documentário que “o amor às vezes nos coloca em uma posição de contradição com [nossas] opiniões ideológicas ou filosóficas” (Condé citado em Frantz Fanon…, 1996)[6] (Figura 10).

Figura 8: Frantz Fanon na All Africa’s People Conference (1961). (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Do plano teórico para o pessoal, ambas defendem o amor da escritora pelo homem branco como uma escolha individual ou possível estratégia para escapar da brutalidade colonial, o que a afasta da alienação. A maior contradição seria, de acordo com Vergès, a posição de Fanon em julgar Capécia através do romance sem que ele levasse em consideração sua própria união matrimonial com uma mulher branca e sua autopercepção enquanto não alienado diante do fato.

Figura 9: A criança vê Fanon. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Como desdobramento dessas análises, Julien promove encontros imaginados entre o martinicano e Simone de Beauvoir, narradas a partir de trechos de La Force des choses (1963), embora saibamos da influência notoriamente pública de Jean Paul-Sartre na obra de Fanon, a partir dos prefácios com que o existencialista francês condecorou seus livros mais conhecidos (Figura 11). A presença de Beauvoir, ao invés de Sartre, indicia a influência feminina na vida e obra de Fanon e oferece margem para o diretor não só explorar a experiência de Fanon ao “descobrir-se” negro na França, mas também a posição das mulheres tunisianas frente ao seu papel na revolução argelina, assim como a violência vivenciada por elas a partir do regime colonial e no próprio movimento que tentava se impor contra ele. Isso nos remete ao prefácio, elaborado por Gayatri Spivak, do doc-filme Concernig Violence (2014), cuja base reside no capítulo homônimo de The Wretched of the Earth. Por mais incômodo que seja, a teórica afirma que

é no resultado do colonialismo, algo que Fanon não pode presenciar, que se deve considerar cuidadosamente a tragédia do que se vê [em Concerning Violence, no que se refere às mulheres]. Este é um texto didático. Faço um acréscimo sobre as questões de gênero. Concerning Violence nos lembra que, apesar de as lutas de libertação forçarem as mulheres a uma aparente igualdade, iniciada no século XIX ou até mais cedo, quando a poeira assenta, a chamada nação pós-colonial regressa às invisíveis e longevas estruturas de gênero (Spivak, 2014, p. 62)[7].

Ambos os filmes se conectam nesta fala, na medida em que Frantz Fanon: Black Skin, White Mask reconstitui a participação feminina na luta armada, em cenas com mulheres portando ou não véus para cobrirem o rosto e transportarem armas fora do alcance visual dos franceses. Intercaladas com entrevistas de ex-combatentes, as cenas revelam uma violência flagrante da mulher nas lutas anticoloniais, tanto pelos seus próprios companheiros de luta, como pelo exército francês.

Figura 10: Maryse Condé. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O filme também nos instiga ao retorno à nota de rodapé 38 (da edição que citamos em língua portuguesa do Brasil) ou 44 (edição em língua inglesa) de Peau Noire, Masques Blancs, que se dirige ao corpo dissidente. Ao articular o olhar de Fanon (Colin Salmon) e o beijo trocado por dois homens negros (Figura 12), sobrepostos por fotografias de uma travesti (Figura 13), Julien põe em xeque, ao som da leitura da nota de rodapé, outro ponto bastante controverso das reflexões de Fanon: os afetos homossexuais e a masculinidade hegemônica. Esta nota, já bastante comentada por Diana Fuss (1994), coloca em evidência a declaração de Fanon de que “[…] não nos foi dado constatar a presença manifesta da pederastia na Martinica. Isto é devido, sem dúvida, à ausência do complexo de Édipo nas Antilhas” (Fanon, 2008, p. 154). Para o martinicano, “[…] a negrófoba é uma suposta parceira sexual – como o negrófobo é um homossexual recalcado” (Fanon, 2008, p. 138).

Figura 11: Simone de Beauvoir, La Force des chose. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

O confronto entre as declarações de Fanon e a fotografia da travesti antilhana desperta-nos para duas conclusões: por um lado, o corpo dissidente não possui espaço na teoria fanoniana, pois a ele é negada sua própria existência nas Antilhas; por outro, a homossexualidade é racializada, uma vez que, para Fanon, ela é “culturalmente branca” [culturally white] (Fuss, 1994, p. 30). A racialização da homossexualidade em Fanon ([1952] 2008), isto é, a homossexualidade enquanto um “comportamento branco”, surtiu enorme efeito no Black Arts Movement estadunidense dos anos 1970, o que também possivelmente contribuiu para a intersecção tardia dos estudos queer com os Black Studies naquele país.

Ao invés de serem tomadas apenas como lacunas no livro de Fanon, tais fragilidades têm se convertido em pontos cruciais nos debates de gênero e raça promovidos por artistas e intelectuais negros dos eixos anglo-americano e africano, como demonstra Furtado (2018), e como apontamos em Frantz Fanon: Black Skin, White Mask. Isso demonstra a capacidade que a obra de Fanon tem de ser tratada como um diálogo em contínua construção. Embora seja um desafio para a crítica atual, Isaac Julien enxerga nisso uma vantagem, pois pode reinterpretar e reconstruir Fanon em sua complexidade, de maneira ininterrupta.

Figura 12: Afetos masculinos. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Frantz Fanon: Black Skin, White Mask desloca a potência crítica fanoniana de uma perspectiva identitária fundada no signo da masculinidade hegemônica e da heteronormatividade. Desta forma, tal curadoria imagética supera com seus esquemas visuais o debate centrado na violência epistêmica contra as mulheres, de um modo geral, e contra pessoas LGBTQIAPN+, ao recuperar um “Fanon queer”, que se constitui como um intervalo, estranhando seu tempo e sem se adequar a ele, questionando-o, percebendo seus impasses. Com base na apropriação queer e na reconstrução visual, Julien demonstra que seu encontro com Fanon marca, de modo mais latente, um possível reencaixe das ideias do martinicano na espacialidade anglo-queer.

Figura 13: Travestilidade.
Figura 13: Travestilidade. (Fonte: Frantz Fanon…, 1996.)

Graças à Mostra Perspectivas Vila Sul, o filme chegou ao Brasil de 2020 em boa hora e, por um momento, foi capaz de nos tirar do transe coletivo que assolou o país, frente ao quadro pandêmico-político e aos dilemas impostos pelos conflitos bélico-raciais e neocoloniais ao redor do mundo, pelas mortes diárias de caráter homofóbico e pelo feminicídio que ainda ameaça milhares de mulheres ao redor do globo. A película nos mostra que ainda há espaço para o Homem SIM de Fanon (2008, p. 184), que, envolto nessa zona de não-ser contemporânea, encontrará meios de ampliar sua compreensão de mundo, de amor ao outro e de libertar-se do olhar etnocêntrico, sem desconsiderar as dimensões de gênero e sexualidade.

* Jânderson Albino Coswosk é professor e pesquisador de produtividade do Instituto Federal do Espírito Santo – Ifes, campus de Alegre. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral no Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo.
Referências bibliográficas
BATCHELOR, Kathryn. Introduction: Histoire Croisée, Microhistory and Translation History. In: BATCHELOR, Kathryn; HARDING, Sue-Ann (org.). Translating Frantz Fanon Across Continents and Languages. Nova York; Londres: Routledge, 2017, p. 1-16.

COSWOSK, Jânderson Albino. Queering Fanon: representação fílmica e impactos dos escritos fanonianos na espacialidade anglo-queer. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade; HARRIS, Leila Assumpção (org.). Escritos Discentes em Literaturas de Língua Inglesa, vol. XIII. Rio de Janeiro: Letra Capital/PPGL/UERJ, 2020, p. 99-108.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EdUfba, 2008.

FANON FRANTZ: Black Skin, White Mask. Direção de Isaac Julien, produção de Mark Nash. Londres: The BBC and the Arts Council of England, 1996. 1 DVD (70 min.).

FURTADO, Will. How Frantz Fanon Has Influenced Generations of Queer Artists, C&, 2018. Disponível em: https://www.contemporaryand.com/magazines/how-frantz-fanon-has-influenced-generations-of-queer-artists/. Acesso em: 20 dez. 2023.

FUSCO, Coco. Visualizing Theory: An Interview with Isaac Julien, Nka: Journal of Contemporary African Art, n. 6-7, 1997, p. 54-57.

FUSS, Diana. Interior Colonies: Frantz Fanon and the Politics of Identification, Diacritics, v. 24, n. 2/3, 1994, p. 20-42.

JULIEN, Isaac; NASH, Mark. Fanon as Film, Nka: Journal of Contemporary African Art, n. 11/12, 2000, p. 12-17.

MAZRUI, Alamin. Fanon in the East African Experience: Between English and Swahili Translations. In: BATCHELOR, Kathryn; HARDING, Sue-Ann (org.). Translating Frantz Fanon Across Continents and Languages. Nova York; Londres: Routledge, 2017, p. 76-97.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Preface to Concerning Violence: Nine Scenes From the Anti-Imperialistic Self-Defense, Film Quarterly, v. 68, n. 1, 2014, p. 61-62.
Notas
[1] O presente artigo é uma versão revisada e ampliada de Coswosk (2020).

[2] “[…] colonialism and its impact as being largely made up of visual experiences. This colonial gaze, according to [Fanon], appropriates and depersonalizes its subjects while ignoring their way of seeing. In turn, queer theorists [and artists], especially in film, have appropriated these terms and applied them to gender.” Tradução nossa de todas as citações em inglês.

[3] “[…] the act of visualisation can be seen as a form of theoretical production, one which makes the body in particular a privileged site of imagistic power and mediation. That is to say, it is not a question of simply finding a way to represent Fanon in film but to use film to engage with Fanon’s ideas and perhaps in some way transform them”.

[4] “a poetic documentary with a fictional approach”.

[5] “[…] a kind of historical Hegelian re-reading of the Oedipus”; “[…] Fanon himself is also deeply concerned with the struggle with the father. And this is what is at the center of his text: the struggle between the black son and the colonizing father. It is that black son/white father relationship which gives him deeply inscribed masculinity to the way in which he sees the world”.

[6] “Love sometimes puts [us] in a position of contradiction with [our] ideological or philosophical opinions”.

[7] “It is within the context of the aftermath of colonialism—that Fanon could not know—that the tragedy of what we watch [in Concerning Violence, when it comes to women,] must be carefully considered. This is a teaching text. I add a word on gender. This film reminds us that, although liberation struggles force women into an apparent equality—starting with the 19th century or even earlier—when the dust settles, the so-called post-colonial nation goes back to the invisible longterm structures of gendering”.
Editorial
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CRÍTICA E CURADORIA

O declínio da crítica considerada em sua dimensão pública, como forma privilegiada de mediação entre público e artistas, talvez não implique exatamente numa lacuna ou exaustão, como querem afirmar alguns observadores recentes das relações entre arte e sociedade, mas antes numa reconfiguração. Pois à baixa das ações da crítica parece corresponder, nas últimas décadas, o crescente prestígio atribuído a uma outra forma de recepção e publicização das obras de arte: a atividade curatorial. Nessa transformação em que se poderia ver apenas uma forma de captura (mais uma) da cultura pelo mercado – redução do debate à divulgação, da interpretação ao endosso promocional, do juízo reflexivo à dica de consumo – este dossiê sugere estar em jogo, mais bem, uma reconfiguração das fronteiras entre os termos implicados na discussão: crítica, curadoria, criação artística. A seleção de temas e trabalhos a serem postos em pauta, o estabelecimento de relações entre diferentes obras e artistas, assim como de modos de acesso a eles, por meio da elaboração de uma determinada estratégia expositiva – esses e outros aspectos do trabalho curatorial são pensados aqui menos como diferentes etapas de um saber especializado do que como um repertório de procedimentos que guardam um potencial crítico próprio e são, ao mesmo tempo, indispensáveis à compreensão das práticas artísticas contemporâneas.

Crítica e criação se aproximam na figura emblemática do cineasta Quentin Tarantino e em sua poética citacional, tal como analisada por Rodrigo Fonseca, atravessada por modos diversos de reciclagem e alusão à história do cinema. Também em torno de questões de citação e daquilo que chama de “escrita de segunda mão” se situam as reflexões de Leonardo Villa-Forte sobre o projeto Paginário, mural urbano feito de fragmentos de obras literárias escolhidos por meio de processos curatoriais coletivos. A encarnação mais recente do projeto, em Lisboa, como parte das comemorações pelo Dia Mundial da Língua Portuguesa, enseja uma revisão crítica e atualizada, em chave pós-colonial, dos debates já clássicos sobre pastiche e paródia no capitalismo tardio.

A ideia da montagem como forma de desconstrução do arquivo colonial é o ponto de partida da leitura empreendida por Jânderson Albino Coswosk do filme Frantz Fanon: Black Skin, White Mask, de Isaac Julien, que se desdobra ainda numa discussão sobre masculinidade negra e relações de gênero na obra de Fanon. Na seara literária, Antonia Costa de Thuin encontra no livro A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, um arquétipo feminino de cuidado e criação (a Aranha-mãe) que orienta sua investigação de mulheres e espaços de curadoria voltados à criação e manutenção de redes de apoio a novos artistas e escritores no continente africano. Já Felipe Machado discute a exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, e Fernando Codeço e Julia Naidin propõem a elaboração de “curadorias contextuais” a partir de um projeto de arte em Atafona, pequena praia em vias de desaparecimento no litoral norte do estado do Rio de Janeiro. E Cristine Carvalho faz um levantamento histórico da curadoria para sugerir caminhos por meio dos quais os museus podem se tornar “laboratórios de produção de conhecimentos novos, novas narrativas e novas representações cênicas”. Por fim, reproduzimos vídeo de importante comentário da pesquisadora e crítica Flora Süssekind, que comenta a crise contemporânea da crítica em sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty de 2023.

Inês Cardoso e Miguel Conde
Curadores do Dossiê

Além do dossiê, este número publica uma homenagem de Luis Eduardo Soares ao professor e poeta Italo Moriconi e um artigo em que Osmundo Pinho identifica e discute uma poética da masculinidade negra na obra de quatro autores: Solano Trindade, Lande Onawale (Ori), Davi Nunes e Fábio Mandingo. São publicadas também resenhas dos livros No vestígio: negridade e existência, de Christina Sharpe (2023), por Eduardo Leal Cunha, e Sempre Susan, de Sigrid Nunez (2023), por Beatriz Resende.

O número termina com uma importante entrevista com a diretora, curadora e encenadora Bia Lessa, que comenta sua relação com a crítica e o processo de transposição de Grande Sertão: Veredas para o teatro e a tela, e com a republicação, na seção Vale a Pena Ler de Novo, de “Repensando a História Literária”, seminal texto de crítica feminista de Ria Lemaire.

Este número da Revista Z Cultural marca uma nova fase da revista, com a modernização de seu aspecto gráfico, que agora torna a leitura mais fluente, inclusive em dispositivos móveis.

Beatriz Resende
Lucas Bandeira

Editores da Revista Z Cultural

Dossiê
Tempo de leitura estimado: 43 minutos

CRÍTICA E CURADORIA NA ESCRITA DE SEGUNDA MÃO E NA EXPERIÊNCIA DO PAGINÁRIO CPLP

Em 2023, como parte das comemorações do Dia Mundial da Língua Portuguesa[1], fui convidado a elaborar um mural da série Paginário em Lisboa. O projeto havia sido criado por mim em 2013, no seio de um momento de crise política materializado de maneira dramática nas manifestações nacionais desencadeadas em junho daquele ano, e desde então tivera em torno de 70 realizações de norte a sul do Brasil, a maior parte instalada no espaço público, além de encarnações em Porto, Coimbra, Oeiras e Madri. Em comum entre esses vários Paginários, o conceito básico de montagem de murais compostos de fotocópias de páginas de diferentes livros a partir de uma curadoria coletiva, às vezes seguindo um tema específico, outras vezes trabalhando com o gosto pessoal dos participantes; além da noção de percurso de leitura como criação, e da proposta de uma obra visual se vista de longe e convidativa à leitura se vista de perto.

Pós-moderno em sua valorização das apropriações, descontinuidades, deslocamentos e agrupamentos de diferenças, o Paginário guarda também resquícios de uma visada utópica, por ser uma forma de arte na qual uma noção de educação das sensibilidades se relaciona intimamente com uma proposta de mudança na cidade ou na nação. No horizonte utópico do projeto, estão a inserção da leitura de literatura como possibilidade aberta no circuito das ruas, o circuito urbano; a exposição da leitura (o que toca um outro durante a leitura, e que ele seleciona e sublinha) como meio de contato com o desconhecido; e por último, a expressão de uma relação desabusada com livros, ou seja, menos preenchida por um respeito receoso e distanciador, e mais próxima, física, manual, concreta, cotidiana e simbólica – dado que o espaço da rua não anuncia distinções ou hierarquias em suas paredes e muros.

A principal referência para o projeto encontra-se em espaço público, a céu aberto: a Escadaria Selarón, situada entre o bairro da Lapa e o de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Assim como o Paginário, a Escadaria pode ser pensada como uma instalação, que de acordo com o pensamento de Boris Groys, seria uma obra feita de curadoria, uma obra feita de diversas outras obras. A reunião dessas foi concebida pelo pintor chileno Jorge Selarón, que recebia azulejos enviados por pessoas de todo canto do planeta. Essa relação de parentesco com uma obra composta de azulejos animou o projeto Paginário CPLP no sentido de especularmos uma conversa com toda uma tradição, dado o lugar central que o azulejo ocupa na cultura portuguesa desde o século XIV e a sua anterior utilização por povos árabes no Antigo Egito e na Mesopotâmia, na Antiguidade.

Em conversas com o Departamento Cultural da Missão Brasil junto à Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), setor que havia feito a mim o convite para realizar o Paginário em Lisboa, decidimos, após algumas trocas de fotografias e medições de espaços, que o lugar a hospedar o mural seria o paredão do Largo do Correio-Mór, imediatamente em frente à sede da CPLP, entre os bairros de Alfama e Castelo. Definido o local – que terá sua relevância, geográfica e histórica para o projeto, comentada mais adiante neste artigo –, o processo de elaboração do novo Paginário CPLP se tornou também, para mim, um momento de revisão das bases conceituais do projeto, concebido uma década antes.

Nesse artigo, vou buscar precedentes e referências a partir do modernismo brasileiro (seção 3) e faço uma recapitulação de como o projeto veio articulando arte, literatura e política enquanto trabalhava determinados modelos de curadoria, crítica e criação (seção 4). Na sequência, escrevo mais concentradamente sobre o mural realizado em Lisboa (seção 5), dando foco a como curadoria, crítica e criação se modularam em nosso processo coletivo de seleção de textos, na proposta de trabalhar o pluricentrismo da língua portuguesa – discuto desafios e forças deste tema –, nos motivos para o projeto de formas, imagens e cores do mural, e na maneira como o trabalho dialoga com características do local onde foi instalado. Mas antes desenvolvo uma revisão (seção 2) de alguns conceitos muito utilizados, por mim e outros pesquisadores, em artigos e livros que recentemente trabalharam o tema da escrita e da textualidade produzidas por meio da reciclagem e rearranjo de escritos pré-existentes.

Contexto e revisão de termos: a escrita de segunda mão

Tradicionalmente, a curadoria é o trabalho de pensar, selecionar e colocar obras de arte dentro do espaço da exposição. Essa atividade se difere da atividade do artista no seguinte sentido: ao contrário do curador, o artista pode trabalhar para expor objetos que não são considerados objetos de arte. Ou seja, ao artista é reservado o direito de propor que objetos que não são arte se tornem arte, enquanto o curador seleciona, desses objetos então propostos como arte, quais deles farão parte de um determinado espaço e tempo. Naturalmente, é claro, a curadoria atua assim como quem confere força institucional à afirmação questionadora proposta pelo artista. A rigor, no entanto, dessa maneira, a criação seria considerada primária e a seleção, secundária, tendo cada uma dessas atividades um determinado potencial crítico.

O que estamos vendo acontecer nas últimas décadas é uma crescente flexibilização das fronteiras entre curador e artista, a qual vem se dando por um movimento de mão dupla: pelo lado do curador, a liberdade para disposição espacial das obras, agindo na dimensão relacional delas entre si, ou com o tempo, ou com o espaço, e a força de proposição de temas e narrativas, bem como a de orientar a produção de artistas (especialmente aqueles mais voltados para galerias e museus), alargaram o espectro de ação do curador até um ponto em que nos perguntamos sobre o estatuto do seu gesto, e se não seria ele mesmo um produtor de efeitos potencialmente artísticos. Pelo lado do artista, na verdade, desde Marcel Duchamp, desde o início do século XX, o ato de selecionar pôde se tornar artístico – obviamente, a depender do que é selecionado e do contexto em que é apresentado. Esta proposta foi adquirindo mais espaço na segunda metade do século XX, devido à institucionalização (por parte de museus, universidades, e novas gerações de artistas) das vanguardas como verdadeiras escolas de arte. Este borrar de fronteiras se intensificou ainda mais com a ascensão da arte da instalação. Para Boris Groys,

Pelo menos desde os anos 1960, os artistas têm criado instalações para demonstrar suas práticas pessoais de seleção. As instalações, no entanto, não são nada mais que exposições curadas pelos artistas, nas quais objetos feitos por outros podem ser – e são – representados tão bem quanto aqueles feitos pelo artista. Assim, os curadores também estão livres da obrigação de exibir somente os projetos pré-selecionados pelos artistas. Os curadores, hoje, sentem-se livres para combinar objetos de arte selecionados e assinados por artistas com objetos retirados diretamente da “vida”. Resumindo, uma vez que a identidade entre criação e seleção estiver estabelecida, os papéis do artista e do curador também se tornam idênticos. Uma distinção entre a exposição (curada) e a instalação (artística) ainda é comumente feita, mas é essencialmente obsoleta. (Groys, 2015, p.120)

Assim, observamos uma identificação entre criação e seleção. Quando falamos em arte verbal, poesia, literatura, e o assunto é a relação entre o uso de textos pré-existentes e a proposição de texto novo, nas últimas décadas ganhou espaço a expressão “escrita não-criativa”. Surgida entre fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 nos Estados Unidos como uncreative writing para apontar o fenômeno do aparecimento de uma boa quantidade de obras textuais produzidas por meio de deslocamento (seleção e edição) de textos pré-existentes, ou áudios pré-existentes que seriam transcritos, a maioria dessas obras apresenta propostas de leitura desafiadoras. É um fenômeno ligado intrinsecamente a um tempo histórico de aprofundamento do capitalismo tardio, e é por isso que ele tem seu nome próprio. Fora as vantagens de disseminação advindas da língua inglesa e de um mercado editorial mais robusto, se os vetores que engendram o fenômeno com suas marcas contemporâneas são produzidos anteriormente, em termos materiais, nos EUA (computador, digital, consumo, oferta), é natural que pesquisadores daquele país tenham realizados diagnósticos e debates que logo chegassem a acordos entre conceitos ou nomenclaturas.[2] Este tempo produzido é um tempo marcado, no âmbito da circulação de bens, pela digitalização e a quantidade assombrosa de ofertas de tudo que for possível, as quais nos alcançam sem pedir licença – como se, sufocados, já fosse difícil encontrarmos o que se convencionou chamar de “voz própria”. No mercado editorial, as oficinas de escrita criativa floresceram e geraram certos padrões de escrita, que ocupam as prateleiras e lojas online – produzindo também uma atmosfera de avanço e profissionalização que, pelo retrovisor, anunciava certo esgotamento. No campo artístico, ganhou mais proeminência um contexto de troca intensa das outras artes com a literatura, como as instalações, vídeos de montagem e a música eletrônica, tudo isso dentro de um ambiente cultural em que as máquinas eletrônicas pessoais e o ambiente digital produziram uma situação de fácil manipulação dos objetos verbais, além de uma valorização da “interação” – marcada, no conceito de Marjorie Perloff, pela ideia de moving information.[3]

Como nos Estados Unidos a própria categoria de escrita criativa está enraizada nas instituições, tanto de cursos livres quanto universitárias, pareceu aos poetas e pesquisadores Craig Dworkin e Kenneth Goldsmith que seria necessário cunhar um termo que se mostrasse radicalmente oposto a esse estado de coisas. A radicalidade de boa parte das obras praticadas e estudadas pelos dois, majoritariamente estadunidenses, advém de publicarem intervenções ou deslocamentos em/de apenas uma fonte, por vezes gratuitos ou obtusos, encarando processos de proposição de ready-mades textuais mais do que a artesania de misturas, colagens e montagens que na América do Sul marcaram a obra de Valêncio Xavier e Juan Luís Martinez a partir dos anos 1970, e depois, especificamente no Brasil, Ana Cristina Cesar, Waly Salomão, Paulo Leminski, Sebastião Nunes, e contemporaneamente Leonardo Gandolfi, Alberto Pucheu, Angélica Freitas, Nuno Ramos, Veronica Stigger, e, para usar três casos em outra variante de língua portuguesa, Rui Pires Cabral, Adília Lopes e Pedro Eiras, em Portugal.

Em 2014, o pesquisador e poeta Alberto Pucheu chegou a usar a nomenclatura “escrita não-criativa” para se endereçar à poesia de caráter citacional feita por Leonardo Gandolfi. Mas este é apenas um dos modos que o pesquisador e poeta usou na ocasião, e cada uma das expressões ressalta um aspecto da prática gandolfiana. Pucheu também a descreve como “pós-poesia”, devido à utilização de matérias de fora da literatura, trazendo para a poesia o que não seria específico dela, como trechos de letras de Roberto Carlos e diálogos de filmes de espião. O termo proposto por Pucheu ainda é útil para descrever uma espécie de humor da poesia gandolfiana, de poucos acentos, sem grandes arroubos, uma poesia em tom menor que não teria no espanto – para Pucheu, o afeto-fonte da tradição poética ocidental – o seu disparador ou motivo, o que leva o poeta e pesquisador a caracterizar tal produção tanto como pós-poesia como “poesia do pós-espanto”, marca de uma época em que as sensibilidades foram tão estressadas que ela virou o seu avesso, a insensibilidade, a falta de espanto. A respeito da poesia de Gandolfi, Pucheu diz que o procedimento da “descriação”, ou do gesto “não original”, faz com que o poético e o não poético convivam:

retirando, conjuntamente, ao máximo, a força de criação autoral, que, paradoxalmente, retorna de um novo jeito, já que em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita, ainda que desejosamente fragilizada. (Pucheu, 2014, p. 43- 44)

Essa seria uma das chaves para pensarmos tais autorias que são tecidas por meio de autorias anteriores – ou de materiais sem autoria, ao qual darão caráter artístico, como que por um segundo uso. De maneira que o descriativo é retirar-se do ato tradicional de criação, fazendo “a menos”, e não fazendo “a mais” – mas obviamente resulta em obras criativas. Assim com a escrita não-criativa, como já vimos, nomenclatura oriunda de ambiente institucional, também, quando bem feita, resulta em obras criativas. De maneira que, talvez, para privilegiar menos a oposição ou a diferença, possamos dar destaque à relação, à posição, à diferença dentro da reprodução, e à fisicalidade do gesto: uma escrita de segunda mão. Recordemos que aqui não falamos de um jogo de signos em constante atuação na sociedade, ou de artigos que são escritos como respostas a ideias anteriores, mas sim da própria materialidade da escrita, ou seja, falamos de intervenções e jogos de duplicações, reproduções e deslocamentos textuais materialmente detectáveis. Não é um leitor ideal ou abstrato que de maneira metafórica reúne as leituras em si, mas a encarnação dessa figura como quem se retira da origem de uma escrita para lançar-se a um gesto que produz, para fora da consciência do leitor-autor, um rastro do outro em um objeto visível.

Heranças da potência crítica da paródia modernista antropofágica

Dos anos 2000 para cá vimos propostas de escritas de segunda mão ganharem voz em diversos lugares. No México, com as necroescrituras de Cristina Rivera-Garza, na Argentina, com a obra El Aleph engordado, de Pablo Katchadjian, a qual podemos compreender a partir do artigo “A nova escritura”, de Cesar Aira, no Uruguai, com o neoconceitualismo de Carlos Almonte e Alan Meller, na Espanha com parte da obra de Agustin Fernandez-Mallo, entre outros.

Do ponto de vista brasileiro, e a partir de um recorte temporal do moderno, as recentes escritas de reciclagem de Veronica Stigger, Angélica Freitas, Roy David Frankel, Nuno Ramos, Giselle Beiguelman, Luiz Ruffato, Daniel Arelli, Leonardo Gandolfi, e até Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa, derivam como possibilidade de projeto, da devoração antropofágica proposta pelos modernistas nos anos 1920. Diferente das iniciativas europeias que lhe serviram de impulso, como o dadaísmo e o futurismo, as quais formando uma imagem de futuro praticaram uma crítica de negação, avessa aos critérios então tradicionais da arte, os modernistas brasileiros, ao mesmo tempo em que propunham novas sintaxes, assim como o reconhecimento de um novo ritmo das artes e da vida e uma valorização da oralidade, recorreram ao passado nacional em busca de referências temáticas. Mesmo que inevitavelmente banhados pelo ponto de vista de uma origem burguesa, então em decadência, seus membros promoveram uma escavação renovadora do passado brasileiro e, por consequência, da presença indígena, europeia e africana em nosso território.[4]

O desejo de renovação artística guardava uma vontade não de abandono ou recomeço do zero, mas de reinterpretação ou releitura dos discursos historicamente estabelecidos para colocá-los em seus então supostos devidos lugares. Uma espécie de gesto que, na nomenclatura atual, poderia ser pensado como anticolonial, e que modulou o Brasil para um movimento de tomar posse de si mesmo – uma espécie de segunda mão que seria ela mesma uma tentativa de investigar e plasmar a verdadeira cultura nacional, apagada pela primeira mão do colonizador.

Se há um primeiro autor na literatura brasileira que se propôs a produzir uma fricção entre a literatura então pensada como universal e a literatura periférica (em termos globais), usando textos pré-existentes, reescrevendo ou reelaborando a literatura em seu corpo textual, e assim praticando uma curadoria com finalidade crítica, é Oswald de Andrade. Um dos recursos mais praticados pelo escritor paulista foi a paródia como releitura histórica, o que vemos no poema “As meninas da gare”, publicado no livro Pau-Brasil, de 1925:

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
(Andrade, 1925, p. 26)

Oswald se vale de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro documento textual de que se tem notícia no Brasil. O poema de Oswald justapõe, em nossa imaginação, o texto de Caminha que versa sobre a chegada dos navegadores portugueses ao Brasil à visão de alguém que se aproxima de prostitutas, que costumavam trabalhar na gare (em francês, uma estação de estrada de ferro) na São Paulo do início do século XX. Na carta original, enviada para Dom Manuel I em Portugal no dia 1º de maio de 1500, diz Pero Vaz de Caminha:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (Caminha, sem data, p. 4-5)

Enquanto o escrivão português trata de como os navegadores não sentem vergonha de olhar para as vergonhas das indígenas porque elas mesmas seriam muito inocentes, no texto de Oswald os homens não sentem vergonha de olhar para as vergonhas daquelas mulheres porque elas são prostitutas tentando conquistar clientes. O poema associa – com finalidade crítica – a imagem das indígenas à de prostitutas e a imagem dos navegadores a homens em busca de sexo. Por meio da paródia, Oswald questiona o primeiro olhar que os navegadores portugueses lançaram sobre a população nativa, e os primeiros contatos. Assim, de certa forma ele desnuda o ar civilizador do colonizador e pergunta, por meio do texto do “civilizado”: afinal, quem são os verdadeiros selvagens?

A estratégia resulta na criação de uma dialética. O gesto de Oswald dá à Carta de Pero Vaz de Caminha um novo ente com o qual conversar. A paródia, vista como sobreposição, faz com que o texto original sofra uma fricção: há um ruído entre a visão expressa na carta de Caminha e a sua crítica expressa em “As meninas da gare”. Assim, a função crítica é colocada em funcionamento a partir do gesto da seleção e da reescrita. Tal devoração crítica envolveria, nos termos de Haroldo de Campos, uma “transvaloração”, ao inserir novos valores, critérios e olhares por dentro da tradição, como um invasor que ao mesmo tempo a abraça, mas para lhe dar uma complexidade desagradável, dura de engolir pelos olhos da tradição. Para o poeta e tradutor brasileiro, com a antropofagia oswaldiana, “tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal” (Campos, 1992, p. 234). Por isso, podemos pensar o movimento antropofágico como a primeira iniciativa a elaborar, como programa estético, político e ideológico, no Brasil, uma revisão das relações entre centro e periferia, metrópole e colônia, original e derivado, e uso paródico de texto pré-existente como recurso crítico-dialético.

Se essa condição de território secundário, onde se cultiva uma cultura derivada, sofreu alterações em sua dimensão e projeção pelo mundo ao longo do século XX e do XXI, com o Brasil superando Portugal em matéria de capacidade de influência externa, ao mesmo tempo tal condição se manteve internamente, em razão da força dos fundamentos históricos na nação e sua inquebrantável permanência, mesmo que atacada, perfurada, inquirida, matizada. É esta a condição – alargada para todo um continente, o qual, seja onde se fala a língua portuguesa ou a espanhola, tem na Europa o seu referencial primevo – que levou o escritor e teórico brasileiro Silviano Santiago a caracterizar, em 1971, o que chamou de “o entre-lugar do discurso latino-americano”:

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana. (Santiago, 200, p.26)

A proposta de releitura da cultura brasileira, para Oswald de Andrade, passava pelo reconhecimento de que estávamos aprisionados na Carta de Pero Vaz de Caminha, que para ele se torna assim alvo de agressão – não se trata de celebração ou irmandade, mas de crítica e oposição. É devoração, não é diluição.

A posição, descrita por Santiago, requer do latino-americano a ocupação de um espaço que de origem, é do outro (a língua, a escrita, os símbolos), em um misto de tomar o que há de possibilidade no outro para si, enquanto ao mesmo tempo, produz um cruzamento, propondo a sua diferença ao habitar desordeiramente (para o olhar dos outros) o terreno consagrado (por outros). Isto não é tanto uma ação específica, calculada, que certo escritor pode operar ou não. É mais uma condição da qual se parte.

Identificação entre seleção e criação: curadoria ampliada ou criação reduzida

No processo de cada encarnação do Paginário, a curadoria realizada por mim e pelos colaboradores é tão afetiva ou celebratória quanto desrespeitosa. Não escolhemos uma obra de arte para exibir. Nós seccionamos obras de arte, reconhecendo o valor de sua parte, para experimentá-la em diálogo com outros seccionamentos. Este fragmento criado é de suma importância para quem o escolhe, sendo assim um gesto de reconhecimento e de mutilação – que será ofertado ao passante na rua. Mas aqui cabe ressaltar uma diferença para a intervenção, o seccionamento, a destruição de símbolos evocada nas vanguardas do início do século XX. Enquanto nas vanguardas a destruição ou intervenção era um gesto de abandono do conteúdo ou imagem original, para que fosse produzida a imagem de sua rasura e proposta uma outra imagem sobreposta àquela, aqui o que motiva a intervenção ou a secção do original é o reconhecimento de seu valor. O livro sofre intervenção, simbolicamente (pois na prática é fotocopiado), em nome do valor que pode haver mesmo em uma pequena parte dele, e de seu poder de atrito ou ressonância ao lado de outras pequenas partes que podem ter também seu próprio valor – umas atritando ou ressoando as outras. Existe uma valorização da herança literária. Uma valorização do gesto do leitor como afirmação de um eu. E existe o reconhecimento do espaço público como a afirmação do coletivo social. É a criação de uma triangulação entre o texto do autor, o texto do leitor e o texto da rua. O projeto opera, assim, a partir de uma ideia de arte não autônoma, tanto socialmente quanto materialmente e esteticamente. Portanto, o que ocorre não é um esvaziamento oriundo das práticas de celebração da diferença e do pluralismo, mas sim uma procura da inserção da diferença por um conjunto de efeitos estéticos, mas também, principalmente nos murais a céu aberto, sociais.

Exceção feita o desenho (formas e cores) do trabalho, que não se encontra nos textos originais usados, sendo portanto um “acréscimo de criação” – é quando seccionamos obras de arte para nos servir de uma pequena parte de cada uma, que a ideia de exercer uma curadoria se problematiza, pois aí agimos “demais” sobre a obra para que o ato seja pensado como uma curadoria típica. Não fazemos nem como o curador, que protege as obras inteiras, levando-as para o museu ou galeria que julgar interessante, nem como o artista, que recolhe objetos mundanos ou estranhos, que não são obras de arte, e, em seu ateliê, cria alguma diferença neles ou com eles, a qual se aceita por um curador como arte, arte se tornará. Um fragmento de uma obra de arte é o quê? Não é nem a obra de arte nem um objeto fora da arte. É mais que um objeto fora da arte e é menos que uma obra de arte. Curadoria ampliada, criação reduzida.

Figura 1: Foto de Líbia Florentino do mural Paginário em Lisboa.

Instalação de um mural “lusófono” da série Paginário em Lisboa

Nessa penúltima parte do artigo pensarei mais diretamente a relação entre curadoria, crítica e criação a partir da experiência do Paginário CPLP, principalmente por meio de quatro elementos. 1. O tema e a pesquisa para seleção de textos. 2. Efeitos da forma mural. 3. Função crítica nas cores e imagens. 4. O lugar como parte da obra e o potencial crítico de seu uso. É necessário dizer que, do ponto de vista em que me encontro, como quem esteve imerso em sua criação e desenvolvimento, embora depois de 10 anos consiga alguma distância de observação, o projeto se trata justamente de diferentes meios trocando saberes entre si – a poesia, a ficção, a escrita, a arte visual, a arte urbana, o artesanato, a performance, a colagem, a escadaria de azulejos, o remix, a história, a arquitetura e a geografia, o urbanismo… – mas, para pensar o projeto, facilitará quebrá-lo em diferentes camadas ou características (e haveria outras a pensar ainda, como o processo de montagem e aquilo que pudemos observar da recepção do público).

Figura 2: foto ampliada das fotocópias de páginas de livros no mural do Paginário.

O tema e a pesquisa para seleção de textos

Decidi junto ao Departamento Cultural da Missão Brasil que o tema do mural seria a variação linguística da língua portuguesa em cada um dos países que falam oficialmente o idioma. A literatura – principalmente ficção, poesia e ensaios – seria, obviamente, o canal a expressar esta variação. A afirmação dessa variação, sendo realizada em Portugal, de imediato ganha contornos críticos, pois coloca a variação de origem não acima das outras, mas lado a lado dela, expondo tanto o que ela é quanto (em maior quantidade, somando todas as outras) o que ela não é. Atualmente, há um debate sobre a possibilidade de chamarmos a variação linguística do português no Brasil de “pretuguês”, para marcar as diferenças locais para a variação de Portugal, principalmente aquelas advindas das línguas africanas que chegaram em território brasileiro por meio do sequestro de africanos que foram escravizados, e que hoje estariam nas origens de mais de metade da população brasileira. É uma ideia interessante e que merece maior estudo da minha parte. No entanto, até o momento, parece-me ainda mais interessante, politicamente, não se isolar em uma língua oficialmente apenas sua e de nenhum outro país, e sim disputar a categoria “língua portuguesa”, impondo a variação brasileira como tão valorosa e legítima como qualquer outra. Provavelmente, pela sua diversidade de absorções, ainda mais rica do que a variação praticada na ex-metrópole.

Para que esta variação fosse mais bem expressa, propus que fosse formada uma equipe de colaboradores. Assim, a curadoria seria dividida entre quem conhece melhor cada variação local. O mural ao todo recebeu 900 páginas feitas de entre 400 e 450 fragmentos de textos duplicados. Essas foram selecionadas por 31 pessoas, contando comigo. A equipe formou-se com pessoas de oito países: professores, escritores, pesquisadores, poetas, diplomatas, artistas, jornalistas, slammers e membros de algumas unidades do Instituto Guimarães Rosa sediadas em países membros da CPLP.[5]

A premissa para a decisão temática é a de que a língua portuguesa é uma língua pluricêntrica – a noção de que a língua portuguesa é praticada em diversos centros, cada um com suas características e nenhum com prevalência sobre o outro. Esta premissa, após o início das pesquisas, foi desafiada pela realidade. Se temos o conceito de um mural formado por fotocópias de páginas de livros, já tomamos uma decisão que é tanto estética quanto política – trabalhar a partir da palavra escrita, e perturbando a sua forma tradicional de veiculação, o livro. Se no início do projeto Paginário, em 2013, este critério era visto em função de trazer à rua um tipo de texto que lá não estava, nem pela oralidade das batalhas de slam, nem pelos traços do grafite ou do pixo, nem pelo texto escrito em si, disputando o espaço com publicidade e informação de direção ou lugar, neste Paginário CPLP ficou mais aparente não só o que acrescentamos à rua, mas também aquilo que ficaria de fora do mural. Ao operarmos a partir do lugar latino-americano entre a submissão ao código e a transgressão ao mesmo, acabamos por conhecer outros lugares, de língua portuguesa, que vivem situação semelhante como povo colonizado, mas nos quais as relações com o código da palavra escrita, e em português, encontram-se em outras situações. O mercado editorial é incomparavelmente mais pujante no Brasil e em Portugal, em relação a como funciona em Angola, Cabo Verde, Moçambique, e onde ainda é mais incipiente, Timor Leste, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe. Se o trabalho tivesse como meio oralidades gravadas, nada impediria uma igualdade de participação na obra final, mas como nosso recorte é a literatura escrita, é inevitável que as diferenças se façam materialmente presentes na obra. Tal diferença de presença política e cultural, a favor de Brasil e Portugal, nas ações de promoção da língua portuguesa, leva alguns linguistas a questionarem a ideia desta língua como pluricêntrica, afirmando que, na realidade, seria uma língua bicêntrica, com a população brasileira a praticando sob determinadas normas e todas as outras populações a praticando sob normas cuja ingerência é de Portugal – o que, ao mesmo tempo, como reação a uma “ameaça” mais clara e impositiva e oficialmente mais duradoura, produziu uma sólida resistência à língua portuguesa e um cultivo das línguas crioulas nos países africanos que não encontra paralelo no Brasil.

Aliás, a partir do contato direto por telefone ou mensagem com os 31 colaboradores, tornou-se mais notável a necessidade de mais iniciativas de intercâmbio cultural direto entre Brasil e os países africanos ou asiáticos de língua portuguesa, sem passar por Portugal. É claro que a situação está melhorando, como podemos perceber pelos departamentos de literaturas africanas ou lusófonas. Mas, em geral, nossa ignorância em relação a tais países é imensa e causa até embaraço ver a defesa de línguas crioulas em países como Cabo Verde, por exemplo, ante a falta de circulação das línguas autóctones no Brasil. Conversando com o pesquisador, e colaborador neste Paginário, Dênis Rubra, brasileiro que realiza doutorado na Universidade de Lisboa, onde é orientado por Ana Paula Tavares, professora e escritora angolana, soube que de todos os autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, apenas um não foi publicado (ou seja, mercadologicamente testado) antes em Portugal. E todos os outros, publicados em Portugal depois no Brasil, foram em Portugal publicados por um concentrado de apenas três ou quatro editoras). De maneira que, apesar das melhoras, ainda mantemos a ex-metrópole como um farol para orientar nossas trocas culturais.

Se limitamos o escopo do trabalho para literatura publicada em livros, inevitavelmente privilegiamos a participação das variantes brasileiras e portuguesas no mural. Não houve como contornar essa questão. Criamos gradações. Do mural que foi finalizado com aproximadamente 900 páginas de texto (fotocopiadas em folhas A4) e 25 metros de comprimento por quase 3 metros de altura, ficaram em torno de 20% destas medidas para a literatura do Brasil, 20% para de Portugal, 12,5% para Angola, 12,5% para Cabo Verde, 10% para Moçambique, 10% para São Tomé e Príncipe, 10% para Guiné Bissau e 5% para Timor Leste. Deparamo-nos com o fato de que, embora presente na CPLP, Guiné Equatorial tem o espanhol como língua majoritária, e não encontramos literatura nativa deste país publicada em língua portuguesa, de maneira que sua presença no mural ocorreu – como uma gambiarra – com o texto do seu hino nacional em uma versão traduzida por nós mesmos para português. Por isso, cabe dizer que seria necessário pesquisa mais longa do que a feita para este artigo para dizermos se a ideia de bicentrismo é a mais acertada. O que podemos dizer, no momento, é que o fato desta desigualdade se refletir em nosso trabalho devido à escolha por uma determinada materialidade não indica, em absoluto, que a ideia de pluricentrismo estaria incorreta.

Figura 3: foto ampliada das fotocópias de páginas de livros no mural do Paginário.
Figura 4: Língua Lengua, poesia retirada do livro Pesado demais para a ventania, de Ricardo Aleixo.

Efeitos da forma mural

É notável que, quando Flora Süssekind formula, em 2013, seu pensamento sobre objetos verbais não-identificados, que seriam distinguidos por uma literatura-coral, a pesquisadora mencione não somente textos, mas também instalações e performances textuais. Estas se apresentariam como um coro, um aglomerado de vozes que se avolumam, se pronunciam, somem, retornam, como um registro de emissões de diferentes origens.

Coralidades nas quais se observa, igualmente, um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário, fazendo dessas encruzilhadas meio desfocadas de falas e ruídos uma forma de interrogação simultânea tanto da hora histórica, quanto do campo mesmo da literatura. E que não à toa conectam este campo a outras áreas da produção cultural. (Süssekind, 2013, p. 2)

O risco de todo projeto que pretender trabalhar a noção de agrupamento e simultaneísmo, ainda mais quando o trabalho envolve texto – por ser um meio que exige mais tempo do que uma imagem para ser decodificado –, é o bloqueio da profundidade em favor de uma sequencialidade formada por descontinuidades, ou seja, a dispersão. Aqui, lembro da crítica de Antonio Candido a Marco Zero, obra em dois volumes de Oswald de Andrade, apresentada pelo autor como romance-mural. O crítico considerou o tema do livro o melhor possível, qual seja, resumidamente, diversos membros de diferentes classes sociais, às vésperas da revolta de 1932, comportando-se de maneira cada vez mais extremada e, portanto, de maneira a impedir qualquer compatibilidade ou convivência harmonizada entre si. Porém, quanto à forma, Candido escreveu:

Quantas vezes não paramos no meio da leitura d’A revolução melancólica para tomar fôlego, cansados de esperar uma solução literária para as perspectivas que o romancista vai abrindo a pequenos golpes. A impressão é de rodada em falso, movimento que não progride. Na poeira das pinceladinhas, Oswald de Andrade vai largando tintas de muitas cores, e não parece que elas consigam dispor-se conforme o afresco que ele intentou. Mesmo porque (palpite de leigo) não creio que o pontilhismo seja a técnica mais indicada para os murais. (Candido, 2017, p.24).

Esta é uma crítica que podemos usar para pensar o formato mural em diálogo com texto. No caso do mural, estas descontinuidades e novos começos são assumidos – e caberá ao visitante leitor estabelecer continuidades ou não. Saímos de uma organização pela sequencialidade para uma organização pela constelação. A dispersão, no entanto, pode ser combatida, ou suavizada, pelos temas dos murais, como curadores determinam temas de exposições. Assim, as ligações entre os fragmentos são facilitadas e se tornam mais consequentes. Isto certamente se deu no Paginário CPLP.

A colocação lado a lado de textos nos mais diferentes portugueses historiciza a língua portuguesa. Distribui-a em seus variados sotaques. Amplia a visão do que é a língua portuguesa. Isto, ao ser realizado no coração da capital do centro irradiador da língua portuguesa, parece-me ter uma força crítica. Espacializa a língua portuguesa, como uma dobra da sua dimensão territorial, sendo caracterizada, diferente do espanhol ou do inglês, por exemplo, por uma quantidade considerável de países sem que nenhum deles guarde fronteira terrena com o outro. Nessa maneira de se apropriar, não é um texto que é justaposto a outro simbolicamente, como fazia Oswald. O texto é colocado lado a lado com outro, e um texto não foi feito diretamente como resposta ao outro. A dialética, neste caso, não se dá entre o original e o derivado (e por isto não se trata de paródia crítica ao estilo modernista), mas entre diversos textos, nenhum mais original do que o outro, implicando assim, visual e metaforicamente, em igualdade de condições. Materialmente, todos os textos são fotocópias, de modo que o texto da ex-metrópole e os textos das ex-colônias não se diferenciam de imediato. Não há nada em suas aparências que os tornem distintos dos outros. Só com a leitura será indicada a procedência – até porque inscrevemos nome de autor, título de livro e país de origem em cada uma das folhas (operando com a multiplicidade característica do ímpeto democrático e a fluidez característica do digital, mas sem a perda de referência geográfica e histórica). A fotocópia é uma tecnologia vista como suja, precária, barata, sem duração – é a gambiarra puxando pra baixo, ao nível do chão, o que preferia ficar acomodado em uma prateleira alta. É uma espécie de grande conversa ao mesmo tempo que é uma grande conversa muda – a troca de palavras entre os elementos só acontece a partir da ativação do visitante que, ao percorrer a leitura espacialmente, também as conjuga uma à outra no tempo.

Figura 5: poema Os livros, retirado do livro Como se desenha uma casa, de Manuel António Pina Portugal.
Figura 6: poema Em que língua escrever, retirado do livro Entre o ser e o amar, de Odete da Costa Semedo.
Figura 7: fragmento retirado do livro A estética do oprimido, de Augusto Boal.
Figura 8: fragmento retirado do livro Owé/Provérbios, de Mãe Stella de Oxóssi.
Figura 9: fragmento retirado do livro Poesia para encher a laje, de Renan Inquérito.
Figura 10: poema Expresso-me, retirado do livro Menino da Tabanca, de Seco Silá.

Função crítica e simbolismo nas cores e imagens

Em relação às cores do Paginário CPLP, elas decorrem de um cálculo em torno de quais são as cores mais frequentes nas bandeiras dos países membros da CPLP, e suas vivacidades funcionam como uma espécie de positividade a atrair para a negatividade tanto das imagens que formam quanto da releitura histórica. As cores são vivas, alegres, e formam uma embarcação. Até que, ao final, há uma cruz pegando fogo. Com esta imagem, pretendi, criticamente, sugerir o legado das navegações: a colonização mental e corporal pelo cristianismo. Tal é a herança deixada para trás, ao fim do barco, que já se dirige a outro ponto, para, possivelmente, fazer o mesmo com outro povo. Em uma segunda camada, pretendi deixar ambivalente a imagem da cruz em fogo. Ela é tanto a “batata quente” que os portugueses deixam nas mãos das ex-colônias, que com ela precisam se virar, uma espécie de cavalo de Tróia sem a necessidade de guerreiros, e assim é muito mais eficaz, e ao mesmo tempo ela é a cruz atacada, a cruz incendiada pelos povos que a recebem em sua terra. Ou seja, é tanto opressão quanto reação, recusa, negação, contra-ataque. Este complexo de imagens – assim como a convivência entre textos que naturalizam a escrita em português e outros que não o fazem – poderia ser pensado como herdeiro do barroco, ao trazer em um complexo a afirmação e a negação, uma determinada alteridade (as navegações, a embarcação) e a sua condição alterada (a chaga, a violência implicada na imposição de um sistema de crenças e sagrados). Ao comentar a prática de transcriação de Haroldo de Campos, o pesquisador e professor Álvaro Faleiros diz que, para o poeta concreto,

a manipulação irônica está no centro da “razão antropofágica” que perpassa o Barroco e que implica numa “desconstrução do logocentrismo”. Os procedimentos utilizados para esse fim seriam a “malandragem” e a “carnavalização”, compreendidos como “espaço lúdico da polifonia e da linguagem convulsionada”. (Faleiros, 2019, p. 30-31)

No caso do Paginário, não se trata de criar um duplo que resulte em dialética, não se trata de penetrar no discurso do outro para transfigurá-lo, mas sim de seccioná-lo para que ele deixe de ser um ente isolado em si mesmo (não abstratamente, mas materialmente) e passe a conviver com novas proximidades – ou seja, trabalhar com esta carnavalização compreendida como espaço lúdico de polifonia. Conectar bordas, como dizia Hélio Oiticica. Ou melhor, rasgar bordas onde elas não existem, para que assim passem a existir, para desnaturalizar a unidade romântica de um todo homogêneo – no caso, a língua portuguesa. De maneira que, especialmente neste Paginário CPLP, haja conflitos, como aquele que pretendemos ao colocar em fogo a cruz, instrumento simbólico de poder para exercer influência orientada para a conversão.

Figura 11: foto do mural do Paginário em Lisboa, o qual reproduz a função crítica por meio de suas cores e imagens.
Figura 12: foto do Largo do Correio-Mor, o qual contém o mural do Paginário em Lisboa.

O uso do lugar como parte do potencial crítico da obra

Quando tratamos de arte pública, o trabalho começa pela escolha do lugar. Precisamos considerar textura da parede, sua cor e sua altura; a sua localização, se ele será visto por mais ou menos pessoas, quem são as pessoas que por lá passam e como se relacionam com aquele espaço; e a história do local, que colocará o trabalho em relação com o tempo. De certa forma, a escolha do espaço já nos coloca numa posição crítica em relação a pré-determinações e expectativas. Um trabalho em um museu ou galeria é imediatamente reconhecido como arte. Um trabalho na rua – e ainda mais feito de material perecível – é algo indistinto demais para proporcionar uma categorização tão imediata. Isto, em si, parte de uma crítica em relação à facilidade com que algo pode ser alvo de um olhar que o considere artístico, bastando para isso o encontramos dentro de uma galeria ou museu. A intenção de fazer um trabalho de arte público é também uma crítica à noção moderna da total autonomia da arte. A histórica do local não foi criada pelo Paginário. O critério de escolha para o local é que, sim, propôs-se como algo que favoreça o desdobramento de sentidos do trabalho. A curadoria da rua, por assim dizer, pode resultar em gestos iconoclastas – caso o local seja um ambiente de memória, um ambiente celebrado. Foi o caso aqui. Missão Brasil junto à CPLP e eu escolhemos nos inserir dentro de uma teia de relações históricas.

O Largo do Correio-Mór é espaçoso, arejado, arborizado, com bancos para sentar – perfeito para um mural, exceto pela sua parede curva. Mas o mais interessante é que este largo tem este nome porque ele fica de frente para o Palácio do Correio-Mór, na freguesia de Santa Maria Maior. Nas suas estruturas de base, que datam de antes do século XVI, foi instalado o Correio Superior, oficial responsável pelas comunicações (inclusive escritas, como cartas) dentro do reino. Na sequência, em 1520, a função passou a ser chamada de Correio-Geral do Reino (ou Correio-Mór), por meio de proposta de Dom Manuel I, confirmada por Dom João III. Na primeira metade do século XVII foi construído, sobre as estruturas de base da construção anterior, o palácio de fato, o qual ganhou o nome de Palácio do Correio-Mór. Nele funcionou esta função até o ano de 1797, pois, durante o reinado de Dona Maria I, a função foi incorporada pela Coroa. Como compensação pela perda de sua função, Manuel José da Maternidade da Mata Sousa Coutinho, o último homem a exercer o cargo, recebeu o título de Conde de Penafiel e o palácio passou a ser sua propriedade sendo transmitido, na sua morte, em 1859, para a filha Maria da Assunção da Mata de Sousa Coutinho, a 1ª Marquesa de Penafiel – motivo pelo qual atualmente ele é mais conhecido como Palácio de Penafiel. Ao longo dos anos a família arrendou partes do Palácio para novos moradores, como ministros e embaixadores, até que em 1919 o Palácio foi adquirido pelo Estado Português, tendo servido ao longo do século XX, como sede da Direção-Geral dos Caminhos de Ferro e o Conselho Superior de Obras Públicas. Dessa maneira, notamos que o local é marcado historicamente por atividades de correspondência, comunicação, transporte e planejamento urbano. É bem possível que nos arredores do largo tenham passado cartas e outros tipos de comunicações oficiais que orientaram e definiram, por séculos, o destino de oito países além-mar. E do próprio Portugal. São esses países que, simbolicamente, por meio de sua literatura, por meio das escolhas de seus pesquisadores, habitantes ou nativos, fazem o movimento oposto: ao invés de serem lidos e comunicados, leem e comunicam-se. Como se a cidade fosse um texto e uma outra leitura a invadisse. Como se a cidade fosse um texto escrito que pede ajustes de uma segunda mão.

Figura 13: foto de Joana Ruth do mural do Paginário em Lisboa.
Figura 14: foto de Joana Ruth de participantes do projeto confeccionando a arte do mural Paginário.

Conclusão

Em. Los muertos indóciles: Necroescrituras y desapropiación, a pesquisadora e escritora mexicana Cristina Rivera-Garza, após trabalhar o tema da apropriação de textos em obras literárias contemporâneas, propõe que olhemos o gesto também pela via da desapropriação: “O que aconteceria se, ao invés do nome de um poeta, ou de um autor, aparecessem nas capas destes livros dialógicos, destes livros escritos, de fato, na mais estrita das coautorias, os nomes de todos os envolvidos? Que tal se não aparecesse nenhum?”[6] (Rivera Garza, 2013, p. 91). Aqui, ela sugere que o deslocamento de texto também o desloque para fora de um sistema de nomenclatura que serve ao mercado, à propriedade, ou seja, um sistema que torna as coisas próprias de cada um. Rivera Garza imagina como poderiam ser se as coisas fossem de todos ou de ninguém. Deixo isto para a imaginação do leitor enquanto me aproprio do termo proposto por Rivera Garza para sugerir uma noção semelhante de desapropriação: aquela que acontece quando, ao nos inserirmos em determinado discurso, invadindo um espaço, retrabalhando, editando, recontextualizando sua materialidade, estamos desapropriando esse objeto (na falta de palavra melhor) de seu lugar único, instaurando uma conversa aonde antes havia um monólogo – e assim ele deixa de ser o único em posição apropriada para versar sobre determinado assunto.

Atuar no Largo do Correio-Mór, região central de Lisboa, é conferir ainda mais historicidade tanto ao local quanto ao projeto. Afirma-se, assim, uma outra forma de curadoria, dado que a curadoria não é somente aquela que coloca as obras dentro do museu ou galeria, mas também dentro da história, não permitindo que cada ação soe pairando isolada, como uma criação isolada de contexto.

Figura 15: foto de visitantes no Largo do Correio-Mór, onde se encontram as obras expostas a céu aberto.
* Leonardo Villa-Forte é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e doutor em Letras pela PUC-Rio.
Referências bibliográficas
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CAMPOS, Haroldo de. “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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FALEIROS, Álvaro. “Antropofagia modernista e perspectivismo ameríndio: considerações sobre a transcriação poética em Haroldo de Campos”. Traduções canibais. Uma poética xamânica do traduzir. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2019.

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PUCHEU, Alberto. Do tempo de Drummond ao (nosso) de Leonardo Gandolfi; da poesia, da pós-poesia e do pós-espanto. Rio de Janeiro: Azougue, 2014.

RIVERA-GARZA, Cristina. Los muertos indóciles. Necroescrituras y desapropiación. México, D.F.: Tusquets, 2013.

RESENDE, Beatriz. “O escritor latino-americano e a nação: um problema”. Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Sistema de Informação para o Património Arquitectónico. “Palácio Penafiel / Palácio do Corrreio-Mor”. Atualização por Margarida Elias (Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design – CIAUD-FA/UTL), 2014. Acessado em 16 de fevereiro de 2024: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4003.

SÜSSEKIND, Flora. “Objetos verbais não-identificados”. Rio de Janeiro: O Globo, 2013. Acessado em 16 de fevereiro de 2024:  https://pdfslide.net/documents/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-suessekind-prosa.html?page=1
Notas
[1] A partir de uma resolução do Conselho de Ministros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a Unesco oficializou o 5 de maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Segundo a Ata da Conferência, a escolha de um dia para celebração mundial desta que se tornou a língua mais falada do hemisfério sul, justifica-se, entre outros motivos, devido à “contribuição da língua portuguesa na preservação e difusão da civilização e da cultura humanas”, assim também como devido às “garantias oferecidas pelos Estados que têm o português como língua oficial, em relação à salvaguarda, à conservação e à celebração desse idioma, assim como seu compromisso ativo em favor da promoção de um dia mundial da língua portuguesa e da participação nele”. Tradução livre de documento da 207ª sessão da UNESCO, item 43 da agenda de 13 de setembro de 2019. Acessado em 16 de fevereiro de 2024: https://en.unesco.org/sites/default/files/accord_unesco_langue_portuguaise_conference_generale_eng.pdf

[2] No Uruguai, esta situação começou a ser apontada, não apenas teoricamente, mas por meio de publicações de poemas de segunda mão, em 2001. Mas nada disso foi traduzido para o Brasil, as tiragens foram muito baixas já no Uruguai, não chegaram a livrarias brasileiras, não ganharam resenhas ou postagens, e a produção de pensamento não ganhou o volume de comentários e artigos que ganhou nos EUA.

[3] Necessário é lembrarmos que a noção de moving information tem dupla função: apontar tanto a característica de facilitação da manipulação dos conteúdos, na era digital, quanto sugerir que a informação que selecionamos e da qual nos servimos é algo que nos toca, que nos move, que nos mobiliza.

[4] Vale lembrar que a crise financeira que eclode mundialmente em 1929, e a migração em massa, no Brasil, do campo para as cidades durante os anos 1920, fizeram com que as diferenças e contradições sociais ficassem mais aparentes, e os escritores, de certa forma, fossem empurrados a reconhecer realidades antes pouco visadas pelos membros de uma classe social de posses.

[5] São estes, seguidos do país sobre cuja literatura o convidado se debruçou: Dênis Rubra, Joice Zau, Kaio Carmona (Angola). Ana Paula Barbosa, Cida Pedrosa, Felipe Marcondes, Isadora Xavier, João Marcelo Costa Melo, Leonardo Villa-Forte, Lucas Litrento, Luciany Aparecida (Brasil). Edyoung Lennon, Maria do Céu Baptista, Naduska Mário Palmeira, Simone Caputo Gomes (Cabo Verde). Dany Wambire, José dos Remédios, Virgília Ferrão (Moçambique). Janaína Vianna da Conceição, Jéssica Lima, Ivanick Lopandza, Lauro Cardoso (São Tomé e Príncipe). Afonso Cruz, Alice Neto Sousa, Bruno Ministro, Fernando Aguiar, Mafalda Lalanda (Portugal) Eliseu Banori, Ticiana Souza Santos (Guiné-Bissau) Hérica Jorge Pinheiro, Suillan Miguez Gonzalez (Timor Leste).

[6] Tradução livre.
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A crise da crítica, por Flora Süssekind [vídeo]

Nesta fala, recorte de sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty de 2023, a professora, pesquisadora e crítica Flora Süssekind comenta a crise contemporânea da crítica. A intervenção se deu na mesa “Um teatro, um precipício”, que contou ainda com a dramaturga francesa Marion Aubert e a mediação da professora Natalia Brizuela. Para ter acesso a íntegra do evento, acesse: https://youtu.be/nuSrydkI0PQ

Dossiê
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CURADORIAS CONTEXTUAIS DE (DES)OCUPAÇÃO NA TERRA EM EROSÃO

Na proposta de refletir sobre as práticas curatoriais e as metodologias que ensaiamos nos últimos anos com o projeto de arte e pesquisa ambiental “Casaduna: Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona”, decidimos elaborar uma reflexão em torno da noção de (des)ocupação, a partir de alguns exemplos de moradores de Atafona que lidam de maneira inventiva com o processo de perda de suas casas, e de um evento produzido no ano de 2022. Vamos nos referir a experiências de ribeirinhos como Dona Belita e o pescador Fernando, mas também a experiências de moradores oriundos da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes, que construíram casas de veraneio em Atafona. É o caso da Sônia Ferreira, empresária aposentada, filha do falecido Alair Ferreira, influente político da região.

Na antiga casa da moradora Sônia Ferreira, semanas antes da demolição do imóvel construído por seu pai nos anos 1960, onde ela habitava, realizamos o evento (DES)OCUPAÇÃO. Na ocasião, coincidentemente, realizávamos uma residência artística[1] quando Sônia nos disse que planejava pôr abaixo sua moradia pois o mar já havia derrubado o muro e começava a erodir o solo que sustentava sua casa. Anos antes, Sônia havia compartilhado conosco um álbum com fotos feitas por ela em 2008. Foram meses fotografando a queda do prédio do Julinho. Espectadora privilegiada, Sônia viu o prédio ruir pela força da erosão da varanda de seu quarto. Ela tirou fotos diárias e conseguiu flagrar o momento exato da queda, material com o qual realizamos o filme Mar Concreto, finalizado em 2021.

Para construirmos nossa reflexão, vamos retomar alguns momentos anteriores, fundamentais para a elaboração de uma reflexão ética, estética e política em nossas práticas no território, desde a proposta inicial do projeto, iniciado em maio de 2017. Nesta reflexão, vamos abordar temas ligados ao campo da teoria estética, das políticas culturais e patrimônio, operando em campo transdisciplinar e trans-histórico. Nesse sentido, propomos a noção de (des)ocupação como um gesto ao mesmo tempo sociológico (táticas de adaptação ao processo de erosão costeira), artístico (estéticas da existência) e político (porque ele indica uma mudança necessária nas formas de pensar as políticas culturais e uma rearticulação da noção de patrimônio histórico).

O gesto curatorial que criamos através do projeto CasaDuna: Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona inicia-se justamente com a nossa mudança da capital do Rio de Janeiro para o município de São João da Barra, no extremo norte do estado. Esse gesto se efetiva a partir do momento em que alugamos uma casa de veraneio na praia de Atafona, cujo terreno havia sido invadido por uma duna. Um dos muros que protegiam os limites do terreno da propriedade havia sido derrubado por uma enorme duna, fenômeno que era parte do processo de erosão marinha que atinge a praia desde os anos de 1950. Portanto, esse gesto curatorial é também um gesto de habitar um território instável, conviver com um ambiente em franco processo de erosão, enfim, habitar o que passamos a chamar de ruínas vivas, isto é, casas que, apesar de ainda estarem preservadas e em condições razoáveis para habitar, apesar das goteiras persistentes, já estão afetadas pelo processo erosivo. Isso significa assumir uma habitação temporária que necessariamente vai exigir, mais cedo ou mais tarde, a (des)ocupação da moradia. Portanto, não se trata aqui de ruínas de uma cidade ou civilização que desapareceu, mas de uma cidade que está em processo de desaparição e, ao mesmo tempo, a cidade não para de se reconstruir e se adaptar, ocupando e desocupando os espaços. Portanto, este primeiro gesto implica em uma alteração consciente no nosso modo de vida, uma escolha que foi pensada também de um ponto de vista crítico, a partir da compreensão da crise política que se instalava no país a partir do golpe jurídico-parlamentar que destituiu a então presidenta Dilma Rousseff em 2016. Compreendemos naquele momento que viveríamos uma erosão política e social no Brasil, a erosão ecológica já estava em curso no mundo. Atafona nos parecia assim uma metonímia poderosa do momento histórico, uma parte isolada que oferecia a imagem do todo. Nas mansões em ruínas na orla da praia de Atafona víamos o solo das instituições políticas e do modelo civilizatório colonial sendo revirado pelo avesso.

A partir desse gesto de habitar, passamos ao gesto de co-habitar, abrindo nossa casa para artistas interessados em vivenciar o território de Atafona, contemplando nessas vivências outras camadas além da visualidade. Camadas históricas, políticas, geopolíticas, etnográficas, afetivas, estéticas que pudessem abrir novos caminhos de reflexão sobre o contexto local. Esse era um importante objetivo das residências artísticas, nas quais criamos roteiros que incluíam caminhadas pelas ruínas e dunas da orla, visitas a estaleiros de barcos artesanais, conversas com moradores, passeios de barco pelo rio Paraíba do Sul, entre outras atividades. Neste sentido, a ideia de arte contextual foi um dos conceitos orientadores da metodologia do trabalho. Estipulamos parâmetros éticos do trabalho e frentes de ação no território além das residências, que incluíam pesquisa acadêmica, organização de cineclubes e produção audiovisual, a criação de um grupo de teatro, o Grupo Erosão,[2] a realização de uma exposição coletiva inaugural de nosso projeto: Atafona: Museu em Processo (2017).

Outro gesto importante em nossa prática curatorial foi a constituição de um acervo de fotos, vídeos e livros sobre a região. Hoje possuímos um acervo com mais de 300 fotos históricas e cerca de 2 terabytes de fotos e vídeos produzidos por nós desde que nos mudamos para Atafona em maio de 2017. Além disso, constituímos uma hemeroteca digital com reportagens de jornal sobre Atafona recortadas e reunidas por Dona Marilda Soares. Esse trabalho de digitalização foi realizado em parceria com a professora Lilian Sagio Cezar, com a Unidade Experimental de Som e Imagem (UESI) e o Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA), com a professora Simonne Teixeira e o GT Officina do Patrimônio Cultural, ambos do Programa de Políticas Sociais – UENF.

Pesquisamos a viabilidade de práticas curatoriais a partir de metodologias de pesquisa-ação e arte contextual que possam ser idealizadas e produzidas em relação com as demandas, as possibilidades e os interesses locais. Uma vez que esta metodologia se exerce, percebemos que se coloca em xeque a própria ideia de “comum” e outras noções tradicionalmente caras, como a do “artista”, da “originalidade”, em prol da produção de múltiplas vozes em modos de criar sentido e resistência com a destruição.

Apresentaremos brevemente a pequena praia de Atafona, no litoral norte do estado do Rio de Janeiro, margem sul da foz do rio Paraíba do Sul, ponto extremo de uma grande planície formada ao longo de cinco milênios por sedimentos do rio. Outrora habitada pelos bravos guerreiros goitacás, exímios nadadores, caçadores de tubarão, os donos da restinga, dos brejos e manguezais. Povo que foi cruelmente massacrado em guerras desleais promovidas pela invasão colonial europeia. Até o final do século XIX, a praia tinha poucos habitantes. A maior parte da comunidade de pescadores vivia nas ilhas da Convivência e do Pessanha. Com a chegada da estrada de ferro e depois da rodovia, o local passou a ser de interesse de veranistas vindos principalmente da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes. Esses construíram, ao longo do século XX, centenas de casas sobre restingas, brejos e mangues da região. Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento do modelo de ocupação urbana, a maior parte da mata ciliar do rio Paraíba do Sul foi eliminada, indústrias foram construídas em suas margens e, na década de 1950, foi feito um desvio brutal de dois terços de suas águas para o rio Guandu abastecer a região metropolitana do Rio de Janeiro. Em decorrência, a erosão iniciada na década de 1960 já destruiu mais de quinhentas construções na região e segue em curso, ameaçando as casas de pescadores e veranistas.

Atafona não é um caso isolado, outros balneários no Brasil e no mundo também sofrem com o avanço do mar. No entanto, a perspectiva das mudanças climáticas e do colapso ambiental promovido pelo avanço industrial dos últimos dois séculos alerta para o fato de que a erosão costeira poderá se tornar um fenômeno comum no mundo inteiro, obrigando centenas de milhares de pessoas ao abandono de suas casas. Portanto, nos parece que essa reflexão sobre a ação de (des)ocupação é urgente e de interesse global.

Neste texto, não debateremos as causas da erosão local, nem possíveis soluções ou prognósticos futuros. Interessa refletir sobre essa experiência singular de habitar as ruínas de Atafona e especialmente sobre os modos de (des)ocupação. Esses processos de ocupação e (des)ocupação implicam em deslocamento de escombros da praia e composições com agenciamentos marinhos que fazem dançar as estruturas e revirar os fundamentos das casas, mas também os dos conceitos nas práticas curatoriais, nas políticas culturais e em demais produções artísticas e acadêmicas. Interessa pensar as possibilidades da arte como instrumento neste contexto, bem como os alcances da universidade e as micropolíticas que operam nestas estruturas, podendo, eventualmente, promover infiltrações.

Curadoria do patrimônio erodido

A referida realidade no plano macropolítico faz da experiência de viver em Atafona paradoxal: a paisagem real, concreta, se dobra no plano metafórico. Além disso, esse cenário de ruínas está cercado por paisagens belas e aprazíveis, o vento nordeste, a foz do rio Paraíba, as casuarinas, as dunas e o céu da planície litorânea criam uma cama que amortece o caos visual provocado pela imagem das ruínas das casas, com seus destroços, escombros e vergalhões ameaçadores. O resultado é uma paisagem ao mesmo tempo bela, melancólica e selvagem.

Habitar Atafona é uma forma de habitar ruínas, não porque a cidade esteja em ruínas, mas pela intensidade de seu processo – tanto o de arruinamento como o de adaptação. Este não é um fenômeno restrito a Atafona, mas o modo como ele se dá aqui é inteiramente singular. Um espelho quebrado de toda cidade em processo de urbanização no atual regime capitalista global. Uma espécie de cidade semimítica do novo milênio, ou ainda a cidade vanguarda na fronteira da transgressão marinha que apenas se inicia na era do chamado Antropoceno. Uma das primeiras cidades náufragas do segundo milênio da era cristã. “Jesus está voltando”, anunciam os crentes em escritos nas ruínas. “Praia do apocalipse”, “tsunami homeopático”, “terceiro melhor clima do mundo”, “portal para o universo”, “região de contato com óvnis”, multiplicam-se os epítetos e as lendas sobre esta paisagem complexa, cruzamento de rio, mangue, restinga, mar, vento e seres humanos e não humanos. Estranha configuração rústica e aprazível da imaginação apocalíptica de futuro. Nem futuro, nem passado, nem distopia, nem utopia, mas “heterotopia”. Lugares heterotópicos são aqueles que, existindo, fazem que contestemos todos os outros em suas disposições espaciais e funcionais.

[…] as heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham […]. Eis por que as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias […] dissecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática. (Foucault, 2007, p. XVIII)

Lugares que abalam o sentido de nossa organização semântica do habitual. Acreditamos que a heterotopia de Atafona possui um diferencial ontológico pois ela se constitui como tal justamente deixando de existir, pelo descontrole de todo propósito e planejamento humano. Um espaço que, sendo habitado, existe enquanto processo de (des)ocupação.

No processo acelerado de esgotamentos de biomas, mangues mortos, rio seco, poluído, sem força, salinização de lençóis freáticos e avanço do mar, surgem brechas para a invenção de modos de vida resistentes, adaptativos e inventivos em meio às ruínas. Neste aspecto é importante determo-nos, pois ele participa da concepção de nosso modo de trabalho ao optar por habitar o território para compreender as dinâmicas de adaptação e agenciamento nos modos de vida, convivendo com o arruinamento e a recriação cotidiana.

Pudemos perceber isso na própria vivência dos últimos anos e também ouvindo relatos de antigos moradores. Conviver com a erosão não se resume a uma vida penosa e precária, ainda que o seja em grande medida, ainda assim há inventividade, alegria, dignidade, coragem e perseverança. Temos exemplos de pessoas que convivem com a erosão em Atafona e fazem dessa vida uma vida plena, íntegra e bela. É o caso, como veremos, de Dona Belita, que resistiu, vivendo na Ilha da Convivência até o fim de sua longa vida, permanecendo lá mesmo depois de perder sete casas para o mar. Mas também de Nenel, Fernando, Seu Paulo, Miri Carla, Gilson, Neno, Benilda, Nelite, o Ronaldo Não Me Viu, Almir Largado, Nico e tantas outras pessoas, pescadores, caranguejeiras, marisqueiras, sobreviventes que tivemos a oportunidade de conhecer e que continuam habitando a região próxima à foz. São vidas ancoradas em embarcações e não em terra firme. Parte destas histórias pudemos registrar em uma atividade de museologia social produzida em 2020, na qual levamos nosso acervo de imagens antigas para lugares específicos da comunidade, montando um museu itinerante, o Museu Ambulante, no qual a comunidade narra histórias dos territórios onde habitavam, décadas atrás, e que já foram levados pelo mar. Vemos vidas habituadas a naufrágios, a adaptações climáticas e, por isso mesmo, vidas que podem ser consideradas vidas filosóficas. Modos de vida que instauram espaços heterotópicos, vidas outras.

O que significa habitar ruínas e desocupá-las, como um gesto ao mesmo tempo estético e filosófico? Para responder esta pergunta, partimos de um breve depoimento da última moradora da Ilha da Convivência, Dona Belita, que viveu até o fim de sua longa vida centenária nessa ilha. Mesmo depois de perder sete casas para o mar e ver toda a sua comunidade migrar para o continente, seguiu convivendo com a presença ameaçadora do oceano que avançava ano a ano sobre seu território. Ela nos descreve com tranquilidade a ação devoradora do mar de Atafona.

“Eu me conformo com tudo. Nunca disse uma má palavra. O mar comeu as casinhas minhas numa situação feroz, feroz, só Deus!”

As habitações na zona limite da erosão nos ensinam sobre modos de vida adaptativos, pois são vidas que se constituem em constante diálogo com forças ambientais. Ao mesmo tempo se utilizam obrigatoriamente das sobras geradas pelo avanço civilizacional. Não se trata aqui de romantizar essa situação, há certamente ausências graves por parte do poder público e faltam políticas sociais que sejam capazes de compreender as necessidades dessas pessoas que moram em áreas de risco ambiental. No entanto, quando nos aproximamos de algumas dessas pessoas, notamos que elas não se sentem pobres, nem frágeis ou vulneráveis. Elas dificilmente trocariam suas casas na beira da erosão por outras no meio da cidade e longe do mar. Assimilam em seus cotidianos a experiência sublime do mar que “ameaça a tudo engolir”, mas que também oferece o sustento. Eis aí uma forma de teimosia na inconstância, na impermanência.

Entendemos a importância de uma prática engajada, preocupada em contribuir com uma reflexão mais ampla, que incorpore a crítica não apenas no discurso, mas no modo de produção, abrindo brechas e criando problemas para os circuitos institucionais das artes e as políticas culturais governamentais. Nesse sentido é que propomos esta reflexão sobre a noção de (des)ocupação como uma forma de imaginação para curadorias, criações artísticas e políticas culturais e patrimoniais em contextos de crise ambiental. Política cultural, segundo a definição de Canclini (apud Rocha e Brizuela, 2019, p. 14), é o conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, pelas instituições civis e pelos grupos comunitários organizados, a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social. A pesquisadora Isaura Botelho observa a importância de notar diferentes dimensões da cultura e quando se trata da elaboração de políticas públicas, distinguindo “a cultura do plano cotidiano daquela pertencente ao circuito institucionalizado” (Botelho, 2016, p. 19).

Nas definições das políticas culturais, para além dos instrumentos legais e das decisões técnicas, no caso do patrimônio, deve-se ter em mente que esse é um campo de disputas envolvendo identidades, memórias e territórios. A palavra patrimônio é de origem latina, derivado de pater, pai. Segundo Chauí (2004:15), não se trata do genitor (do latim genitor), senão de uma figura jurídica, onde pater, o pai, é o dono e senhor da terra e de tudo que nela há. Deste modo, originalmente o patrimônio é aquilo que pertence ao pai e se configura como herança paterna, ou seja, os bens transmitidos de pai para filho. O termo também é usado como herança familiar, mas tem seu sentido ampliado para patrimônio cultural, referindo-se à herança sociocultural.

A noção de patrimônio histórico e artístico resulta de um longo debate até seu sentido atual, mais amplo, de patrimônio cultural, que inclui o aspecto relacionado à natureza e ao meio-ambiente nela inerente. Este é o sentido que nos interessa para pensar a noção: “o conjunto dos elementos arquitetônicos, urbanísticos, arqueológicos, paleontológicos, ambientais, ecológicos e científicos que indiquem e referenciem a identidade social de um grupo e de um meio geográfico específico” (Assunção, 2003:87). Ou ainda:

O Patrimônio Cultural é composto por monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico. Incluem obras de arquitetura, escultura e pintura monumentais ou de caráter arqueológico, e, ainda, obras isoladas ou conjugadas do homem e da natureza. São denominadas Patrimônio Natural as formações físicas, biológicas e geológicas excepcionais, habitats de espécies animais e vegetais ameaçadas e áreas que tenham valor científico, de conservação ou estético excepcional e universal. (Iphan)

Acreditamos que a situação de Atafona apresenta grandes desafios ao campo do patrimônio, em uma esfera para além da recuperação, manutenção e educação dos centros históricos e áreas de proteção ambiental. Essa praia traz em sua imagem uma dinâmica ambiental que, como vimos, tende a se ampliar, levando a uma necessária ressignificação da relação entre memória e território, erodindo a materialidade do patrimônio.

No Brasil, a valorização do patrimônio imaterial foi uma significativa conquista como estímulo e instrumento para que possam ser revividas ou atualizadas antigas tradições em uma comunidade. Comunidade entendida enquanto um acordo, historicamente situado por um território, entre humanos e não humanos. Neste sentido, desde o século XX, agências internacionais vêm incentivando o trabalho de projetos voltados ao turismo cultural, “experiências” e ao desenvolvimento sustentável. Não raro tais iniciativas acabam promovendo a exclusão das populações residentes nessas áreas. O desafio consiste justamente em incorporar este imaginário que se cria na convivência com as realidades ambientais, sem reproduzir metodologias de trabalho, seja nas práticas artísticas seja nas políticas de preservação, que sejam alienadas do território e das forças vitais que nele se produzem. Algumas regiões e grupos podem reinventar suas performatividades tradicionais e modos diferenciados de ocupar um espaço que confira sentido em uma comunidade imaginada.

Estéticas e práticas de si: Atafona e o sublime no cotidiano

É curioso que Kant, quando se refere à experiência estética, use fenômenos naturais para indicar o evento. Inclusive a imagem do mar revoltoso que ameaça nos engolir. É pouco provável, no entanto, que o prussiano tivesse imaginado, ainda que com sua incrível imaginação, conceber algo parecido com a visualidade do cotidiano de Atafona. A curiosidade está em ouvir o discurso de Dona Belita, que, relatando sua vida na Ilha da Convivência, descreve igualmente o mar como um ser feroz que não só ameaça, como de fato engole as suas casas. No entanto, estas duas experiências com o mar revolto referem-se a contextos muito distintos.

Para compreender esta diferença, propomos uma reflexão a partir da noção de “exercícios espirituais”, noção da filosofia antiga retomada por Pierre Hadot e que Michel Foucault utilizou em suas reflexões sobre “técnicas de si” e “estética da existência”. Esses dois filósofos franceses se interessam pela filosofia prática da antiguidade greco-romana, como um conjunto de técnicas com as quais os indivíduos alteravam a sua própria percepção do mundo, e com isso buscavam se preparar para os acontecimentos adversos da vida. Segundo Hadot, os exercícios espirituais “correspondem a uma transformação da visão de mundo e uma metamorfose da personalidade” (Hadot, 2002, p. 21). Mais interessado na postura estoica e epicurista, Hadot observa os textos antigos de Sêneca e Marco Aurélio, entre outros, e propõe uma associação entre estas práticas filosóficas antigas e a teoria da percepção estética na filosofia moderna e contemporânea, passando por Kant e Merleau-Ponty. Segundo ele, esses pensadores entendiam a experiência estética como uma forma de ampliação da percepção do mundo e uma ruptura com a percepção comum, em nossa experiência cotidiana e utilitária.

Ocorre que, entre os gregos, havia uma escola filosófica que propunha um reviramento desta concepção da filosofia como “suspensão” de um estado de consciência cotidiana. Tratava-se justamente da filosofia cínica de Diógenes de Sinope, uma escola que, segundo Foucault, era o “espelho quebrado” da filosofia grega, onde todas as principais correntes filosóficas da época se viam ao mesmo tempo afirmadas e invertidas. Com Diógenes, vemos a filosofia não só como uma arte de viver, mas como um meio de sobrevivência. As práticas de Diógenes não visam a uma “suspensão” da percepção cotidiana. Mas, ao contrário, trata-se de uma prática que intensifica a atenção ao cotidiano, com intuito de eliminar dos hábitos tudo aquilo que seja desnecessário e artificial e não crucial para a sobrevivência e a satisfação das necessidades.

Uma filosofia que vai para o campo da prática gestual, performativa, cênica. Como vemos com Goulet-Cazé e Branham (2007):

De fato, a expressão mais poderosa da vitalidade do cinismo no início e no apogeu do mundo moderno provavelmente não está no domínio da filosofia per se, mas numa tradição literária de fantasia e diálogos satíricos.

É por isso que Diógenes quebra a sua própria caneca ao ver uma criança bebendo água da fonte com as mãos entrelaçadas em forma de concha. Aqui também há uma alteração na percepção do mundo, mas essa alteração não está dissociada da vida utilitária. Pelo contrário, Diógenes parece indicar que a percepção só muda realmente quando mudamos os hábitos mais elementares de nossa existência.

Mas o que seria o sublime no cotidiano? O sublime em gestos simples de beber água, se alimentar, defecar ou de se masturbar? Todos estes gestos vinculados às necessidades mais básicas do corpo fazem parte do repertório gestual da filosofia cínica. Nas histórias que se contam de Diógenes, ele é visto realizando cada um desses atos em público. Nesse caso, o sublime não pode ser concebido como um sentimento metafísico. O sublime aqui é gerado pelo impacto com a natureza em sua nudez. Não se trata do confronto com uma natureza grandiosa que nos ultrapassa e com a qual nos reconectamos em sentido cósmico, trata-se da percepção mais crua da natureza irredutível de nosso próprio corpo.

Para o cínico, não se trata de pensar o cosmos como compreensão da verdade última do universo, mas sim de percebê-lo no corpo, nas necessidades mais básicas, e buscar não as dissimular, não criar artifícios, desvios, ou subterfúgios para assumi-las na sua nudez e crueza. E é essa natureza do cinismo enquanto a banalidade do sublime que espanta e é escandalosa. O sublime não está apenas na visão extasiante de um mar revolto, está também nas ações que realizamos cotidianamente e que são justamente passagens de substâncias diversas do exterior para o interior de nosso corpo e vice-versa.

Cabe aqui retomar brevemente a questão do sublime em Kant, a fim de contrastar com a experiência do sublime escandaloso do cínico, que pode também ser pensado enquanto um antisublime. Hadot refere-se ao sublime de Kant como uma entre outras teorias que se referem à experiência estética como uma forma de alteração da percepção capaz de nos retirar da percepção cotidiana utilitária da vida. Na abordagem de Hadot, Kant aparece ao lado de outros pensadores e artistas tais como Merleau-Ponty, Bergson, Paul Klee, Cézanne. Hadot observa que as abordagens sobre o fenômeno estético de cada um desses autores são muito distintas, mas todas indicam a ruptura com a percepção cotidiana. Ele nos indica que a percepção estética do mundo é uma espécie de modelo da percepção filosófica, e esta parece ser também a visão do próprio Hadot.

Vejamos então a passagem sobre o sublime em Kant:

Em 1790, na Crítica da faculdade de julgar, Kant opõe, ele também, percepção estética e conhecimento científico. Para perceber o oceano como sublime, não é necessário analisá-lo por meio de associações a conhecimentos geográficos e meteorológicos, mas “é preciso aceder a visão do oceano, somente – como fazem os poetas, unicamente segundo aquilo que se mostra ao olhar, logo que ele é contemplado, seja em repouso, tal um claro espelho d’água, que não é limitado pelo céu, seja quando ele está agitado como um abismo que ameaça a tudo engolir”. (Hadot, 2002, p. 349)

Para Kant, a experiência estética pressupunha uma postura desinteressada do mundo, isto é, livre de qualquer pulsão de interesse ou apetite. Uma experiência, portanto, inútil para a vida ordinária, mas fundamental para experiência da alma. E, pelo menos nesta passagem citada por Hadot, tratava-sede uma percepção ligada principalmente à contemplação visual. Nessa passagem, o elemento escolhido por Kant para descrever o sublime é o mar, e o mar representado ora como calmaria na placidez de um espelho d’água infinito, ora como um ser abismal e devorador, que ameaça nos engolir. Como vimos, esta segunda imagem é muito semelhante à descrição do mar de Atafona feita por Dona Belita.

O sublime de Dona Belita é o cotidiano, não é uma experiência de arrebatamento contemplativo com o mar, mas uma relação cotidiana com o mar que, se, por um lado, a ameaçava, por outro, lhe dava o sustento. O sublime nesta relação é a experiência cotidiana, a vida simples, mas não menos filosófica, isto é, não menos sábia. Dona Belita é um exemplo de uma vida desvinculada do valor monetário, da influência política, ou da produtividade. O valor desta vida está justamente em sua autonomia com relação ao capital, isto é, uma vida que escapa quase completamente ao circuito econômico do capital, uma vida de valor outro.

Haveria assim uma experiência do sublime como um fenômeno perceptivo ou sensorial que nos arrebata completamente os sentidos, indicando a existência de forças cósmicas que nos ultrapassam, isto é, a existência de um outro mundo ao qual podemos apenas acessar por intuições. E, por outro lado, haveria também esta experiência do sublime no cotidiano, algo que nos indicaria uma passagem para uma existência radicalmente outra, isto é, uma vida outra (Naidin, 2021) resultante de uma mudança de percepção. Aqui, nos permitam essa imaginação conceitual, podemos pensar em uma (des)ocupação existencial, isto é, para criarmos e habitarmos novos mundos, precisamos desocupar os modos normativos de existir.

A arte ambiental do pescador Fernando

Quando um pescador diz que o mar é vivo, ele abre uma dimensão da existência que é inconcebível para a nossa consciência particular enquanto sujeitos racionais e que escapa à consciência individual do sujeito, mas que é comum a todo ser vivente. É ela que permite que o pescador Fernando afirme que o mar é vivo, mesmo sem saber explicar por quê. É verdade que em geral esses pescadores acabam por resumir estas forças numa única entidade, isto é, no final tudo “é coisa de Deus”. Mas na prática observamos uma percepção aguda das forças ambientais por parte dessa população que convive diariamente com o processo erosivo. Antes de resumir tudo a Deus, eles caracterizam e diferenciam cada entidade da paisagem e são capazes de perceber os humores e as intenções do ambiente em que vivem.

Barreira construída pelo pescador Fernando, foto de Fernando Codeço, 2021

O modo como o pescador Fernando lida com o com o processo de (des)ocupação de suas residências atingidas pelo processo erosivo poderia ser descrito como uma espécie de obra ambiental processual. Fernando vive na localidade conhecida como Baixada, área urbana extrema do delta do rio Paraíba do Sul, uma pequena vila construída sobre um antigo mangue que hoje está morto. Terreno mais vulnerável à erosão, enchentes e alagamentos em Atafona. Constrói cotidianamente uma barreira com troncos, cordas, sacos de areia, redes de pesca, colchões, tábuas e outros materiais que ele coleta na praia e na cidade, uma barreira que tem o objetivo de retardar a erosão que ameaça a sua casa, mas, segundo ele mesmo diz, “o mar pode vir e destruir tudo em menos de meia hora”. Essa construção do pescador Fernando pode ser lida também como uma carta, escrita com os materiais da erosão. Ele sabe que a barreira não vai impedir que o mar avance sobre sua casa, talvez no máximo retardar um pouco, mas ele a constrói com toda a sua arte, inventando uma arquitetura improvável. Uma obra de arte ambiental naïf? Uma arte ambiental canibal. Uma arte que surge do agenciamento erosão-pescador. Fernando constrói sua barreira como quem instala um mastro em um barco furado. Ele cria, com a linguagem da navegação, os nós, as madeiras, as lonas de um veleiro, tudo construído sobre a terra firme que afunda lentamente. Quando perguntamos a ele se ele considerava a sua construção uma arte, a resposta foi afirmativa. Ele também disse que era uma forma de se comunicar com o mar, ou com Deus. Uma arquitetura espiritual, uma carta sobre o destino naufrágio de seu território. Sua obra é resultado de um esforço físico cotidiano, ele trabalha sozinho deslocando dezenas de toras de madeira que são lançadas pelo mar na praia; trabalha com ajuda de alavancas e do próprio mar nas marés cheias; movimenta ao longo dos meses toneladas de madeira e areia. Todo este trabalho produz uma barreira frágil, quase simbólica. A sua potência não está na capacidade de impedir o avanço do mar, mas sim em seu agenciamento com o processo erosivo, é a maneira que ele encontrou de dar sentido a esse processo que cedo ou tarde vai destruir a sua casa. A barreira é também uma forma de comunicação com as forças ambientais, mensagem escultural que se direciona simultaneamente a seres humanos e não humanos. Uma obra de arte que não se separa da vida, da convivência cotidiana com o mar revoltoso, uma obra efêmera que se constitui na vivência do sublime no cotidiano.

(DES)OCUPAÇÃO – curadoria e pedagogia do agenciamento

Desde 2017, quando começamos a trabalhar em Atafona, tínhamos a ideia de arte contextual como conceito orientador de trabalho em que cada ação proposta seria definida e elaborada a partir do contexto no qual se dava, das condições ambientais e humanas disponíveis em cada caso. Em 2018, Sônia nos apresenta um material de arquivo particular no qual ela acompanhava, fotografando, a queda do único prédio que chegou a ser construído na praia. O “prédio do Julinho”, que se localizava na frente de sua residência e que, antes mesmo de ficar plenamente pronto, já começou a receber os impactos da erosão e não chegou a ser finalizado. Ainda assim, concentrava parte do comércio e do lazer da comunidade em torno de um pequeno centro comercial que formou. Dona Sônia acompanhou o processo de erosão no prédio com uma máquina fotográfica e conseguiu capturar com as fotografias o momento final da queda do prédio. Esse momento foi um marco para Sônia. Sua casa seria a próxima a ser destruída pela erosão. As fotos da queda datam de 2008. Dez anos depois, recebemos como contribuição para nossos arquivos o álbum fotográfico de Sônia, e com ele produzimos um curta metragem documental Mar Concreto (finalizado em 2020) como um modo de trabalharmos com esse arquivo improvável. O filme foi exibido em diversos festivais nacionais e internacionais, recebeu prêmios e é utilizado nas atividades acadêmicas, pedagógicas e artísticas que promovemos.

Quando Sônia, em 2022, nos avisa que vai antecipar-se ao mar que já tinha derrubado parte do muro de sua residência e, por questões de segurança, ia demolir a própria casa, sabíamos do impacto material e simbólico desse gesto em sua vida e na vida da comunidade. Uma casa grande, com belas escadas de madeira, muito vidro e pedras, que impressionava os passantes, a casa foi construída por seu pai, antigo político influente na região, no início dos anos 1980. Na ocasião, estávamos realizando uma residência artística com um grupo de oito artistas em nossa casa, seguindo uma agenda de atividades previamente planejada. No entanto, a iminência da destruição planejada por Sônia apontava para um outro tipo de agenciamento e de produção de sentido. Abrimos um diálogo sobre a situação com as/os artistas residentes e propusemos para Sônia a realização de um evento de despedida de sua casa, que poderíamos produzir juntas, no qual seriam realizadas projeções de filmes, intervenções contextuais, exibição de imagens históricas, venda de seus objetos antigos, encontros inusuais. Decidimos montar uma ocupação artística na casa que já estava esvaziada.

Optamos por realizar a projeção do filme Mar Concreto no muro da casa de Sônia, que aparece no filme por meio das imagens feitas da varanda da casa, prestes a ser demolida. Optamos também por exibir na sequência o curta do Museu Ambulante, um documentário feito a partir de uma atividade de museologia social homônima na qual levamos às ruas de Atafona um museu manipulável e itinerante, cuja expografia participativa ativa o campo das memórias dos cotidianos, dos afetos e da contação de histórias sobre um lugar que não existe mais, mas que existe para aquelas pessoas que viveram e perderam em comum.

Montamos uma estrutura de projeção em seu jardim, iluminação na praia, e registramos o evento. Percebemos que foi uma oportunidade de encontro em torno de um elemento comum, uma experiência em comum, da iminência da perda em meio a todo dissenso entre uma comunidade imaginada. Muitos tinham curiosidade de ver como era aquela casa por dentro, outros foram para se solidarizar, outros para ver os filmes, outros para ouvir histórias, levar lembranças para casa, muitos amigos, alguns melancólicos apaixonados.

Ao longo dos últimos anos, realizamos diversas produções e curadorias que se deram pelo crivo do agenciamento contextual possível ou necessário. Assim como as atividades mencionadas, como o Museu Ambulante, a realização do filme Mar Concreto, a produção constante de arquivo em seus diferentes suportes, o grupo de teatro de rua, entendo o evento (DES)OCUPAÇÃO exemplar por alguns motivos, principalmente: a urgência com a qual teríamos que realizar; o uso heterotópico do espaço, criando uma dobra na própria heterotopia; projetar o antigo Prédio do Julinho na parede da frente de sua ruína iluminada que, em poucos dias, também viria a se tornar ruína. Exibi-lo junto com o Museu Ambulante, um trabalho de memória idealizado como material que pudesse também ser absorvido em atividades com escolas na comunidade; o convite aos artistas para que participassem, tanto da ocupação com obras quanto do evento da (DES)OCUPAÇÃO, conforme cada vontade e possibilidade de cada um; a percepção de que em nossas atividades e propostas curatoriais o foco principal não é a exibição de obras visando a uma eventual absorção pelo mercado de arte, mas a produção de trabalhos, ou situações, co-criados a partir dos agenciamentos imprevisíveis que o contexto de Atafona nos apresenta, em um trabalho delicado de escuta, cuidado e adaptação.

Curadoria não somente como seleção de artistas e obras, mas como produção de agenciamentos e de polifonias, refletindo também sobre o modo de levar a arte para o mundo. Não trabalhamos em condições ideais, trabalhamos em processos adaptativos tanto no sentido conceitual quanto performativo. Não se trata de pôr-se em algum dos polos, “o gênio do artista”, ou “a materialidade da obra” , ou pelo menos não só isso. Mas no caso deste projeto específico, essencialmente territorial e geosituado, trata-se de pensar também em uma perspectiva crítica de seus modos de produção e de circulação. Que, antes, propõe, por uma metodologia relacional e ambiental, um tratamento das imagens que não se restrinja ao campo de um slogan que garantiria aceitação em um determinado nicho cultural e econômico. Como reproduzir imagens de destruição? Como trabalhar sobre traumas alheios?

Ou seja, não estamos no terreno do idealismo ou da representação individual, e sim na tentativa de infiltração na ordem das coisas concretas e dos acontecimentos possíveis. Contexto designa “o conjunto de circunstâncias em situação de interação. O ‘contexto’, etimologicamente, vem da base latina contextus de contextere, tecer com” (Ardenne, 2002, p.17). A atenção se volta para o mundo tal qual ele se apresenta, buscando criar a emergência de práticas artísticas que questionem um habitual, alterando significados e imaginários. Ou seja, criar experiências contextuais, pedagogias inesperadas, que sejam capazes de confrontar os paradigmas habituais nos modos de produzir imagens no mundo.

Esta posição é tomada a partir de situações concretas nas quais pudemos perceber reprodução de usurpação no sentido material e simbólico, nas produções artísticas que reencenam performatividades que se pretendem salvadoras ao mesmo tempo que desvinculadas de qualquer preocupação com a escuta socioambiental, que produzem um esvaziamento tanto de inventividade na linguagem como de intervenção na materialidade em função do ego do artista (assim como do curador/produtor/acadêmico, etc.).

Vemos que existe um componente agregador associado à noção que incorpora conteúdos de memória, identidade e território partilhados, vivências que definem solidariedades e compartilhamento. Ao mesmo tempo, contra qualquer romantismo, sabemos que a inteligibilidade das relações de um povo com seu território depende da posição de onde estamos para abordá-la. As metodologias de pesquisa tradicionais, ou a “avaliação social” dos impactos ambientais, muitas vezes representam uma perspectiva profundamente distanciada e desconectada da realidade local, promovendo efeitos devastadores, especialmente, ao que nos dedicamos neste momento, o desalojamento da memória que está ancorada na paisagem. Acreditamos em abordagens poéticas e corporificadas que conectam a erosão ao princípio transformador do humano e do mais-que-humano. Diante da perda inevitável, interessa como podemos usar a poesia e a imaginação como espaço de luto, mas também de reinvenção e produção de memória coletiva. Com a ideia de (des)ocupação, trazida nestes diferentes modos de relação com o espaço, mantemos algumas perguntas que sempre são recolocadas: como podemos repensar nossa maneira de viver e modos de agenciamento a partir de uma paisagem em constante mudança? E qual o lugar do cidadão e do fazer artístico nesse processo de renegociação?

Registro do evento (DES)OCUPAÇÃO, foto de Manu Campos, 2022
* Fernando Codeço faz pesquisa de pós-doutorado pela Parceria de Encontros Hemisféricos, organizada pela York University, Laboratório de Crítica e pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e apoiado pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá (SSHRC). Julia Naidin faz parte do Programa de Pós-Doutorado em Políticas Sociais, do GT do Observatório do Patrimônio Cultural da Universidade Estadual do Norte Fluminense, com Bolsa FAPERJ/CNPQ.
Referências bibliográficas
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Sites pesquisados:

Iphan: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218.>

CasaDuna | Arte – Pesquisa – Memória | Museu Ambulante: https://www.casaduna.org.
Notas
[1] Tratava-se da residência artística “Caos Cais Cosmos” realizada em parceria com o artista e curador Daniel Toledo onde participaram as/os artistas Isabela Roriz, Pamela Jean Croitorou, Clóvis Levi e Manu Campos.

[2] O grupo foi fundado em 2017 pelo diretor Fernando Codeço, as atrizes Julia Naidin, Lucia Talabi, Jailza Mota e o cenógrafo Rafaela Sánchez. Também integram o grupo hoje as atrizes Rachell Rosa, Mariana Moraes e o bailarino e diretor de movimento Guilherme Mattos. Mais informações no site: https://www.casaduna.org/duna-em-cena.