Assistimos no presente a enfrentamentos discursivos em que usos canônicos, privilegiados ou desviantes da(s) língua(s) competem pelo direito de nomear e narrar na ciência, na política, nas artes, nos processos múltiplos de identificação dos sujeitos contemporâneos, nas redes sociais e no resquício do que talvez ainda possamos chamar de esfera pública. O presente dossiê da Revista Z Cultural, nº 1 de 2023, se propõe como espaço de discussão sobre esses enfrentamentos a partir de campos variados, abrangendo de estudos de linguística, como o importante artigo de Dante Lucchesi sobre as raízes históricas do racismo linguístico no Brasil, a reflexões participativas, como o artigo de Dieison Marconi, um trabalho de observação situada do uso de alguns conceitos pela militância nas redes sociais.
A questão racial também aparece no artigo de Gabriel Chagas sobre a relação entre Langston Hughes e Nicolas Guillén e no relato de uma experiência de letramento racial por Guilherme dos S. Ferreira da Silva e Jade Soares do Nascimento, assim como na entrevista-ensaio visual do artista plástico Sérgio Adriano H, em que a língua é extrapolada para a imagem e se torna uma corporificação da ideia de “tomar a palavra”, como explicam Dalva França de Assis e Silvana Barbosa Macedo. Os feminismos e questões de gênero, centrais nas discussões sobre linguagem, são tratados nos artigos de Drica Madeira e Adriana Azevedo, e os limites da linguagem aparecem no ensaio de Louise Furtado de Souza sobre livros de Marília Floôr Kosby e Ieda Magri. Eduardo Schaan, por sua vez, discute como, na peça Tybyra, o artista potiguara Juão Nyn propõe a escrita em Potygyês, mistura do Tupi-Guarani com a língua portuguesa que ressignifica a língua do colonizador. Por fim, a relevância de análises do discurso e da narrativa como ferramentas para qualificar a discussão sobre “disputa narrativa” é contemplada pelos textos de Fábio Fernando Lima e de Barbara Venosa.
Além do dossiê, como é tradição da revista, publicamos artigos que abordam questões contemporâneas, como o relatório de Luiz Eduardo Soares escrito a partir de uma pesquisa com moradores da Maré sobre a exposição à violência armada; e o ensaio de Maria Caterina Pincherle e o de Lucas Bandeira, que recuperam a discussão recente sobre o centenário do Modernismo de 1922. Outro aspecto da cultura contemporânea, a tendência da literatura contemporânea de “colar-se à vida e à experiência das mulheres”, aparece no artigo de Luciana Conti sobre o romance Pagu no metrô, de Adriana Armony. Publicamos ainda três poemas de Vera Lins, acompanhados de fotos feitas pela escritora, e uma resenha de Beatriz Resende sobre Paixão simples, de Annie Ernaux. Na seção Vale a Pena Ler de Novo, uma rara entrevista de Guimarães Rosa é recuperada pela acadêmica Heloisa Teixeira, como agora assina Heloisa Buarque de Hollanda. Fechando este número, o poeta, romancista e pesquisador Edimilson de Almeida Pereira discute as múltiplas formas da linguagem poética a partir de sua obra literária e ensaística.
Embora tenha cunhado o termo racismo linguístico no calor da polêmica em torno do chamado “livro de português do MEC” (Lucchesi, 2011), os fundamentos para essa formulação remontam aos inícios da década de 1990, quando iniciamos nossas pesquisas de campo junto a comunidades quilombolas do interior do estado da Bahia, nas quais coletamos amostras de fala vernácula que possibilitaram análises dos processos de mudança em curso nos padrões de comportamento linguístico dessas comunidades, com o enquadramento teórico e metodológico da Sociolinguística Variacionista (Labov, 2008[1972]). A Figura 1 é uma foto deste pesquisador (muito mais magro), em uma comunidade quilombola, no ano de 1992.
Um conjunto significativo de análises de aspectos da morfossintaxe da fala dessas comunidades foi reunido em volume intitulado O Português Afro-Brasileiro (Lucchesi; Baxter; Ribeiro, 2009). Essa publicação, cuja capa é apresentada na Figura 2, contribuiu significativamente para vencer as resistências na pesquisa linguística brasileira em reconhecer a relevância do contato do português com as línguas indígenas e africanas na conformação das atuais variedades do chamado português brasileiro, embora essas resistências ainda persistam de forma minoritária.
Mas a expressão racismo linguístico só viria a ganhar maior notoriedade quando se tornou o título do livro de Gabriel Nascimento (2019), que passou a ser tido como autor da expressão (cf. Melo; Mira, 2021, por exemplo), certamente por conta de sua militância e lugar de fala. Nesse âmbito, a expressão se fundamenta na dimensão racista do preconceito linguístico, ou seja, o preconceito linguístico integra um conjunto de mecanismos que plasmam o racismo estrutural no Brasil.
Mais do que dirimir uma questão de autoria, este artigo busca demonstrar que, não obstante a pertinência desse conteúdo do conceito de racismo linguístico, há razões históricas que permitem afirmar que o racismo está na gênese do preconceito contra as formas mais típicas da linguagem popular brasileira, especialmente a falta de concordância nominal e verbal (exemplificadas na frase: “meus filho trabalha muito”). Revela-se, assim, a dialética perversa, que é inerente ao próprio preconceito linguístico. A falta de concordância era estigmatizada por ser típica da fala de africanos e seus descendentes, e, quando essa motivação histórica se diluiu e se perdeu no esquecimento, o estigma ganha uma autonomia e se escora na “autoridade gramatical”, que classifica tais formas linguísticas como degradadas e inferiores, de modo que, com a força ideológica do preconceito, atua como mecanismo reprodutor do racismo estrutural.
Portanto, quando a ciência da linguagem, conjugando pesquisa histórica e empírica, revela as raízes racistas do preconceito linguístico, fornece elementos para a desconstrução de um dos mais poderosos instrumentos ideológicos de dominação de classe nas sociedades letradas contemporâneas. Não é à toa que a Linguística é uma das ciências mais desprestigiadas quando não virulentamente atacada pela grande mídia corporativa. E a luta ideológica que se trava na sociedade se insinua no próprio campo do fazer da ciência, com o preconceito e o conservadorismo se infiltrando, de forma mais ou menos dissimulada, nas posições em debate.
Para abordar tais questões, este artigo está dividido em quatro seções. A primeira seção reporta brevemente o episódio do que ficou conhecido como “livro de português do MEC”, quando a questão da língua ocupou o centro do debate político nacional, com o acirramento do preconceito contra as formas mais típicas da linguagem popular. A forma como as representações sociais da língua atuam como um poderoso instrumento de discriminação e de construção da hegemonia da dominação de classe é objeto da segunda seção deste artigo. A terceira seção traz um breve panorama da história sociolinguística do Brasil. A quarta seção busca explicar como o contato entre línguas deu origem às formas mais típicas da linguagem popular, sobre as quais recai um pesado estigma social. A conclusão retoma a íntima relação entre a história da língua e a história social e como a compreensão daquela pode contribuir para uma conscientização do que ocorre nesta.
Um livro que ensinava a falar errado
Uma ligeira nota publicada em um portal da Internet, no mês de maio de 2011, desencadeou um dos mais intensos debates sobre a língua no Brasil. A violenta reação ao chamado “livro de português do MEC”, cuja capa é apresentada na Figura 3, foi motivada por uma passagem em que se afirmava que o aluno poderia dizer “os livro”, sem aplicar a regra de concordância nominal, como é comum na fala popular, mas deveria ficar “atento”, porque, “dependendo da situação”, poderia “ser vítima de preconceito linguístico”. A frase “nós pega os peixe”, também referida no livro, como legítima em seu ambiente cultural de origem, foi propagada à exaustão, reforçando o estigma social que se abate sobre a falta de concordância na fala popular.
Para os críticos, a distribuição do livro demonstrava que o MEC estava fazendo apologia da ignorância popular e privando a população de seu direito legítimo a um ensino adequado de língua portuguesa, dando azo às reações mais furibundas e esdrúxulas, como esta, de uma senhora (publicada no portal100fronteiras.com.br, em 15/05/2011), que se apresentava como pedagoga e professora de português [sic]:
Com pompa e circunstância, o MEC do governo petista quer assegurar que os futuros cidadãos fiquem privados de empregos, de crescimento intelectual, de relações culturais; no futuro, o MEC deseja que os brasileiros estejam no estado de barbárie linguística e sejam incapazes de entender um edital de concurso, por exemplo; salvo se o edital informar que “os candidato deve apresentarem os seguinte documento”. Nem Hitler, com sua mente diabólica e homicida, realizou um projeto desse tipo para dominar a juventude nazista, ganhando simpatias e aplausos dos pouco letrados daquela época. Com pompa e circunstância, em uma palhaçada do politicamente correto, o governo petista organiza um exército de futuros adultos privados de proficiência no vernáculo, cuidadosamente preparado no sistema público de ensino, que servirá aos interesses do estado brasileiro que está sendo forjado desde 2003, em conformidade com as lições Gramsci.
Manifestações desse tipo alimentaram, durante semanas, uma onda de revolta e indignação, na qual os responsáveis pelo livro foram, inclusive, chamados de criminosos, e uma procuradora da República anunciou sua intenção de processá-los, como se pode ver nesta notícia publicada pelo jornal O Globo (versão on line), em 16/05/2011:
Diante da denúncia de que o livro Por uma vida melhor, da professora Heloísa Ramos – que foi distribuído a 485 mil estudantes jovens e adultos pelo Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação –, defende o uso da linguagem popular e admite erros gramaticais grosseiros como “nós pega o peixe”, a procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, previu que haverá ações na Justiça. Para ela, os responsáveis pela edição e pela distribuição do livro “estão cometendo um crime” contra a educação brasileira. “Vocês estão cometendo um crime contra os nossos jovens, prestando um desserviço à educação já deficientíssima do país e desperdiçando dinheiro público com material que emburrece em vez de instruir. Essa conduta não cidadã é inadmissível, inconcebível e, certamente, sofrerá ações do Ministério Público”, protestou a procuradora da República em seu blog.
É muito significativo observar que alguns aspectos desse episódio anteciparam o violento retrocesso que ocorreria nos anos seguintes, no país. Em primeiro lugar, o discurso de ódio e intolerância, contra uma paranoica ameaça comunista e contra o politicamente correto. Esse foi um dos principais motes da campanha que elegeu Bolsonaro em 2018. Em segundo lugar, o açodamento e a exacerbação de alguns órgãos do poder judiciário. A partidarização do poder judiciário, através da famigerada Operação Lava Jato, foi um fator decisivo no desenvolvimento da luta política que levou ao golpe parlamentar que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e à prisão do presidente Lula, em 2018. O terceiro aspecto foi a manipulação da grande mídia corporativa, que também desempenhou um papel decisivo no retrocesso político que ocorreria nos anos seguintes, com um verdadeiro massacre midiático do Partido dos Trabalhadores, que descambou para a criminalização de toda a política, criando o caldo de cultura que possibilitou a eleição à presidência da República de um deputado que se destacava pela defesa da ditadura militar e viria a dar representatividade política ao que de mais obscuro existe na sociedade brasileira.
Visando desgastar o governo petista, particularmente seu ministro da educação, Fernando Haddad, que concorreria e venceria a eleição para a maior cidade do país, em 2012, a mídia corporativa não tinha pejo em se referir ao “livro que ensinava a falar errado”, contrariando a lógica mais elementar, como ficou evidente quando o então ministro da educação afirmou que “ninguém em sã consciência se propõe a ensinar ao aluno a falar como ele já fala”. Aferrando-se às três primeiras páginas do livro, a mídia sonegou a informação de que em todo o seu restante o livro se propunha a ensinar a norma culta para o público a que se destinava: os alunos do Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Também vale destacar que quase nunca um linguista foi convidado para os diversos debates que foram promovidos na época.
Embora não tenha havido maiores consequências práticas (a ação judicial impetrada para o recolhimento do livro, por exemplo, não prosperou), o episódio do livro de português do MEC deixou claro que o preconceito contra as formas mais típicas da linguagem popular é um poderoso instrumento ideológico de dominação de classe, do qual a elite econômica, através de seus pensadores e de sua mídia corporativa, não abre mão.
O papel da língua na construção da hegemonia ideológica nas sociedades de classe
No plano linguístico, o episódio do livro de português do MEC tornou evidente que o emprego das regras de concordância nominal e verbal é um marcador social que traça uma indelével fronteira, reproduzindo, no plano social da língua, o apartheid que rasga a sociedade brasileira. Dessa forma, a fala se junta a outros marcadores sociais da dominação capitalista no Brasil, como os estereótipos do popular como atrasado, ignorante e folclórico, cujas origens remontam ao passado colonial e escravista da sociedade brasileira. Nesse contexto, o aporte da ciência da linguagem assume um caráter profundamente subversivo, ao desconstruir o preconceito linguístico como sendo uma mera convenção social, sem implicações para o pleno funcionamento da língua, o que explica a forma como a ciência da linguagem é tratada pelo mainstream midiático.
Um simples cotejo com o inglês e o francês, línguas que gozam de grande prestígio, no Brasil e no mundo, basta para provar o caráter arbitrário do julgamento social sobre as formas da linguagem popular. Em inglês, se diz: I work, you work, he works, we work, you work, they work; na linguagem popular do Brasil: eu trabalho, tu trabalha, ele trabalha, nós trabalha, vocês trabalha, eles trabalha. Nas duas variedades linguísticas, só uma pessoa do discurso recebe uma marca específica (no inglês é a 3ª pessoa do singular: he works; enquanto no português popular brasileiro é a 1ª pessoa do singular: eu trabalho), ou seja, ambas têm o mesmo nível de complexidade estrutural, mas o inglês é a língua da globalização e da modernidade, enquanto o português popular do Brasil é língua de gente ignorante, que não sabe votar.
O mesmo se pode dizer do francês, em que a flexão de número e pessoa do verbo também se perdeu, e só se mantém na escrita: je travaille, tu travailles, il/elle travaille, nous travaillons, vous travaillez, ils/eles travaillent. Isso não impediu o francês de ser a língua de cultura do século XIX e ser chique para a aristocracia brasileira falar francês até meados do século XX.
Conquanto seja evidente o caráter arbitrário e preconceituoso do estigma que se abate sobre a ausência de concordância no português popular, o pensamento conservador dominante sequer reconhece o preconceito linguístico como uma categoria de análise válida. Diante disso, vale a pena descrever o modus operandi do preconceito na língua, introduzindo a noção de transferência. No julgamento preconceituoso, avalia-se uma coisa com base em outra. Nesse caso, a avaliação negativa da linguagem popular decorre da avaliação negativa de seus falantes, em um círculo vicioso e tautológico, no qual a desqualificação da linguagem popular, baseada no julgamento negativo de seus falantes, serve para legitimar o próprio julgamento social negativo desses falantes, do qual se alimenta. Porém, na inversão que a hegemonia ideológica da classe dominante opera, o discurso gramatical, que condena a falta de concordância, é chancelado como um discurso técnico, ponderado e abalizado, enquanto o discurso da Linguística, que revela o caráter arbitrário e dogmático dessa avaliação, é visto como altamente ideológico e relativista. E isso não ocorre só no Brasil, mas em todo o mundo letrado. Para entender por que essa inversão ideológica ocorre, é preciso situar a normatização da língua na cultura das sociedades modernas.
A normatização linguística é um dos pilares da hegemonia ideológica nas sociedades contemporâneas, no que o sociolinguista James Milroy (2011 [2001], p. 57-59), recentemente falecido, denominou ideologia da língua padrão: “praticamente todo o mundo adere à ideologia da língua padrão e um dos aspectos dela é uma firme crença na correção gramatical”:
Essa crença assume a seguinte forma: quando houver duas ou mais variantes de uma palavra ou construção, somente uma delas pode estar certa. É considerado óbvio, como senso comum, que algumas formas são certas e outras são erradas, e assim é, mesmo quando existe discordância sobre qual é qual. Em geral, não existe discordância. […]. Para a maioria das pessoas em culturas de língua padrão que prestam atenção à língua é assim e pronto: nenhuma justificativa é necessária [para rejeitar uma forma como errada].
A naturalização do mito da correção gramatical faz com que ele assuma uma dimensão moral, o que acentua seu caráter ideológico e a sua força como discurso hegemônico, posto que a correção gramatical é vista como uma mera questão de bom-senso, ocultando o seu caráter ideológico:
embora as atitudes do senso comum sejam ideologicamente carregadas, aqueles que a sustentam não as veem de modo algum como tais: eles acreditam que seus juízos desfavoráveis sobre pessoas que usam a língua “incorretamente” são juízos puramente linguísticos sancionados por autoridades sobre a língua (…). As pessoas não associam necessariamente esses juízos com preconceito ou discriminação em termos de raça ou classe social: elas acreditam que, sejam quais forem as características sociais do falante, estes simplesmente usaram a língua de um modo errado e que existe para eles a possibilidade de aprender a falar corretamente. Se não o fizeram, é por culpa própria deles, como indivíduos, seja qual for sua raça, cor, credo ou classe; existe uma abundância de modelos do “bom” falar para eles. (Milroy, 2011 [2001], p. 59)
Dessa forma, a ideologia da correção gramatical confina com a ideologia da meritocracia, que avalia supostos méritos individuais, abstraindo as condições objetivas que diferenciam os indivíduos. E a dimensão ideológica do discurso da correção gramatical é assim descrita por Milroy (2011 [2001], p. 62):
A ideologia exige que aceitemos que a linguagem (ou uma língua) não é algo que os falantes nativos possuem: eles não são pré-programados com uma faculdade da linguagem que lhes permite adquirir (ou desenvolver) “competência” na língua sem ser formalmente ensinados (…). O que eles adquirem de modo informal antes da idade escolar não é confiável e não plenamente correto ainda. Nesse contexto, a “intuição do falante nativo” não significa nada, e as sequências gramaticais não são produtos da mente do falante nativo. Elas são definidas externamente – em compêndios gramaticais – e a escola é o lugar onde ocorre a verdadeira aprendizagem da língua. Faz parte do senso comum que é preciso ensinar às crianças as formas canônicas de sua própria língua nativa.
Assim, o discurso da correção gramatical exibe uma das características centrais do discurso ideológico, ou seja, um discurso que emite um juízo de valor, determinado por um interesse de classe, mas que não se apresenta enquanto tal. Não obstante sua avaliação seja arbitrária e apriorística, o discurso da correção gramatical logra um estatuto de objetividade e de universalidade. O parâmetro da autoridade, definida externamente, é crucial para a legitimação do discurso ideológico. E autoridade da tradição gramatical (um paradigma do saber que se mantém e se reproduz há mais de dois mil anos no mundo ocidental) é tanta que se opera uma inversão perversa: “se os linguistas afirmarem que todas as variedades são gramaticais (o que elas, é claro, são), suas opiniões serão interpretadas como ideológicas, não como linguísticas” (Milroy, 2011 [2001], p. 62). Ou seja, o discurso da correção gramatical arbitrário e dogmático é visto como técnico e objetivo, enquanto o discurso científico e empiricamente fundamentado da linguística é visto como… ideológico!
Essa invisibilidade do caráter ideológico do discurso da correção gramatical é que lhe confere um papel central na construção da hegemonia ideológica da dominação de classe, donde a importância estratégica de se manter o dogma da correção gramatical, como faz o pensamento conservador, amplamente apoiado e difundido pela mídia corporativa. Como contraparte necessária, é preciso também desqualificar o discurso científico da Linguística, interditando-lhe qualquer autoridade sobre as questões da língua, pelo menos no debate social. Uma estratégia adotada para isso é exatamente criar uma contradição entre o conhecimento científico da língua e o seu ensino como disciplina escolar, como o fez o gramático Evanildo Bechara, por ocasião do debate acerca do livro de português do MEC:
Há uma confusão entre o que se espera de um cientista e de um professor. O cientista estuda a realidade de um objeto para entendê-lo como ele é. Essa atitude não cabe em sala de aula. O indivíduo vai para a escola em busca de ascensão social.[1]
Não deixa de ser espantoso o que é reconhecido com tanta naturalidade. A língua não deve ser estudada na escola como ela é de fato, mas como ela deve ser. Imaginem o professor de biologia ensinando a forma ideal dos seres, e não sua anatomia real. Ou o professor de geografia ensinado a disposição perfeita dos continentes, e não sua configuração atual. Acenando com a cenoura da “ascensão social”, Bechara limpa o terreno para os normativistas legislarem arbitrariamente sobre a língua. A visão científica, que descreve e analisa a variação e a diversidade da língua viva, deve ficar hermeticamente confinada entre os muros da universidade. Na escola e na sociedade, deve predominar a visão dogmática e discriminatória de que existe uma única forma de falar e escrever, enquanto as demais variedades devem ser vistas como deteriorações produzidas por mentes inferiores, ou seja, o discurso da correção gramatical, que atua como um poderoso instrumento de discriminação, marginalização e exploração das classes populares das periferias urbanas e dos rincões rurais do país, onde predominam os pretos e os pardos. E revela-se aí mais um círculo vicioso e perverso. Alguns dos aspectos linguísticos mais estigmatizados da linguagem popular têm a sua origem exatamente na forma como a língua portuguesa foi assimilada pelos africanos escravizados e se tornou a língua materna dos descendentes brasileiros desses africanos, e o estigma social que se abate sobre essas formas linguísticas torna-se um poderoso sustentáculo do racismo estrutural no Brasil.
O contato entre língua na formação histórica da realidade linguística brasileira
A realidade linguística do Brasil atualmente pode ser definida como paradoxal. Ao tempo em que contém uma das mais ricas diversidades linguísticas do planeta, com mais de duzentas línguas faladas em seu território, o Brasil é também um dos países mais linguisticamente homogêneos do mundo, pois cerca de 98% de sua população é falante nativa do português, em sua imensa maioria monolíngues (Lucchesi, 2020). Tirando as mais de 50 línguas de imigração, a grande diversidade linguística do Brasil se concentra nas cerca de 160 línguas autóctones de pelo menos cinco famílias linguísticas tipologicamente bem diferenciadas. Porém, toda essa diversidade linguística é só uma pálida imagem do que existia no início da colonização portuguesa, quando se estima que eram faladas mais de mil línguas indígenas no território brasileiro (Rodrigues, 1986). Grande parte dessas línguas desapareceu já nos primeiros séculos de colonização, com o extermínio dos povos que as falavam. Da mesma forma, estima-se que cerca de 200 línguas africanas foram trazidas para o Brasil com o tráfico negreiro (Petter, 2006). E nada diz mais sobre a violência simbólica e cultural da escravidão do que o fato de nenhuma dessas línguas ter subsistido no Brasil. Portanto, a história linguística do Brasil, nos últimos 500 anos, pode ser definida como um violento processo de homogeneização linguística, pois, até o final do século XVII, o português era apenas uma das centenas de línguas que se falavam no território brasileiro, sem uma clara proeminência sobre as demais em várias regiões. Dessa forma, o ciclo da mineração representa um turning point no processo de imposição do português como língua hegemônica do Brasil (Lucchesi, 2017), embora a imposição linguística, religiosa e cultural tenha sido a marca da colonização europeia desde o seu início.
Não obstante a enorme quantidade de línguas autóctones que eram faladas em seu território, predominava, na costa do Brasil, no início da colonização portuguesa, uma grande homogeneidade linguística, devido à grande expansão dos povos tupis pelo litoral brasileiro (Lucchesi, 2009, 2017). Esses povos falavam basicamente duas variedades linguísticas muito aparentadas: o tupiniquim e o tupinambá (Rodrigues, 1986). Por serem muito semelhantes entre si, os colonos e missionários portugueses se referiam a essas variedades como uma única língua, a que chamaram língua geralda costa do Brasil. O amplo uso dessa língua geral vai caracterizar o cenário sociolinguístico de São Paulo, onde se instalou o primeiro foco de colonização portuguesa no Brasil, com a fundação da Vila de São Vicente, em 1532. Após se estabelecer no litoral, os colonizadores seguiram para o interior, subindo o planalto paulista e fundando uma nova vila, que viria a dar origem à atual cidade de São Paulo. Após a sujeição da população tupi local, o aprisionamento dos povos indígenas prosseguiu pelo interior do Brasil, em grandes expedições denominadas Bandeiras. Essas populações eram aprisionadas e exploradas em aldeamentos nos quais se impunha a língua geral tupi como língua franca, já que muitos desses povos eram falantes de diversas línguas indígenas, sobretudo do grupo macro-jê, que predominava no interior do Brasil. Por outro lado, o reduzido contingente de colonizadores, em sua imensa maioria homens, possibilitou um amplo processo de miscigenação, no qual as crianças adquiriam a língua geral tupi de suas mães para só adquirirem o português quando cresciam e iam trabalhar para seus pais (Rodrigues, 2006).
A conservação de variedades da língua geral tupi, com alterações produzidas no novo contexto de colonização, ocorreu em vários pontos da costa brasileira, como o sul da Bahia (Argolo, 2013). Com a expulsão dos franceses de São Luís, em 1615, outra variedade do tupi, o tupinambá, viria a predominar na sociedade colonial que os portugueses estabeleceram inicialmente no Maranhão e expandiram para a região amazônica, em busca das especiarias da selva e do apresamento de novos povos indígenas, em sua maioria falantes de línguas diversas, inclusive de outras famílias linguísticas, distintas da família tupi-guarani, nomeadamente as famílias aruaque e caribe. Assim, a língua de intercurso que viria a predominar na colonização da Amazônia seria essa variedade crescentemente alterada do tupinambá, que, com a denominação de nhengatu (lit. ‘língua boa’), acabou por se nativizar entre povos indígenas da região e até hoje é a língua materna de algumas localidades do Alto Amazonas (Rodrigues, 2006).
A língua geral foi predominante no Estado de São Paulo até os finais do século XVII (Silva Neto, 1963[1951]), porém a descoberta de ouro e diamantes na região vizinha, das Minas Gerais, promoveu um grande afluxo de colonos portugueses, com seus muitos milhares de africanos escravizados, ao longo do século XVIII, os quais expulsaram os antigos paulistas para o centro-oeste do Brasil, reduzindo drasticamente o uso da língua geral no Sudeste. No Maranhão e no Pará, no norte do Brasil, a língua geral de base tupinambá se conservou por muito mais tempo, tanto que o governo português do Marquês de Pombal publicou um decreto, proibindo o seu uso, no ano de 1755, mas a língua geral amazônica só viria a entrar em franco declínio ao longo do século XIX (Freire, 2004).
Por outro lado, nas regiões economicamente mais dinâmicas do Brasil Colonial, como o entorno das vilas de Olinda e Salvador, no Nordeste do Brasil, a população indígena local foi rapidamente dizimada, com a importação de largos contingentes de africanos escravizados, que teriam substituído a mão-de-obra indígena já em meados do século XVII (Menard; Schwartz, 2002, p. 10). A partir daí a contribuição africana para a composição da sociedade brasileira foi crescente, pois a principal força motriz do empreendimento colonial português foi a mão de obra dos africanos escravizados e seus descendentes, denominados crioulos; tanto que o chamado tráfico negreiro se tornou uma das atividades comerciais mais lucrativas, durante todo o período colonial e em boa parte do período do Império.
Embora tenha sido, durante bastante tempo, muito pouco visível, em função da violência, não apenas física, mas, sobretudo, simbólica, inerente ao processo de escravidão (Mattoso, 2003), a presença africana constitui um dos componentes fundamentais na formação da sociedade brasileira, nos mais diversos setores da atividade social e da cultura, com forte influência na religião, na culinária, na música, na dança (Freyre, 1936), e também no plano da língua, tendo os africanos e seus descendentes desempenhado um papel decisivo na “europeização” linguística do Brasil (Ribeiro, 1995, p. 166).
Não apenas no Brasil, mas em todo o processo de colonização da América, entre os séculos XVI e XIX, a importação de largos contingentes de mão de obra africana foi crucial. Estima-se que, ao longo de mais de três séculos, o tráfico negreiro trouxe para o continente americano cerca de dez milhões de africanos.[2] A participação desse contingente na formação das nações que vieram a se constituir no novo continente foi significativa, não obstante a já referida opressão na qual se buscava apagar a identidade cultural e linguística dos povos africanos. Em vários planos da cultura, como a religião, a música e a culinária, a contribuição africana é indelével. No plano linguístico, essa contribuição se destaca pela emergência de línguas crioulas, na região do Caribe, em sociedades formadas a partir de grandes propriedades agroexportadoras que empregavam largamente a mão de obra escravizada, denominadas plantações. Dentre as mais de trinta línguas crioulas que se formaram na região, encontram-se o haitiano, cujo léxico é de origem francesa, e o jamaicano, de base lexical inglesa, além do papiamento, em Curaçao, e o sranan e o saramacan, no Suriname.
Calcula-se que o destino de quase a metade dos africanos trazidos para o continente americano tenha sido o Brasil, o que conduz à impressionante cifra de cinco milhões de indivíduos.[3] Em sua maioria, eram provenientes da região de Angola e da região que atualmente corresponde à Nigéria e ao Benin. Da primeira região vieram os falantes das línguas banto, principalmente o quimbundo, o quicongo e o umbundo. Da segunda região, vieram os falantes das línguas kwa, majoritariamente o iorubá, o ewe, o mahi e o fon. Os escravos provenientes de Angola eram levados para Pernambuco e principalmente para o Rio de Janeiro, que se tornou o principal porto do Brasil, a partir do século XVIII. Do Rio de Janeiro, eram distribuídos para o resto do Brasil, exceto a Bahia, que importava a maioria dos seus escravizados da Costa da Mina, com larga predominância dos falantes do iorubá, tanto que essa língua ainda era falada entre a população pobre de Salvador até o início do século XX (Rodrigues, 2004 [1933]).
Até meados do século XIX, aproximadamente dois terços da população do Brasil era constituída por índios, africanos e seus descendentes – ou seja, só cerca de um terço daqueles que formaram a sociedade brasileira eram falantes nativos do português filhos de falantes nativos dessa língua, ou seja, o segmento da elite colonial branca. A partir do século XVII, os africanos e seus descendentes, incluindo os mestiços, predominaram na população do Brasil, tanto que, em 1850, africanos, crioulos e mulatos correspondiam a 65% do total da população (Lucchesi, 2009). Esse contingente formou, quase que exclusivamente, a mão de obra das lavouras de cana-de-açúcar, fumo e algodão do Nordeste, entre os séculos XVII e XIX, da extração de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, no século XVIII, e das fazendas de café do Vale do Paraíba e do Planalto Paulista, no século XIX. O tráfico negreiro só cessou em 1850, e a escravidão africana só foi abolida em 1888. Até o início do século XX, a grande maioria dessa massa de afrodescendentes vivia no campo e era iletrada (Lucchesi, 2015, p. 85-94).
Desde o tráfico da África para o Brasil, os africanos eram misturados para evitar a articulação de revoltas. No Brasil, essa prática se reproduzia, e o uso das línguas africanas era reprimido, bem como suas práticas culturais e religiosas (Mattoso, 2003). Os africanos eram forçados a usar o português até para se comunicarem entre si, porém a aquisição da língua do colonizador era precária, porque o acesso a essa língua era muito restrito, e, na maioria das situações, especialmente na lavoura, os africanos não tinham interesse em adquirir uma grande proficiência em português. Essa segunda língua tornava-se, então, um código restrito de comunicação interétnica (Baker, 2000), com uma estrutura gramatical limitada e muitas vezes decalcada das línguas nativas dos africanos. Mesmo assim, essa variedade alterada de segunda língua ia se tornando a língua materna dos filhos dos africanos, no que se definiu como transmissão linguística geracional irregular (Baxter; Lucchesi, 1997; Lucchesi; Baxter, 2009). Esse processo pode levar à formação de uma língua qualitativamente distinta da língua do colonizador, tradicionalmente denominada língua crioula.
É possível que variedades crioulizadas do português tenham se formado no Brasil, sobretudo no século XVII, em algumas localidades com maior concentração de população africana, como o quilombo dos Palmares, no atual estado de Alagoas. Porém, essas variedades tiveram uma vida efêmera e não deixaram testemunhos históricos. Para além da desarticulação dos núcleos de resistência linguística e cultural, vários fatores demográficos, sociais e culturais concorreram para que a crioulização da língua do colonizador não ocorresse no Brasil de forma ampla de duradoura como ocorreu no Caribe, não obstante os significativos paralelos que se podem estabelecer entre os dois processos de colonização, especialmente no século XVII, que marca o início da formação da maioria das línguas crioulas nas sociedades de plantação das ilhas caribenhas (Lucchesi, 2019). Em primeiro lugar, coloca-se o percentual de pelo menos 30% de falantes nativos de português, durante o período da colônia e do império, bem superior ao que Bickerton (1981) estabeleceu para que a crioulização fosse possível: que os falantes do grupo dominante fossem inferiores a 20% do total da população. No plano socioeconômico, destaca-se a significativa presença pequenos proprietários no Brasil, que empregavam uma média de 3 a 5 escravizados, esbatendo, assim, a polarização entre senhores e escravizados, que caracterizou o Caribe, com a grande concentração de africanos nas poderosas empresas agroexportadoras que tornaram o açúcar o primeiro produto de consumo de massa do Ocidente. O elevado grau de miscigenação e a grande assimilação dos mestiços pela sociedade branca. A ação da Igreja Católica, que favoreceu a maior integração dos africanos e crioulos, nomeadamente através das ordens religiosas. E o grande número de alforrias (Lucchesi, 2019). Essas condições impediram a formação de pidgins e crioulos no Brasil, mas não impediram as alterações que vão separar as variedades de português dos descendentes de índios e africanos frente o português lusitanizado da elite colonial e do Império. Assim, um português dividido vai-se tornando a língua hegemônica da sociedade brasileira, configurando a polarização sociolinguística do Brasil (Lucchesi, 2015). Identificar os efeitos do contato entre línguas nas atuais variedades da língua no Brasil é crucial para compreender mais profundamente a questão social da língua e do preconceito linguístico.
Como o contato entre línguas afetou as atuais variedades do português popular brasileiro
Se hoje 98% da população do Brasil é de falantes nativos do português, quase todos monolíngues, durante a maior parte da sua história, cerca de dois terços de sua população era de falantes de línguas indígenas africanas e seus descendentes. Escrever livros e artigos científicos, como muito se faz, falando da história do português no Brasil baseado apenas nos testemunhos escritos da elite colonial e do império é apagar a história e a voz da maioria do povo brasileiro, descendentes dos povos originários e africanos (Lucchesi, 2012). A história linguística do Brasil tem ao menos duas grandes vertentes (Lucchesi, 2001). De um lado, uma elite branca e concentrada no litoral esforçava-se para reproduzir aqui o bon usage de Coimbra e Lisboa. De outra parte, esfalfando-se nas minas e plantações, milhões de indígenas e africanos iam adquirindo precariamente a língua do colonizador que lhes era imposta juntamente com os açoites. E essa variedade de segunda língua, mastigada e remoída, foi gradualmente se tornando a língua dos descendentes desses indígenas e africanos, gravando em seu modo de falar uma clivagem que reproduzia a clivagem de uma sociedade dividida entre senhores e escravos. Assim, ao longo dos séculos, a clivagem original entre o português da elite colonial, de um lado, e as línguas gerais indígenas e línguas francas africanas, de outro, foi se transformando na oposição entre um falar lusitanizado da elite escravocrata e variedades mais ou menos alteradas do português do povo trabalhador, descendente, em sua maioria, dos povos originários e africanos.
Em meados do século XIX, essa clivagem etnolinguística era bem notável para qualquer observador arguto, porém o ingresso de cerca de três milhões de imigrantes europeus e asiáticos na sociedade brasileira, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, foi esbatendo a coloração da clivagem linguística do Brasil, pois esses imigrantes, atraídos pelo governo brasileiro para substituir a mão de obra escravizada (sobretudo depois da abolição), aprendiam português, no mais das vezes, com os ex-cativos que subsistiam nas propriedades em que eram alocados. E como muitos desses imigrantes, pelas melhores condições que desfrutavam aqui, acabavam por ascender na escala social, levavam para as classes médias e altas as marcas da linguagem dos afrodescendentes, com quem haviam convivido (Lucchesi, 2001, 2015).
Esse esbatimento do caráter étnico da clivagem linguística do Brasil, ao longo do século XX, favoreceu o esforço para diluir as contribuições dos africanos e indígenas para o modo de falar dos brasileiros, até mesmo no âmbito da ciência. Para isso, concorreram dois fatores. De um lado, o racismo e o eurocentrismo, que viam nas interferências do aprendizado indígena e africano o empobrecimento e a degradação do idioma lusitano. Isso fica bem claro neste trecho do discurso de Joaquim Nabuco, na sessão de instalação da Academia Brasileira de Letras, em 1897:
A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa uniformidade de língua escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós; devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las indo a eles. A língua é um instrumento de ideias que pode e deve ter uma fixidez relativa. Nesse ponto tudo devemos empenhar para secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época (…) Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano ou Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem brasileira. (apud Pinto, 1978, p. 197-198)
No discurso do acadêmico, fica claro que os modelos de correção gramatical devem ser importados de Portugal, porque no Brasil a língua estava contaminada pela miscigenação racial, revelando como o racismo estava na base das representações sociais da língua numa sociedade que acabara de abolir formalmente a escravidão. Um pensamento similar é igualmente observado, entre filólogos e até linguistas, em meados do século XX, com a ideia de que o português não se impôs pela violência, mas pela superioridade cultural do colonizador europeu:
a vitória do português não se deveu a imposição violenta da classe dominante. Ela explica-se por seu prestígio superior, que forçava os indivíduos ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização. (Serafim da Silva Neto, 1963 [1951], p. 67)
Foi, portanto, a superioridade axiológica e pragmática da cultura ocidental que levou à vitória da língua portuguesa no Brasil sobre as suas concorrentes indígenas e africanas. (Sílvio Elia, 1979, p. 18)
Por outro lado, a hegemonia do estruturalismo, que encerra a história da língua na lógica interna do sistema linguístico, levava muitos teóricos a minimizar a influência do contato do português com as línguas africanas. Assim, Mattoso Câmara Jr. (1975) mantém no essencial a visão de Serafim da Silva Neto (1988[1957], p. 604):
Não se pode esquecer que a ação dos aloglotas consiste, de modo geral, em precipitar a deriva da língua, isto é, tendências já contidas no sistema. A evolução opera-se no sentido de tendências pré-existentes, que então irrompem e se difundem. É sabido que o aloglota reproduz, acentuando-os e exagerando-os, os traços da pronúncia que ouve.
E o mais surpreendente foi ver dois dos mais destacados sociolinguistas do Brasil reafirmarem essa hipótese, que se baseia no conceito estruturalista de deriva secular do linguista norte-americano Edward Sapir (1954[1921]):
A língua portuguesa falada em Portugal antes da colonização do Brasil já possuía uma deriva secular que a impulsionava ao longo de um vetor de desenvolvimento. No Brasil, este vetor se encontrou com forças que reforçavam e expandiam a direção original. (Naro; Scherre, 2007, p. 47)
Portanto, o resgate da participação de africanos e indígenas na formação histórica da realidade linguística brasileira demandou, em primeiro lugar, a superação de obstáculos que se colocavam no âmbito da própria ciência da linguagem, seja por influxos ideológicos, seja por limitações da teoria. Esse trabalho de pesquisa ensejou três grandes frentes de investigação: uma historiográfica, precisando os contextos sociolinguísticos em que ocorreu contato entre português e as línguas indígenas e africanas; uma teórica, com a formulação de uma teoria que desse conta de como o contato entre línguas afeta a estrutura da língua; e uma empírica, que testa as hipóteses geradas pela teoria por meio de análises sociolinguísticas em tempo aparente dos processos de mudança em curso na fala popular brasileira, especialmente das comunidades quilombolas, onde, por suposto, os efeitos do contato do português com as línguas africanas seriam mais notáveis. No plano da teoria, a formulação do conceito de transmissão linguística irregular (Baxter; Lucchesi, 1997; Lucchesi; Baxter, 2009) foi a chave para se buscar uma adequada compreensão de como o contato entre línguas afetou a formação das atuais variedades populares da língua portuguesa no Brasil.
O conceito de transmissão linguística irregular tem um caráter gradiente e visa a desenvolver um modelo mais amplo de análise das mudanças linguísticas induzidas pelo contato maciço entre línguas, para além das situações típicas de crioulização. A ideia básica é que uma situação de maciço contato entre línguas pode conduzir à formação de uma língua crioula, que tem uma gramática qualitativamente distinta da língua alvo (Rouge, 2008), constituindo um caso radical de transmissão linguística irregular. Por outro lado, a situação de contato maciço pode gerar apenas variedades históricas da língua dominante com algumas características estruturais das línguas crioulas, porém em um nível menos intenso e mais superficial, caracterizando umatransmissão linguística irregular de tipo leve.[4]
Em ambos os casos, o que está essencialmente em jogo é a necessidade de recomposição das estruturas gramaticais perdidas na situação inicial de contato, com a aquisição precária da língua do grupo dominante pelos falantes adultos dos grupos dominados. Portanto, é a intensidade da erosão gramatical da língua dominante que vai determinar o grau de reestruturação gramatical da variedade linguística que se formará na situação de contato. Para que haja a reestruturação original da gramática que dá origem às línguas pidgins e crioulas, é preciso que o acesso aos modelos da língua dominante seja restrito durante todo o período de formação dessa nova comunidade de fala, o que aconteceu, por exemplo, nas sociedades de plantação do Caribe. Nesses casos, o grupo dominado, muito majoritário, retém um restrito conjunto de itens do léxico da língua dominante (denominada, então, lexificadora), adquirido inicialmente para a comunicação verbal com os colonizadores, mas que depois passa a servir como código de comunicação interétnica entre os grupos dominados, já que estes falam línguas diversas, normalmente ininteligíveis entre si. Nesse universo da interação entre os dominados, implementa-se a reestruturação gramatical do restrito vocabulário adquirido da língua do colonizador, sem deixar de ocorrer uma profunda alteração na forma fonética das palavras adquiridas (Baker, 2000). Esse código de comunicação interétnica, denominado tradicionalmente pidgin, é a segunda ou terceira língua da maioria de seus utentes (Mühlhäusler, 1986). Ao se converter na língua materna das crianças que nascem na situação de contato, torna-se uma língua crioula, que, como toda língua nativa de uma comunidade de fala, é uma língua plena em termos estruturais e funcionais em seu universo cultural próprio, conquanto tenha uma estrutura gramatical incialmente muito simplificada em algumas áreas da gramática (Siegel, 2008).
Dessa forma, as línguas crioulas, embora tenham a imensa maioria de suas palavras provenientes da língua do grupo dominante na situação de contato (na imensa maioria dos casos, uma língua europeia), exibe uma estrutura gramatical qualitativamente diversa. Por exemplo, as línguas crioulas expressam os valores das categorias gramaticais de tempo, modo e aspecto por meio de partículas pré-verbais, e não por meio da flexão verbal, como ocorre nas línguas lexificadoras europeias. A gramaticalização desempenha naturalmente um papel crucial na formação das línguas crioulas. Assim, o verbo dar se gramaticaliza para desempenhar a função de preposição de dativo, os verbos discendi (dizer/falar) passam a desempenhar também a função de complementizadores (conectores oracionais), e o nome cabeça ou corpo passa a funcionar também como pronome reflexivo. A crioulização pode ser vista também como um processo de simplificação morfológica (McWhorter, 1998; 2001). Normalmente, as línguas crioulas utilizam um número muito reduzido de preposições e conjunções, predominando as construções por justaposição; além disso, não possuem flexão de caso dos pronomes pessoais, flexão verbal de número e pessoa e concordância verbal e nominal. Como decorrência dessas alterações, as línguas pidgins e crioulas também exibem algumas mudanças paramétricas em relação às línguas lexificadoras europeias, como a ausência de sujeito referencial nulo e de inversão na ordem sujeito-verbo (Roberts, 1997). A recomposição da estrutura gramatical que ocorre na pidginização/crioulização se concentra nos mecanismos que são essenciais ao funcionamento de qualquer língua natural, o que reveste o estudo das línguas crioulas de especial interesse para a compreensão da linguagem humana, pois a língua crioula prototípica possuiria apenas o núcleo gramatical essencial da faculdade da linguagem (Bickerton, 1981, 1999).
Toda essa reestruturação gramatical que caracteriza a formação das línguas crioulas ocorreu em situações sócio-históricas bem específicas, nas quais os grupos dominados eram altamente segregados e tinham um acesso extremamente restrito aos modelos da língua alvo. As grandes plantações de açúcar do Caribe são considerados os contextos históricos prototípicos para a ocorrência da pidginização/crioulização (Arendts, 2008, Singler, 2008). Porém, como argumentado acima, na formação da sociedade brasileira, os falantes dos grupos dominados e seus descendentes tiveram um maior acesso à língua europeia do grupo dominante, o que inibiu a crioulização, mas não impediu a ocorrência de mudanças estruturais decorrentes da aquisição mais ou menos limitada do português como segunda língua por milhões de índios aculturados e africanos escravizados e da nativização desse modelo mais ou menos defectivo de segunda língua entre os seus descendentes mestiços ou endógamos.
Nesse processo de transmissão linguística irregular de tipo leve, que determina a formação histórica das atuais variedades populares do português brasileiro, a reestruturação radical da gramática típica da crioulização não teria sido representativa nem duradoura. Ocorreu, portanto, a transmissão dos mecanismos nucleares da gramática da língua dominante. Por outro lado, não deixou de ocorrer uma reestruturação parcial, com mudanças que afetaram sobretudo os mecanismos gramaticais sem valor informacional, como as regras de concordância nominal e verbal. Observa-se, contudo, uma diferença quantitativa entre esse processo menos intenso de reestruturação e o processo radical da crioulização, pois, neste último, mecanismos gramaticais sem valor informacional são virtualmente eliminados, enquanto na transmissão linguística irregular de tipo leve observa-se apenas um amplo processo de variação no uso desses mecanismos gramaticais, sem ocorrer a sua eliminação, como acontece até hoje no português popular do Brasil, em que a falta de concordância nominal é verbal não é categórica, mas variável, observando-se tanto meus filho foi embora, quanto meus filhos foro embora.
Análises sociolinguísticas desses fenômenos em comunidades quilombolas do interior do estado da Bahia, numa abordagem em tempo aparente, que busca deslindar processos de mudança em curso na comunidade, com base na observação sincrônica da variação em determinando momento da língua (Labov, 2008[1972]), identificaram uma tendência ao incremento das marcas de concordância, liderados pelos homens mais jovens que viveram algum tempo fora da comunidade e que tiveram alguma experiência de escolarização (Lucchesi; Baxter; Ribeiro, 2009). Essas mudanças de cima para baixo e de fora para dentro da comunidade quilombola se inserem no amplo processo de nivelamento linguístico, no qual os padrões de fala das elites letradas das grandes cidades brasileira se difundem para todas as classes sociais e para todas as regiões do país, em função da influência vertiginosa dos meios de comunicação de massa, da educação pública (mesmo que precarizada) e pelo deslocamento populacional. Esse nivelamento linguístico, que vai eliminando gradualmente as marcas produzidas pelo contato linguístico no passado, é resultante do profundo processo de industrialização e urbanização da sociedade brasileira que se implementa a partir da revolução de 1930. Porém, essa difusão do padrão linguístico urbano culto esbarra nas limitações do desenvolvimento tardio e dependente do capitalismo brasileiro e do quadro de violenta concentração da renda que ele produziu, o que não permite a plena integração no mercado de trabalho e de consumo das massas egressas das zonas rurais, que se concentram em bolsões de miséria na periferia das grandes cidades, configurando, assim, o quadro atual da polarização sociolinguística do Brasil (Lucchesi, 2015).
A constatação de que está em curso atualmente uma mudança com a recuperação da morfologia perdida na situação de contato no passado refuta a hipótese de Nero e Scherre (2007) de que esses fenômenos decorrem de uma deriva secular interna à estrutura da língua, pois esta hipótese prevê um lento processo de perda das marcas de concordância, e não o seu incremento, como as pesquisas empíricas têm revelado. Além disso, a observação de fenômenos variáveis mais raros de simplificação morfológica, como a falta de concordância de gênero (e.g., as vezes ‘duece um pessoa, não tem um ambulança) e de não marcação da 1ª pessoa do plural nos verbos (e.g., eu trabalha na roça), que não se observam, em geral, nas variedades populares do português brasileiro, mas se observam nas comunidades quilombolas mais isoladas, reforça a relação historicamente motivada entre esses processos de simplificação morfológica mais profundos e o contato do português com as línguas indígenas e africanas que marca a formação da sociedade brasileira.
A historiografia linguística revela, assim, que as marcas mais estigmatizadas da fala popular tiveram sua origem na forma como o português foi imposto aos segmentos indígenas e africanos na formação da sociedade brasileira e ainda se mantêm, nos dias atuais, em função da marginalização socioeconômica desses segmentos. Sua erradicação passa, portanto, pela real democratização da sociedade brasileira, facultando a esses segmentos marginalizados o pleno acesso ao mercado de trabalho e de consumo, nomeadamente de bens simbólicos e culturais. E nada justifica o preconceito contra essas formas linguísticas, que nada mais são do que o reflexo do caráter pluriétnico da sociedade brasileira, a não ser o preconceito e o racismo de uma elite e uma classe média retrógradas e escravistas.
Conclusão: o racismo na língua e na sociedade
A sociedade brasileira é uma das mais injustas, violentas e cruéis de planeta. Historicamente, isso se explica pelo fato de os dois grandes processos formadores desse imenso país foram o extermínio dos povos indígenas (infelizmente ainda em curso) e a escravidão africana (ainda surpreendida pelo Ministério Público do Trabalho no interior de grandes empresas rurais ou travestida nas “modernas” relações trabalhistas mediadas por aplicativos informáticos). Quarenta anos de hegemonia neoliberal só aprofundaram a exploração e a marginalização de crescentes segmentos da sociedade brasileira, como ocorreu em todo o mundo, com o vertiginoso desenvolvimento tecnológico concentrado na mão de uma poucos gigantes econômicos, produzindo um retrocesso que ameaça o meio ambiente, as relações humanas, a ciência, a cultura e coloca o mundo à beira da guerra, do caos social e do desastre ambiental irreversível.
A ciência não pode se furtar ao seu papel e não pode deixar de cerrar fileiras na luta democrática, popular e progressista em defesa do planeta e da humanidade, contra a voragem dos monstruosos detentores do grande capital financeiro nacional e internacional. A inextrincável relação entre a língua e a vida social faz das representações sociais da língua um poderoso instrumento de dominação de classe, alimentando no Brasil o desumano racismo estrutural. Não é à toa que a mídia capitalista cultiva o purismo gramatical e trata a discriminação contra as formas da linguagem popular como “ação civilizadora”, para “tirar o povo da sua ignorância”. Mas, ao provar, com uma investigação empírica consistente, que o preconceito linguístico não passa de uma nefasta convenção social, cujas origens remontam ao racismo da elite escravocrata do século XIX, a historiografia linguística e a sociolinguística assumem um caráter altamente revolucionário e subversivo, atraindo a ira dos sabujos e mastins das elites brancas e escravistas, como se pode ver nesta passagem de um editorial de um dos órgãos mais reacionários e manipuladores da imprensa nativa, a revista Veja, publicado na época da polêmica do livro de MEC, em sua edição de 25 de maio de 2011:
A discussão arcana sobre o ‘falar popular’ ocupa um escaninho secundário na sociolinguística e seria um enorme favor aos brasileiros que estudam e trabalham se nunca tivesse deixado o seu porão acadêmico.
Como expediente de seu discurso ideológico, a revista, que é porta-voz fidelíssimo dos interesses do grande capital, invoca retoricamente os interesses dos brasileiros que estudam e trabalham. Mas, ao contrário do que seu grunhido sectário afirma, a sociolinguística tem muito a contribuir com a melhoria de vida dos estudantes e trabalhadores brasileiros, desarmando um dos poderosos instrumentos ideológicos de sua opressão e exploração e promovendo a consciência e o respeito à diversidade linguística e cultural, como parte da construção de uma sociedade verdadeiramente pluralista, justa e democrática, o que a grande mídia capitalista tanto tenta impedir, para manter o poder avassalador do grande capital financeiro.
* Dante Lucchesi é professor titular aposentado de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense e Bolsista de Produtividade em Pesquisa, Nível 1B, do CNPq. É autor dos livros: Língua e Sociedade Partidas (Contexto, 2015), agraciado com o Prêmio Jabuti em 2016; Sistema, Mudança e Linguagem (Parábola, 2004); e organizador e autor do livro O Português Afro-Brasileiro (EDUFBA, 2009).
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Edimilson de Almeida Pereira estreou em 1985 com Dormundo, e, desde então, publicou livros de poesia, romances, infanto-juvenis e ensaios, como o recente Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de um estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira, de 2017, republicado em 2022. É professor titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal Juiz de Fora (UFJF) e vencedor dos prêmios Oceanos, com O ausente, e São Paulo de Literatura, com Front, em 2020. Seus últimos livros são o infanto-juvenil A vida não funciona como um relógio e os livros de poesia Melro, O som vertebrado (ambos de 2022) e A morte também aprecia o jazz (2023). Nesta entrevista, concedida em 17 de maio, Edimilson relata alguns momentos de sua carreira e a relação de sua literatura com outras artes e com o trabalho antropológico, uma das marcas de sua escrita.
Beatriz Resende: Queria começar chamando a atenção para essa conversa do poeta com outras artes. No Diquixi: estudos para cabeças de Artur Timóteo da Costa, por exemplo, há uma conversa com as artes visuais, em A morte também aprecia o jazz, explicitamente, com o jazz.
Edimilson de Almeida Pereira: Acho que essa diversidade de abordagem temática e de inter-relações com diferentes áreas de conhecimento e campos artísticos tem muito a ver, no caso de vários escritores e no meu em particular, com o momento em que você se sente um sujeito criador, quando você começa a trabalhar com a criação. Isso às vezes tem a ver com uma questão geracional. Eu me formei na geração que, aqui em Juiz de Fora, começou a escrever na década de 1980. É uma geração, sobretudo, herdeira da poesia marginal. Tínhamos uma conexão muito próxima com o Rio, mas também éramos herdeiros de João Cabral [de Melo Neto], de Manuel Bandeira, de [Carlos] Drummond [de Andrade]. E havia aquela necessidade, até em função da situação política, dos quadros mais jovens que estavam na universidade se interessarem pelos temas gerais do país e tudo que o afetava. Era inevitável nosso interesse por política, economia, ciências sociais, artes plásticas e pelo cinema, que tinha um papel muito importante. A literatura acaba sendo um fio que atravessava todas essas áreas, não com um discurso de confrontação, para dizer “a literatura é diferente de tudo isso”, mas, ao contrário, para dizer que a literatura está presente de algum modo em tudo. Essas áreas nos ofereciam uma visão ampliada do país e do mundo naqueles anos efervescentes da primeira metade da década de 1980, o que nos deu uma espécie de metodologia natural para nos interessarmos por tudo.
Com o passar dos anos, os autores do grupo foram se dispersando, e eu fui tentando abordar essas diferentes áreas de uma maneira mais objetiva, reflexiva e analítica, de modo que, nos livros que você cita — Entre Orfe(x)u e Exunouveau, A morte também aprecia o jazz e o Diquixi —, tem um trabalho consciente. No primeiro, há uma análise de base antropológica que dialoga com questões de teoria literária. No segundo, um diálogo muito mais de natureza espiritual com o jazz, de modo que isso pode ser traduzido na linguagem poética. E no Diquixi é uma discussão de uma questão antropológica, uma visão do que são as nossas relações com as matrizes culturais africanas, e a tradução disso é um discurso político contemporâneo. Então, acho que veio sendo um processo a princípio natural, depois intencional, de me interessar por várias áreas de conhecimento, de produção do saber, de sempre trabalhar a noção de teias e relações. Relações já é em princípio plural, mas colocadas em teia se amplificam, para que se tente abordar diferentes campos de conhecimento, e a literatura é o fio mais ou menos condutor desse processo.
BR: Você é percebido no mundo da literatura como um poeta. Por isso, achei um desafio tão grande você fazer um livro como O ausente. É um romance, mas, quando lemos, conseguimos ver o quanto é atravessado por poesia. E mais, como aquela narrativa é atravessada também por questões políticas, referentes ao campo, à violência e à negritude, sem que você desenvolva de uma forma pedagógica. A sua expressão é sobretudo poética.
EAP: Os romances refletem de novo aquela teoria das teias de relações. São três romances com temáticas e linguagens diferentes [O ausente, Um corpo à deriva e Front]. Eles podem funcionar separadamente também como obras únicas, ou na trilogia que propus. Mas, no caso de O ausente, é um romance no qual fiz uma opção clara pela linguagem poética a partir da proposição de trabalhar temas da antropologia rural. A história básica do romance é muito simples. São dois camponeses num ambiente rural extremamente tradicionalista, uma cultura arcaica, muito fechada. Temos inúmeros estudos antropológicos que levantam essas estruturas familiares do interior do Brasil. O Antonio Candido, em Os parceiros do Rio Bonito, nos deu um belo exemplo desse tipo de estrutura social. Então, a base inicial do romance vem dessa área das ciências humanas. Faz parte do trabalho com pesquisa de campo que desenvolvo há mais de vinte anos. Agora estou um pouco parado, não tenho viajado mais, mas a estrutura do tema é fruto de pesquisa de campo, de convivência com meio rural. A questão que se coloca é a seguinte: já temos no Brasil uma fortíssima tradição regionalista que todos nós conhecemos bem. Ela já está mapeada nos temas, nas formas, nos narradores, os ícones dessa linhagem muito vigorosa. A minha preocupação não era refazer esse caminho, embora eu tivesse o mesmo tema e a mesma estrutura dessa literatura regionalista. A questão, para me diferenciar dessa tradição regionalista, não era o tema, mas a linguagem. E aí entra a questão da linguagem poética, o viés que mais me interessa, uma linguagem que prima não pelo seu caráter denotativo, que explicita o real, mas, sobretudo, pelo caráter obscuro, velado, hermético no modo como os temas são combinados. Sem falar diretamente do que é o real, vai criando emulações de sentido que nos levam a confrontar o real.
Estão lá os temas da violência, temas ligados às heranças das matrizes africanas e à relação do homem com o meio natural. São perceptíveis à medida que se faz a leitura, mas não estão enunciados de modo direto. A linguagem poética me permite criar essas emulações na fala dos personagens, de modo que é o leitor quem vai construindo os vínculos com o mundo real. O tema da violência rural, por exemplo, é incontornável no livro, mas em momento algum aparece de forma explícita. Ele vai sendo construído nos interstícios dos diálogos e das observações dos personagens, e é o leitor que tem que chamá-lo para si no processo de interpretação. Acaba sendo um livro intencionalmente difícil. Minha proposição não foi dar para o leitor um novelo aberto sobre os temas, mas deixar ele mesmo desfazer o novelo para chegar às suas construções. Foge um pouco da literatura didática e pedagógica, que encontra mais recepção. A intenção era fazer um livro que fosse experimentado a conta-gotas, talvez também por isso não seja muito extenso, senão se tornaria inviável. Para mim, o elemento principal de O ausente é a linguagem e o modo como ela é construída, e ele acaba sendo um livro metalinguístico. Eu deixei muito claras as referências dele, o [Guimarães] Rosa está lá. Não só na inversão das estruturas sintáticas, mas porque é um universo muito próximo do que o Rosa frequentou. Nesse caso, o grande sertão é uma metáfora para a linguagem se construir. O livro é uma visita e uma homenagem evidentes ao trabalho do Rosa.
Nós somos as leituras que fizemos. Nós, da área da teoria, sabemos que muitas vezes nosso pensamento teórico é fruto das leituras e interpretações que elaboramos. Faço questão de marcar esses diálogos na minha obra, as referências são evidentes para o leitor, mas, a partir das referências, é preciso começar a procurar também as particularidades. De certo modo, o que O ausente tem de “anti-Rosa” é a ruptura com o aspecto messiânico dos personagens, que ele explora muito, até porque se aproxima muito do real, da vida rural, como em “A hora e a vez de Augusto Matraga”. Em algum momento o messianismo rural aparece na reconstrução do Matraga. O ausente é totalmente antimessiânico e talvez seja uma das armadilhas do livro. Quem lê procurando esse sertão só do Rosa ou a realidade rural tem certa decepção, porque são personagens que constroem o próprio universo. A figura do narrador principal no fundo tenta se colocar como um pensador às avessas desse universo, tanto que a linguagem dele é toda de recusa.
Julio Tavares: Sua incursão em várias áreas e territórios chama a atenção, provindo principalmente de um profissional da área da letra, da palavra. Sendo você também uma figura ancorada na identidade negra, torna-se ainda insólito. Temos algumas figuras com esse marcador, mas não propriamente nesse trabalho artesanal com a palavra, como o Muniz Sodré, que tem também um longo trabalho de viagem por vários territórios. Através da literatura, você começou a trabalhar com antropologia, ciências sociais, em alguns momentos muito marcantes até existencialmente para você, que toca profundamente na sua biografia. São duas questões muito relevantes, o Congado de um lado, e sua grande parceira, a Núbia Pereira, de outro. Gostaria muito de conhecer mais essa vivência em campo e o motivo que impulsionou você a escrever a quatro mãos um projeto tão bonito, que se desdobrou em vários trabalhos, entre eles o que você me deu o privilégio de prefaciar, Ardis da imagem.
EAP: Raramente coloco minha biografia à frente do trabalho. Vivemos em um modelo social em que, tantas vezes, o biográfico se antepõe à própria reflexão, essa ideia do mundo dos famosos, da publicidade, e torna as suas dores e as suas conquistas um elemento de frente, o que às vezes dificulta o acesso com certo distanciamento à obra. Mas claro, não tenho nada contra isso, são modelos de época e valores sociais que prevalecem. Optei sempre pelo contrário, tenho dados biográficos importantes que aparecem na obra, mas raramente falei sobre eles. Sua pergunta é interessante, porque, como a vida dá muitas voltas, hoje começo a entender que esses dados biográficos são importantes, já dá para pensar sobre eles com distanciamento. Os dois casos que você cita são cruciais para a reestruturação do modo de pensar ou dos modos de pensar, e também para definir as áreas por onde venho caminhando ao longo das décadas. O primeiro acho que foi o contato com a Núbia, que me leva depois para o Congado. O contato com ela se deu na Faculdade de Letras e a universidade é um importante espaço de intercâmbio entre pesquisadores, professores e alunos. Fomos tão massacrados nos últimos anos, mas esse território, como convivência pessoal e de investigação, é decisivo para formar biografias e trabalhos fundamentais.
Entrei na universidade em 1983 e esse ingresso foi um divisor de águas. Vinha de um bairro de periferia e na época ninguém da minha família fazia universidade. Então, era uma primeira relação entre esse mundo periférico e o mundo acadêmico, que a princípio sempre se estranharam. Vemos que só agora essa barreira começa a ser um pouco reduzida, mas em 1983 era nítida. A universidade era um campo mais fechado, a classe média a ocupava e as periferias não chegavam lá. Para mim, de início, foram dois mundos muito diferentes colocados frente a frente, mas acho que tive, talvez por puro instinto, a preocupação de não manter a confrontação desses dois mundos, mas tentar entender como podiam se interpenetrar. Mantive toda a minha vida na periferia e as minhas relações com o mundo acadêmico.
Nesse momento foi importante o encontro com a Núbia, porque ela trabalhava no Departamento de Letras, na área de linguística, e, exatamente em 1983, estava iniciando um amplo projeto que se dividia em psicolinguística e sociolinguística. Ela abriu uma área de estudos sociolinguísticos, porque havia feito uma dissertação sobre a linguagem do pescador do interior de Minas Gerais, e vinha trabalhando etnografia, investigação linguística. Era um trabalho interdisciplinar, com uma abordagem incomum, pelo menos aqui na nossa universidade, talvez em outras isso já estivesse ocorrendo. E eu vinha do movimento de poesia de rua, que me levava a ter interesse por várias áreas. Acho que casou meu interesse múltiplo com a procura dela de um auxiliar de pesquisa que trabalhasse as culturas populares em uma perspectiva interdisciplinar. Em 83, tínhamos muito professor compartimentado na sua pesquisa. Tanto é que, quando ela escrevia os projetos, colocava a palavra “interdisciplinar” em itálico, porque não era algo habitual.
Esse contato foi decisivo para mim, encontrar na universidade alguém com uma visão de mundo muito ampla e interessada em agregar pessoas de áreas de conhecimento diferentes. Ela tinha vários bolsistas, alguns da área da música, o que nos permitiu fazer a transcrição inicial das pautas musicais do Congado, ainda hoje inovadora. Uma das primeiras barreiras que os musicólogos enfrentaram na época foi como fazer uma notação musical da rítmica do Congado, que era algo que precisava ser investigado. A notação tradicional, ocidental, não dava conta. A Núbia tinha um especialista na notação musical etnográfica. Quem avançou depois com esses estudos foi a professora Glaura Lucas, que também se tornou nossa grande interlocutora.
Respondendo a sua pergunta, a minha abertura para o campo da multidisciplinaridade se deve ao encontro com a Núbia. Aquele momento em que você diz que a vida muda de rumo e, no meu caso, mudou. Eu havia terminado a graduação em 1986 e meu projeto de mestrado era estudar o Carnaval no Rio, e já estava fazendo o projeto e iniciado alguns contatos. Acabei desistindo e fui para a UFRJ fazer literatura portuguesa, porque me dava mais tempo para ingressar no projeto da Núbia, o “Minas e Mineiros”, que se propunha a ser multidisciplinar e abordar as culturas populares nas perspectivas antropológica, sociológica, linguística, histórica e literária. A partir de 1986, comecei a acompanhá-la nas viagens para o interior de Minas. Foram dezenas de viagens, não exatamente para municípios importantes, mas para micropolos, microrregiões no interior do estado, junto com os bolsistas e auxiliares de pesquisa. Era aquele trabalho etnográfico clássico, de visita à localidade, permanência demorada, convivência longínqua com os habitantes, muita documentação em áudio, vídeo, fita, transcrição, o trabalho braçal da etnografia. Até hoje, três décadas depois, ainda tenho fita cassete desse acervo para transcrever. Espero algum dia passar esse material para domínio público, porque não vou dar conta de trabalhar tudo, tem muita coisa que foi coletada e é um material intocado. Um link da pesquisa era sobre as questões da feminilidade no meio rural. A Núbia tinha um núcleo específico do projeto que se chamava “O Penhor dessa Igualdade”. Ela era muito criativa nos títulos. A discussão era como o patriarcado no meio rural havia segregado as mulheres, de tal modo que não só a corporalidade, o campo discursivo, mas tudo ficava muito restrito. Tenho as pastas amarelas do projeto com questões sobre religiosidade feminina, parto, puerpério, maternidade, narrativas sobre o feminino, a demonização do feminino. Era uma pasta de pesquisa que ela ia desenvolver. Então, para resumir, depois desse encontro com ela em 1983, como aluno, e em 1986, como participante do projeto, deixei de estudar Carnaval para estudar culturas populares no interior de Minas.
Eram mais de trinta temas que investigamos e um deles era o Congado. Foi talvez a área que mais apostamos na investigação, porque, na época, no início da década de 1980, toda terminologia, todo levantamento de campo sobre a prática ritual do Congado estava nos livros de folclore e de folguedos. Enveredamos primeiro na pesquisa de campo, sentíamos que isso era necessário. Visitamos muitas comunidades afrodescendentes do interior do estado, com ênfase no meio rural. O trabalho com os Arturos ficou mais conhecido, mas nossa ênfase era o meio rural, porque nos anos 1980 não se fazia antropologia rural do Brasil.
JT: Naquele momento os Arturos já eram urbanos?
EP: Sim, porque Contagem é uma cidade colada em Belo Horizonte. Mesmo em 1983, eles estavam a oito quilômetros do centro urbano de Contagem. Era uma comunidade fechada, com uma agricultura de subsistência pequena, mas da porteira para fora já era área urbana, então havia um contato muito grande. Com isso, o Congado entrou de fato na nossa área de interesse e fizemos um levantamento muito grande. Temos ainda muito material gravado e hoje, quando me lembro da Núbia, lembro com carinho especial, porque ela tinha uma enorme preocupação com o registro visual. Era difícil naquela década um fotógrafo fazer as imagens, era quase um milagre, ter uma câmera Super 8 era dificílimo. E as pessoas das comunidades não gostavam de se expor para a fotografia, muito diferente de hoje. Atualmente, abro as redes sociais e os Arturos têm um link próprio da comunidade e fazem questão de aparecer com as suas práticas culturais. Era uma outra experiência de campo, que nos levava inclusive a propor teorias que hoje talvez precisem ser revistas. Trabalhamos muito, por exemplo, com a ideia de isolar os negros desolados remanescentes. Eram comunidades muito isoladas, muito pobres, e essa pobreza material afetava a preservação das práticas culturais, e, além do isolamento, havia a desolação pela falta de reconhecimento. Não se falava naquele momento, por exemplo, em comunidades quilombolas, um termo que hoje elas reivindicam para si, como direito político, como direito ao território, e isso implica um aumento não só do valor cultural, mas do valor político delas. Hoje, há lideranças que procuram, com mais frequência, as conexões com lideranças políticas e do meio urbano. Nosso trabalho estava em um período muito inicial, de pouca teoria sobre o Congado, pouca conexão com essas comunidades isoladas, e, nesse fio do tempo, percebemos como foram ganhando autonomia, acompanhando o processo político do país, de construção das identidades das periferias, de maior evidência política dos movimentos sociais negros, de políticas públicas de governos que dão suporte a elas. Esse é o ensaio que espero fazer, uma espécie de autoanálise, como fez o Mário de Andrade para a geração de 1922, escrever minha “Elegia de abril”, rever essas três décadas para ter uma visão mais crítica desse percurso.
JT: Foi essa última imagem que me brotou quando imaginei seu trabalho, que combina inserção na comunidade e uma profunda reflexão sobre a letra, sobre a literatura.
EAP: O que a gente percebe é que uma sociedade como a brasileira é desafiadora em vários aspectos, é um modelo social o tempo todo em processo de ebulição. Quando achamos que chegamos a um ponto de síntese, na verdade, estamos abrindo outras conexões de relações sociais. No que diz respeito às culturas populares, minha grande implicância, no bom sentido da palavra, é quando as análises sociológicas tendem a mapear essas relações sociais, mas imaginam que depois, em algum momento, esses processos se esgotam. Então, muito da pesquisa que se faz, por exemplo, sobre a religiosidade popular tem um processo de recusa, de não reconhecimento. Tem uma entrada em certa modernidade que vai integrar uma utopia nacional, modernista, e para por aí, enquanto que as religiosidades populares são, ao contrário, proteicas, vão continuar guardando valores extremamente retrógrados e são capazes de se acoplar a posturas altamente avançadas, contemporâneas. Esses processos não se fecham, e o Congado é um exemplo disso. Como estrutura inicial, é muito fechado, mas tem uma plasticidade muito grande que se adapta nas relações com os modelos religiosos. A umbanda, que já era mais tradicional, o candomblé. Hoje há um jogo interessante inclusive nos grupos neopentecostais, fora da lógica neopentecostal catequética.
Temos que ter uma postura muito serena quando tratamos de fenômenos sociais no Brasil. Deixamos muitas vezes a discussão ideológica se antepor à análise reflexiva. E claro, na militância, no ato de sobrevivência, é isso o que vale. Tenho uma força agressiva, tenho que sobreviver, a confrontação se dá no campo de batalha, na rua, nos campos da comunicação. Mas, nesse distanciamento reflexivo para tentar entender as estruturas, antes de criar uma imagem de demonização do movimento neopentecostal – que é muito variado, há movimentos dentro de um grande movimento –, precisamos ter vários enfoques. Tirando esses movimentos mais midiáticos que realmente são de charlatanismo, espoliação da boa-fé, há vertentes dentro do movimento neopentecostal que têm, sim, a preocupação de suprir as carências do humano na sua materialidade em relação a um processo de busca da transcendência. A vivência da religiosidade como algo muito sério, muito fundamental para a existência. Essa vertente neopentecostal menos conhecida se apoia muito em estruturas de credibilidade do sagrado que já estão nas culturas populares. Você pega a chamada cultura popular tradicional (só para termos uma diferenciação, criar uma terminologia) e ela está ligada a práticas rituais cotidianas. Tem um artigo famoso do Frei Beozzo, dos anos 1970, “Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada”, que fala que o catolicismo brasileiro é de muita prática, muito rito, muita reza e pouca doutrina. As pessoas gostam de rezar o terço, fazer a bandeirinha para a igreja, levar a comida para depois da reza do padre. Então é uma vivência do sagrado muito teatralizada, muito pragmática. Isso envolve o devoto em todo os sentidos, ele é parte de um conjunto social no qual a vida dele tem sentido. Isso está na religiosidade brasileira desde a colonização e vai para o Congado, para as práticas das benzeções, das folias de reis, do Nordeste para as grandes práticas das festas populares de igreja dos adros. Ora, certa vertente neopentecostal vai justamente trabalhar com esses microrritos, o teatro do sagrado. Por isso, vemos muitas vezes os ritos de despossessão, o ato de consagração de objetos, o ato de consagração da corporalidade. O que vai ocorrer depois, ao longo dos processos, é que podemos ver o distanciamento desse momento inicial, e aí começa outro discurso, mais de catequese, a ideia de depuração da religião, que vai recusar inclusive o próprio mundo popular. Uma vez que me conectei com ele e dissolvi os elementos de interesse, posso rejeitá-los, recusá-los. Esse processo é muito rico e começamos a observar hoje, em várias práticas populares do interior, como essas relações acontecem. São pessoas que já têm uma experiência de mundo plural, em termos de cultura. Esse dado da pluralidade das culturas populares do Brasil é muito importante.
Só abrindo um parêntese: você pega um indivíduo e ele tem várias funções. No caso das mulheres, são parteiras, rezadeiras, benzedeiras, curandeiras, trabalham no Congado, na cozinha, todas atividades sociais com o sagrado. Então, para adotar mais uma vertente do sagrado, é só agregar ao universo multipolar um elemento a mais, dar mobilidade a essas vivências do sagrado. Só que isso é um processo contínuo, por isso, a observação de campo, a base do nosso projeto Minas e Mineiros em 1986, ainda hoje é um dado fundamental. Daí a conexão cotidiana que fazíamos com as comunidades, e era um propósito inclusivo. Volto ao que era a ideia inicial da Núbia, sempre procurar uma conexão entre o campo teórico que investigávamos na universidade — nas áreas da linguística, antropologia, sociologia — e o ambiente de vivência das culturas populares, que são culturas teóricas. Elas têm teorização. Boa parte do nosso projeto era o projeto de escuta. Tínhamos uma paciência enorme de escutar horas e horas as pessoas falando, para deduzir como tinham uma visão teórica da própria cultura. Sempre cito, como um ícone de nosso modelo de trabalho, um senhor que se chamava Nelson Carvalho da Silva, em uma comunidade em Jequitibá, no interior de Minas, vizinha a Piracuama do conto “O duelo”, de Guimarães Rosa. Nelson Carvalho seria um personagem do Rosa e nós o entendíamos como um pensador do meio cultural em que vivia. Ele tem uma frase que uso como epígrafe de trabalhos até hoje: “O mundo é feito de muitas sabedorias”. Uma visão mais aberta para a conexão com o outro, a ideia de alteridade, está sintetizada nessa frase. Assim como vamos à Sorbonne para estudar, íamos a Jequitibá estudar.
BR: Edimilson, e Orfe(x)u e Exunouveau?
EP: Esse aí é um livrinho que me deu trabalho. Nasce como tese para a titularidade e vai, de certo modo, na contramão de algumas propostas e análises das culturas de matriz africanas do Brasil. Temos trabalhos fantásticos, extraordinários, na perspectiva de tentar entender como os valores africanos trasladados ao país, pelas razões óbvias da escravização, de certa forma permitem uma volta às matrizes africanas. É como se houvesse todo um patrimônio cultural que veio a despeito das relações difíceis e da violência. Esses modelos culturais se mantiveram e nos ajudam, como brasileiros negros e negras, a voltarmos a ter uma conexão com a África, uma ideia de resgate da memória e da ancestralidade. Nos anos 1980, isso era muito evidente, por exemplo, no campo da literatura, em que muitos autores e autoras se autorrenomeavam, abandonavam o nome ocidental, muitas vezes cristão, e assumiam nomes africanos. Hoje está aí de novo, acho que por outras razões, mas, nessa época, era um pouco isso: para me reconhecer africano ou descendente, tenho que, simbolicamente, mudar de nome. Então se vê uma leva de escritores e escritoras com nomeação em geral tirada do iorubá, o que era interessante. Não havia muitos nomes da herança banto no meio literário e no Brasil de modo geral. Tivemos um movimento literário negro muito forte, derivado do trabalho do Quilombhoje em São Paulo, que se espalhou para várias áreas do país. Muitos grupos de escritores negros estavam começando junto à militância e à escrita literária. E a forma de se identificar com África era renomear o próprio autor. O Éle Semog, por exemplo, o Negrícia, no Rio. Era a ferramenta política da época, para contrastar com a rejeição que sofriam as culturas de matrizes africanas. Um processo legítimo e interessante, que surtiu depois efeitos muito positivos.
Mas a minha preocupação sempre foi a de não trabalhar nem o ponto de partida dessas matrizes africanas nem o de chegada, mas pensar o trânsito, que, depois do livro do Paul Gilroy, ficou mais evidenciado como o espaço do Atlântico Negro, embora ele excluísse o Cone Sul. Gosto de trabalhar essa metáfora da diáspora em percurso, em trânsito, porque ali se encontram os valores culturais, os modelos políticos, a prática de vida. E se encontra, no processo de dispersão, uma pretensa origem africana, sem ter um ponto de chegada definido. Se trabalha com a ideia da crise das matrizes culturais africanas e não com os processos de identificação imediata, que é uma vertente. Eu me sinto herdeiro das culturas africanas, adoto um nome, invisto nas religiosidades de matrizes africanas, tanto que, já nos anos 1980, havia um movimento muito grande de intelectuais que voltavam para as religiões de matrizes africanas, como o candomblé, e, mesmo hoje, nas redes sociais, há um interesse intelectual e político de jovens autores de se identificarem como filhos dos terreiros. Eles identificam que pertencem e fazem a descrição: “Sou filho de Ogum, filho de Iemanjá”. Descrevem o processo de iniciação, mas curiosamente esse movimento não se deu de modo vigoroso em relação às matrizes banto, o Congado, por exemplo. Agora, algo se prenuncia e é um fenômeno para acompanharmos.
Percebi que não queria usar esse processo de saída das culturas africanas do continente, chegada nas Américas e depois um caminho de volta à África, queria pegar a crise de ruptura desses modelos culturais. Então, a minha procura em termos de análise nunca foi por identidades, mas por problemáticas de como essas fragmentações geraram modelos, inclusive, de pensamento laico. É muito delicado tocar no tema do intelectual negro hoje que não seja adepto de uma região de matriz africana ou que não tenha o sagrado como referência da sua criação, mas também da sua conduta pessoal. Se observar bem, as pessoas fazem questão de dizer: “Pertenço a uma comunidade intelectual, mas também do sagrado, das religiões de matrizes africanas”. Eu sempre me perguntei: mas e se um sujeito quiser perder todos esses modelos culturais e se definir como um sujeito laico? Que visão teria deste processo? Que literatura produziria? É uma janela pequena, mas que tem norteado meus pontos de vista. O sagrado quando aparece na minha obra – tanto na analítica quanto de criação – é um componente de percepção do mundo, de atribuição de sentido ao mundo, ao lado de outros. Procuro fugir um pouco dessa perspectiva que, na falta de um termo melhor, chamo de teocrática. Entendo que há uma necessidade de pensar todo esse processo das religiões de matrizes afrodescendentes e do modelo cultural derivado de uma perspectiva que não tenha só o sagrado como referencial, porque, na medida em que o sagrado é o referencial, até pela natureza dele, ele nos obriga às práticas rituais, que mantêm no processo de repetição. Se o rito não se fizer como repetição, ele não mantém a estrutura originária de sentido. Então me pergunto: como pode haver uma matriz afrodiaspórica que seja, acima de tudo, laica em sua percepção do mundo, embora trate o fenômeno sagrado, que não fique restrita aos territórios nacionais? Não penso em uma cultura só afro-brasileira, afro-cubana, afro-colombiana, penso em um mapa mundial. E esse mapa mundial é muito extenso, numeroso, multilíngue e multiestético.
Tenho uma noção muito clara e autocrítica de que muito do que escrevo não se encaixa em certos padrões dos discursos afrodescendentes do Brasil, da literatura negra e do pensamento da militância negra propriamente falando, e gosto dessa situação, de certo desconforto. Tenho falado que gosto de pensar não de um lado ou do outro da aresta, mas no fio da aresta. Por isso Exu é meu referencial importante. Acho que ele tem um campo de interpretação maior e mais dinâmico do que aquele que nós temos feito, que já não é pouco. Os modos como vemos Exu hoje são fascinantes, ele desconstrói toda a lógica social colonial do Brasil e aponta para uma utopia muito importante. Esse trabalho, feito por artistas, cineastas, é maravilhoso. Sou um entusiasta dessa linha de interpretação. Mas, em minha inquietude, me pergunto se não posso tirar dessa lógica de Exu o componente sagrado para jogar no campo difícil do mundo laico – a tese que está em Entre Orfe(x)u. Ao usar esse princípio de Exu fora do mundo religioso, tento construir uma lógica em que ele me dá, não o modelo literário para interpretar e analisar literatura afro-brasileira, mas literatura brasileira, literatura ocidental. Assim como pego um princípio do [Jacques] Derrida para pensar a literatura ou a sociedade, por que não posso pegar uma lógica exusíaca para pensar a cultura ocidental como um todo, mesmo quando não for afrodescendente? Então, é uma projeção bastante utópica que o ensaio tenta fazer e por isso é provocativo. Tenho que transformar isso em um conceito, não só em uma prática religiosa, mas em um conceito que me permita analisar, por exemplo, a ascensão do trumpismo nos Estados Unidos. Não tem nada a ver com o mundo afrodescendente, mas estou tirando um conceito, a lógica de Exu construir e desconstruir no caos, para ver como ela pode virar um conceito político e pensar relações políticas em um país tão importante como os Estados Unidos ou a ascensão da barbárie no Brasil recente. Então, é uma provocação que vai do literário ao filosófico, é um livro que intencionalmente não se fecha, se propõe a ser aberto para análise de temas que vão sendo incorporados. É extremamente autocrítico, incorpora as falhas da teoria como um componente dela mesma.
JT: Está claro que Exu continua com seu elemento principal, a encruzilhada.
EAP: A ideia é aproveitar essa base que fundamenta e, vou dizer algo que vai parecer uma heresia na lógica das religiões de matrizes afrodescendentes, tirar um pouco o Exu de dentro do mundo negro, fazê-lo passear fora dele. O que ele pode fazer? Assim como puxamos a filosofia ocidental para pensar questões negras, vou tirar o Exu do mundo negro para pensar o mundo ocidental.
Lucas Bandeira: Achei interessante você começar falando do livro do Antonio Candido, que de certa forma é um malogro. Ele vai estudar uma prática cultural, desiste e faz um trabalho antropológico. Pensando nos conceitos dele, acho que aparecem na sua pesquisa práticas culturais que não podemos analisar com os instrumentais teóricos da literatura, da teoria da literatura. Seriam sistemas que não são os que o Antonio Candido estuda. E talvez o Congado seja um deles, com um outro tipo de tradição, tradição oral, não escrita, outro cânone, e ainda tem a maneira como isso é influenciado pelas novas tecnologias.
EP: Essa é uma das estradinhas esburacadas que venho tentando perseguir. Discuto um pouquinho a possibilidade de se ter um outro cânone, um outro sistema. Em relação ao Congado, já publiquei isso em A saliva da fala: nota sobre a poética banto católica do Brasil, que saiu no mesmo ano da primeira edição do Exunouveau. Ele também tenta entender o Congado dentro da estrutura social brasileira, como um modelo religioso, uma prática do sagrado, que está relacionado a essas heranças de matrizes africanas, sobretudo de origem banto, e suas relações com o cristianismo católico. Em A saliva da fala, parto das análises dos próprios agentes do Congado, que são pessoas, na área urbana, de bairros periféricos, e, na área rural, de comunidades pobres. O Congado hoje mantém essa estrutura social. Há elementos que se agregam de fora, que é uma tradição também. O Congado sempre teve alguém de mais poder aquisitivo que ajuda na realização da festa. Geralmente são os reis festeiros, que ficam durante o ano e auxiliam a comunidade. Então tem uma aproximação com a classe média, às vezes com a classe alta da localidade. Ele já é por natureza esse ambiente socialmente meio híbrido, mas está nas mãos das comunidades mais pobres a prática toda do ritual, o discurso sobre ele. E foram esses discursos que, a partir da pesquisa com a Núbia, me deram algumas preocupações teóricas. Analisamos primeiramente uma lógica sociológica-antropológica em livros como os dos Arturos, mas sempre me interessei pelo aspecto literário. Há uma grande produção discursiva que vai de narrativas a cantos e esse material sempre fora trabalhado, inclusive por mim e pela Núbia, como elementos que usávamos para justificar teses antropológicas. Nunca analisamos de maneira autônoma esse manancial discursivo. No livro A saliva da fala, trabalho com as chamadas narrativas de preceito e com os canto-poemas, que foi o termo teórico que cunhei para me dedicar à parte poética dessa estrutura.
Esse corpus é muito grande, faço questão de frisar, porque em cada comunidade há um repertório textual muito expressivo e dinâmico. As comunidades têm a prática de expor alguns desses textos que são antigos e têm uma dinâmica de criação de novos, que vão incorporando inclusive elementos da contemporaneidade. Hoje, por exemplo, você pode acompanhar essas narrativas, esses cantos nas mídias sociais. Os devotos foram para lá. Esses agentes têm clara noção de que há no Congado um eixo fixo, que vão chamar de tradição, e um eixo móvel, que são as transformações sociais. Eles adotam uma perspectiva do que é tradição, e é importante pensar antropologicamente, que é uma espécie de contínuo com adaptações de matrizes africanas. O Chinua Achebe, um grande historiador nigeriano, tem uma definição de tradição muito importante para pensar o Congado e talvez as outras matrizes africanas no Brasil. Ele diz que ela é, de certo modo, dialética. Ao mesmo tempo que tem um eixo de preservação, tem um eixo de mudança. Isso de modo simultâneo. Não é preservar primeiro para mudar depois ou só preservar para nunca mudar. Ela é simultaneamente uma produção de discurso e uma prática cultural, em que o indivíduo e a comunidade preservam e mudam algo. Essa lógica dialética na estrutura do Congado é fascinante. A partir disso, quando trabalhei com a textualidade das narrativas dos canto-poemas, minha preocupação era: essa não é uma literatura que se encaixa na estrutura da literatura ocidental, muito menos na brasileira. Então, começam a surgir questões muito peculiares, não é só porque são textos inicialmente orais, e esse é o grande referencial deles, mas alguns começaram a formar um repertório escrito. Você pode ter uma antologia de textos escritos de todo esse material.
Primeiro, os pesquisadores se esforçaram em gravar e transcrever, então, havia uma espécie de coautoria entre o agente do Congado e o agente pesquisador, uma parceria mais ou menos como o Bruce Albert e o Davi Kopenawa em A queda do céu. Há uma textualidade dupla sendo criada. Depois passa a haver muitos casos de pessoas das próprias comunidades escrevendo as narrativas, passando a ter uma escrita interna. Dá para comparar inclusive com aquela que fazem os pesquisadores, porque há diferenças. Mais recentemente, começa a haver jovens dessas comunidades que se escolarizaram e chegaram ao meio universitário, e aí fazem dissertações, teses, produzem um outro discurso acadêmico, mas com uma linguagem voltada para a própria comunidade. Há um campo literário muito complexo, que vai ter que ser bem analisado, pois se aprofundou nos últimos anos. Se esse campo se constitui, a grande tensão é tentar se inserir na lógica discursiva literária brasileira, pois são textos estéticos, mas, ao mesmo tempo, não têm ainda uma recepção estética para eles, que querem se inserir como texto estético, porque ainda os olhamos como material antropológico. Os devotos, no entanto, têm clara noção de que o que produzem é material estético, é poema, é história, tem caráter ficcional, tem a estrutura do poético, por exemplo. Alguns elementos até lembram a estrutura da lírica moderna do Hugo Friedrich. São textos fechados, intencionalmente herméticos, alguns cantos são indecifráveis, o que dá margem para um processo interpretativo. Existe uma lógica literária.
No caso do A saliva da fala, minha preocupação foi um pouco essa: mais do que definir um outro cânone, acho cedo para falar disso, definir que há dentro da literatura brasileira um corpus literário que é estrangeiro, não só porque tem palavras de línguas, como quimbundo ou umbundo, não totalmente inseridas na língua brasileira, que ainda precisam de vocabulário para interpretá-las, de tradução. É literatura estrangeira dentro do português. É uma literatura estrangeira por esse aspecto e porque seus agentes não são reconhecidos como sujeitos autorais, todos sempre dizem que “é criação coletiva”. Muitos desses campos podem até ser criação coletiva, mas têm um dado fundamental: a apresentação desses cantos ou dessas narrativas é uma performance individual. Então consigo distinguir muito bem, só para citar aqui dois nomes, quando era um canto-poema tirado pelo seu Geraldo Arthur Camilo e quando era um canto tirado pelo irmão dele, o Antônio Maria da Silva. Havia um traço autoral, é assim até hoje, e os devotos sabem disso, reconhecem essas individualidades. Não sei como isso vai se encaminhar, porque agora nas redes sociais, quando aparece alguma imagem, filmagem, canto, narrativa, as pessoas identificam: “É fulano de tal fazendo a performance”. O caráter autoral está se tornando mais evidente, e acredito que, em algum momento, vá ficar mais específico até para quem fizer a pesquisa.
A ideia que propusemos é: nosso cânone literário está estabelecido, mas tem elementos nas fronteiras dele que frequentemente colocam em xeque essa limitação, que, sabemos bem, hoje não é tão rígida. No senso comum, falamos “cânone literário” e as pessoas pensam que é um campo definido de autores e obras, mas a prática mostra há um bom tempo que ele está mais flexível, no dia a dia da sala de aula, na crítica literária. Acho que hoje o momento é muito favorável para essas modalidades literárias, como tem sido com as literaturas indígenas, as textualidades de imigrantes que o Brasil começa a receber com mais frequência. É um fenômeno interessante ter o imigrante que escreve um livro do Brasil. Como categorizamos essa produção literária? As fronteiras estão muito mais próximas e os indivíduos circulando mais.
BR: O Edimilson apresentou a formação intelectual dele a partir do trabalho de campo, e isso é extremamente interessante, porque falamos de um poeta com essa formação e as coisas começam a se encaixar.
JT: Ele foi tragado pelo anthropological blues. Na verdade, essa ideia de captura, a agência de ir ao campo é o que o Dostoiévski fez, inspirado por Púchkin. O delicado é trabalhar na experiência os aspectos mais minúsculos da alma, o que a etnografia, em sua forma mais criativa, nos traz de sua forma clínica. Porque a etnografia é, sobretudo, a libertação da alma de quem a faz. Você faz com ela uma travessia inenarrável e nunca vai conseguir colocar em texto todo o conjunto da experiência que ela promove: fazer saltar para um platô absolutamente distinto daquele que o conduziu até o momento inicial da experiência.
Outro trabalho seu que gosto muito é o Signo Cimarrón. É um livro de poesia fantástico. Para nós, o cimarrón seria a tradução de quilombola. A experiência poética, que você transfigura ali, imediatamente me levou a imaginar seu trabalho de campo, o que ficou de seu contato com as experiências comunitárias. Fiquei muito tocado por sua preocupação com o signo, porque tem um momento semiótico muito forte na construção da sua travessia literária, que aparece no conjunto de vários autores que você compila e edita em Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Peço, então, que fale dessa experiência, que eu diria autopoética, correlacionando o momento da descoberta do signo e esse desvelamento da experiência no trabalho literário.
EAP: É um novelo complicado, mas, se puxarmos os pontos, se solta e depois se emenda. Tenho uma metáfora para minha trajetória: a ideia de um arborescer intelectual. Você tem núcleos de pensamento, formas de escrita, que vão se expandindo e, em algum momento, se conectam e depois se separam de novo. Então, para falar do comentário do Júlio, retomo um pouco essa experiência em um poema longo de O som vertebrado, que saiu ano passado pela José Olympio. É um poema central, uma operação clínica. Retomo os temas que me interessavam de uma viagem etnográfica clássica em um povoado no interior de Minas, não na perspectiva da análise antropológica ou histórica, mas em linguagem poética. É um poema extenso que relata a viagem de alguém a um povoado, com a intenção de coletar dados para um trabalho acadêmico, mas esse sujeito acaba tragado pela alma do lugar. É o anthropological blues em situação explícita. Se vai como coletor de dados para criar interpretação sobre o outro, retorna como quem se torna um enigma para si mesmo, porque a comunidade o ensina isso. Quando se inverte um pouco o trabalho da pesquisa, sobretudo no autorreconhecimento, uma parte dele implica você se entender como um conjunto de máscaras. No meu autorreconhecimento, vou entendendo que, na verdade, sou um conjunto de máscaras que se multiplicam, tanto quanto são os outros que, em tese, analisei. É por isso que também tenho pouca preocupação com a projeção pessoal, cada vez me preocupo menos com isso. A noção de linguagem poética para mim é mais importante do que a figura do poeta, o que é fruto desse processo etnográfico, o anthropological blues. Vou ao campo em busca de algo, ele me dá algo inesperado e isso me transforma. No fundo, a transformação de quem investiga talvez seja o ponto de contato com essas comunidades, que, em tese, eram o outro. O outro no fundo é também quem investiga. Isso está nos textos teóricos e era uma preocupação que eu e a Núbia tínhamos, trabalhávamos muito com a lógica do Clifford Geertz, da fala desde dentro e desde fora, e os trabalhos procuram refletir a fala desde dentro, admitindo as limitações da fala desde fora. Por isso, nossos trabalhos têm muito depoimento, muitas transcrições das falas das pessoas, que às vezes analisam a própria cultura e analisam nosso comportamento como investigadores. Você trabalha com a perspectiva horizontal e produção de sentido, uma colaboração entre o mundo das comunidades e o acadêmico. Nós somos só intermediadores desse processo.
Na linguagem poética isso também aparece muito. Está lá em Árvore dos Arturos, de 1988, que é um livro em percurso longo, e em A saliva da fala, de 1987. Isso se dá não só com as matrizes afrodiaspóricas, mas também com as culturas populares de um modo geral, que é o caso de O ausente, que tem muita referência cultural não afrodiaspórica. Esse grande repertório rural brasileiro é o mosaico de referências, o mundo ibérico, o mundo indígena, de imigrantes e de outras origens. Essa experiência de criação para mim vai funcionando à medida em que o eu, esse ego pessoal Edimilson de Almeida Pereira, vai ficando meio de lado para dar voz a esses outros “eus” que esse sujeito pode experimentar. Esse aprendizado é no trabalho de campo mesmo.
A história e a prática musical do jazz de algum modo me fascinam por isso também. Em tese, é uma experiência cultural e musical, em que a teorização de quem executa não é muito visível. Tanto é que o mote fundamental do jazz é o improviso. As culturas populares têm muito a lógica do improviso. O Congado tem a ideia do mote, da nota inicial, e depois o trabalho de criação no momento, na hora. Só que, nessa aparente desorganização teórica, o que se tem é outra proposição de percepção do mundo, ramificada. Em vez de pensar em uma composição com uma nota de origem, vou pensar em uma composição com um conjunto de origens que possa ir desdobrando ad infinitum. A jam session é um pouco isso, cada um vai pegando um fio dessa raiz plural e desenvolvendo até ter uma noção de um conjunto que vai ao infinito, quase um ser spiritual que está enraizado em uma lógica social. O jazz tem um fundo histórico, sabemos quem são os agentes, as condições de surgimento, mas, nesse afastamento do mundo real, são propostas lógicas de sentido transcendentes, mas que não me afastam totalmente da imanência. Quem tem um bom conhecimento do jazz sabe que, quanto mais me afasto do real, depois há um loop e volto ao real e de novo para essa partida contínua. Nas análises das culturas populares, percebemos muito isso, é um ponto que sempre comento. Se tenho um projeto futuro de investigação e de produção analítica, é escrever, com uma estrutura filosófica, a partir das matrizes culturais populares. O que [Martin] Heidegger fez em O ser e o tempo, gostaria de fazer com essas matrizes rurais, buscar as estruturações da linguagem que permitem esses sujeitos estruturarem sua relação consigo mesmos e com o outro, com a lógica da sociedade, com as hierarquias, e isso perpassa os falares das pessoas. Não está decodificado em um processo escrito, e talvez esse distanciamento seja necessário para produzir o pensamento escrito. Seria um trabalho estritamente filosófico, a partir das experiências de campo com as culturas populares, não mais antropológico ou histórico.
LB: Acho que a questão trazida pelas palavras que você usa (“travessia”, “variedade”, “ramificação”) fica bem clara em seus poemas, por exemplo, “Odisseia”, que está no último livro. Parece que tem um mundo inteiro ali, referências à Odisseia, referências locais, além de uma pluralidade de ritmos. Isso lembra de novo o jazz, ele tem um improviso, mas a partir da forma. Se não tiver uma forma ali, o improviso não acontece, mesmo o jazz mais livre precisa de uma forma. A leitura da sua poesia me passa isso: uma variedade de ritmos longos e curtos, às vezes se invertendo, que dão a impressão de improviso, mas ao mesmo tempo, quando se lê com calma, vê que tem uma forma permitindo o improviso. A outra coisa interessante é o primado da linguagem que está em versos como “o antídoto contra a língua dos homens”, em busca de uma certa linguagem só pedra, algo meio João Cabral, que tem a ver com a ideia de certa exigência de autonomia da linguagem poética.
EAP: Tenho falado um pouco mais do meu processo de escrita. Isso é muito recente, então estou aprendendo a olhar e a traduzir o que trabalhamos. Estou para reeditar um livro de entrevistas que publiquei em 2013, o Blue Note: entrevista imaginada, que agora revisei e ampliei. Ele traz dois ensaios no final, que, na verdade, são duas conversas como essa que tivemos e que transcrevi depois, como entrevista. Nele, tem algumas dessas chaves de leitura que você comenta. Tento transitar nesse mapa e inclusive, uma coisa que sempre gosto de frisar, as matrizes afrodescendentes são um foco, um conjunto mais amplo de outros que tento abarcar, sem hierarquizar. Talvez seja o que me dá muito trabalho, tenho que escrever muito para poder abarcar esses focos todos. Isso é algo que gosto de deixar sempre bem evidente, até porque esses focos depois vão se interligar. Toda essa discussão sobre as matrizes africanas só faz sentido quando discuto, por exemplo, em um livro como Melro, que saiu agora, o processo de fracionamento da imigração mais contemporânea que abarca muitos indivíduos, afrodescendentes inclusive. Ou seja, infelizmente não estou sozinho nesse barco da dispersão, há outros indivíduos aí também. Mas, para mim, todo esse processo de reflexão de temas que abordamos aqui e outros mais só são capturáveis a partir de uma estrutura de linguagem que não pode ser – para mim pessoalmente – a nossa linguagem diária. É uma linguagem literária. Essa busca por uma sofisticação é proposital. Minha obra não é intuitiva, muito pelo contrário, mesmo quando ela toca temas que são da alma, da transcendência, do espírito, da experiência, essa tradução literária é ficcional, porque a linguagem é pensada para chegar a esses resultados. Vou um pouco na contramão da linguagem do confessionalismo. É uma escolha estética. Hoje as questões do signo e da semiótica também são importantes.
Não há nada, em nenhum texto meu, que não passe por uma prévia reflexão sobre a materialidade da linguagem, seus desdobramentos, suas limitações, a necessidade de reinventar outras formas de linguagem, como fazer um romance que claramente não é um romance. Eles ganharam prêmios como romances, mas tenho plena consciência de que não são romances, porque não queria fazer o romance na lógica habitual que conhecemos. E olha que O ausente é menos radical, Um corpo à deriva é mais radical. Tanto é que são livros de circulação pequena. É uma opção estética, porque entendo que essa minha linguagem, principalmente a literária, é uma linguagem de ficção. Mesmo que, às vezes, nos permita chegar a experiências reais, a identificações com sentimentos reais, o ponto de partida inicial é justamente a recusa a essa relação osmótica do leitor com o texto, a essa relação direta entre um escrito e aquilo que o leitor quer. Minha poesia é como se fosse uma bicicleta com roda quadrada, porque minha intenção é fazer com que tanto a autoria quanto o receptor ou a receptora do texto trabalhem a produção de sentido. A linguagem é realmente contrária a essa linguagem natural do humano, contrária a essa linguagem da descrição realista e imediata. Não tenho nada contra essa perspectiva de criação, porque ela continua necessária. Diante de tantas barbaridades sociais que produzimos, há um campo literário que ainda tem que denunciar, decifrar, decodificar esse processo. Claro que em algum momento faço isso, mas em boa parte é uma linguagem literária que tende a jogar para a recepção, minha inclusive, um esforço intelectual de interpretação, que é onde me aproximo da antropologia interpretativa de Geertz. O fato antropológico só está dado quando é interpretado tanto pelo agente que o pratica quanto pelo agente que o analisa. E, por ser interpretativo, é contínuo, renovável, o que tira das culturas ditas tradicionais a marca pejorativa de que estão paradas no tempo, nunca estiveram, estão sempre se movimentando.
JT: Fiquei perplexo diante do canivete suíço que você trouxe. O cabo desse canivete é um tema que percebo há décadas, a questão do ritmo. O ritmo na verdade vai aparecer na sua obra, no seu relato, o tempo todo. Na sua evocação da experiência, aparece como o grande elemento nutridor da sua imaginação, da sua experimentação literária, o ritmo das suas múltiplas variedades. E o ritmo é isso, não tem início nem fim, é uma execução litúrgica. Participei de muitas jam sessions em Chicago, exatamente no South Side, e uma das coisas que mais me chamavam a atenção era a sensação do transe que percebia não só nos executantes, mas na audiência. A própria movimentação do corpo, todos no mesmo sentido, ficava fascinado e quase levitava. Que coisa rítmica está promovendo aqui uma tessitura desses corpos que nem sabem disso, mas estão no elã de um processo incrível? Sua obra é uma espécie de evocação do ritmo, como uma grande descoberta epistêmica e ontológica para uma reflexão contemporânea necessária. Ainda não encontrei uma grande reflexão sobre o jazz atravessando inúmeras áreas do conhecimento, e ao mesmo tempo concreta, movimentando a nossa capacidade de reflexão diante daquilo que nos apavora ou nos entusiasma. Não só percorrendo as ruas de favelas aqui no Rio, como Mangueira, na Baixada Fluminense, mas no Harlem, via essa semelhança entre territórios diferentes e o ritmo, construindo os modos de caminhar, os modos da culinária, os modos de percepção.
EAP: Podíamos deixar como gancho essa questão do ritmo, porque meu segundo livro se chama Ô Lapassi & outros ritmos de ouvido. A rítmica realmente me acompanha. Um detalhe interessante: a minha escola de ritmo é a do Luiz Gonzaga, porque ele tocava de ouvido e confessou isso em várias entrevistas. Então o modo de captar o ritmo está fora da formalidade musical, é sinal de que há campos diferentes de experimentação rítmica, o que boa parte dos grupos e das coletividades experimenta. Talvez por isso essa universalidade, no Harlem, na periferia do Rio, no interior do Brasil. Isso vai marcar o grande fluxo humano que se move pela rítmica. Ela não passa só pela questão de uma etnia, isso é que me interessa no ritmo, está muito identificada com certo grupo ou outro, mas procuro uma universalidade mesmo. Eu sei que a palavra é meio gasta.
Minha obra tem essa lógica, tanto nos livros de ensaios quanto nos poemas existem muitas retomadas de pontos ou de notas que ficaram soltas, espero algum dia colocar isso mais ou menos junto para soar e ver que ritmo vai dar. Nos dias de hoje, essa questão do ritmo é fundamental, porque, do mesmo modo que a experiência rítmica nos leva para experiências assombrosas, como você lembrou muito bem com o transe que te tira de si e te joga em um abismo imprevisível, que o jazz vai nos levando às vezes até para um lado bacana que pode ser muito boa a viagem, o deslocamento, é um abismo da consciência. Diante de um mundo tão pragmático como esse que nós temos hoje, um mundo tão alusivo à produtividade e ao trabalho, essa lógica de um certo transe prazeroso me interessa muito. Essa lógica de, de repente, a queda do abismo ser também prazerosa, ainda que narcótica por um curto período. As sociedades precisam disso de tempos em tempos. Não é por acaso que nós estamos estendendo o tempo do Carnaval, das festividades todas, cada um de nós está fazendo uma festa particular. Acho que tem um eixo de pensamento para pensar até uma outra estruturação social pós-pandêmica muito necessária, porque os nossos corpos ficaram segregados, todos de modo geral. E reduzindo a jornada de trabalho cada vez mais. Isso me faz lembrar certo caráter subversivo do ritmo. Penso em uma frase do seu Geraldo, dos Arturos, quando o conheci em 1987: “A gente dança por dentro”. Até hoje me marca muito essa expressão dele. Por fora você é um sujeito compelido à produtividade, à obediência, mas o seu ritmo interno continua marcando seu modo de ser no mundo, porque ele é rebelde, é contra a estrutura imposta. Esses ritmos internos são muito interessantes, mais até do que esses visíveis que percebemos, que são fundamentais, mas outros estão se produzindo internamente. Eles têm linguagem, a questão é saber que linguagem é essa. O discurso artístico é muito importante nessa hora. Vejo cada vez mais a liberdade do discurso artístico, literário, como uma questão fundamental. Tenho falado em devolver a literatura à literatura, para poder experimentar, errar, testar. Fazer inclusive mais do que afirmações, mais do que propor assertivas, sugerir enganos, trabalhar na margem de erro. Está até na epígrafe de O som vertebrado, um poema de Orides Fontela, em que ela diz o seguinte: “margem de erro: margem de liberdade”. Temos que pensar no texto literário, nos enganos dele, com uma margem de liberdade que nosso tempo hiperprodutivo não permite mais. Esses ritmos são subversivos, os dos corpos estão aí em evidência, mas reprimidos muito rapidamente, haja vista o deputado do Sul que propôs criminalizar o hip hop. Esses ritmos assustam, mas há também os internos, que estão querendo sair da caverna para podermos reconhecê-los melhor.
* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Julio Cesar de Tavares é professor do Departamento de Antropologia da UFF e coordenador do Laboratório de Etnografia e Estudos e Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC/PPGA/UFF) e do Laboratório de Estudos Negros (LEN/PACC/Letras/UFRJ); Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/Letras/UFRJ, com bolsa da Faperj.
Tornou-se lugar comum, contemporaneamente, fazer referência à expressão “disputa pela narrativa” para caracterizar um “embate de versões” entre atores sociais e discursivos colocados em campos opostos. No entanto, como nunca, essa expressão tem sido empregada para fazer referência ao forte enfrentamento discursivo que circunscreve a política brasileira dos últimos tempos. Neste último caso, a “disputa pela narrativa” atrela-se à compreensão de um processo em que cada ator de um campo político e ideológico procuraria impor sua própria história sobre os fatos em questão, na busca de atingir o máximo de corações e mentes possível e, assim, sobrepor uma suposta “verdade” sobre uma outra – a de seus adversários.
No caso específico do campo político brasileiro, assistimos hoje a uma profunda polarização político-partidário-ideológica, a um acirramento de posições antagônicas que proporciona a emergência de embates calorosos, abrangendo questões variadas, que vão desde a área econômica até questões atreladas a valores morais, costumes e direitos dos grupos minoritários. Afloram discursos intolerantes, estigmas e estereótipos, especialmente nas redes sociais.
Esse cenário é marcado pelo recrudescimento de uma direita mais radical no Brasil (em substituição à centro-direita, antes ocupada pelo PSDB e seus partidos aliados), que tem no ex-presidente Jair Messias Bolsonaro seu mais fiel expoente. Seus representantes mais conhecidos advogam uma pauta liberal na economia e conservadora nos costumes, evocando, muitas vezes, a memória discursiva dos valores que nortearam a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, uma manifestação pública de grupos conservadores, antipopulistas e anticomunistas contrários às reformas de base propostas pelo então presidente da República, João Goulart (1961-1964), e que serviram de base para certa legitimação por parte de uma determinada camada da sociedade brasileira ao Golpe de 1964. A esse respeito, observamos a constante publicação, por grupos bolsonaristas, de insígnias com o número 22 (número do partido do então pré-candidato) e as inscrições “Deus”, “Pátria”, “Família”.
É nesse contexto que entendemos posições e discursos que defendem a volta do regime ditatorial. Também faz parte do referido processo uma atitude no mais das vezes negacionista perante as dificuldades enfrentadas pelas minorias e grupos excluídos socialmente no Brasil (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, dentre muitos outros), alegando sua “criação” pelos governos de centro-esquerda que antecederam o último governo e atribuindo a culpa aos discursos que denunciam sua existência, algo muito comum nas políticas do não dito que imperavam no Estado Novo, e à própria promulgação da Constituição de 1988. Aqui, observa-se alguma rejeição aos sistemas de cotas e aos programas de transferência de renda, atrelados à opção prioritária pela erradicação da pobreza extrema.
Do outro lado desse espectro está a centro-esquerda, representada, nas eleições do ano passado, principalmente pela candidatura de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, apoiada fortemente pelos movimentos sociais. De forma antagônica à posição de direita, a centro-esquerda advoga uma maior ingerência do Estado na economia, a fim de buscar corrigir as desigualdades sociais existentes; defende as garantias das liberdades individuais e, dentre muitos outros aspectos, as políticas públicas voltadas especificamente para as minorias e para a superação da pobreza e da extrema pobreza.
Na verdade, o que essas posições divergentes fazem é colocar em circulação aquilo que Gee (2005, p. 131) denomina “CapitalD Discursos”, fazendo referência aos grandes discursos que circulam na sociedade, uma vez que grande parte das imagens e representações de determinados valores morais e ideológicos emerge por meio dos discursos que se apresentam como associações socialmente aceitas “entre formas de uso da linguagem, outras expressões simbólicas e artefatos, de pensamento, sentimento, acreditar, valorizar e agir que pode ser usado para se identificar com um membro de um grupo significativo ou ‘rede social’”. Tais discursos, repetidos tanto por práticas institucionais quanto não institucionais, são amplamente colocados em divulgação por meio de uma variedade de modos semióticos, estabelecendo relações de poder e determinando a “ordem dos discursos” (Foucault, 1996).
Para Lynch (2019), pesquisador que trabalha no campo das ciências políticas, o conceito de cultura política está completamente atrelado à noção de discurso, o que respalda nossa opção por associar, às análises advindas dos estudos do discurso, especialmente a narrativa, pesquisas realizadas no âmbito das ciências políticas. De acordo com o autor, entende-se, por cultura política,
o conjunto de discursos ou práticas simbólicas por que tais demandas são efetuadas, conferindo identidades aos indivíduos e grupos, indicando-lhes os limites de suas comunidades e definindo as posições a partir das quais podem demandar. Uma cultura política é atravessada por discursos, práticas simbólicas ou ideologias orientadas por diferentes valores e/ou interpretações da realidade. Os fatos políticos precisam ser interpretados à luz dos valores, crenças, interesses e objetivos dos diversos segmentos de que a sociedade é composta (Lynch, 2019, p. 80-81).
Nesse sentido, segundo Freeden (2003, p. 32), as ideologias ou discursos políticos são, portanto, conjuntos de
ideias, crenças, opiniões e valores que exibem um padrão recorrente; que possuem grupos significativos como seus portadores; competem pelo fornecimento e controle das políticas públicas, com o objetivo de justificar, contestar ou alterar os processos e arranjos políticos e sociais de uma comunidade política.
Retornando à questão da “disputa pela narrativa” apontada no início deste trabalho, cumpre destacarmos que, embora essa expressão seja empregada amiúde, não encontramos, nem na literatura corrente derivada dos estudos acerca de narrativa em particular, nem no campo das análises do texto e do discurso em geral, estudos que versem sobre a narrativa em contextos de polarização, conforme proposto por esta pesquisa, o que justifica sua execução. Segundo Borges e Vidigal (2018, p. 54), coincidentemente, não se encontram trabalhos relacionados à polarização no âmbito das ciências políticas brasileiras. De acordo com os autores, “de fato, o tema da polarização não foi objeto de estudos mais sistemáticos na ciência política brasileira”.
Nesse contexto, este trabalho, enquanto um recorte de uma pesquisa maior, procurará analisar e descrever as formas e funcionalidades das narrativas em contextos de profundo embate de posições político-ideológicas, selecionando, para tal, quatro interações específicas: as entrevistas concedidas pelos candidatos Jair Messias Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva ao Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, respectivamente transmitidas nos dias 22 e 25 de agosto de 2022, além dos debates promovidos pela emissora entre os candidatos à eleição presidencial, realizados respectivamente em 29 de setembro e 28 de outubro de 2022.
A opção teórica pela Análise da Narrativa
Antes de mais nada cumpre-nos, agora, deixar claro o que entendemos por “narrativa” e quais são, de fato, suas imbricações com fatores de natureza ideológica e identitária, justificando, assim, nossa escolha pela Análise da Narrativa para esta empreitada. Na verdade, não será o sentido corriqueiramente atribuído ao termo “narrativa” que embasará a presente pesquisa. O que faremos é ecoar a posição assumida contemporaneamente por muitos pesquisadores nas ciências humanas em geral e na Linguística Aplicada em particular que têm compreendido a narrativa como a forma de organização básica da experiência humana, a partir da qual se pode estudar a vida social. Para autores como Sarbin (1986), a narrativa pode ser considerada como um artifício organizador que ressitua a construção do “eu” como um fenômeno social (a maneira como nos construímos no mundo social), integrando cultura e discurso na interpretação da sociedade. De acordo com Biar, Orton e Bastos (2021), ao narrar, os narradores vão dando forma ao mundo social, à medida que o escrevem, o discutem e o contestam, e, dessa maneira, interessa aos analistas da narrativa o que os atores sociais fazem ao narrar em histórias. Nesse sentido, “narrar” seria “uma prática discursiva constitutiva da realidade”, ou, como disse Foucault, uma prática que “forma os objetos dos quais fala”.
As primeiras pesquisas sobre narrativa foram elaboradas por Labov e Waletsky (1968) e Labov (1972), assentadas em uma concepção de narrativa enquanto um método de se recapitular experiências passadas. Nas palavras de Labov (1972, p. 37), “a narrativa será considerada (…) uma técnica para construir unidades narrativas que correspondem à sequência temporal daquela experiência”.
Labov (1972) apresenta uma proposta de estruturação de narrativas bem formadas, composta basicamente pelos seguintes itens: 1) “sumário”: resumo inicial, com introdução do assunto e da razão por que a história é contada; 2) “orientação”: identificação de personagens, tempo, lugar e atividades narradas; 3) “ação complicadora”: sequenciação temporal de orações narrativas, em que o narrador efetivamente conta o que aconteceu (de acordo com Labov, se ao menos duas orações no passado estiverem sequencializadas, remetendo a um passado temporal, se está diante de uma narrativa); 4) “avaliação”: explicitação da postura do narrador em relação à narrativa, bem como da razão de ser da narrativa; 5) “resultado”: desfecho da narrativa, em que o narrador revela o que “finalmente aconteceu” (Labov, 1972, p. 370); 6) “coda”: encerramento do relato com uma síntese, avaliação dos efeitos da história ou retomada do tempo presente.
Embora esse modelo dito “canônico” continue a influenciar muitas pesquisas na área, as propostas atuais, ditas “não canônicas”, vêm apontando críticas e revisões ao modelo laboviano. Se as narrativas estudas por Labov constituíam-se de relatos longos, relativamente ininterruptos e conduzidos por eventos passados ou pela história de vida do entrevistado, estudos contemporâneos sobre narrativa vêm ampliando esse trabalho pioneiro, expandindo suas definições formais e passando a incluir a análise de segmentos não canônicos, compostos por “narrativas breves” (cf. Bamberg e Georgakopoulou, 2008).
As narrativas breves são “histórias curtas, com tópicos específicos, organizadas em torno de personagens, cenários e de um enredo” (Riessman, 2001, p. 697), as quais podem se aproximar ou se distanciar do modelo laboviano. Podem versar sobre histórias muito recentes ou ainda sobre desdobramento de eventos, encaminhando uma orientação narrativa sobre entendimentos locais e situados dos narradores.
Faz-se imprescindível destacar que, de acordo com Bamberg e Georgakoupoulou (2008), a narração de pequenas histórias cumpre, sobretudo, um trabalho retórico: elas apresentam argumentos, contestam e desafiam outros pontos de vista e geralmente estão sintonizadas a propósitos locais e interpessoais, configurando-se em aspectos do uso situado da linguagem. Ainda segundo os autores, as narrativas breves podem versar sobre pequenos incidentes que podem (ou não) ter realmente acontecido, mencionados para apoiar ou elaborar determinado ponto argumentativo.
Nesta mesma linha, Schiffrin (1996) sustenta que o ato de se contar uma história pode frequentemente ter o objetivo de argumentar em favor de determinada opinião, de forma objetiva ou subjetiva, uma vez que permite ao falante jogar com fatos que são enquadrados dentro de uma realidade reportada, de maneira a contextualizar sua própria posição.
Por fim, de acordo com o estudo socioconstrucionista empreendido por Shi-Xu (2000) (que também versa, dentre outros aspectos, sobre o ato de narrar enquanto recurso argumentativo), os fatos, descritos e/ou narrados, atuam na argumentação como um frame interpretativo para a opinião em questão, amparando a opinião na coletividade cultural, aqui empregada como base de realidade. Nesse sentido, os fatos da realidade social, muitas vezes organizados em formas constituídas por pequenas histórias, são usados para sustentar opiniões, fundindo os significados subjetivos e objetivos da argumentação.
Em um âmbito maior, coloca-se a pertinência da Análise da Narrativa para a abordagem de questões atinentes à construção identitária e à interação social, questões estas que têm sido entendidas, contemporaneamente, como centrais em estudos como os de Mishler (2002), Riessman (2008), Bastos (2005), Bastos e Biar (2015), dentre outros. Nesse sentido, conforme bem lembra Bastos (2005, p. 81), as escolhas que fazemos ao nos introduzirmos como personagens em certos cenários, em meio a outros personagens e ações, se dão em função do modo como nos posicionamos em relação a esses elementos e nos afiliamos a certas categorias sociais, mesmo que contingencialmente, sendo parte de um processo de apresentação e interpretação de pelo menos algumas dimensões de quem somos: “ao contar estórias, situamos os outros e a nós mesmos numa rede de relações sociais, crenças, valores, ou seja, ao contar estórias, estamos construindo identidades”. A partir dessas histórias, podem-se elaborar articulações com o contexto macro-contextual ou sócio-histórico, conforme proposto por esta pesquisa. Afinal, se, conforme afirma Lynch (2016, p. 81), “os fatos políticos precisam ser interpretados à luz dos valores, crenças, interesses e objetivos dos diversos segmentos de que a sociedade é composta”, a Análise da Narrativa pode oferecer uma valiosa chave de interpretação para o pensamento político brasileiro contemporâneo.
Argumentação, polêmica e dissenso
Apontamos, na seção anterior, em consonância com diversos autores de Análise da Narrativa, para um imbricamento entre “narrativas breves” e “argumentação”. Deixamos claro que entendemos, em sintonia com Bamberg e Geogakoupalou (2008), que narrativas são meios construtivos e funcionais para a criação de personagens no espaço e no tempo, os quais são instrumentais para a criação de posições na fala-em-interação. Agora, faz-se necessário apresentarmos o que entendemos por “argumentação” e quais são seus possíveis pontos de contato com o emprego de narrativas na fala-em-interação.
Foi apenas em tempos recentes, com os trabalhos de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), que os estudos sobre argumentação ganharam novo impulso. Tentando aliar os principais elementos da pioneira Retórica de Aristóteles a uma visão atualizada do assunto, os autores elegeram a adesão do interlocutor como a mola-mestra do estudo da Teoria da Argumentação, de forma a definir a argumentação como “o conjunto das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas ao seu assentimento” (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996, p. 4).
No Tratado da argumentação, Perelman e Olbrechts-Tyteca (obra citada) elencam um inventário exaustivo dessas “técnicas argumentativas”, sob forma de esquemas de argumentos. Para os mestres do Tratado, as técnicas argumentativas se dividem em dois grandes grupos: os argumentos quase-lógicos e os argumentos baseados na estrutura do real.[1]
Paralelamente, faz-se importante retomar a noção aristotélica de provas “objetivas” e “subjetivas” da retórica, associadas aos conceitos de logos, de um lado, ethos e pathos, de outro. De acordo com Declerq (1992, p. 58), enquanto as provas objetivas definem a argumentação “pela capacidade persuasiva interna da linguagem”, as provas subjetivas, subdivididas em provas éthicas e pathéticas, relacionam-se “aos sujeitos da comunicação que se definem na situação de fala” (Declerq, obra citada, p. 45): a prova éthica “é relativa ao orador e à imagem moral que ele constrói dele mesmo ao falar”; a prova pathética concerne “ao auditório e às emoções que o orador desperta nele por seu discurso” (Declerq, obra citada, p. 45).
Ao lado desses estudos, caracterizados por entender a argumentação como um ato linguageiro marcado basicamente pela busca da adesão dos interlocutores às teses apresentadas ao assentimento, desdobramentos recentes, como aquele promovido pela Análise Argumentativa do Discurso (doravante AAD), proposta por Amossy (2017, 2018), têm alargado a noção de adesão do interlocutor para outras visadas, mais amplas e adequadas à proposta apresentada pela presente pesquisa.
Embora a concepção clássica de retórica e argumentação enquanto “arte da persuasão” continue a influenciar fortemente a construção teórica da AAD, Amossy (2017) aponta que, no entanto, para esses autores, a busca pelo acordo é privilegiada e “as dissensões persistentes são consideradas como perturbações à harmonia social e entraves ao processo de tomada de decisão” (Amossy, obra citada, p. 230). Segundo a autora, nem sempre o acordo entre teses antagônicas é possível, e, por isso, o desacordo não é sinônimo de fracasso, mas, na verdade, marca constituidora das sociedades democráticas, pautadas na diversidade de saberes e vivências, o que torna sua análise indispensável:
Se, de fato, o conflito é inevitável em nossas democracias pluralistas e se o cerne da democracia não é o consenso, mas a gestão do dissenso, então a polêmica como confronto verbal de opiniões contraditórias que não leva a um acordo utópico deve ser reconsiderada em sua profundidade. É, por conseguinte, uma retórica do dissenso que é necessário desenvolver, na qual a polêmica deve ter lugar de destaque (Amossy, obra citada, p. 38).
Nesse contexto, concebe-se que o discurso polêmico já nasce dicotomizado, uma vez que os participantes do confronto verbal público laçam suas teses no mais das vezes sem o propósito de negociar a busca por um consenso que ultrapasse as diferenças. Nesse contexto, o empreendimento da persuasão pode estar direcionado a um terceiro, um auditório sem direito a fala que, em princípio, pode aderir a uma das teses e, consequentemente, intensificar a polarização social, como no caso dos discursos políticos acionados em situações de debates eleitorais televisivos e de entrevistas a veículos de comunicação concedidas por candidatos analisados neste artigo.
Em sua obra intitulada Apologia da polêmica (2017), Amossy apresenta a polêmica como uma modalidade argumentativa fundamentada no dissenso, uma “manifestação discursiva sob forma de embate, afrontamento brutal, de opiniões contraditórias que circulam no espaço público” (Amossy, obra citada, p. 53) em que o “antagonismo das opiniões apresentadas no seio de um confronto verbal é sua condição sine qua non” (Amossy, obra citada, p. 49). Desse modo, o discurso polêmico é marcado por um contradiscurso que lhe constitui; não basta que um locutor mobilize argumentos para sustentar a sua tese: ele necessita, também, trazer argumentos que refutem/desqualifiquem a tese de seu adversário ou a própria pessoa que assume o papel de adversário. Ou seja, a natureza discursiva da polêmica impossibilita qualquer tipo de acordo, pois, “se há choque de opiniões contraditórias, é porque a oposição dos discursos, na polêmica, é o objeto de uma clara dicotomização na qual duas posições antitéticas se excluem mutuamente” (Amossy, obra citada, p. 53).
Entende-se, por dicotomização,
respostas antagônicas que sejam apresentadas como duas opções antitéticas que se excluem mutuamente […] é branco ou preto, e o polemista insiste na boa escolha a fazer em tal circunstância. É essa oposição radical que diferencia a polêmica do debate contraditório onde as opções divergentes são postas à prova da discussão (Amossy, obra citada, p. 232).
Além da dicotomização, a polêmica instaura uma polarização evidenciada pela divisão de dois grupos que se mantêm em campos opostos, com cada grupo apresentando uma determinada identidade diante da questão polêmica de interesse público. Mais especificamente, trata-se de um embate entre os sujeitos que, ao defenderem suas teses, se colocam em pontos opostos da argumentação e se organizam tendo em vista os valores coletivos a que se filiam. Temos, nesse caso, a “polarização”. Diferentemente da dicotomização, que é uma operação abstrata, a polarização é um fenômeno necessariamente social. Trata-se de um processo complexo através do qual um público extremamente diversificado se funde em dois ou vários grupos, fortemente contrastados entre eles e mutuamente excludentes, que partilham os valores que o argumentador considera fundamentais. De uma forma mais clara, de acordo com Amossy (obra citada, p. 232),
A polarização tem implicações identitárias. Trata-se de se aliar a um grupo constitutivo de uma identidade, ou suscetível de reforçá-la. Quanto mais a adesão a uma determinada tese é constitutiva de uma identidade compartilhada, mais o indivíduo tenderá a apegar-se a ela: a maneira pela qual percebe a si mesmo, a maneira pela qual os outros o veem e a medida em que participa fortemente de uma comunidade, é que estão em jogo. Encontramo-nos então numa lógica de divisão social, de defesa identitária e de combate pelo triunfo dos valores e opções de seu grupo.
Já que a polarização é marcada para além das divergências pontuais e se coloca no campo social mais profundo, o ideológico, os atores envolvidos assumem papéis diferentes, “de proponente e oponente”. Dessa forma, não se trata mais de uma interação entre dois participantes com pontos de vista divergentes, mas de representantes de grupos sociais que defendem posições argumentativas incompatíveis e antagônicas, gravitando em torno de bandeiras que clamam ao agrupamento, o que torna a solução para o embate difícil, fundamentando a polêmica em uma estrutura actancial. Assim sendo, tal estrutura não se caracteriza como flexível, com sinalizações de mudanças de posições argumentativas, mas de identificação de diversos outros participantes à posição defendida por cada um dos debatedores, num fenômeno identitário destes com o grupo que os representa.
Análise dos dados
Para Charaudeau (2006, p. 39), embora o discurso não esgote, de forma alguma, todo o conceito político, “não há política sem discurso”. O discurso é constitutivo da política. Tomando a linguagem como o dispositivo que motiva a ação, a orienta e lhe dá sentido, o autor afirma que, por conseguinte, “a política depende da ação e se inscreve constitutivamente nas relações de influência social, e a linguagem, em virtude do fenômeno de circulação dos discursos, é o que permite que se constituam espaços de discussão, de persuasão e de sedução nos quais se elaboram o pensamento e ação políticos” (Charaudeau, obra citada, p. 39). Justifica-se, assim, o estudo do político pelo viés do discurso.
Ainda de acordo com o autor, o discurso político, como ato de comunicação, concerne aos atores que participam diretamente da cena de comunicação política, e seu desafio consiste em influenciar as opiniões a fim de obter adesões, rejeições, consensos ou dissensos. Ele resulta de aglomerações que estruturam parcialmente a ação política (como debates e declarações em entrevistas televisivas) e constroem imaginários de filiação comunitária, em termos de um comportamento comum, mais ou menos ritualizado. Nesse contexto, instituem-se comunidades múltiplas de pensamento e de ação, intercambiada entre os membros do grupo, como uma espécie de “cimento identitário” (Charaudeau, obra citada, p. 46).
Considerando a complexidade da estruturação do campo político, Charaudeau distingue três lugares de fabricação do discurso político: um lugar de governança, um lugar de opinião e um lugar de mediação. “No primeiro desses lugares se encontram a instância política e seu duplo antagonista, a instância adversária; no segundo, encontra-se a instância cidadã e, no terceiro, a instancia midiática” (Charaudeau, obra citada, p. 55). De acordo com o autor,
Pode-se dizer que a instância midiática se encontra em um duplo dispositivo: de exibição, que corresponde a sua busca por credibilidade, e de espetáculo, que corresponde a sua busca por cooptação. Esta última adquiriu uma posição dominante no circuito de informação a ponto de não se saber mais qual crédito conceder à instância midiática. Isso não impede que o discurso que a justifica avance em seu dever de informar e promover o debate democrático, de maneira a ser reconhecido seu direito de fazer revelações e de denunciar. O discurso da instância midiática encontra-se, portanto (…), entre um enfoque de cooptação, que leva a dramatizar a narrativa dos acontecimentos para ganhar a fidelidade de seu público, e um enfoque de credibilidade, que o leva a capturar o que está escondido sob as declarações dos políticos, a denunciar as malversações, a interpelar e mesmo acusar os poderes públicos para justificar seu lugar na construção da opinião pública (Charaudeau, 2006, p. 63; grifos nossos).
Na realidade, a instalação definitiva da sociedade do espetáculo – vigente nos últimos quarenta anos, acompanhando as características das sociedades pós-modernas, derivadas da radicalização dos traços da modernidade – reserva, ao discurso político trabalhado pelas mídias, facetas um tanto distintas da materialização observada nos períodos anteriores: agora, o tratamento dado a esse discurso é caracterizado pela “espetacularização”, devidamente adequada aos padrões midiáticos pós-modernos, o que as leva a atribuir os efeitos de sentido de mentira e segredo ao discurso político.
Nesse contexto, as mídias passam então a se apresentar pretensamente como instituições que cumprem uma “função social imprescindível, propriamente a de desvelar criticamente as mentiras e os segredos políticos” (Piovezani Filho, 2003, p. 54): “visualiza-se, pois, a atuação da mídia, em função de sua suposta ‘politização’, como ‘porta-voz’ daqueles que, alijados do poder (que, paradoxalmente, eles mesmos concederam), impossibilitados de agir efetivamente no espaço político, devem contentar-se com a mera assistência do desenrolar das ações ali empreendidas” (Piovezani Filho, obra citada, p. 58).
Dessa forma, assumem a função de organismos especializados em responder a uma demanda social por dever de democracia, atribuindo-se aos jornalistas o papel de agentes que buscam tornar público aquilo que seria ignorado, oculto ou secreto, “em benefício da cidadania”. Conforme bem aponta Charaudeau (obra citada, p. 17), “enquanto se admite no mundo político, de maneira geral, que o discurso aí manifestado está intimamente ligado ao poder e, por conseguinte, à manipulação, o mundo das mídias tem a pretensão de se definir contra o poder e contra a manipulação”.
É nesse sentido que podemos entender muitos dos aspectos da performance discursiva dos entrevistadores William Bonner e Renata Vasconcelos, da Rede Globo de Televisão, durante as entrevistas com os principais candidatos à presidência em 2022, no Jornal Nacional, conforme podemos observar em (1), (2):
(1) [William Bonner]: Candidato, (…) em 2018, o senhor candidato à Presidência, o senhor se apresentava como candidato da antipolítica e o candidato contra o centrão. Na convenção do seu partido, o general Heleno chegou a cantar “se pegar,… se gritar pega centrão, não fica um”, trocando a palavra “ladrão” por “centrão” etc., isso ficou muito famoso. Hoje, a verdade é que o centrão, ele é a base do seu governo. Na semana passada, quando o senhor estava saindo lá do Palácio do Alvorada, inclusive o senhor enfrentou lá um incidente com aquele youtuber, que foi cobrar do senhor essa aliança do seu governo com o centrão. Eu pergunto: por que eleitores como aquele, que se sentem traídos pelo senhor, acreditariam nas suas promessas de agora?
[Jair Bolsonaro]: Você está me estimulando a ser ditador.
[William Bonner]: Eu, candidato?
[Jair Bolsonaro]: Você. O centrão são mais ou menos 300 deputados. Se eu deixar de lado, eu vou governar com quem? Não vou governar com o parlamento. Então, você está me estimulando a ser um ditador. São 513 deputados. 300 são de partidos de centro, pejorativamente chamado de centrão. O lado de lá, os 200 que sobram, pessoal do PT, PC do B, PSOL, Rede, não dá para você conversar com eles, até não teriam número suficiente para aprovar sequer um projeto de lei comum. Então, os partidos de centro fazem parte, grande parte da base do governo, para que nós possamos avançar em reformas, como temos avançado em muita coisa. Como, por exemplo, através do centrão, nós conseguimos o Auxílio Brasil de R$ 600 para 20 milhões de famílias. Dá para imaginar isso? E olha só, os partidos de esquerda votaram contra o parcelamento dos precatórios, que era condição para a gente dar lá atrás R$ 400 de Auxílio Brasil para os mais necessitados. Então o PT votou contra o Auxílio Brasil (…).
[William Bonner]: Agora vamos lá, candidato…
[Jair Bolsonaro]: Como é que eu vou trabalhar com o parlamento sem os partidos do centrão?
[William Bonner]: A questão que o senhor disse que eu estou estimulando o senhor a ser ditador?
[Jair Bolsonaro]: Está estimulando, sim.
[William Bonner]: Por favor, candidato, não, longe de mim.
[Jair Bolsonaro]: Se eu for governar sem o centrão?
[William Bonner]: Não, eu estimulei nada, é que a questão é a seguinte: em 2018, o senhor chegou a dizer, até com propriedade, que governos anteriores tinham feito alianças com o centrão, mas o senhor disse criticamente que esses governos anteriores tinham feito nomeações com interesse político-partidário e que isso tinha tudo para dar errado. O senhor chegou até a concluir assim: “Por isso eu não integro o centrão”. Mas, recentemente, há dias, o senhor, com muita naturalidade, disse assim: “Eu sempre fui do centrão. Eu vim do centrão”. Aí eu? eu tenho que perguntar ao candidato, em nome da clareza para os eleitores: em qual dessas duas afirmações o eleitor deve acreditar? O senhor sempre foi do centrão ou o senhor, como disse em 2018, diz: “Eu nunca fui do centrão por esse motivo”?
[Jair Bolsonaro]: No meu tempo não era centrão. Não existia centrão.
[William Bonner]: Como assim?
[Jair Bolsonaro]: No meu tempo, esses partidos que eu já integrei não eram tidos como partidos do centrão. Agora, o importante, Bonner, o importante: nós estamos num governo sem corrupção. Eu indiquei ministros pelo critério técnico. Eu não aceitei pressões de lugar nenhum para escalar ministros. (…) Estamos governando com competência e sem corrupção, porque não tem indicação política para esses ministérios.
Na pergunta inicial elaborada pelo entrevistador Willian Bonner, observamos uma sucessão de narrativas breves que serve à materialização de uma argumentação baseada na estruturação do real, a partir do relato de uma sucessão de fatos que encaminha, em termos de uma argumentação quase-lógica (Cf. Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996), para o apontamento de uma contradição entre o candidato Jair Bolsonaro, que se dizia contra o “centrão”, e o agora presidente Jair Bolsonaro, aliado do “centrão”. Observe ainda que a narrativa breve na semana passada, quando o senhor estava saindo lá do Palácio do Alvorada, inclusive o senhor enfrentou lá um incidente com aquele youtuber, que foi cobrar do senhor essa aliança do seu governo com o centrão serve à fundamentação do real, mediante uma ilustração do ponto defendido pelo entrevistador.
A resposta dada pelo presidente Bolsonaro ao entrevistador (você está me estimulando a ser um ditador) instaura, de imediato, a polêmica, entendendo esta resposta, nos termos do que foi proposto por Amossy (2017), como uma resposta antagônica, uma antítese do que foi apresentado pelo entrevistador, a partir da seguinte lógica: “ou sou o Presidente de uma república democrática, que governa com seu grupo no parlamento, ou não governo com o parlamento e me torno um ditador”. Esse posicionamento vem materializado, na superfície discursiva, por meio de um argumento baseado na estruturação do real, de natureza pragmática, aplicando-se ligações de sucessão, que unem um fenômeno a suas consequências ou a suas causas (O centrão são mais ou menos 300 deputados. Se eu deixar de lado, eu vou governar com quem? Não vou governar com o parlamento. Então, você está me estimulando a ser um ditador).
Cumpre destacar ainda que a argumentação de Bolsonaro é baseada na premissa de ele mesmo se encontrar no “lugar da governança” (Charaudeau, 2006) (eu vou governar com quem? Não vou governar com o parlamento). Paralelamente, ao se negar a responder àquilo que foi central na pergunta de Bonner (“o que mudou entre o que pensava o candidato Bolsonaro e o agora presidente Bolsonaro em relação ao ‘centrão’”), o candidato passa a utilizar seu tempo para apresentar, na sequência, uma sucessão de números que, se confirmados, serviriam como uma argumentação baseada em fatos acerca de aspectos positivos de seu governo. Dessa maneira, o então presidente não só não responde à questão central quanto desvia o tópico discursivo para um campo mais favorável.
Consciente dessa estratégia, após mais um embate entre entrevistador e entrevistado ([William Bonner]: A questão que o senhor disse que eu estou estimulando o senhor a ser ditador? [Jair Bolsonaro]: Está estimulando, sim. [William Bonner]: Por favor, candidato, não, longe de mim. [Jair Bolsonaro]: Se eu for governar sem o centrão? [William Bonner]: Não, eu estimulei nada), William Bonner retoma o ponto central da pergunta elaborada no início da entrevista, novamente em forma de narrativa: após a orientação em 2018, observamos a apresentação de uma sequência de “ações complicadoras”: o senhor chegou a dizer, até com propriedade, que governos anteriores tinham feito alianças com o centrão, mas o senhor disse criticamente que esses governos anteriores tinham feito nomeações com interesse político-partidário e que isso tinha tudo para dar errado. O senhor chegou até a concluir assim: “Por isso eu não integro o centrão”. Mas, recentemente, há dias, o senhor, com muita naturalidade, disse assim: “Eu sempre fui do centrão. Eu vim do centrão”. Segue-se a resolução Aí eu? eu tenho que perguntar ao candidato, em qual dessas duas afirmações o eleitor deve acreditar?, intercalada à avaliação em nome da clareza para os eleitores, fazendo referência ao papel contemporaneamente assumido pelas mídias, das quais toma parte, de denunciar as malversações e trazer à luz o que está escondido nas declarações dos atores políticos.
No plano subjetivo da argumentação, o teor dessas perguntas e sua repetição servem para colocar em xeque a “credibilidade” do presidente da República e candidato à reeleição, a partir da observância sobre se aquilo que ele anuncia, diz e promete corresponde sempre ao que ele pensa e coloca em prática, “e que isso será seguido de um efeito” (Charaudeau, obra citada, 2006, p. 119).
Novamente, no entanto, a resposta elaborada pelo presidente Bolsonaro tergiversa o teor central da pergunta e se esvai para um outro campo, mais uma vez, a partir de uma argumentação baseada na estruturação do real, através da apresentação de supostos fatos positivos que colocam o seu governo no plano de uma avaliação mais favorável. Essa desconexão entre pergunta e resposta, e o consoante desalinhamento entre entrevistador e entrevistado, permeia toda a interação em questão e está presente também, na mesma medida, na entrevista concedida ao Jornal Nacional pelo principal oponente de Jair Bolsonaro, Luís Inácio Lula da Silva. Observe:
(2) [William Bonner]: Obrigado por ter vindo, candidato. E nós vamos começar então essa entrevista a partir de agora, contando o tempo, e vamos começar falando de corrupção. O Supremo Tribunal Federal lhe deu razão, considerou o então juiz Sérgio Moro parcial, anulou a condenação do caso do triplex e anulou também outras ações por ter considerado a Vara de Curitiba incompetente. Portanto, o senhor não deve nada à Justiça. Mas houve corrupção na Petrobras. E segundo a Justiça, com pagamentos a executivos da empresa, a políticos de partidos, como o PT, como o então PMDB e o PP. Candidato, como é que o senhor vai convencer os eleitores de que esses escândalos não vão se repetir?
[Luiz Inácio Lula da Silva]: Bonner, primeiro, eu acho importante você ter começado esse debate com essa pergunta. Porque, durante cinco anos, eu fui massacrado, e estou tendo hoje a primeira oportunidade de poder falar disso abertamente, ao vivo, com o povo brasileiro. Primeiro, a corrupção, ela só aparece quando você permite que ela seja investigada. Eu queria começar dizendo para você uma coisa muito séria, foi no meu governo que a gente criou o Portal da Transparência, que a gente colocou a CGU para fiscalizar, que a gente criou a Lei de Acesso à Informação, a gente criou a lei anticorrupção, a lei contra o crime organizado, a lei contra a lavagem de dinheiro. A AGU entrou no combate à corrupção. Criamos o Coaf para cuidar de movimentações financeiras atípicas, e colocamos o Cade para combater os cartéis. Ou seja, foram todas medidas tomadas no meu governo, além do que o Ministério Público era independente, além do que a Polícia Federal recebeu no meu governo mais liberdade do que em qualquer outro momento da história. (…)
[William Bonner]: Agora, candidato, o senhor elencou diversas medidas adotadas em governos do PT como instrumentos, mecanismos de controle da corrupção, mas é fato que a corrupção, a despeito disso, ocorreu, e ocorreu em grande escala, por isso eu retomo a pergunta original, que é: como o senhor pode assegurar que elas não se repetirão? Alguma medida nova foi estudada para evitar que aconteça?
[Luiz Inácio Lula da Silva]: Ô Bonner, primeiro, as medidas estão colocadas. Veja, eu poderia ter escolhido um procurador engavetador. Sabe aquele amigo que você escolhe que nenhum processo vai para frente? Eu poderia ter feito isso; não fiz, eu escolhi da lista tríplice. Eu poderia ter impedido que a Polícia Federal tivesse um delegado que eu pudesse controlá-lo; não fiz, e permiti que efetivamente as coisas acontecessem do jeito que precisavam acontecer.
Cumpre destacar que o jornalista já inicia a entrevista com uma pergunta que faz referência direta ao tema mais vulnerável para a candidatura de Lula em 2022: a “corrupção”. De forma análoga à entrevista anterior, essa abordagem está ancorada discursivamente em narrativas não canônicas: após a orientação houve corrupção na Petrobras, seguem algumas ações complicadoras e segundo a Justiça, com pagamentos a executivos da empresa, a políticos de partidos, como o PT, como o então PMDB e o PP, baseadas em fatos e em um argumento de autoridade (segundo a justiça) que colocam em cheque, no plano subjetivo da argumentação, o ethos de “virtude” do candidato e ex-presidente Lula.
Cumpre destacarmos que, de acordo com Charaudeau, o ethos de “virtude” está atrelado à demonstração, por parte dos atores políticos, das imagens fundadas em suas condições de sinceridade, fidelidade e honestidade pessoal, sendo esta última relacionada a uma atitude de se dizer o que pensa, de se ter uma vida transparente, não ter participado de negócios escusos. Nas palavras do autor, constitui “uma resposta a expectativas fantasiosas da instância cidadã, na medida em que esta, ao delegar um poder, procura fazer-se representar por um homem ou por uma mulher que seja modelo de retidão e honradez” (Charaudeau, obra citada, p.124).
Após a narrativa breve durante cinco anos (orientação), eu fui massacrado (ação complicadora), e estou tendo hoje a primeira oportunidade de poder falar disso abertamente, ao vivo, com o povo brasileiro (avaliação), que aqui ocupa a função de refutar, no plano subjetivo da argumentação, as acusações que pesaram sobre sua imagem pública enquanto um político “virtuoso” no que tange ao envolvimento com corrupção, o candidato passa a narrar ações empreendidas pelo seu governo para combater a corrupção, novamente através de narrativas não canônicas: as ações complicadoras foi no meu governo que a gente criou o Portal da Transparência, que a gente colocou a CGU para fiscalizar, dentre outras, subsequentes, ancoram uma nova argumentação estruturada no real, baseada em fatos que, atrelados à avaliação mais liberdade do que em qualquer outro momento da história, desempenham basicamente a mesma função daquelas observadas na entrevista com Jair Bolsonaro, ou seja, deslocar o tópico da interação em curso (no caso, a corrupção na Petrobrás) para um campo mais favorável ao candidato.
Essa estratégia é denunciada pelo entrevistador, que recoloca o tema a corrupção como o centro da interação em curso (Agora, candidato, o senhor elencou diversas medidas adotadas em governos do PT como instrumentos, mecanismos de controle da corrupção, mas é fato que a corrupção, a despeito disso, ocorreu, e ocorreu em grande escala, por isso eu retomo a pergunta original, que é: como o senhor pode assegurar que elas não se repetirão? Alguma medida nova foi estudada para evitar que aconteça?).
Mais uma vez, de forma análoga ao observado no exemplo (1), o candidato tergiversa o teor central da pergunta, mantendo exatamente a mesma estratégia de elencar supostas ações positivas empreendidas no passado para evitar tratar diretamente do tema.
Esse descompasso entre pergunta e resposta, esse desalinhamento entre os interlocutores, torna-se ainda mais pungente quando analisamos a performance dos candidatos em uma outra modalidade de interação: os debates eleitorais televisivos (especialmente nas seções de tema livre, em que, em tese, caberia a um perguntar e ao outro responder). Observe, a esse respeito, o excerto destacado em (4), que se apresenta como um desdobramento posterior da pergunta retratada em (3):
(3) [Jair Bolsonaro]: Luiz Inácio, assumindo em 2019 um Brasil com sérios problemas éticos, morais e econômicos, em grande parte herdado do Governo do PT, mas mesmo assim com pandemia, com falta d’água e outras crises, nós concedemos reajuste para os aposentados e majoramos o salário-mínimo. Tanto é verdade que nós reajustamos, acertamos a economia, que eu posso anunciar que, a partir do ano que vem, o novo salário-mínimo será de 1.400 reais. Mas ao longo dos últimos dias, Luiz Inácio, o seu partido foi com toda vontade, na televisão e nas inserções de rádio, dizer que não ia reajustar o mínimo, que eu não ia reajustar as aposentadorias, e, também, que eu ia acabar o 13º, com as férias e com as horas extras. Tu confirmas isso? Fim do 13º, fim das horas extras e também das férias?
(4) [Jair Bolsonaro]: Lula, na verdade, tu deixou uma dívida, só na Petrobras, o dobro do valor da empresa. Você deixou uma dívida de 900 bilhões de reais. 170 bilhões de dólares. Ainda roubou o fundo de pensão da Petrobras, roubou o fundo de pensão da Caixa Econômica. Roubou o fundo de pensão dos Correios. Você deixou algo no ar em torno de 400 bilhões do BNDES com essa política de também emprestar para outros países, para fazer obras sem qualquer retorno para nós. Lula, você deu um bilhão de dólares para Cuba para fazer um porto lá e estamos levando calote. Agora, está no contrato, eu vi, Lula, que falta de vergonha de você. Você sabe qual a garantia de Cuba para o Brasil, caso não pagasse a dívida? Charutos. Tá lá no contrato. Lula, você não tem vergonha na cara de indicar um presidente do BNDES para ele fazer esse tipo de acordo com outros países, como charuto em garantias com Cuba? Explica aqui, Lula.
[Luiz Inácio Lula da Silva]: Eu vou naquela câmera ali para pedir o seguinte. Pai, perdoai os ignorantes, eles não sabem o que fazem. Porque se ele tivesse o mínimo de noção do que é política externa, ele percebesse, tivesse lido o Valor essa semana, o jornal Valor, ele perceberia o significado de exportar engenharia. Ele deveria saber que o Brasil lucrou praticamente… o Brasil investiu 10 e o Brasil recebeu 12 bilhões. Ele poderia ler pelo menos o Valor. Alguém poderia pedir para ele ler, ou a assessoria ler para ele, para ele não falar tanta sandice aqui. Isso aqui é um debate que a gente está falando com milhões de pessoas. Pelo amor de Deus. Diga alguma coisa com coisa. Pelo amor de Deus, gente, é difícil. O cidadão está desequilibrado hoje. Porque ele veio com um único argumento.
Alguém dá um argumento para ele outra vez. Ensina ele a falar outra coisa, porque ele tem que explicar por que ele não aumentou o mínimo, ele tem que explicar por que não aumentou a merenda escolar, ele tem que explicar por que ele isolou o Brasil do mundo!
Observe que, em (3), o início da pergunta vem materializado em forma de uma narrativa breve, composta pela orientação assumindo em 2019 um Brasil, pelas avaliações com sérios problemas éticos, morais e econômicos, em grande parte herdado do Governo do PT e tanto é verdade que nós reajustamos, acertamos a economia, pelas ações complicadoras mas mesmo assim com pandemia, com falta d’água e outras crises e pelas resoluções nós concedemos reajuste para os aposentados e majoramos o salário-mínimo e que eu posso anunciar que, a partir do ano que vem, o novo salário-mínimo será de 1.400 reais. Neste caso, o presidente e candidato à reeleição aproveita o momento da pergunta para novamente, assim como observado nos excertos anteriores, trazer à memória dos telespectadores supostos fatos e dados positivos de sua administração, agora nas áreas de economia e bem-estar social, em forma de narrativa.
Em (4), no entanto, temos algo um tanto diferente: a narrativa elaborada no início da intervenção de Jair Bolsonaro, que se inicia em Lula, na verdade, tu deixou uma dívida só na Petrobras, o dobro do valor da empresa, serve para ancorar uma versão conflitante sobre os fatos em questão, desfavorável ao oponente, acionando, no plano subjetivo da argumentação, a um ataque tanto ao ethos de “virtude” quanto ao de “competência” de seu oponente. Lula, no entanto, se recusa a dar segmento na interação e a responder aos ataques desferidos por seu oponente, em mais um claro truncamento da dinâmica interacional em curso, ocupando seu tempo para atacar o ethos de “caráter”[2] (Cf. Charaudeau, 2006) de Bolsonaro.
Quanto à virulência da linguagem empregada (roubou, falta de vergonha, não tem vergonha na cara, ignorante, desequilibrado), segundo Amossy (2017), quando estamos diante de uma polarização extrema,
a polarização utiliza, de bom grado, manobras de difamação. Trata-se de uma estratégia retórica para desacreditar o adversário, definindo-o como um defensor de um ponto de vista caracterizado por sua má-fé (não autêntico) e suas más intenções (mal-intencionado) (Vanderford, 1989, p. 166). Não nos impressionamos, portanto, em ver que a exacerbação em grupos antagônicos, em que cada um afirma sua identidade social opondo-se e fazendo do outro o símbolo do erro e do mal (Amossy, 2017, p. 58).
Por fim, observamos casos em que a narrativa acena para os pontos extremos, ancorando avaliações e ações complicadoras constituídas pelos princípios ideológicos da polarização, em torno dos quais gravitam segmentos sociais em conflito. É o caso das palavras proferidas por Jair Bolsonaro ao término de um dos debates, nas “considerações finais” da sua participação:
(5) Boa noite. Deus, pátria, família e liberdade. Temos um governo que respeita a todos. Um governo que está rompendo quatro anos sem corrupção. Um governo que respeita a família brasileira. Um governo que diz não ao aborto, porque ele entende que a vida existe desde a sua concepção. Um governo que respeita as crianças em sala de aula, não a ideologia de gênero. Um governo que sabe a dor de uma mãe que tem os filhos no mundo das drogas, por isso é um governo que não quer legalizar as drogas. Um governo do livre mercado. Um governo que dá exemplo para o mundo na recuperação da economia mundial, que foi abalada. Um governo brasileiro onde pode mostrar para o mundo que temos uma das gasolinas mais baratas do mundo, que tem um dos programas sociais mais abrangentes do mundo: são 20 milhões de famílias que ganham 600 reais por mês, diferentemente do que acontecia no passado. Um governo que respeita a todos. Um governo que quer continuar, com o seu voto, para que a felicidade de verdade chegue aonde tem que chegar: a você, povo brasileiro. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!
Ao fazer referência ao lema “Deus, pátria, família e liberdade”, Bolsonaro retoma a memória discursiva do manifesto apresentado em 7 de outubro de 1932 pela Ação Integralista Brasileira (AIB), vertente nacional do fascismo.
Empregado amiúde pelos apoiadores do Golpe de 64, esse manifesto se constitui em um norte para a extrema-direita brasileira. O manifesto prega o caráter cristão da nossa sociedade como centro da orientação política da nação, iniciando-se já com a afirmação de acordo com a qual “Deus dirige os destinos dos povos”. Ao longo do texto do manifesto, a força sobrenatural cristã é enaltecida repetidas vezes como o dogma a ser seguido para se alcançar um modelo ideal de família, de sociedade, de uma pretensa indivisibilidade de classes e, logo, do próprio funcionamento econômico e social:
Deus dirige os destinos dos povos. […] O homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família, da Pátria e da Sociedade. […]toda superioridade provém de uma só superioridade que existe acima dos homens: a sua comum e sobrenatural finalidade. Esse é um pensamento profundamente brasileiro, que vem das raízes cristãs da nossa História e está no íntimo de todos os corações (Manifesto de 7 de outubro de 1932, Ação Integralista Brasileira).
De acordo com Almeida (2022, p. 354)
como colocado pela AIB, este “pensamento profundamente brasileiro” é advindo “das raízes cristãs da nossa História”: eis o sentido do programa integralista para um modelo unívoco de pátria, que passou a ser sintetizado no slogan “Deus, pátria e família” (…). Ao analisar este dizer, relacionamo-lo às condições de produção da década de 1930 para, assim, perceber como (…) se comunica com as condições postas pela contemporaneidade, quando tal lema é reapropriado pela extrema direita brasileira que ora detém o poder político da nação.
Cumpre destacar ainda que, para Charaudeau (2016, p. 102-103),
O discurso de direita baseia-se numa visão de mundo em torno da qual se elabora um sistema de pensamento: a natureza se impõe ao homem. Dessa visão de submissão do ser humano à ordem da mãe natureza decorrem os valores defendidos, num movimento de conservação do estado das coisas. Valor da ordem, como na natureza e que é preciso deixar expandir-se sem a mão do homem. (…) O valor família, da sociedade familiar, pois é em seu seio que se fabrica o indivíduo. No pensamento de direita, não é o indivíduo que fabrica o grupo, mas o grupo que fabrica o indivíduo, daí a importância da filiação, do inato e do peso da tradição familiar que essencializa o grupo e o indivíduo num destino imutável. Isso justifica a ordem piramidal em cujo topo se encontra a figura do patriarca, potência tutelar, e ao mesmo tempo protetor dos membros da família (…) Aqui se confundem legitimidade e autoridade, uma fundando a outra num lugar de poder antirrepublicano. O valor do trabalho (…) que deve ser entendido como estabelecedor de uma ordem hierárquica entre os senhores, os donos, os chefes, os dirigentes e, por último, os executores – que de início foram os camponeses e depois os operários. Assim se justifica uma atividade produtiva a serviço de um corpo social – ao qual os trabalhadores devem tudo (…) O valor pátria, segundo o qual o corpo social é constituído pelos filhos da nação como essência fundadora da sua identidade.
Considerações Finais
Tomando em consideração o vasto emprego da expressão “disputa pela narrativa” na contemporaneidade, acionada principalmente para fazer referência aos embates de versões que circundam a política brasileira contemporânea, profundamente polarizada entre a centro-esquerda e a direita, este trabalho, enquanto um recorte de uma pesquisa maior, buscou analisar e descrever as formas e as funcionalidades de narrativas que emergiram em situações de interação com os dois principais líderes políticos e candidatos à Presidência da República, Jair Messias Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva, particularmente em entrevistas e debates realizados pela Rede Globo de Televisão durante a campanha para as eleições de 2022.
Para atingir nossos objetivos, partimos do quadro teórico oferecido pela Análise da Narrativa, tanto do modelo dito “canônico” elaborado por Labov e Waletsky (1968) e Labov (1972) quanto das propostas de análise de narrativas “não canônicas” e “narrativas breves”, apresentadas por autores como Bamberg e Georgakopoulou (2008).
Após a análise dos dados, os resultados desta pesquisa ecoaram a posição sustentada pelos trabalhos de Bamberg e Georgakoupoulou (2008), Schiffrin (1996) e Shi-Xu (2000), já que as narrativas breves analisadas cumpriram sobretudo um trabalho retórico, elaborado para apoiar um determinado ponto argumentativo (especialmente para apresentar supostos “feitos” e fatos positivos relacionados ao período em que ocuparam a Presidência da República). Nesse sentido, o ato de se recontar a realização de algo apresentou-se com o propósito de argumentar em favor de uma determinada opinião, permitindo ao falante jogar com fatos que são enquadrados dentro de uma realidade reportada, aqui empregada como base de realidade, contextualizando sua própria posição e moldando um frame interpretativo para a opinião em questão, amparada muitas vezes na coletividade cultural dos polarizados segmentos que os apoiam. Nos termos da Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), esses argumentos constituem-se daqueles baseados na “estrutura do real”.
De forma simultânea, quase na totalidade das vezes, as narrativas não canônicas empregadas pelos candidatos serviram, estrategicamente, especialmente no caso das entrevistas, para tergiversar o teor central do tópico em curso acionado pelo entrevistador (geralmente também a partir da narração de determinados fatos) durante a elaboração da pergunta, geralmente com temas bastantes sensíveis para as candidaturas em curso, e se esvair para um outro campo mais favorável, quase sempre a partir de uma argumentação baseada na estruturação do real, responsável por colocar em pauta os feitos e fatos descritos no parágrafo anterior.
Observamos ainda, especialmente no caso dos debates, outras funções da narrativa, como aquela destinada a ancorar uma versão conflitante sobre os fatos em questão, desfavorável ao oponente. Em todo caso, no plano das relações subjetivas da argumentação, as narrativas empregadas serviram para performar, por parte dos candidatos, imagens positivas de si, acionando imaginários sociais sociodiscursivos que remetem às diversas categorias de ethos descritas por Charaudeau (2006) para os atores políticos e, no caso dos enfrentamentos verbais, para difamar e desqualificar o adversário.
Por fim, sobretudo no momento das “considerações finais” das entrevistas e debates, o emprego de narrativas não canônicas por parte dos candidatos assumiu a funcionalidade de acenar, estrategicamente, para os segmentos ditos “ideológicos” de seus eleitores, colocados na ponta mais extrema do continuum da polarização centro-esquerda versus direita em curso. Essa funcionalidade da narrativa emerge em todas as performações discursivas do presidente Jair Bolsonaro, tanto na situação de encerramento da entrevista quanto dos debates, e se prestam a dar corpo ao “cimento social” que conecta o candidato aos setores mais conservadores da sociedade brasileira, atrelando novamente sua identidade e sua candidatura aos imaginários populares acionados aos universos morais que circunscrevem tal posicionamento.
Em todo caso, a desconexão entre pergunta e resposta, e o consoante completo desalinhamento entre os oponentes, funda e faz eco à situação de extrema polarização em que se encontram seus eleitores, numa dinâmica aparentemente sem fim, com a narrativa se prestando ao papel de servir, de fato, para pavimentar o curso dos duelos discursivos travados em cada interação apresentada neste artigo, atrelando-se sempre ao embate. Nesse sentido, depois de muitos anos em que foi armado o ringue, o Brasil segue prisioneiro das narrativas conflagradas. Duas forças opostas que se retroalimentam numa dinâmica de sinais trocados, que sequestra o debate e faz dos brasileiros reféns da colisão permanente.
* Fábio Fernando Lima é doutor (2009) e pós-doutor (2013) em Letras pela USP e membro do GRPESq Narrativa e Interação Social – NAVIS. Atualmente, é professor colaborador e bolsista de Pós-Doutorado da FAPERJ na PUC-Rio. Tem publicações nas áreas de Análise do Discurso, Linguística Textual e Linguística Aplicada.
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Notas
[1] Em razão dos limites estabelecidos para este trabalho, não nos deteremos, aqui, a apresentar um inventário exaustivo dessas “técnicas argumentativas”. Elas serão devidamente apresentadas na seção de análise, conforme for o caso.
[2] A elaboração da figura de um homem que “tem caráter” emerge no discurso, segundo Charaudeau (2006), a partir de diversas estratégias, tais como a crítica indignada, com suas variantes, a provocação e a polêmica; a força tranquila, serena mas combativa, por meio da qual o político demonstra a força de quem sabe conduzir e o controle de si, o qual denota um caráter equilibrado de quem não se deixa levar por pequenas coisas, além da moderação.
Nos últimos doze anos circulei com muita frequência entre os espaços formais dos movimentos sociais organizados e os espaços de produção de conhecimento nas universidades, assim como prestei atenção, na esfera das redes sociais, aos discursos e posturas das militâncias alinhadas às esquerdas. Tratou-se de uma observação bastante situada (Haraway, 1995), tendo em vista que recuso não somente aquelas posturas descorporificadas de ativista e intelectual, como também abdico de uma oposição ontológica ou essencialista entre essas duas esferas. Isto é, ainda acredito que nosso problema é, sobretudo, epistemológico. Enquanto não produzirmos e circularmos outras formas de saber e conhecimento sobre o mundo, seguiremos sustentando a ficção colonial, branca, cisgênera e heterossexual que tem efeitos reais sobre corpos negros, homossexuais, transexuais, indígenas e empobrecidos.
Ainda assim, ao flanar pelos espaços de militâncias alinhadas à esquerda na web, não foram poucas as vezes que me vi refletindo sobre como muitos termos do seu vocabulário, alguns deles fruto de profunda elaboração intelectual ou ativista, se popularizaram de maneira bastante superficial ou se esvaziaram de sentido nas caixas de comentários, no “textão” do Facebook, nas stories do Instagram ou em threads do Twitter. Termos como problematização, desconstrução, empoderamento, pós-modernidade, liberal, privilégio, empatia, sororidade, representatividade, apropriação cultural, lugar de fala, resiliência e até esquerda são, sem exceção, vocábulos que constituem um glossário que é repetido incansavelmente por indivíduos supostamente politizados e esclarecidos a respeito da partilha desigual do mundo sensível.
Gostaria de conversar sobre os usos desses vocábulos em seu conjunto. Não para defender qualquer preciosismo, como se me dispusesse a criar um manual de como eles deveriam ou não ser empregados nas caixas de comentário. Não serei eu a abraçar essa lógica policialesca. Pois, inclusive, grande parte dessas expressões tem origem no cânone da academia europeia, sendo natural que as mesmas viajem e transmutem através das diástases da colonialidade. Além disso, há casos em que a popularização desses termos exerce uma função pedagógica de tornar alguns problemas sociais mais palpáveis para aquelas pessoas que não estão em círculos acadêmicos ou ativistas. Ainda que a popularização dessas palavras e do debate que as mesmas constituem seja, de algum modo, superficial, o que nos ajuda a compreender fenômenos como “feminismos midiáticos”, nem tudo nessas cenas deve ser jogado na lata de lixo.
Gostaria de contribuir para o debate e tornar mais palpável a compreensão de alguns desses termos a partir de uma posição cruzada: acadêmica e ativista. E, assim, produzir não uma crítica à popularização desses vocábulos enquanto resultado de um processo de politização, mas refletir sobre como eles estão, de maneira hegemônica, constituindo os próprios modos de cognição, de subjetivação e da ação política. Ou, melhor, modos da ação polícia – para usar o termo do filósofo Jacques Rancière (2018). Por modos de ação polícia quero dizer que, muitas vezes, essas expressões foram e ainda são utilizados para fixar modelos de ver e de dizer, para estabelecer narrativas únicas, para alimentar a impotência de liberar a ação política de um desejo totalizante, mais interessado em moralizar a vida e a experiência das pessoas do que realmente politizá-las. Ou, ainda, termos que estabelecem um glossário que, em alguns casos, inviabiliza a vida, a arte, o diálogo e o exercício da política enquanto prática de dissenso. Digo todas essas coisas com um certo receio de sofrer um cancelamento, outro termo bastante em voga nos últimos tempos. No entanto, assumindo esse risco e a provisoriedade do pensamento, vou em direção a eles.
Gostaria de começar por desconstrução. Desconstrução ultrapassou as fronteiras teóricas do pós-estruturalismo, no qual seu uso indicava, inicialmente, a desmontagem ou a decomposição de um texto literário a fim de entender suas estruturas formais, próximo do que também se faz em análises fílmicas baseadas em teorias do cinema e do audiovisual. Porém, num sentido mais amplo, e a partir das reelaborações dos estudos queer sob a influência do pensamento de Jacques Derrida (1973), a desconstrução também é uma estratégia modular através da qual é possível compreender e reorganizar o pensamento ocidental, sempre considerando sua heterogeneidade, suas contradições e suas fissuras que estranham, inclusive, a própria ortodoxia do pensamento filosófico. Tal ideia de desconstrução também contribuiu para a crítica das teorizações queer e das teorias feministas pós-estruturalistas (o trabalho de Judith Butler, por exemplo) em torno da produção da diferença e de uma análise dos processos de normalização social.
No entanto, há um aspecto importante da estratégia de desconstrução, o de sustentar um devir, o de não se enclausurar em uma fórmula ou verdade absoluta. E, talvez, essa complexidade seja o aspecto mais ignorado pelas fórmulas da partilha policial nas redes sociais. Nesta partilha é muito presente, por exemplo, dois polos opostos entre si. O primeiro é quando o sujeito é tão desconstruído que se tornou, também, a rarefação que ignora como diferentes instituições e disciplinas (a psiquiatria, o direito, a pedagogia) seguem operando a regulação dos sujeitos e da materialidade de seus corpos, lhes distribuindo valores distintos, lhes relegando a diferentes espaços sociais e parcialmente condicionando os próprios regimes de agência e subversão. O oposto desse gesto de super-desconstrução, que de tão desconstruído corre o risco de não ver mais classe, nem gênero e nem raça e, portanto, vê tudo branco, masculino e de classe média, é o gesto de usar o termo desconstrução para argumentar, paradoxalmente, que as “estruturas sociais” são sempre soberanas.
Eu costumava acompanhar com avidez as publicações da jornalista Stefanie Cirne sobre militância e feminismos, até o momento em que ela publicou que estava abandonando o debate das militâncias nas redes sociais. No entanto, antes disso, recordo de uma publicação sua na qual expunha que, quando esse modelo de desconstrução prevalece, tentativas de resistir à unificação e preservar o particular (uma nuance, um indivíduo, um caso específico) viram, dentro de alguns feminismos, “sinais de alienação” e de silenciamento. Nesse momento se abraça, contraditoriamente, o argumento da sociologia canônica no qual as estruturas de gênero e sexo são sempre intransponíveis. Isto é, pouco importa para essa “visão desconstrucionista”, criticava Cirne, se os signos e práticas da feminilidade normativa empoderaram uma mulher. O que importa, nessa perspectiva, é que estruturalmente esses dispositivos de dominação não podem ser empoderadores.
E é aqui que chegamos ao segundo termo: empoderamento. No ano de 2019, Vanessa (Figura 1), vendedora de açaí nas praias do Rio de Janeiro, viralizou com um vídeo no qual conta que foi abordada por um grupo de meninas, a maioria delas branca, que lhe disseram que ela deveria ser uma mulher empoderada. Até então, Vanessa não sabia o que era empoderamento. As meninas lhe disseram que empoderamento era deixar os pelos do corpo crescer, usar cabelo blackpower e evitar os adereços tidos como femininos. No vídeo, acusada de não ser empoderada, Vanessa diz com indignação:
Sinceramente, eu só aprendi essa palavra “empoderada” agora, na internet. Eu nem sabia o que era isso, linda. Eu tinha 12, 13 anos, ninguém falou pra mim: Ah, Vanessa, você tem que ser “empoderada”. Fiz 17 e ninguém mandou eu ser “empoderada”, fiz 18 e ninguém mandou eu ser “empoderada”, fui passando pelas situações da vida sem empoderamento nenhum. Aí, a garota, só porque ela é “empoderada”, na finalidade do sistema nem sei o que é isso, aí vem falar que tenho que ser “empoderada”. Agora, século XXI, “as garota tudo empoderada”, quer ficar ditando empoderamento pros outros. Chega devagar, explica o que é primeiro, filha.
Na finalidade do sistema, Vanessa sabe bem o que é empoderamento para uma mulher negra de sua classe e de sua geração: trabalhar, pagar o aluguel, ter uma vida-lazer. Vanessa também é consciente de que não é correto ditar empoderamento a ninguém. Em um vídeo posterior, disse que se sentiu humilhada e que agora tem lido muita coisa sobre empoderamento. De fato, a miopia geracional, de raça e classe das garotas não foi capaz de explicar para Vanessa o que era empoderamento. Talvez, essas meninas que a abordaram não saibam o que é empoderamento para além do limítrofe mimético das redes sociais e seus círculos de convivência. E esse é o problema: a ignorância é um tipo de saber que lhe dá o poder de acusar uma mulher de não empoderamento, especialmente quando tal ignorância é legitimada por posições privilegiadas de raça e classe.
Naturalmente, aqui não há espaço para mapear todos os usos díspares e complementares do termo empoderamento, tendo em vista que desde sua versão luterana o termo remete ao período da Reforma Protestante no século XVI. Foi o momento em que os textos bíblicos, favorecidos pela invenção da imprensa, foram traduzidos do latim para as línguas vernáculas a fim de dar poder à população europeia, isto é, permitir o acesso aos textos bíblicos, é o que conta a pesquisadora Rute Baquero (2012). No entanto, foi na segunda metade do século XX que o termo passeou pela contracultura, pela linguagem corporativa, pelas modulações da psicologia, pelos movimentos de emancipação social como os feminismos e pelas teorizações sobre pedagogia e política do brasileiro Paulo Freire. Na acepção de Freire, como também recorda Baquero, empoderamento não se trata de “dar poder” a uma comunidade ou indivíduo, mas sim de um processo de ação coletiva que se dá na interação entre indivíduos e que desequilibra relações históricas de poder.
Mas também haveria maneiras individuais de se empoderar, desde que esta tenha relação mais ampla com a sociedade e a cultura. Bell Hooks (1995), que lia Paulo Freire com animação, fez isso através da produção intelectual. Segundo ela, foi através do pensamento crítico e analítico que ela se tornou testemunha de si mesma, capaz de analisar as forças que atuavam sobre seu corpo e o corpo de outras mulheres negras. Logo, olhar ao redor, para si e para além do próprio umbigo, possibilita entender como determinados empoderamentos trazem consigo diferentes modos de agência e contingência. O problema é quando os “oprimidos”, na acepção de Freire, se deixam seduzir pelo “poder”. E, às vezes sem se dar por conta da sua condição de hospedeiro dos “valores do opressor”, ou das circunstâncias que lhe tornam “provisoriamente opressor”, reproduzem a mesma estrutura de pensamento.
Ponderar sobre nossos desejos pelo poder e sobre o próprio empoderamento é necessário, mas isso não se torna muito difícil dentro de uma concepção essencialista de esquerda? Desde a Revolução Francesa (1789-1999) e dos bancos do parlamento francês, termos como esquerda e direita vêm descrevendo espectros opostos e complementares. Em linhas gerais, o termo esquerda quase sempre descreveu, em distintos períodos da nossa história compartilhada, as lutas preocupadas com a superação de diferentes desigualdades e injustiças. Especialmente entre o século XVIII e meados do século XX, ele serviu para descrever, quase que de forma hegemônica, as lutas de classe, os movimentos sindicais operários, os ativismos proletários – e também as acepções políticas/econômicas próximas desses espectros – socialismo, marxismo, comunismo.
Foi especialmente durante o século XX que o termo também passou a descrever outros movimentos suprapartidários, a exemplo das lutas ambientalistas, as lutas antirracistas, os feminismos e os movimentos de sexo/gênero dissidentes. O marxismo, por exemplo, foi um componente crucial na composição dos estudos e dos ativismos feministas, queer e antirracistas, vide o trabalho de Gayle Rubin, Joan Scott e Angela Davis. Pois bem, se as esquerdas marxistas ensinaram muito aos estudos e aos ativismos de sexo/gênero dissidentes no século XX, para as pesquisadoras Amanda Palha (2019) e Marília Moshkovich (2019), vivemos em um momento em que as lutas de classe e as teorias marxistas precisam aprender com os estudos e as lutas das mulheres, das pessoas negras, das putas, das bichas e das travestis. “A grande tarefa do marxismo é o sexo”, disse Marília Moshkovich em 2019, afinal, pergunta ela, “por que tanta resistência em abandonar um universal quando sabemos, já, que universalidades não passam de singularidades em posição de poder?” A classe trabalhadora, prossegue Moshkovich, “não é em parte mulher, em parte LGBT; a classe trabalhadora é mulher, é LGBT, assim como é negra, e tudo o que isso implica. O homem cisgênero heterossexual branco é a minoria da minoria entre nossa classe – por que, então, trata-se as questões de gênero e a questão LGBT como ‘particularidades/identidades’ de ‘parte da classe’?”, questiona a socióloga.
Se essa é uma questão complexa para a tradicional intelectualidade branca e masculina das esquerdas, também se trata de uma fratura cognitiva bastante complexa para os militantes dos threads no Twitter. Pois, ali, o sentido da palavra esquerda se reduz a uma cartilha secular. Ser de esquerda é análogo a ser bom, saudável, salubre, verdadeiro, politicamente correto. É uma teia que reúne muitas pessoas apaixonadas pela estética da revolta e pela mitologia da luta do bem contra o mal, mas onde também se aglomera a impotência da autocrítica (o medo de olhar-se no espelho e se reconhecer machista, classista, racista e homo/transfóbico). Ao mesmo tempo, é a teia onde se projeta no outro a própria incapacidade de autocrítica e, por isso, produz intensas doses de cancelamento: o desejo de silenciar o outro porque se descobre que qualquer um pode macular a mitologia do bem contra o mal.
A cognição binária, herança do pensamento moderno, não deixa ninguém ileso, freia processos de aprendizado, aponta dedos em direção ao outro acusando-o com um sem número de jargões como, por exemplo, o de privilegiado. E falar de privilégio no Brasil exige cuidado. Pensei melhor sobre isso ao ver algumas stories no Instagram da jornalista, professora e pesquisadora Fabiana Moraes. Seja através de seus livros e artigos, seja através do compartilhamento de memes, Morais também é uma dessas pessoas que me ajudam a não cair na armadilha absolutista do “iconoclasta da militância na web”. Segundo ela, é claro que é necessário estarmos atentos aos possíveis privilégios de gênero, orientação sexual, raça e classe, inclusive para nos posicionarmos contra injustiças e preconceitos.
Porém, ressalta ela, também é preciso cuidado para não esvaziar a questão, pois, de saída, em um país tão desigual como o Brasil, ter um pouco mais de algo absolutamente necessário te transforma em “privilegiado”. Especialmente no caso brasileiro, é importante não perder de vista a efetivação de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal: nem todos que acessam determinados direitos fundamentais podem ser considerados privilegiados. No entanto, os espaços de debate sobre privilégios que acompanhei em redes sociais não parecem preparados para aceitar a complexidade dessa questão. Como observei nestes últimos anos, especialmente no que diz respeito às discussões sobre privilégio de classe, quando uma pessoa, que possui garantidos alguns direitos fundamentais previstos na constituição, é acusada de privilegiada, a reação dessa pessoa tende a ser moralizante.
Ela não apenas não compreende que, por exemplo, ter coisas básicas como trabalho, casa e comida durante a pandemia do coronavírus não pode ser considerado um privilégio, como se autodemoniza e se culpa por usufruir de direitos básicos garantidos pela constituição. E é aí que perdemos a chance de aprender. Parte-se de uma interpelação superficial que vai ao encontro de uma resposta também superficial, pois nesse caso se esquece que acusação e culpa cristã não são as melhores estratégias para compreender como a tríade raça, Estado e capitalismo podem, infelizmente, transformar direitos fundamentais em “privilégios”. Assim como se tira de campo aquele 1% da população brasileira que, historicamente, sustenta seus altos privilégios à custa da exploração e da pobreza do restante da população. Trata-se de uma palavra que precisa admitir mais de duas variáveis, assim como no caso do termo apropriação cultural.
Uma das intensas polêmicas que acompanhei a respeito da apropriação cultural nos últimos anos envolveu a empresa Havaianas, seu chinelo branco de tiras azuis e a cantora e ex-BBB Manu Gavassi (Figura 2). É um daqueles casos em que, realmente, partilhei da vontade de apenas dizer: “calma lá, descansa, militante”. No entanto, isso não pode ser dito sem algumas reviravoltas argumentativas ou até poéticas. Manu Gavassi foi convidada pela Havaianas, empresa brasileira, a participar de uma de suas campanhas publicitárias. A cantora compartilhou em seu Instagram alguns vídeos e fotos com sua havaiana preferida, aquela nas cores azul e branco, o modelo mais antigo da marca e, também, uma das peças que teriam um preço “módico”.
Em seguida, uma militante muito atuante nas redes sociais, com seu perfil verificado pelo Twitter, publicou: “Manu Gavassi fez parceria com a Havaiana. Havaiana escolhida: azul e branca, é, aquela, dissertem”. E as respostas dadas a esse tweet foram: “isso é apropriação cultural”. Essa troca de tweets é representativa sobre como funciona, hegemonicamente, a ética e a estética cognitiva da militância na web. A militante, antes mesmo de colocar sua percepção da campanha publicitária ao exame da reflexividade, consciente ou inconscientemente, conhece muito bem o pensamento monolítico de seus seguidores e apenas diz: “dissertem”. E aí, então, além da avalanche de críticas contra a “apropriadora”, a militante agrega holofotes em torno do púlpito de um julgamento. Eu aceito, ao menos provisoriamente, que há sentido em conversar sobre como pessoas jovens, brancas e de classe média alta “goumertizam” alguns elementos comuns às classes populares.
O salto que eu não executo, mas que outras pessoas podem executar, inclusive, que salto fascinante, é dizer que Manu Gavassi usando havaianas branca de tiras azuis é um exemplo de apropriação cultural. Uma coisa é lembrar que, na década de 1980, esse modelo branco de tira azul era o que havia de disponível e que ficou conhecido como “chinelo de pedreiro” por ter um valor acessível. Outra é dizer, na segunda década do século XXI, que essa havaiana de preço inflacionado e mundialmente conhecida foi – ou ainda é – um elemento intrínseco à cultura das pessoas pobres no Brasil e que, portanto, trata-se de um elemento genuíno das classes populares sendo apropriado por pessoas de classe média alta. Mas pior que isso é usar apropriação cultural, um termo muito necessário para compreender como a estética é um campo de atuação política importante nas lutas antirracistas, para produzir uma crítica meramente mimética e descontextualizada.
No entanto, mesmo quando esse debate está localizado nas reflexões sobre antirracismo, o termo apropriação cultural também é reduzido à oposição essencialista entre “coisa de branco” e “coisa de preto” ou, ainda, “pode usar” e “não pode usar”. Murilo Araújo, ativista, pesquisador, gay e negro, em seu canal do Youtube, Muro Pequeno, em alguns momentos me ajudou a desanuviar algumas dessas tensões. Em um de seus vídeos sobre apropriação cultural, Araújo argumenta que, até onde ele próprio consegue estar a par do debate, para compreender o que é apropriação cultural é necessário ter em mente dois critérios. O primeiro é que apropriação cultural tem a ver com os significados culturais, artísticos e religiosos que determinados elementos possuem para populações historicamente estigmatizadas. O segundo critério é que apropriação cultural diz respeito às relações de poder marcadas por categorias como raça, classe, etnia ou religiosidade.
Nesse caso, explica Araújo, para uma ação ser chamada de apropriação cultural, ela precisa, primeiramente, envolver o esvaziamento dos significados que determinados elementos culturais ou religiosos têm para determinado grupo cultural, étnico ou religioso que é historicamente estigmatizado. Em segundo lugar, para entender a apropriação cultural, é preciso pensar no “lugar” que o suposto “apropriador” desses elementos ocupa dentro dos marcadores de raça, classe ou religião. Como pessoas brancas gozam de alguns privilégios em relação às pessoas negras, é permitido que rapazes brancos da Zona Sul do Rio de Janeiro acessem, por exemplo, elementos da cultura Rap ou Hip-Hop sem sofrer sanções. Enquanto isso, um rapaz negro da periferia que utiliza tais elementos que, talvez, façam parte do seu cotidiano e identidade, tem grandes chances de ser abordado de forma truculenta pela polícia.
Este exemplo combina, justamente, os dois critérios expostos por Murilo Araújo: há o esvaziamento de significado desses elementos a partir das relações de poder de raça e classe. Logo, estamos falando de apropriação cultural. No entanto, destaco um dos comentários que o vídeo de Murilo Araújo recebeu de um rapaz que, como ele mesmo diz, é branco, pobre, periférico e desde criança consome Rap e Hip-Hop. No comentário, ele diz que tem sido acusado de apropriação cultural por aqueles que ele chama de “playboyzinhos”. Ainda que esse rapaz esteja menos sujeito a sofrer sanções ao utilizar elementos da cultura Hip-hop por ser um homem branco, isso por si só não configura apropriação cultural pois, de fato, esses elementos fazem parte de sua vivência e construíram sua subjetividade. Nenhum desses elementos está sendo esvaziado ou banalizado. São casos como este que contribuem para, sempre que possível, tomar como ponto de partida uma contextualização. E não tornar, de saída, a havaiana preferida de Manu Gavassi ou o rapaz loiro de dreads das praias de Florianópolis os bodes expiatórios daquilo que, a depender do sujeito e contexto, não se trata de apropriação cultural.
Mas repito, trata-se de um exercício impossível se você não estiver disposto a vacilar nas próprias certezas quando, por exemplo, você também utiliza o termo lugar de fala. Do mesmo modo como outros termos aqui expostos, o lugar de fala também tem origem, especialmente, nas teorias feministas e nos estudos pós-coloniais da segunda metade do século XX, especificamente em textos como O problema de falar pelos outros (Linda Alcoff, 1992) e Pode o subalterno falar? (Gayatri Spivak, 2010). E há, basicamente, um ponto em comum bastante explicativo entre estes dois textos: questionar a legitimidade quando sujeitos em condições de poder ou em condições de privilégio falam por aqueles sujeitos que experimentam, em suas peles, violências racistas, machistas, homofóbicas ou transfóbicas, tendo em vista que muitas vezes se negou a estes grupos a possibilidade de falar sobre suas próprias experiências.
O que esses dois textos também informam, enquanto nas redes sociais o contrário segue sendo repetido à exaustão, é que aqueles sujeitos que não partilham de determinada experiência subalterna não apenas podem, mas inclusive devem se interessar e se engajar nas questões de raça, gênero e classe a partir das suas posições. Ou melhor, a partir dos seus trânsitos, afinal, também é preciso compreender, como lembra Donna Haraway (1995), que não há como estar em todas as partes, ou inteiramente e somente em uma das posições estruturadas por gênero, raça e classe. Entender isso também evita armadilhas identitárias, afinal, quem segue acreditando que viver é igual a entender (ou que a vivência prática é a única forma de entendimento do mundo) quando nos deparamos, durante o sangrento Governo Bolsonaro, com Damaris Alves e seu Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos!?
A conservadora Damares Alves foi uma mulher/ministra que curta-circuitou uma concepção essencialista e binária de lugar de fala, mas também desvelou a importância de dois movimentos: escutarmos a voz das bichas, das travestis e das mulheres pretas que, para além de serem mulheres ou LGBT, são sujeitos comprometidos em estudar os processos históricos de generificação e racialização; e estarmos abertos para aqueles sujeitos que estão fora dos nossos grupos e que podem contribuir, a partir de suas posições e trânsitos, para a superação dessas violências. Sei que nas redes sociais há falta de tempo, espaço e disposição para discutir sobre esses temas, mas é preciso não abraçar um antiintelectualismo, esse gesto que também é uma marca da minha geração que acessou fóruns e espaços da militância especialmente através da web.
Ainda seria possível se debruçar sobre outras palavras, a exemplo de liberal, resiliência, sororidade e empatia, as quais também pipocam nas redes sociais e, com alguma frequência, constituem polêmicas arrastadas. Todas elas estão, inclusive, sob o escudo do termo problematização. Para Michel Foucault, possivelmente o primeiro a exercitar uma operação conceitual designada por problematização, o termo descrevia um constante olhar analítico que o autor tinha sobre sua própria obra. É o que ele diz em As palavras e as coisas (2002). Para Foucault, parecia importante não fazer do seu pensamento um esquema fechado, no entanto, tendo em vista que a obra foucaultiana produziu intensas genealogias de temas que vão desde a loucura até a sexualidade, assim como de instituições como a prisão, não seria errado dizer que o filósofo francês construiu uma vigorosa problematização de valores, discursos e instituições da sociedade ocidental.
No caso de algumas posturas militantes na web, me parece que todos esses termos e palavras aqui comentados perfazem uma rota de problematização que, em alguns momentos, está mais preocupada com um desejo narcísico e obstinado de produzir qualquer conflito e menos com o de identificar um problema. Essas práticas me levam a pensar, num gesto explicitamente teórico, sobre paradoxos conceituais. Compreendo que essas cenas polêmicas são fruto, especialmente, de militâncias que podem ser vastamente analisadas pela perspectiva dos Estudos Culturais, dos Estudos pós-estruturalistas, das teorizações pós-modernas, das políticas das identidades. Ainda que todas essas correntes de pensamento tenham suas diferenças teóricas e metodológicas, arrisco aproximá-las na intenção de dizer que todos os termos até aqui comentados jogam essas e outras escolas dentro do grande liquidificador que são as esquerdas contemporâneas. Liquidificador no qual temas como identidade e diferença, discurso e desconstrução, fim das grandes narrativas totalizantes, fragmentação e descentramentos de grupos e sujeitos constituem, todos, um único caldo.
No entanto, isso talvez não seja necessariamente ruim. Ou, ao menos, não tão ruim quanto constatar que, no fundo desse liquidificador, ainda é o caldo de uma racionalidade moderna que sedimenta, nas redes sociais, os usos dessas palavras aqui compiladas e analisadas: uma militância marcada por uma estrutura de pensamento que ainda é quadrada, cartesiana, unilateral, totalizante, binária, masculinista e anti-intelectual. Também por esse motivo, ao longo de minha trajetória, sempre preferi utilizar mais a palavra ativismo e menos a palavra militância. E isso diz mais respeito a uma impressão ótica e tátil (Benjamin, 1996) de que o termo ativismo pode designar um tipo de intervenção política que preserva a prática do dissenso, assim como valoriza a horizontalidade e a autonomia. Já o termo militante, inclusive por sua proximidade como a palavra militar, me parece, mesmo dentro de grupos supostamente progressistas, valorizar a disciplina, o moralismo e a concentração de poder.
Por fim, esse breve ensaio trata-se apenas de uma primeira tentativa, como diria Michel Foucault (1993), de fazer da escrita um intensificador do pensamento, da reflexão uma multiplicadora das formas de intervenção política, da sugestão de que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade. E, sobretudo, que não é preciso ser triste para ser um ativista.
* Dieison Marconi é professor e pesquisador em regime de Pós-Doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com período sanduíche realizado na Universidade Complutense de Madrid, na Espanha. É Mestre em Comunicação e Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria. Como pesquisador, atua no campo da imagem, audiovisual, cinema e experiência estética, sobretudo em uma intersecção com os estudos queer. É autor do livro Ensaios sobre autorias queer no cinema brasileiro contemporâneo (Selo Editorial PPGCOM-UFMG).
Referências
ALCOFF, Linda. The Problem of Speaking for Others. In: Cultural Critique, Nº 20, 1991-1992, pp. 5-32.
BAQUERO, Rute. Empoderamento: instrumento de emancipação social? Uma discussão conceitual. Revista Debates, Porto Alegre, v. 6, nº 1, p.173-187, jan.-abr. 2012.
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume 3. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 103-149.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_________________. O anti-édipo. Uma introdução à vida não fascista; In: Cadernos de Subjetividade, v. 1, nº 1, São Paulo, 1993.
DERRIDA, Jaques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.
HOOKS, bell. Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 3. p. 464-477, 1995.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5. Campinas, Ed. Unicamp, vol 5, p. 7-41, 1995.
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
RANCIÈRE, Jacque. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: 34, 2018.
PALHA, Amanda. Tranfeminismo e a construção revolucionária. In: BUGARELI, Lucas; Marxismo e luta LGBT; Margem Esquerda, São Paulo, Ed Boitempo, vol 33, 2019.
MOSHKOVICH, Marilia. A grande tarefa do marxismo é o sexo. Disponível: blogdaboitempo.com.br.
Ao caminharmos em alguma floresta antiga, dessas que existem há milênios, ou que ao menos puderam crescer em paz por algumas centenas de anos, às vezes nos deparamos com pequenos montes de terra, da altura de uma pessoa, ou de uma sobre os ombros da outra, no máximo. No meio da sensação mágica de abafamento da mata antiga – o ar parado, os mosquitos indo e vindo, o completo silêncio pesado como uma coberta de inverno, e o ritmo dos pés estalando camadas de folhas que caíram umas sobre as outras ao longo de anos até que viraram terra macia –, esses montes parecem alheios e externos, como se fossem postos ali por um ato de um deus criança. Frequentemente, esses montes de terra, onde já crescem árvores menores, são acompanhados por um buraco no sopé, em um de seus lados, formando uma espécie de gruta em que muitos animais, como tatus e quatis, cavam suas tocas, ou então onças passam as noites dormindo ali. É estranho que esses pequenos morros não sejam criados e feitos por alguém. Existem, é verdade, montes de sepultamento, em que povos antigos construíam grandes morros de terra para honrar figuras importantes que ali eram enterradas, sendo que a quantidade de solo deslocado demonstrava a importância daquela pessoa. Também há montes geológicos, formados pela erosão, por fricção de placas tectônicas, por pedras enormes que rolam em dias de chuva ou são arrastadas pelas forças de rios em torrente, entre outras tantas possibilidades.
Esses montes, na realidade, são sinais de tempestades de décadas ou de séculos atrás que afetaram aquela floresta. Quando uma tempestade muito forte assola uma região da mata, às vezes os ventos são tão intensos que derrubam as maiores árvores, que muitas vezes resistiram por toda a sua vida contra a ação das tormentas e que, velhas, vencidas pelas formigas, cupins, pelo solo que cede, pela própria força do vento, finalmente tombam. E quando tombam, seus troncos e galhos pesando toneladas derrubam tudo à sua frente, formando uma cicatriz na mata que logo será coberta por árvores menores que nasceram e permaneceram pequenas por muito tempo, esperando sua chance de crescer. Na extremidade oposta da árvore, no entanto, o tronco se derrama sobre o chão, e junto as raízes rompem-se e rompem a terra, erguendo-se parcialmente no ar e trazendo um toição de terra, o qual forma esses montes, amaciados pelo tempo até tornarem-se um outeiro. Se a árvore não resiste, ela morre e ao longo de décadas ela apodrece, criando casa para os mais diversos animais e plantas no meio do caminho, até que por fim ela desaparece, fertilizando o solo onde as árvores menores que tiveram sua chance já se tornaram as novas árvores velhas, e formando os montes que estamos agora estudando na paisagem do mato verde; onde o tronco se unia às raízes, fica um espaço oco que serve de tocas aos animais que citamos; onde as raízes ficam expostas com a terra, fica o lado mais suave desse monte. É incrível como um dia de chuva e vento há tantos e tantos anos pode deixar sinais inscritos na carne da terra e que podem ser lidos como um livro em língua antiga e esquecida, parcialmente compreensível, mas com muitos trechos perdidos e rasgados.
Entretanto, frequentemente essas mesmas árvores, ainda que velhas e prejudicadas pelo tempo, continuam a viver. Seu tronco tomba sobre a floresta, abrindo uma nova clareira. A maior parte de seus galhos seca e suas raízes ficam expostas no ar, junto à terra revolvida. Quase todo o seu tronco seca e apodrece, mas uma pequena parte sobrevive, lançando novos galhos que, mesmo que não retornem à altura majestosa que a árvore tinha anteriormente, são testemunha de sua força de vida, postando-se humildes junto às árvores mais novas. As raízes no ar secam e se tornam casas para marimbondos e besouros, mas a parte das raízes que permaneceu no solo continua a crescer e se desenvolver. Também é assim com poemas, povos e falas indígenas, ou ao menos é o que imagino quando leio Tybyra.
Juão Nyn e seu povo já são por si mesmos uma dessas árvores que lutaram por viver. Morando no Rio Grande do Norte, uma das áreas de início do contato entre os primeiros comerciantes e exploradores, incumbidos da tarefa da conquista, Juão e sua comunidade não se consideravam indígenas, sujeitos às pressões da colonização. Se víssemos externamente, pareceriam como uma árvore morta, como tantas que de fato pereceram nessa espécie de paisagem natural e colonial do Brasil. Mas restaram raízes vivas no solo, ainda que as outras tenham morrido e sido expostas à ação da erosão, e houve galhos que se mantiveram verdes e florescendo. Os Potiguara, (também) do tronco Tupi, pegaram emprestada a fala da outra ponta de seu tronco linguístico Tupi-Guarani para retomar sua língua e, aos poucos, aquele povo e o autor citado renovaram sua língua e seus costumes, como brasas mexidas na fogueira ou então a clareira exposta após a tempestade, aberta a todas as novas formas de vida.
Nyn, artista Potiguara, estudou teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atuando e dirigindo várias peças desde 2014 e, a partir de 2018, começou a escrever suas próprias obras, enfocando, de maneira geral, o tema de sua ancestralidade indígena. Escreveu, em 2020, Tybyra, uma tragédia indígena brasileira, peça centrada no personagem Tybyra, que aparece em um monólogo dividido em atos – chamados de luzes. Tybyra, resumidamente, foi um indígena Tupinambá executado em 1614 por colonizadores franceses, conforme aparece na narrativa de Yves d’Évreux, que conta seu relato a partir de seu ponto de vista religioso, em Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614 (D’Évreux, 2002 [1844]). Especula-se que a morte do indígena tenha decorrido de uma acusação de sodomia, apesar de não se afirmar claramente no trecho. O Tupinambá, quando foi acusado e condenado, solicitou o batismo e, neste momento, o padre afirma que, após sua morte, “se quiseres ter no Céu os cabelos compridos e o corpo de mulher antes que o de um homem, pede a Tupã que te dê o corpo de mulher e ressuscitarás mulher, e lá no Céu ficará ao lado das mulheres e não dos homens” (D’Évreux, 2002, p. 232). Isto é, é presumível que o indígena fosse uma pessoa transsexual ou homossexual, sendo que alguns comentaristas associam o relato desse indígena executado com outro relato posterior, em que o frade francês narra que havia um indígena hermafrodita na ilha de Juniparã, apesar de essa conexão não ser explícita no texto. Tybyra, de qualquer modo, foi perseguido pelos franceses e executado a tiro de canhão – e esse relato de perseguição, julgamento religioso e execução foi gravado na historiografia colonial. Por conta disso, Tybyra tem sido visto como a primeira vítima de homofobia no Brasil.
Além disso, a peça explora o corpo e sua relação com elementos naturais de maneira muito aprofundada: os atos se chamam luzes, as quais, ao longo de cada seção da peça, iluminam determinada parte do corpo do ator, até que, no último ato, todo o corpo é revelado de uma única vez. Do mesmo modo, há trechos dedicados a cantar a natureza, como os nomes das árvores nativas, ou o som de rio corrente enquanto transcorre o monólogo. Entre outros elementos, há o canhão, no último ato, que executa o indígena. Mas, não por acaso, o tiro do canhão e a morte do personagem são postos em suspenso, e a peça, na realidade, é finalizada não com a execução e a violência colonial, mas sim com um discurso inflamado e premonitório de Tybyra, com a tônica final, novamente, na imagem, no corpo e na fala do indígena, e não nas ações ou falas colonizadoras – um exato reverso da obra do frade Yves d’Évreux, que salienta os atos impuros de Tybyra, seu batismo e sua morte.
Juão ainda apresentou outras invenções em sua peça, como a língua falada por todo o monólogo: o Potyguês. Mistura do Tupi-Guarani, em que a semivogal Y tem ampla presença, com a língua portuguesa, esse novo idioma indianiza e demarca a língua do colonizador, moldando-a a novos sentidos menos coloniais e mais afeitos ao sentido indígena. Mantendo as metáforas vegetais, é como realizar um enxerto: nessa operação, cortamos um pedaço de uma planta e inserimos em outra planta já cortada, amarrando bem as duas partes. Se tudo der certo, as duas plantas (independentemente de serem indivíduos diferentes ou de espécie distinta) podem se desenvolver e criar um híbrido em que a parte enxertada recebe a força da planta original, geralmente mais forte e resistente. No caso de Tybyra, o Potyguês tem a força do Y, do silêncio, do deslocamento causado ao lermos e ouvirmos palavras que são quase indígenas, quase portuguesas. A mistura descentra as duas línguas e cria um híbrido que nos dá a sensação de que mudanças são possíveis, de que as línguas e histórias coloniais não são estanques ou imunes à influência dos colonizados.
Para Nyn, o Y por si só já é uma vogal produzida no fundo da garganta, quase próxima ao silêncio, como as tocas onde os tatus e as onças dormem à noite, recobertos pela mata abafada. Na linguagem de Nyn, vemos que há uma língua menor, na acepção de Deleuze (2014), em seu espaço criativo desterritorializado: Nyn resgata o “y”, que vê como uma semivogal vinda da profundeza e da gruta, como uma maneira de dar peso à linguagem de Tybyra. As palavras do português perdem seu caráter de língua do colonizador e ganham a profundidade e o lastro temporal vindos da imagem da gruta, do fundo da garganta. O próprio autor e sua comunidade vivem esse processo, ao passarem a aprender e a falar o Guarani, tendo nascido falantes do português. Esse espaço de descoberta da língua e de, por contraste, nova percepção da língua materna e colonizadora transparece na própria obra e atinge cada leitor, como se cada um também devesse (ou pudesse naquele momento) ler/ouvir a língua portuguesa de outra maneira, vendo nela suas possibilidades de transformar-se em um enxerto entre português e Tupi-Guarani.
Em Tybyra, o silêncio é o interlocutor por excelência, pois a peça se constitui por poucos elementos: o monólogo de Tybyra, as luzes que demarcam partes do corpo dos atores e que denominam os próprios atos, a tinta sobre a pele, os sons de mato e água e, essencialmente, a fala. É uma fala truncada, dirigida a um silêncio persistente, marcada por avaliações, convites, reclamações, ironias, beliscões, deboches e prazeres, em que acompanhamos a história de Tybyra. Nela vemos esse contato colonizador-colonizado, quando esses termos ainda nem eram postos, em uma relação regida pelo prazer da descoberta e do encontro sexual, não problematizado por Tybyra, mas que se transforma, para os colonizadores europeus, em recalque, culpa e raiva.
No diálogo da peça, o interlocutor implícito, o silêncio, se torna frequentemente esse colonizador do passado e, por desdobramento, se transforma na imaginação da plateia e, por fim, na própria plateia, que percebe a si mesma no silêncio do passado a que Tybyra se dirige, uma mistura entre as figuras dos colonizadores como interlocutores e a audiência. Um silêncio marcado pela vergonha, pela negação da vontade e do prazer, o silêncio de preconceito, das ameaças e pecados que se tornaram parte do nosso pensamento, e que ocupa o fundo de nossas mentes. Por isso a importância de falar em uma nova linguagem, uma linguagem que descentra e desconcerta e que permite identificar e nomear esse silêncio do interlocutor a que Tybyra se dirige e se tornou parte de nós, culpando, tolhendo e punindo os prazeres, vontades e, de maneira mais concreta, os corpos e povos indígenas.
É necessário ainda ressaltar o papel da ironia e do chiste na peça Tybyra. Como frequentemente aparece em obras indígenas, a ironia tem papel central, ao afirmar o oposto do que se aparenta dizer, ao criar jogos de palavras em que o verdadeiro significado se esconde sob a face do humor e pode ali ser apreendido sem um embate direto. É claro que, em Tybyra, há falas diretas, confrontos com esse outro silencioso e colonizador; entretanto, o humor e a ironia aparecem com mais força na obra, como piadas e deboches sobre o que está escondido. Não por acaso, essa ironia é dirigida aos desejos e ações do colonizador, que transforma sua sexualidade – ao tolhê-la, puni-la e castrá-la – em agressividade e violência. Freud (1980) comentava que o chiste, a ironia e o humor em geral são meios de se conseguir liberar tensões e recalques sem precisar entrar em um conflito direto com eles, o que é muito custoso psiquicamente e que se pode resolver com muito mais facilidade e vantagem para o locutor por meio da ironia, do duplo sentido, do chiste, da piada. Ao mesmo tempo, também parece ser uma forma com que Nyn opera para evitar conflitos diretos entre Tybyra e o colonizador e, extrapolando, entre o indígena colonizado e o colonizador, talvez porque ainda não haja um jogo de forças suficiente para que as coisas possam ser ditas com clareza e justeza sem prejuízo a quem fala a verdade.
Nyn aponta a crueza da modernidade, vista aqui em seu viés colonial, heteronormativo e violento, por meio da regulação do prazer, da língua e da instituição do processo (Tybyra é preso, ouvido e condenado). Seus crimes são confessados, admitidos, redimidos (pelo batismo e pela execução). Nyn aposta em uma transformação vegetal e em metáforas de crescimento e temporalidade: ao desnudar seu personagem e iluminá-lo gradativamente, chamando seus atos de luzes e intercalando com raízes e sons de água, e colocando-lhe no fundo da boca novas palavras que não são nem português nem Potiguara, o autor transforma Tybyra em árvore e em potencialidade criativa. Nyn, desse modo, usa sua linguagem enxertada e demarcada como uma maneira de reformular o passado que criou a própria modernidade. O autor desenvolve, no futuro, a voz de Tybyra e cria um meio de reescrever a história colonial, abrindo a possibilidade de alterar o próprio futuro – por isso as imagens vegetais, de árvores, plantas, raízes crescendo, se desenvolvendo, multiplicando-se, são tão relevantes na peça. A árvore como um signo do passado e do futuro, juntos, tanto na linguagem quanto na narrativa de Tybyra e em seu significado como indígena LGBT. Tybyra, de certa maneira, escapa da bala de canhão que o dividiu ao meio – bala esta que é o término do relato feito por d’Évreux e que, sintomaticamente, é retirada da obra de Nyn justamente para evitar a apoteose da prática colonial, o prazer e o gozo que, inconscientemente, poderiam afluir à plateia ao ver a morte do indivíduo questionador a fim de, assim, retomar um status quo. No lugar disso, Tybyra vira árvore e semente, como ele mesmo coloca em seu monólogo final. É como se o enxerto do português no Tupi-Guarani formasse uma árvore estranha, mas talvez mais forte e produtiva do que seriam individualmente cada uma das línguas em separado, e que consegue ultrapassar os relatos de violência e unir um passado pré-colonial às possibilidades de um futuro (as sementes) em que a única lógica não seja uma espécie de monocultura colonial.
Resgatando a história inicial deste ensaio, os montes dos quais falei anteriormente ainda existem nas matas, e as grandes árvores de raízes no ar com seus pequenos brotos ainda existem, apesar dos dois serem cada vez mais raros pelo fato de as próprias matas antepassadas serem cada vez mais raras em todo o Brasil. Para limpar o mato e possibilitar o plantio da lavoura, um método bastante comum usado em áreas densamente florestadas é a passagem do correntão, em que dois tratores, postos em paralela, são unidos por uma enorme corrente de metal, com força suficiente para derrubar tudo. Todas as árvores tombam, e depois as maiores são serradas e vendidas, abandonando as menores no local, e depois a terra é queimada, reduzida a cinzas. Os tocos restantes são destocados e a terra torna-se pasto ou lavoura. Gradativamente, com o passar das décadas, a força e a fertilidade da terra esmorecem, e aparecem imensas manchas de solo nu, arenoso e pobre. E os montes, em seus pequenos relevos em forma de outeiro, são aplainados e desaparecem, porque dificultam a passagem de caminhões, colheitadeiras, sementeiras e pivôs. As frases do antigo livro da terra já não podem ser lidas, pois tudo se tornou um único grande continuum de lavoura, boi, pasto, cortado por uma estrada de terra vermelha. O mesmo processo ocorreu, poderíamos dizer, em relação às vivências indígenas, negras, quilombolas e de outros povos em nosso país: o correntão serviu para derrubar as línguas (inclusive seus troncos linguísticos), fazê-las desaparecer, deixar de serem faladas, praticadas e lembradas. Os povos foram reduzidos à categoria de periféricos, de vilas que servem para serem controladas e manejadas por um poder local, com pobres endividados e presos à sobrevivência. Mas por vezes essas árvores se mantêm vivas, com seus brotos, e um desses brotos poderia ser a peça de Nyn e seu Potyguês.
Se, nas línguas menores que os artistas encontram – seja a língua de um autor judio e desterritorializado como Kafka, de que trata Deleuze (2014), seja como indígenas que perderam suas terras e seus direitos e buscam retomá-los –, existe um espaço de enxertos, transformações, chistes e brechas, que serve tanto para reformular a linguagem quanto a própria lógica dominante, que pode ser melhor vista através da estranheza, Nyn consegue criar o espaço do reencantamento. Por oposição, a política do desencante (Rufino, Simas, 2011) seria a produção de escassez e mortandade, a administração burocrática da vida, a hierarquização dos seres e a lógica colonial e racional. Essa política, além disso, ignora, tolhe e uniformiza outras lógicas que giram em torno do encantamento, como a integração e interlocução entre diferentes seres vivos, a indissolubilidade entre material e espiritual, racional e irracional, entre outras lógicas que perpassam a modernidade (Goldman, Lima, 1999) e que não se guiam por divisões como racional/irracional, natureza/cultura ou material/espiritual, que retiram do mundo a interligação dos seres vivos, os conhecimentos de povos tradicionais que pensam de outra maneira o tempo. Esse universo de desencante – universo narrado pelos escritores modernos e que culmina na obra de Kafka, entre outros – é questionado por Nyn ao possibilitar modos de contornar e reformular o desencante colonial, a violência e a lógica que podem sim ser reescritas, reimaginadas e rememoradas. A imaginação criativa não se dirige a um espaço melancólico de transformações negativas, unidas pela incompreensão, inação ou incomunicabilidade, mas sim a um espaço de produção positiva das narrativas presentes, passadas e futuras.
Juão Nyn (2020, p. 07) comenta no início de seu livro que os povos indígenas sonham a arte e vivem o sonho, e que fazer arte é um ato coletivo e espiritual. Essa prática permite ver na criação artística um modo de gerar não uma representação sobre o mundo, isto é, um discurso externo do artista sobre os objetos, mas sim uma forma de inscrição do humano sobre os objetos em si, ou então da criação de um novo objeto-sujeito em meio a outros objetos-sujeitos, como Tybyra, que é árvore, antepassado cuja história foi criada no presente e que se tornou uma história de um antepassado. A árvore não como um sinal régio de autoridade, ordem e hierarquia, como esse símbolo opera no Ocidente (podemos pensar no formato árvore da cruz, na presença da árvore como símbolo da nobreza ou da antiguidade do poder, da autoridade que se ergue sobre os demais, como Deleuze [1995] estudou), mas a árvore como símbolo do tempo e do coletivo, como um ser em meio a outros seres, formado pela união dos que crescem juntos, unindo o passado (raízes e tronco) com futuro (flores e sementes). Essa árvore que serve como portal ao passado e ao futuro, e que é corporalizada em Tybyra, morto e transformado, por assim dizer, em árvore e semente aos filhos e netos da posteridade, como o próprio Nyn coloca. Nesse espaço, o sonho vira arte, e arte vira vida: a obra de Nyn é factualmente posterior às de D’Évreux, as falas de Tybyra nunca poderiam ser resgatadas segundo a lógica do desencante, apenas suas ações vistas pela voz colonial (que não era silenciosa na época).
Mas Tybyra e a narrativa da peça se tornam uma nova realidade, como sua linguagem enxertada, como se retomassem a terra do passado e tornassem real a voz que não havia sido falada, mas que agora é uma realidade concreta. Nesse jogo entre passado, presente e futuro, podemos inclusive retomar a noção Aymara, trabalhada por Cusicanqui (2010), do “qhipnayra uñtasis sarnaqapxañani”, ou seja, o passado que poderia ser o futuro, que vive nos sonhos e atualiza utopias. Esse passado que se torna realidade e que abre novas portas ao presente e também ao futuro, como a árvore que estava e estará, que provoca o sonho, é semente e tronco, é vida e gera vida, mesmo que tombada, com as raízes no ar e brotos lutando pelo sol.
* Eduardo Schaan é doutorando em Estudos Literários na UFRGS, organizador e produtor da Tela Indígena, grupo que produz eventos, filmes, exposições, entre outros, sobre a temática indígena no Brasil.
Referências
CUSICANQUI, S.. Oprimidos pero no vencidos: Luchas del campesinado aymara y quechwa. 4. ed. La Paz: La mirada salvaje, 2010.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). São Paulo: Ed. 34, 1995.
D’ÉVREUX, Y. Viagem ao Norte do Brasil: feita nos anos de 1613 a 1614 (obra original publicada em 1864). São Paulo: Sciciliano, 2002
FREUD, S. O humor [1927]. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XXI.
GOLDMAN, M.; LIMA, T. S. Como se faz um grande divisor? In: GOLDMAN, M. Alguma antropologia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999, p. 83-92.
NYN, Juão. Tybyra: uma tragédia brasileira. Selo do Burro, 2020.
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política da vida. Mórula Editorial, 2020.
Se é que existe reincarnações (sic), eu quero voltar sempre preta. Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus
Como se nota já pelo título, “Tu no sabe inglé” (1930), do poeta cubano Nicolas Guillén, faz uso de uma variante não-padrão da língua colonial espanhola. Guillén apropriou-se do idioma e escreveu-o com marcas de oralidade próprias das comunidades afro-cubanas. O poeta estadunidense Langston Hughes, na tentativa de manter o tom do texto caribenho, fez uma tradução com o título de “Don’t Know no English” (1948) por meio do inglês afro-americano. Essa transposição é interessante por muitos motivos, pois, além do aspecto linguístico do criollo cubano transformando-se em African American English, há também uma questão intercultural, visto que o poema de Guillén brinca com o chamado Spanglish, isto é, com a mescla entre o espanhol e o inglês, fenômeno tão comum até hoje nos Estados Unidos, sobretudo em regiões de grande presença latina.
O poeta, ensaísta, dramaturgo e ficcionista estadunidense Langston Hughes é ainda pouco conhecido no Brasil. Nasceu no ano de 1901, no Missouri e muito jovem, após o divórcio de seus pais, foi morar com a avó materna, graças à qual entra em contato com as tradições orais afro-americanas, que seriam, no futuro, tão importantes em sua obra. É a partir desse momento que o futuro poeta começa a explorar, com o tom lúdico das narrativas caseiras, a relação entre oralidade, ritmo, sonoridade e ancestralidade afro-americana.
Aos treze anos, com a morte da avó, Langston Hughes voltou a morar com a mãe e, alguns anos depois, em 1920, terminou seus estudos em Ohio, sendo eleito o poeta da turma. Concluída a escola, foi morar com o pai no México apesar da conturbada relação que mantinha com ele. Em setembro de 1921, depois dessa temporada fora do país, Langston Hughes foi para Nova York e ingressou no ensino superior. Todavia, mais importante do que os estudos universitários, foi o contato com a atmosfera intensa da cidade, que seria, afinal, o palco da Renascença do Harlem, um movimento intelectual e artístico em Nova York do qual Hughes se tornou o principal expoente.
Entre 1923 e 1924, o poeta foi a Paris apesar da falta de dinheiro. Na volta para os Estados Unidos, fez amizade com outros importantes autores negros de seu tempo, como Zora Neale Hurston, Wallace Thurman e Arna Bontemps. Envolveu-se também na publicação da revista Fire!! e graduou-se pela Lincoln University. Já tendo publicado dois volumes de poesia, lançou o primeiro romance no ano de 1930, Not Without Laughter, e a coletânea de contos The Ways of White Folks em 1934. Ao final da década de 1940, tornou-se professor visitante na Universidade de Chicago no campo de estudos da poesia. Publicou também I Wonder as I Wander, sua segunda autobiografia, na qual narra, dentre outros lugares, suas viagens pelo Haiti, Cuba, Rússia, Espanha e Japão. Langston Hughes faleceu no ano de 1967 na cidade de Nova York. Na década de 1970, foi criada a medalha Langston Hughes, prêmio dedicado a autores que discutem as relações afrodiaspóricas. Dentre os laureados, encontram-se nomes fundamentais da literatura negra, tais como James Baldwin, Toni Morrison, Alice Walker, Maya Angelou, Chinua Achebe, Derek Walcott, Octavia Butler e Zadie Smith.
O segundo autor desta pesquisa é Nicolas Guillén, que nasceu em 1902. O autor estudou Direito na Universidade de Havana, mas, assim como Langston Hughes, não seguiu na carreira acadêmica que escolhera. Dedicou-se, então, à escrita. Ao longo da década de 1920, começou a publicar poesia em revistas literárias. Em 1937, Guillén afiliou-se ao partido comunista. Viajou mais tarde para a Espanha, onde cobriu a guerra civil como jornalista. No regresso para Cuba, mantendo-se firme em sua posição política à esquerda, o poeta recusou um visto para entrar nos Estados Unidos em 1941. Nesse sentido, outra semelhança de sua vida com a de Hughes foram as várias viagens que Guillén realizou. Percorreu diversos países latino-americanos e europeus, além de ter ido para a China.
Nos anos 1950, foi proibido de voltar para Cuba e apenas retornou a seu país de origem com o sucesso da Revolução Cubana em 1959. A partir de então, Nicolas Guillén foi por décadas o presidente da União Nacional de Escritores de Cuba e recebeu amplo reconhecimento por sua produção literária. O poeta faleceu em 1989 e é hoje celebrado como o grande poeta nacional cubano. Sua obra é basilar para se estudar a história afro-cubana, tendo transformado o choque colonial e a mestiçagem em temas centrais de sua lírica.
O encontro com Langston Hughes se deu em fevereiro de 1930, ano em que o autor estadunidense haveria de lançar Not without Laughter, seu primeiro romance. Hughes estava em Cuba, onde sua poesia já era reconhecida pela intelectualidade local e, com diversos interesses literários em comum, não é difícil imaginar como tenha surgido de imediato uma amizade entre os dois jovens poetas. Àquela altura, Hughes já havia publicado, dentre outras obras, os livros de poesia The Weary Blues (1926) e Fine Clothes to the Jew (1927). O poeta, que dominava o espanhol, viu as muitas semelhanças entre os blues e o jazz e o soncubano, estilo musical surgido no século XIX que mistura influências espanholas e de origem africana.
Essa conexão fez com que o laço intercultural entre os dois escritores fosse ainda mais potente. Hughes sugeriu que Guillén absorvesse em sua poesia a tradição do son, algo similar ao que o poeta estadunidense fizera com a musicalidade afro nos Estados Unidos (Rampersad, 1988). Não por acaso, a primeira coletânea de poemas de Guillén, publicada no mesmo ano em que conhecera Hughes, chama-se, justamente, Motivos de son. É possível, por isso, argumentar que houve uma virada na obra de Guillén após seu contato com Langston Hughes pois, antes disso, a poesia do autor cubano não se voltava para os ritmos afro-cubanos como ocorre após 1930. É nesse livro em que se encontra “Tu no sabe inglé”, texto que Hughes haveria de traduzir anos depois.
Língua, raça e colonialidade
Agora que já vimos um pouco da vida de Hughes e Guillén, podemos nos dedicar a uma reflexão teórica sobre o sentido da língua no contexto afrodiaspórico e, sobretudo, sobre as diversas formas de resistência que uma língua pode oferecer. Falar, assim como escrever, é um ato político. Traduzir, portanto, é um ato duplamente político, pois quem traduz não apenas decide o que será traduzido como também precisa escolher como traduzir. Não por acaso o intelectual afro-caribenho Frantz Fanon dedica o primeiro capítulo de Pele negra, máscaras brancas ao fenômeno da linguagem, concluindo que “falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (2008, p. 33).
Essa é uma consciência que tanto Hughes quanto Guillén demonstraram em sua obra. Ambos os autores estiveram atentos às consequências da longa tragédia colonial e escravocrata em seus países de origem. Marcados por múltiplas formas de discriminação, transformaram a experiência colonial e o racismo em tema fundamental em suas obras. Portanto, para pensar a forma como ambos se apropriaram de línguas europeias para elaborar um projeto antirracista e anticolonial, precisamos ter em mente como a linguagem foi fator determinante para produzir um senso europeu de humanidade durante os séculos de dominação. Em consequência disso, o padrão linguístico das metrópoles tornou-se a língua “correta” por excelência, o idioma usado para narrar a moralidade falaciosa e a beleza compulsória que se atribuiu aos corpos brancos.
O mundo, a partir de então, a despeito de suas milhares de línguas e de sua vasta complexidade cultural, passou a ser organizado em algumas poucas línguas de matriz colonial. A riqueza do Outro foi, pouco a pouco, exterminada e todo conhecimento tido como válido poderia ser apenas produzido em uma das seis línguas da modernidade europeia: italiano, espanhol e português durante o Renascimento; alemão, francês e inglês depois do Iluminismo (Mignolo, 2008, p. 289).
Para o/a leitor/a brasileiro/a, esse tema faz ecoar os estudos da antropóloga Lélia Gonzalez, cujo pensamento preocupa-se com a formação do português brasileiro de maneira revolucionária. A autora nos lembra que a língua hoje falada no Brasil é o “pretuguês”, isto é, uma mistura da língua de dominação lusitana com os vários africanismos que compuseram o país ao longo dos séculos de escravidão negra. Sendo assim, essa fala africanizada é fator fundamental na formação do Brasil e, conforme alerta a autora, estigmatizá-la é parte do processo “civilizatório” que se pretende branco, masculino e europeu (1984, p. 239).
No caso de Nicolas Guillén, o espanhol que utilizava era sua própria versão de “pretuguês”, ou seja, o criollo cubano que, assim como a versão brasileira, mesclava marcas linguísticas da diáspora africana com o sistema normativo espanhol. O intelectual haitiano Michel Trouillot dedicou-se longamente aos estudos sobre a crioulização das Américas, tendo dado especial atenção ao fenômeno da linguagem. Para Trouillot, as línguas europeias foram “crioulizadas” ao serem faladas pelos milhões de africanos escravizados no “novo mundo”. Apropriando-se dessas línguas para expressar seus sofrimentos, dores e traumas, as línguas da matriz imperial foram se modificando, adquirindo novos traços fonético-fonológicos e morfossintáticos que não existiam na Europa (2021, p. 196). Como a leitura dos poemas nos demonstrará a seguir, a reprodução, por exemplo, de marcas da oralidade no texto escrito é uma estratégia crucial para que se mantenham vivas as variantes afro do espanhol e do inglês. Dessa maneira, tornaram-se outras formas de dar materialidade ao mundo, subvertendo, por exemplo, o inglês britânico para criar o blues ou o espanhol imperial para inventar a rumba.
É essa notável criatividade que deu espaço para a resistência em terras devastadas pela presença europeia e a escravização de pessoas negras, fenômeno que marca de maneira fundamental a modernidade nas Américas. Conforme discute o historiador francês Olivier Pétré-Grenouilleau (2009) na obra História da escravidão, essa prática já existia na Mesopotâmia, no Egito Antigo e foi recorrente na Grécia e em Roma durante a Antiguidade. Aristóteles, por exemplo, chega afirmar que o escravizado não pertencia a si mesmo e que certos indivíduos foram “naturalmente” determinados à servidão (citado em Pétré-Grenouilleau, 2009). Racismo também não foi uma novidade do tráfico negreiro no século XVI. Já se pode falar de racismo, por exemplo, na época das Cruzadas, pois é um fenômeno que se altera com o tempo (Bethencourt, 2018, p. 21).
O que há de novo, então, na experiência negra escravizada nas Américas e como o uso da língua se inscreve como forma de resistência? O fenômeno inaugurado pela Europa na Idade Moderna revoluciona as práticas escravocratas já existentes, pois estabelece uma relação entre trabalhos escravos e a pele negra, de modo que “a escravidão nas Américas acabou vinculada à cor” (Pétré-Grenouilleau, 2009, p. 83). Em outras palavras, a presença europeia no continente americano fez com que o marcador da raça se tornasse sinônimo de escravidão, fazendo surgir um Outro colonial nos corpos negros. Foi a colonialidade, portanto, que inventou a noção de raça no “novo mundo” e categorizou seres humanos em diferentes grupos hierarquizados (Quijano, 2009; Almeida, 2019). Essa retórica colonial, durante as primeiras grandes navegações, foi associada à falta de fé cristã, pois aqueles que não conheciam a palavra sagrada do Cristianismo deveriam ser “salvos” pelo projeto colonial. Nas palavras de Sueli Carneiro, “os teólogos do século XVI justificaram a escravidão sob o argumento de que o africano era um homem que não tinha língua, mas dialeto; não tinha arte, mas folclore” (2011, p. 153).
Dessa forma, como sugere Gabriel Nascimento (2019) no livro Racismo Linguístico, a língua é parte fundamental da imposição de uma hegemonia colonial. Sendo o idioma a ferramenta com a qual a humanidade dá forma ao mundo, ao deslegitimar o uso de milhares de línguas indígenas e africanas, o imperialismo europeu encontrou um mecanismo perverso e muito eficaz para se afirmar como única visão de mundo possível e, por consequência, relegou os demais povos à categoria de sub-humanidade. Vale lembrar, por isso, o comentário de 1578 do cronista português Pero de Magalhães Gândavo sobre a fonética do tupi: “não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente” (2008, p.65). O etnocentrismo de sua conclusão só não chama mais atenção do que a notável ignorância linguística da análise, dado que à época José de Anchieta já estava há mais de duas décadas no Brasil impondo o catolicismo entre os nativos e aprendendo tupi.
Em linhas gerais, foi essa a importância da hegemonia linguística no processo de dominação colonial. O mesmo recurso foi utilizado em séculos posteriores, ou seja, o racismo se recicla para manter um sistema de poder e, nesse processo, a língua é a espinha dorsal da supremacia branca europeia. Nos momentos finais do século XVIII e ao longo do XIX, quando o cientificismo não mais condizia com um discurso religioso, o projeto imperialista foi baseado na ideia de “civilização”. Como define María Lugones, a missão civilizatória foi “a máscara eufemística do acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma exploração inimaginável, violação sexual, controle da reprodução e terror sistemático” (Lugones, 2014, p. 938).
Se a fé cristã fez uso da língua para demonstrar o que seria “certo” ou “errado” no início da Idade Moderna, a missão civilizatória dos séculos XIX e XX apropriou-se da mesma ideia, traçando então uma linha entre as línguas que falam os “civilizados” e as que falam os “selvagens”. Resultado desse longo processo é a associação imediata, no senso comum, entre as palavras “negro” e “escravo”, as quais pertencem ao mesmo campo semântico no imaginário coletivo graças ao sucesso do projeto europeu de colonização político-econômica, mas também mental. Houve escravizados em diversos povos, culturas e civilizações ao longo da História, porém, para o indivíduo do século XXI, pensar em escravidão ainda é, imediatamente, pensar no corpo negro e pensar na África, esse continente outro que foi saqueado em sua riqueza, sua fé e sua linguagem.
Desse modo, parte crucial da dominação europeia era convencer o africano de sua inferioridade em relação à Europa. Foi essa colonização mental que fez ser possível a manutenção tão longeva do sistema escravocrata e, por consequência, seus desdobramentos até hoje. Alberto da Costa e Silva resume essa realidade explicando que “se o negro não podia mudar a cor de pele, tinha de se comportar como se fosse branco” (2013, p. 120). A essa ideia, eu acrescento: falar como branco, isto é, procurar imitar a norma linguística da metrópole e recusar as tantas marcas de africanismos presentes nas línguas faladas ao longo do continente americano.
Como se vê, a formação da sociedade ocidental moderna foi baseada na ideia de que o negro era uma criatura sem fé nos primórdios da empreitada colonial, um selvagem sem civilidade na era industrial e, contemporaneamente, como herança dessa tradição histórico-discursiva, temos o negro, no senso comum, representado, em muitos contextos, pela falta de bom gosto, beleza, valores morais e caráter. Um dos principais elementos que conecta todas essas imagens produzidas pelo senso comum é a língua, esse elástico constantemente interditado enquanto não for embranquecido.
Langston Hughes traduzindo Guillén
Observemos a seguir o poema original e a tradução de Hughes:
Tu no sabe inglé
Con tanto inglé que tú sabía,
Bito Manué,
con tanto inglé, no sabe ahora
desí ye.
La mericana te buca,
y tú le tiene que huí:
tu inglé era de etrái guan,
de etrái guan y guan tu tri.
Bito Manué, tú no sabe inglé,
tú no sabe inglé,
tú no sabe inglé.
No te enamore ma nunca
Bito Manué.
si no sabe inglé,
sino sabe inglé.
(Guillén, 1980 [1930])
Don’t Know No English
All dat English you used to know,
Li’l Manuel,
all dat English, now can’t even
say: Yes.
‘Merican gal comes lookin’ fo’ you
an’ you jes’ runs away.
Yo’ English is jes’ strike one!
strike one and one-two-three.
Li’l Manuel, you don’t know no English
you jes don’t know!
You jes’ don’t know!
Don’t fall in love no mo’,
Lil Manuel,
‘cause you don’t know no English,
don’t know no English.
(Guillén, 1948)
Já no título de Guillén, chama a atenção do leitor a ortografia propositalmente fora da norma do espanhol. A forma linguística, nesse caso, potencializa e se entrelaça com o conteúdo, uma vez que o assunto do poema é justamente a competência linguística do interlocutor. É nessa metalinguagem que a criatividade da crioulização caribenha ganha forma. Dirigindo-se a um “você” cujo referente recebe um nome próprio na primeira estrofe, a voz lírica traz indiretamente a relação entre língua e poder já no nome do texto, tendo em vista que não saber inglês é o problema em torno do qual se desenvolvem todas as estrofes do poema.
Vale lembrar, por isso, que o tema do letramento é recorrente nas literaturas afrodiaspóricas. Apenas para ficarmos com alguns exemplos, o abolicionista Frederick Douglass escreveu que “o conhecimento torna uma criança inadequada para a escravidão” (Douglass citado em Davis, 2016, p. 108). Ainda nos Estados Unidos, há o caso de Solomon Northup e o indispensável diário 12 anos de escravidão, no qual o tema da educação formal aparece com frequência como possível fuga do cativeiro. Esses são apenas alguns exemplos de uma longa tradição de autores e autoras negras que tematizam a necessidade da educação e do domínio da língua como formas de emancipação ou ascensão social, uma lista na qual poderíamos acrescentar Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Lima Barreto e tantos outros.
No caso do poema de Guillén, não falar inglês é, portanto, a questão que move o eu lírico a aconselhar, ao final do texto, que Manuel não se apaixone mais. O tom de sátira da tradição romântica traz ao poema uma certa leveza, ainda que inscrito num tema trágico da experiência negra em países colonizados. No lugar dos amores impossíveis e das donzelas inalcançáveis que povoaram a literatura oitocentista, o poeta cubano retrata um encontro que jamais se materializa pelo simples fato de Manuel não falar inglês. Em outras palavras, Guillén parece eleger o tema de um homem cubano que não fala inglês para tematizar a falta de acesso à instrução formal das populações negras periféricas. Ao mesmo tempo, destaca assim a influência cultural anglo-americana sobre a ilha caribenha. Langston Hughes, aliás, fez algo semelhante em sua obra. Embora tenha tratado o racismo e a segregação com extrema violência na juventude, foi pouco a pouco optando por uma abordagem mais leve e sarcástica para esses temas, culminando na publicação de Laughing to Keep from Crying (em tradução livre, Rir para não chorar). Essa coletânea de contos foi lançada originalmente em 1952 e já no título demonstrava a virada na forma como Hughes denunciou essa grave e constante problemática, causa social da qual nunca abriu mão.
O primeiro verso do poema abre a estrofe com o tempo verbal pretérito, indicando um conhecimento que o interlocutor detinha, mas agora não consegue mais utilizar. No verso seguinte, descobrimos o nome desse você ambíguo já anunciado pelo título: Bito Manué (Victor Manuel) vertido para o inglês por Langston Hugues como Li’l Manuel. Como se nota, a questão fonético-fonólogica é crucial nessa leitura comparada, uma vez que essa camada linguística é, na maioria dos casos, o componente que primeiro se destaca nos africanismos em línguas coloniais europeias. Por esse motivo, no que diz respeito à variação da norma, tanto o criollo cubano como o inglês afro-americano possuem diversos casos de supressão ou troca de fonemas. No caso do português brasileiro, isso também pode ser facilmente ilustrado, como no ensaio de Lélia Gonzalez em que cita o vocábulo Framengo a fim de demonstrar que a troca do L pelo R nada mais é do que herança linguística africana, de modo que reforçar a ideia de “erro” é parte de um projeto ainda hoje presente de embranquecimento nacional (1984, p. 238).
Assim, o espanhol afro-cubano de Guillén suprime sons em final de palavra, como Manuel que se torna Manué, inglés que se torna inglé, decir que se torna desí e yes que se torna ye. Como poderia, então, Langston Hughes transpor essa característica para o inglês estadunidense e seus africanismos? O poeta do Harlem optou também por suprimir um fonema em Li’l Manuel para reproduzir a forma como a palavra inglesa little costuma ser pronunciada no contexto da diáspora. No entanto, é interessante perceber que, em vez de traduzir os fonemas suprimidos por outros fonemas suprimidos, Hughes opta por escrever a estrofe em inglês modificando fonemas no lugar de cortá-los. É o que se observa em that, que vira dat.
Na segunda estrofe, é evocada a presença de uma mulher estadunidense que busca Manuel, cuja falta de domínio do inglês o impossibilita de falar com ela. Nesse momento, vem à tona, além das inovações linguísticas próprias de comunidades afrodiaspóricas, o tema da influência cultural estadunidense sobre os demais países do continente. Manuel conhece “etrái guan y guan tu tri”, ou seja, “strike one and one-two-three”, termos provavelmente aprendidos ao jogar ou assistir às partidas de beisebol dos Estados Unidos. Essas palavras, no entanto, não são o suficiente para se comunicar com a mulher, de modo que ao hispanofalante resta apenas a possibilidade de afastar-se. Essa ironia cômica em torno de um amor impossível dá a Guillén um potencial crítico de, em certa medida, retomar a tradição romântica do século anterior com um sarcasmo que a desconstrói.
Para traduzir os versos da segunda estrofe, Hughes opta pela supressão de diversos fonemas. As palavras ‘Merican, lookin’, fo’, an’ e jes’ são desvios propositais da norma dos vocábulos American, looking, for, and e just, de modo a reproduzir em inglês o tom do espanhol que o poeta cubano usara no original. É interessante perceber, ainda, que, além do aspecto fonético-fonológico evidente em todas as estrofes, Langston Hughes emprega também um recurso da morfologia para realizar uma transposição tão fiel quanto possível do poema original. É o caso do segundo verso da segunda estrofe, em que traduz y tú le tiene que huí (y tú le tienes que huir) como and you jes’ runs away (and you just run away). Aqui, o tradutor inclui o morfema -s da terceira pessoa que contraria a concordância verbal padrão do inglês, potencializando por meio da forma o sentido do texto de Guillén. Como se percebe, em espanhol é suprimida a marca morfológica de tienes e, para encontrar um correspondente no inglês, Hughes acrescenta o morfema que não se encontra na variante padrão do verbo.
Nas duas últimas estrofes, o eu lírico mais uma vez traz Bito Manué com o vocativo que estabelece a interlocução. Dessa vez, repete o título do poema, enfatizando que o homem não sabe inglês e conclui com um conselho: não se apaixone nunca mais, já que não fala inglês. A despeito do invólucro humorístico dos versos, Nicolas Guillén traz à tona uma questão crucial sobre a influência político-cultural dos Estados Unidos no Caribe e na América Latina como um todo. A jovem estadunidense sem nome pode ser lida, então, como uma metonímia dessa potência inalcançável para a imensa maioria dos latino-americanos. Langston Hughes, portanto, conseguiu verter “Tú no sabe inglé” com sucesso para a língua inglesa. Afinal, assim como uma motivação para o poeta cubano, a relação entre língua, raça e poder foi um tema fundamental para o estadunidense, expressão que retratou na poesia, na prosa de ficção e no teatro.
Por fim, encerrando esta breve reflexão sobre os dois poetas, é importante frisar que pensar as marcas fonético-fonológicas e morfossintáticas das variantes afrodiaspóricas do inglês, do espanhol, do português ou de qualquer outra língua colonial vai além da investigação linguística, por si só fascinante. Trata-se, na verdade, de garantir a dignidade de todas as falas, cores, sotaques e expressões, pois, sendo a língua o tecido com o qual damos materialidade ao mundo, a noção excludente de certo ou errado funciona como perpetuação da lógica colonial de segregar para dominar. Eu concordo com Fanon ao dizer que “existe na linguagem uma extraordinária potência” (2008, p. 34). Por isso, iniciativas de respeito e valorização das várias formas de falar um idioma sejam talvez o primeiro necessário passo para reconhecer a potência que há alguns séculos tantas línguas têm sido proibidas de exercer.
* Gabriel Chagas é doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorando em Estudos Culturais e Literários na University of Miami, onde atualmente leciona Língua Portuguesa e Estudos Culturais Luso-Afro-Brasileiros. Recebeu o 1° lugar do Prêmio Antonio Candido de melhor dissertação de mestrado pela ANPOLL.
Referências bibliográficas
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God in the Bible says, “Let there be light”. Only we humans, according to the bible, are in God’s image. So only God and We can say “Let there be light”
But I ask you, what is a rooster at four in the morning saying?
Ursula K. Le Guin, Cheek by Jowl: Animals in Children’s Literature
Hoje não vou tentar te comer. Quero falar com vocês. Houve um tempo em que as mulheres só mugiam.[1] Há uma cidade das vacas e dos bois sob a cidade dos humanos. Há uma carne em sua carne que é mais densa do que a nossa. É possível repetir algumas vezes a diferença entre um boi e uma vaca quando se escreve um livro. Quase como uma piada cuja graça é um trocadilho bobo sobre a presença ou não do chifre. É possível repetir quantas diferenças existem num boi e numa mulher? Quando se escreve e se tem dúvida destas questões basta que te respondam: é um jogo entre o real e o ficcional. Quanta carne de boi se pode comer até que se passe mal? É essa a diferença. O quanto você pode contar da diferença entre uma vaca e uma mulher? O mugido e só. A diferença é o corpo.
Berger escreve no livro About Looking (1980) que os animais são a primeira metáfora do mundo. Ele explica que a primeira relação entre o humano e o animal foi e é metafórica; uma relação construída através do que os humanos e os animais têm em comum: que é, paradoxalmente, sua diferença. Os animais são, assim, o fundo contra o qual a humanidade pensa a si mesma. E é justamente pela metáfora que Rousseau, por seu turno, em seu Ensaio sobre a origem das línguas, afirmava que a linguagem tem a sua primeira aparição. Berger, então, aponta para o fato de que aprendemos a falar com os animais. Todo este ensaio vai ser moldado de atravessamentos, mas a questão que permanecerá é a que inicia o livro Mugido, quando, junto ao poema “mmmm”, Marília Floôr Kosby (2019, s/p) nos diz:
parem pra ver uma vaca mugir já nem digo
ouvir
ouvir é difícil, o mugido de uma vaca parem pra
ver e procurem a próxima nota em que palavra daria
aquela melodia aquele esforço
todo
de guela, olho, bicho, língua, rúmen
que fecunda epifania valeria aquele
esforço todo?
traduzam o mugido
Aqui não busco traduzir o mugido, esse papel talvez deveria ficar a cargo de pesquisadores melhores do que eu, mas sim uma tentativa de mugir em conjunto. Philippe Roucan, um criador de animais, define as vacas como um herbívoro que tem tempo para fazer as coisas. Já Michel Ots as define como seres de conhecimento, que conhecem os segredos das plantas e meditam ruminando: “o que elas contemplam são as metamorfoses da luz desde as lonjuras cósmicas até a textura da matéria […] os chifres das vacas ligam-nas ao poder do cosmos” (Despret, 2021, p. 91). O que estes animais têm em comum com as narrativas? Perceber-se como coexistência.
É interessante a forma como Ieda Magri e Marília Floôr Kosby se ocupam desses animais, vaca e boi, como o objeto central de suas narrativas, o próprio coração de suas narrativas. Quando a protagonista de Uma exposição, uma mulher de 40 anos, revisita sua família e retoma o conceito costelliano de imaginação simpática – escrito por Coetzee, dito por Costello – sobre o movimento de coabitar espaços com este coração pulsante, ao dizer “Se uma escritora é apenas um ser humano com um coração, o que existe de especial no seu caso?” (Magri, 2021, p. 107), respondo: o olhar. Compreender o olhar de um boi que é morto, compreender o olhar de um boi que é vivo, escrever com o olhar é sobretudo reconhecer o companheirismo silencioso, a tal ponto que o que se torna a questão é o reconhecimento de se perceber vivo no silêncio. Quando esta mulher olha o Boi de volta, o boi a escrutina a um abismo de não compreensão. Quando Descartes joga os animais ao limbo da máquina, ao separar corpo e alma e torná-los destituídos de alma, o que resta do olhar entre o humano e o animal é reduzido a apenas uma experiência nostálgica, pois, quando destituído de experiência e de segredos, o que lhes restaria é uma ideia de que eles apenas são sempre observados. O fato de que eles podem olhar de volta perde a importância, a medida do olhar é, sobretudo, uma medida de poder e, por isso, uma medida do que nos separa deles (Berger, 2009, p. 25).
A imaginação simpática proposta por Costello modifica esse modo de olhar, a simpatia atravessa tanto Mugido como Uma exposição. Juliana Fausto (2020, p. 220), ao falar sobre o pensamento costelliano, pontua que há, através das formas literárias que implicam um modo de coexistir com os animais, uma “imaginação simpática” e que isso seria “penetrar com o pensamento na existência”, ou seja, o papel que desempenham os escritores destas literaturas animais seria o de justamente “adentrar com o pensamento a existência de outros seres que jamais existiriam”.
A “imaginação simpática”, que fundamenta uma relação de alteridade, retoma a ideia de Massumi de que o próprio instinto é simpatia. E se o instinto é uma simpatia, a imaginação simpática presente na literatura seria o lugar de jogar com as possíveis formas de alteridade, como aponta Fausto:
O conceito costelliano de imaginação simpática, assim descrito, faz ressoar a discussão encetada anteriormente acerca do instinto criador, sobretudo quando comentávamos que Massumi traz Bergson à baila para dizer, junto com ele, que haveria um “esforço de intuição” e “uma espécie de simpatia” na intenção artística que tornaria possível penetrar o “interior do objeto” – um exemplo do “modo de existência do terceiro incluído”. Além disso, Massumi lembra Bergson mais uma vez ao citá-lo dizendo que instinto é simpatia. Costello, então, se seguirmos essa pista, ao reclamar a simpatia como uma “faculdade […] que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro”, estaria, assim, situando a literatura no âmbito do instinto – aquele tipo de resposta criadora, que sempre supera o dado e se constitui como uma faculdade plástica da vida (Idem, p. 220-221).
As literaturas aqui abordadas são, portanto, dotadas, assim como a vida, de plasticidade. Não seria possível separar o fazer poético de um constructo que pode ser associado a uma determinada capacidade que estas literaturas têm de fazer com que conheçamos a partir dela outros modos de vida.
Por isso, quando falamos da literatura de Magri e de Kosby, estas nos levam a compreender modos de vida animais através do próprio fazer literário; o que ambas propõem em seus romances é uma possibilidade de resistência desses seres a partir de um movimento que estreita a vida destes para além da própria literatura. Magri, ao retornar o olhar para o boi que será comido, a partir de uma construção da narrativa que é uma exposição não apenas de seu corpo, mas também do corpo do boi, e Kosby, ao tentar mover o olhar para a vaca e suas relações entre a própria concepção do que é ser mulher, ou ainda, uma tentativa de “compreender, de verdade, uma fêmea de outra espécie” (Angélica Freitas, apud Floôr Kosby, 2019). Atribuindo a essas narrativas uma desarticulação dentro da articulação da própria linguagem e do mundo, ou então: a capacidade destas literaturas animalistas de conferir acesso à voz,[2] aos pensamentos e aos sentimentos desses outros modos de vida.
É pelo boi e pela vaca, pela mulher e pelo homem, pela mãe e pelo pai que essas narrativas atingem o coração, atingem a simpatia. É possível fazê-las conversar a partir das relações entre a vida e a morte desses animais:
Eu sentia que os bois tinham coração pelo modo como nos olhavam longamente do potreiro enquanto estávamos deitados na sombra sob a árvore onde eles bebiam água. O lugar mais fresco das tardes de verão. Eles chegavam muito perto de nós e era como se entendessem o que estávamos falando. O que nunca nos impediu de comer o coração deles. Assim como nossa mãe, as galinhas também não tinham coração. Eram apenas assustadas e barulhentas. E elas eram muito diferentes de nós. Por exemplo, tinham penas. Por exemplo, os filhos não nasciam de dentro delas. Das vacas, sim. […] Mesmo ao matá-las, duas vezes por ano, nosso pai demonstrava ter coração. Porque seus olhos se enchiam de lágrimas ao matá-las. E porque fazia comentários. É triste, ele dizia. Ou então, Será que sofrem? Ou, Mas é feio de ver, né?! É feio ver um boi morrer. Nossa mãe não se preocupava com essas coisas. Ela não comentava. Devia pensar: passei por coisas piores. Tive dois partos. E depois teria mais dois. E as mortes que a nossa mãe dava cabo eram mais corriqueiras, de menor porte, podia fazer tudo sozinha, eram gestos automáticos. No caso dos porcos e dos bois, além da semelhança conosco – os olhos, os filhos, o lamento ao morrer –, mobilizavam a todos, não se podia fazer sozinho (Magri, p. 75, 2021).
Ou quando escreve Kosby:
angélica,
o parto de uma vaca
não é uma coisa
simples
envolve um útero
imenso
que rebenta
e frequenta não raro
o lado de fora
um rebento imenso!
o parto de uma vaca
requer punhos
firmes
finos porém
matar uma vaca
não é
uma coisa simples
requer um tiro
certeiro
alto calibre
o ponto preciso longe
do meio da testa
dois cavalos três
ou quatro homens
um guri
quem sabe uma mulher
carnear uma vaca
exige sangrá-la
até a última gota
para que a carne
não termine
preta
sangrar uma vaca
é para exímios
comer uma vaca porém (Floôr Kosby, 2019, s/p)
É nesse diálogo entre e com outras formas de vida que essas narrativas se encontram, é sobre estas vozes que faltavam; e como não trair a vaca ou o boi mais uma vez? Como traduzir esses mugidos? Pelas mulheres que convivem com outras espécies e as percebem como estreitamento da vida e como coexistência.
A coexistência da protagonista de Uma exposição se desenrola a partir do corpo e do olhar do boi. O corpo é um pedaço da colcha de retalhos do mundo. Ninguém quer dormir descoberto. Entende tua mãe como entende o boi como entende o pai, a morte do boi grita como a galinha de Camus.[3] É nesse sentido que entendo que é pelo coração/simpatia que ambas as narrativas existem, a diferença entre cada um desses sujeitos é o que marca a própria vida, e é quando os escritores conseguem ensinar mais do que sabem. É nessa distância e diferença que o corpo da mãe compartilha a diferença pela semelhança. O quanto desse corpo é possível comer? Que tipo de digestão é feita quando se come o corpo da mãe? Que tipo de digestão é feita quando se come o corpo do boi? O quanto dessa digestão é possível contar sem que se exponha o próprio corpo?
O segredo da exposição está na retirada da condição humana até tal ponto que não se saiba o que é real ou o que é ficcional, assim como se diz das vacas entrando em contato com o cosmos, ou como, por vários motivos, as vacas serão as primeiras a entrarem em contato com os extraterrestres.[4] É preciso que se veja por fora, é preciso que se veja outro até que em dado momento consiga se perceber como outro desse outro. Despida da humanidade, vestida com o coração. É na zona de indiscernibilidade entre sujeitos que se movimenta a ideia de coexistência.
O segredo do mugido é: mmmmmmmmm.
* Louise Furtado de Souza está vinculada ao doutorado em Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGCL/UFRJ). Mestre em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (POSLIT/UFF), tem graduação em Letras – Português pela Universidade Federal Fluminense (2019).
Referências
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FAUSTO, Juliana. A Cosmopolítica dos Animais. São Paulo: n-1, 2020.
FLOÔR KOSBY, Marília. Mugido [ou diários de uma doula]. Lisboa: Douda Correria, 2019.
LE GUIN, Ursula K. Cheek by Jowl. Washington: Aqueduct Press, 2009.
MAGRI, Ieda. Uma exposição. Belo Horizonte: Relicário, 2021.
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MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política. São Paulo: n-1 edições, 2017.
RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008.
Notas
[1] Adaptação de um trecho do conto “Sinais de um pai sumido, canção” (Ramos, 2008).
[2] “Artaud dizia: escrever para os analfabetos – falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa ‘para’? Não é ‘com vistas a…’. Nem mesmo ‘em lugar de…’. É ‘diante’. É uma questão de devir. O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas se torna. Torna-se índio, não para de se tornar, talvez ‘para que’ o índio, que é índio, se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar a sua agonia. Pensamos e escrevemos para os animais. Tornamo-nos animal, para que o animal também se torne outra coisa. A agonia de um rato ou a execução de um bezerro permanecem presentes no pensamento, não por piedade, mas como a zona de troca entre o homem e o animal, em que algo de uma passa ao outro. O devir é sempre duplo, e é este duplo devir que constitui o povo por vir e a nova terra. […] O povo é interior ao pensador, porque é um ‘devir-povo’, na medida em que o pensador é interior ao povo, como devir não menos ilimitado. O artista ou o filósofo são bem incapazes de criar um povo, só podem invocá-lo, com todas as suas forças. Um povo só pode ser criado em sofrimentos abomináveis, e tampouco pode cuidar de arte ou de filosofia. Mas os livros de filosofia e as obras de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento que faz pressentir o advento de um povo. Eles têm em comum resistir, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente” (Deleuze e Guattari, 1994, p. 131-132).
[3] “Quando Albert Camus era menino na Argélia, sua avó lhe pediu para trazer uma galinha do galinheiro no quintal. Ele obedeceu e depois ficou olhando enquanto ela cortava o pescoço do bicho com uma faca de cozinha, colhendo o sangue numa tigela para não sujar o chão. O grito de morte da galinha ficou gravado com tamanha força na memória do menino que em 1958 ele escreveu um apaixonado ataque ao uso da guilhotina. Pelo menos em parte, o resultado dessa polêmica foi a abolição da pena capital na França. Quem pode afirmar, portanto, que a galinha não falou?” (Coetzee, 2002, p. 75-76).
[4]“Quando leio o que os criadores relatam sobre suas vacas, gosto de pensar que seria com elas que os extraterrestres estabeleceriam as primeiras comunicações. Por sua relação com o tempo e com a meditação, por seus chifres – essas antenas que as ligam ao cosmos – pelo que elas sabem e pelo que transmitem, pelo seu senso de ordem e de precedências, pela confiança que são capazes de manifestar, por sua curiosidade, por seu senso de valores e de responsabilidades ou, ainda, pelo que um criador nos disse e nos surpreendeu: ‘Elas vão mais longe que nós nas reflexões’” (Despret, 2021, p. 91-92).
No ano de 2020, em meio à pandemia do coronavírus no Brasil e no período de aulas remotas nas escolas, as professoras Penha Élida e Olivia Melo organizaram o projeto Lembranças à Carolina junto aos alunos do primeiro ano do ensino médio do Instituto Federal Fluminense do campus Macaé. A partir da leitura em sala de aula do livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, e do contato com vídeos de performance de slam, os estudantes produziram coletivamente um e-book repleto de poemas, artes visuais e audiovisuais autorais. Cada turma criou ainda uma conta no Instagram para publicar as produções realizadas em sala e divulgar o material literário, fortalecendo o papel de protagonismo e autoria desses estudantes. O material foi posteriormente editado e disponibilizado gratuitamente na biblioteca digital do IFFluminense.[1]
Para a produção final do ciclo de aulas, os alunos se dividiram em grupos e elaboraram poemas e performances de slam e produções não verbais, como ilustrações e fotografias, que dialogavam com o movimento slam poetry e com Carolina Maria de Jesus. Ao todo, participaram sete turmas de primeiro ano do ensino médio integrado ao ensino técnico. A criação do e-book final foi de responsabilidade coletiva das turmas, o que envolveu confecção de capa, título, artes, QR codes, etc. Ao fim, o livro digital foi separado por seções, reunindo os trabalhos de cada classe participante.
O trabalho realizado pelas professoras germinou, portanto, na produção de dois materiais finais. O primeiro, o anteriormente citado Lembranças à Carolina: releituras de um quarto despejado, contendo a produção artística dos alunos, e o segundo, Algumas poesias: produções inspiradas em Carolina Maria de Jesus, voltado aos discentes, abordando a pesquisa realizada pelas professoras, questões didáticas e instruções de organização de aulas, um material rico que explicita como os alunos leram e interpretaram Carolina Maria de Jesus.
A questão inicial que impulsionou o trabalho das professoras foi pensar como a autoralidade poderia contribuir para o letramento literário nas aulas de língua portuguesa, uma vez que, em trabalhos anteriores, as educadoras já vinham refletindo sobre a importância do trabalho de produção e publicação de conteúdo literário. Mesmo que, inicialmente, as aulas não fossem pensadas como um trabalho de letramento racial, toda a sua esquematização é um exemplo claro de letramento bem-sucedido que pode (e deve) ser reproduzido por nós, professores, que pensamos o tema.
Em meio à barbárie, por que ensinar literatura? Essa foi a pergunta que a professora Olivia Melo se fez enquanto refletia sobre seu papel como professora da rede pública, ministrando aulas em um período de pandemia nunca visto antes, em um Brasil no qual a necropolítica do Estado ganhava cada vez mais força. A partir dessa reflexão, as professoras buscaram fazer com que os jovens tivessem contato com literatura a partir de um repertório significativo para aquele momento. Nesse sentido, entra em jogo o livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, pobre, moradora da periferia de uma grande cidade que registra em seu diário aquilo que sente e pensa, sua realidade e experiências, evidenciando toda uma potência como escritora.
O livro de Carolina é um exemplo de literatura do século passado que dialoga perfeitamente com o presente vivenciado por aqueles alunos. No mesmo caminho entra o slam poetry, um novo cenário da literatura marginal que rompe com as normas da literatura instituída, um modo de fazer poesia instaurado dentro e fora da fronteira do que tradicionalmente concebemos como realidade e como ficção. Um fazer poético flexível e de período curto de produção, de modo que sempre seja adaptável aos temas e problemas do seu tempo (que, no contexto do projeto, foi a pandemia).
Dessa forma, o cenário político e social do país em 2020 é mesclado à sala de aula, lugar em que o ensino de literatura ganha novo peso-sentido no estado do Rio de Janeiro, que, naquele momento, registrava maior número de mortes por Covid-19 entre pessoas negras e pobres, provando que morte e vida têm valores diferentes a depender da cor da pele. No mesmo ano, o Rio de Janeiro batia ainda o recorde histórico de mortes por policiais dentro de comunidades (a maioria das vítimas negras), polícia que mesmo durante a pandemia seguiu invadindo favelas e exercendo sua licença para matar. O mesmo estado que promoveu condições precárias de isolamento social, dificultando (e em muitos casos negando) o acesso de moradores das favelas à água e ao saneamento básico, necessários ao combate à propagação do vírus.
Logo, o estado passa a criar, a partir da pandemia do coronavírus, uma novíssima tecnologia para o funcionamento do necropoder, um mecanismo bem-sucedido que vem mantendo as funções assassinas do estado (Mbembe, 2016) ativas ao longo das últimas décadas e que agora ganhava reforço. Lélia Gonzalez, ao falar sobre a favela e a divisão racial do espaço em um texto de 1984 intitulado “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, revela uma realidade ainda não superada e que adquire novas camadas com a pandemia:
No grupo dominado o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar. É por aí que se entende por que o outro lugar natural do negro sejam as prisões (Gonzáles, 1984, p. 232).
Quando as professoras se perguntam o porquê de ensinar literatura no Brasil pandêmico, elas mobilizam o lugar da escola como um importantíssimo espaço de reflexão crítica, que historicamente esteve pautada pela perspectiva e pela fala brancas. Em um período agudo de violências contra o corpo racializado, é urgente encarar e debater o mundo a partir de experiências e olhares diversos, uma vez que “a forma mais poderosa de sustentação e manutenção do racismo é a pretensa “transparência”, a neutralidade da linguagem e da história. Em boa parte, é por meio da linguagem que o racismo se mantém e se perpetua de modo aparentemente “invisível” (Almeida, 2017).
Ao deparar em sala com os escritos de Carolina Maria de Jesus e a produção de jovens slammers que estão debatendo o Brasil de hoje, os alunos defrontam (e confrontam) as diversas formas de produção do silenciamento do sujeito-aluno negro, que ao longo da história do Brasil ganharam força a partir dessas novas e velhas tecnologias. Silenciamento a partir da noção de precariedade narrada em Quarto de despejo, como a fome, a falta de saneamento e moradia, ou a partir da falta de cultura e educação (tema constante nas narrativas de coletivos slam, como o Slam Interscolar), impedindo a produção intelectual de pessoas racializadas, dado que a “pobreza e miséria crônicas, ausência de políticas de inclusão social, tratamento negativamente diferenciado no acesso à saúde, inscrevem a negritude no signo da morte no Brasil” (Carneiro, 2005, p. 94). A pandemia do coronavírus foi usada pelo Estado brasileiro como um importante instrumento desses outros silenciamentos de corpos negros e precarizados, o que vemos na falta de atuação dos governos em dar às pessoas mais pobres o acesso a higiene, saúde, vacina, moradia, educação, internet, de uma lista pode seguir adiante.
Torna-se necessário também analisar o outro lado da pirâmide quando tratamos de silenciamento: aquele que silencia. O silêncio dos brancos, ao contrário do silêncio imposto ao negro, funciona como uma espécie de pacto narcísico, que, como escreve Cida Bento em O pacto da branquitude (2022), sustenta um contrato invisível firmado por iguais (homens brancos, em sua maioria), os quais, para manter e alicerçar seus privilégios, desenvolvem uma incapacidade de ver qualquer coisa além de si, engatilhando artimanhas de exclusão e invisibilização da participação negra. Esse pacto narcísico é facilmente encontrado em variados setores da sociedade contemporânea, como em organizações empresariais, na política, nas universidades e nas escolas, respaldado, muitas vezes, pelo mito da meritocracia. O silenciamento branco protege seus participantes em um lugar seguro, onde não há a necessidade de afirmarem ou reverem seus privilégios. Esse silêncio, segundo Sueli Carneiro (2005, p. 115), é uma das táticas mais eficazes de racismo no Brasil, uma vez que omite a existência do problema da discriminação social, problema que atravessa gerações e solidifica cada vez mais a pirâmide hierárquica dos poderes.
Outra tecnologia de silenciamento muito utilizada pela branquitude é a destruição dos nossos arquivos ao longo da história. A partir do trabalho de apagamento das memórias do país, memórias da escravidão, da ditadura, de massacres, para citar alguns dos exemplos, foi-se modelando um Brasil fictício, utópico, para essa branquitude. Ou melhor, um Brasil heterotópico: um lugar dedicado a se opor, a neutralizar, a apagar os lugares demarcados de nossas vidas (Kiffer, 2020), no qual a história, a arte, a cultura e a perspectiva branca passam a ser tratadas como a verídica e dominante, exposta nos museus, divulgada nos jornais, estampada nos livros de história, ensinada nas escolas através das diversas disciplinas.
Portanto, o Brasil se tornou um exemplo bem-sucedido de epistemicídio, ou seja, de ocultação e desqualificação da contribuição do Outro para a história e a intelectualidade do país. O epistemicídio é nada mais nada menos que uma outra representação do silenciamento dos corpos negros e que serve de combustível para a dominação branca. No Brasil, o negro não é apenas impedido de falar, ele tem toda a sua história silenciada e ocultada. Em síntese, a partir dessa discussão, fica evidente a força pulsante e a emergência que há no trabalho de letramento racial realizado em sala de aula pelas professoras Penha Élida e Olívia Melo.
Nessa perspectiva, podemos considerar o projeto “Lembranças à Carolina” como prática efetiva de letramento racial, ainda que não tenha sido planejado explicitamente para esse fim. Na execução do projeto, o letramento literário funciona como via de acesso a um letramento social e racial. Isso acontece não apenas pela tomada de consciência dos alunos a respeito da própria realidade, mas também pelo contato com as diferentes realidades de seus pares e com a lógica que constitui as bases de leitura da realidade social e consequentemente de construção do racismo. Compreender as relações entre diferença racial, segregação e exclusão não implica apenas percebê-las em nível local, mas sim entender os mecanismos de reprodução dessa lógica desde Carolina Maria de Jesus e antes dela.
Anos após o fim da escravidão,
Muitos aspectos mantêm-se inalterados
Já que, mesmo após a Lei Áurea,
Preconceito permanece escancarado
O negro continua a passar sufoco
E sendo descriminado
Tudo devido à dificuldade
Em aceitar a diversidade
[…]
Relatos são marcos
Que não devem ser esquecidos
Cada um tem importância
E Carolina sabia disso
Por isso, escrevia
Por isso, relatava
Sua história de vida
Que para sempre será lembrada
Poema de Maria Fernanda Machado Santos, Rafael de Almeida Prudencio, Rebeca da Silva Paes e Marcelo Gonzalez do Nascimento (p. 36-37)
Estabelecer uma genealogia da produção de uma literatura marginal que desafia a canônica é amparar e fortificar os alicerces de produção da autoria e do protagonismo na produção de conteúdo literário. Por meio desse vínculo de conhecimento da possibilidade de construir e apresentar novas histórias e narrativas, torna-se possível questionar e produzir enunciados que exponham os discursos de dominação epistêmica. A mesma língua que é a base da produção dos discursos segregacionistas e racistas funciona então como meio de subversão dessa lógica.
A língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através das suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é “normal” e quem é que pode representar a “verdadeira condição humana” (Kilomba, 2019, p. 14).
Afirmar identidades e subjetividades contadas em forma de arte e escritas em nome próprio funciona como um ato que transcende o ensino conteudista e se afirma como um ato de formação educacional que é também de emancipação político, social e racial. O combate ao racismo exige posicionamentos contundentes. Dessa forma, “cabe à escola apresentar aos estudantes a diversidade não apenas de textos, de temas, mas também de concepções de mundo, de modos de fazer e dizer” (Almeida, 2017)
COMO DIZIA O POETA
Como já dizia a poeta,
O negro só é livre quando morre
Quando ele morre, há comoção
Mas a justiça é uma negação
E o caso Carrefour?
Aquilo foi uma aberração
Seguranças despreparados
E sem amor no coração
Temos o caso Marielle
Até hoje sem explicação
Será que eles acham piada?
Eles nos devem satisfação
Tudo isso parece novela
Que sempre há reprise
Até quando esse enredo vai ocorrer?
Será preciso outro Luther King nascer?
E, no fim,
Ficam uns questionamentos
Até quando isso vai acontecer?
Quantos precisarão morrer?
Poema de João Alencar, Ícaro Alencar, Álvaro Azevedo dos Santos e João Carlos Rodrigues Maura Rocha (p. 49)
História, Política, Filosofia e Sociologia despertam através do exercício da literatura. Fatos do cotidiano e notícias de jornal são conectados e relacionados através da percepção dos mecanismos que os unem. O projeto alcança assim não só os objetivos a que se propõe, mas também desperta novos sentidos para a prática pedagógica e para o letramento racial. Branquitude, negritude, racismo e segregação não precisam ser tópicos de aula para serem trabalhados ou discutidos. Eles permeiam uma diversidade de temas e constituem as bases de construção de diferentes discursos e realidades sociais.
O DESPEJO É A NOSSA TRAGÉDIA
Oficina de preconceito,
se é preto não é aceito
numa elite só de branco,
Carolina causa espanto
fazendo ode à favela
sem romantizar, sem balela
só poesia nua d’uma vida amarela
sem comunismo, só realismo
pedindo pouco e comendo lixo
dos que vivem no topo endeusando o “mito”,
enquanto o preto morre de tiro.
dizer que é vitimismo é fácil
quero ver ser espancado,
perseguido e chamado de macaco
porque, enquanto branco faz “hashtag”,
mais um preto é morto pelo fardado
Brasil é o país do preconceito
aqui, playboy passa com baseado na mão,
mas, se fosse preto e pobre,
era direto pra prisão,
e ainda dizem que não há discriminação
guerra às drogas põe o jovem pobre no caixão
com esses políticos que não entendem a realidade
com leis e mais leis que não condizem com problemas de verdade.
é tanto racismo e exclusão,
que o preto e favelado
mal tem acesso à escolaridade
é triste saber que dependemos do governo desses animais,
aqui, enquanto uma parte passa fome, a outra pede mais.
dizem que temos os mesmos direitos,
mas sabemos que, no Brasil,
não funciona assim
mesmo que existam aqueles que neguem os problemas sociais,
é como Carolina diz:
as misérias são reais!
Poema de Rafael Ribeiro, Letícia Nunes, Maria Cláudia e Lucas Gabriel (p. 56)
Nas bases foucaultianas do desenvolvimento do processo da escrita de si, o sujeito enfrenta também a realidade de formação das instituições e dos discursos que sustentam a forma como sua identidade é percebida e construída dentro da sociedade. É no processo de escrita que as produções das subjetividades se constituem e novas oportunidades de compreensão das relações raciais e de si mesmo se realizam.
Na parte final do livro (p. 112), o depoimento do estudante Lucas de Azevedo Correia, enviado por mensagem após uma das aulas de leitura coletiva do texto de Carolina Maria de Jesus, mostra o nível de afetação da prática proposta. Mais do que exercício de letramento literário, fica evidente o potencial de estímulo de uma reflexão que parte de uma realidade aparentemente distante em uma esfera temporal e local, mas que pode gerar ecos de empatia e identificação que superam a representatividade e adentram processos psicanalíticos de enfrentamento de processos mentais e emocionais experienciados pelo estudante diante de sua realidade. “Esse livro me quebrou bastante, lembrou de situações que eu enterrei tão fundo em minha mente que eu nem lembrava” (p.112).
O estudante reforça ainda as disparidades de experiências que se refletem na capacidade plena de compreensão da realidade discutida: “Uma pessoa que nunca teve um tipo de contato com alguma das situações (e uma pessoa totalmente sem empatia) vai achar o livro chato e repetitivo. Mas, como já me encontrei em situações como a da Carolina, posso afirmar que essa vida é chata e repetitiva” (p. 112).
Nesse âmbito de afetação dos estudantes conforme a sua própria realidade e experiência, é importante refletir sobre a finalidade do letramento racial. Não se trata de fazer com que todos compreendam ou se coloquem no lugar de alguém, muito menos de gerar ou desenvolver empatia, mas sim de fornecer instrumentos de compreensão dos discursos e lógicas que pautam a criação e a manutenção das relações de poder fundadas na diferença racial. É através dessa compreensão que os discursos e dispositivos podem ser questionados e que o ciclo de reprodução das lógicas de segregação e violência pode ser combatido.
Compreender as formas de leitura do racismo na sociedade por si só não é modo de desmonte do racismo, mas colocar em prática exercícios de questionamento e reflexão a partir dessas formas de leitura pode e deve gerar movimentos antirracistas, como prescreve o Parecer do Conselho Nacional de Educação quando da aprovação da Lei 10639/2003:
Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente (Parecer CNE/CP 003/2004).
As práticas pedagógicas que proporcionam instrumentos para um letramento racial trabalham efetivamente as esferas de formação da identidade, da subjetividade e da compreensão da sociedade e da política. Nesse âmbito tornam-se fundamentais e imprescindíveis, uma vez que o “exercício trabalhado na sala de aula (de letramento racial) pode ser um caminho para que esses indivíduos, que possuem um letramento racial crítico, possam transformar essa conscientização em práticas que venham de encontro à branquitude” (Souta e Jovino, 2019, p. 156).
UMA SITUAÇÃO “COMUM”
A situação no Brasil, é fácil de se entender,
Enquanto uns catam migalhas pra de fome não morrer,
Alguns filhos veem os pais rapidamente adoecer.
Uma mãe de 3 filhos luta diariamente pra vencer.
Diariamente crianças morrem.
“Muito triste, mas é normal!”
Preço da gasolina subiu
“Vamos fazer uma manifestação quase internacional?”
Você se pergunta,
“Onde está tudo isso? Toda essa algazarra?”
A resposta é simples,
É difícil ver a dor da janela da sua casa.
“Onde está toda essa dor?”
O silêncio, sobretudo, é ensurdecedor.
Poema de Bruno Garcia, Breno Oliveira, Rayhan Chamoun e Kayc Rodrigues (p.48).
* Jade de Soares do Nascimento é mestrando em ciência da literatura pelo PPGCL/UFRJ com pós-graduação em educação pela PUC-RS e bacharel cum laude em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Faz parte do grupo de pesquisa em Poesia Contemporânea da UFRJ e publicou seu livro bilingue de poesia Sublime Ideal em 2021.
* Guilherme dos S. Ferreira da Silva é doutorando em ciência da literatura pelo PPGCL/UFRJ. Desenvolve pesquisa sobre poesia negra contemporânea com ênfase no trabalho poético realizado virtualmente por coletivos de slam poesia. Faz parte do Laboratório da Palavra (PACC-UFRJ) e seus últimos textos publicados foram “Eles querem sangue: rompendo estereótipos da poesia negra e periférica” (2023) e “Pode o marginal falar em tempos de pandemia?” (2021).
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Cia. das Letras, 2022.
PARECER CNE/CP 003/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. 2004.
CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. São Paulo, USP, 2005. Tese de Doutorado.
GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
KIFFER, Ana. O Brasil é uma heterotopia. Coleção Pandemia Crítica. São Paulo: n-1, 2020.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1, 2016.
MELO, Olivia; PENHA, Élida. Lembranças à Carolina: releituras de um quarto despejado [recurso eletrônico]. Macaé, RJ: [s. n.], 2021.
SOUTA, Mariveta; JOVINO, Ione da Silva. “Letramento racial e educação antirracista nas aulas de língua portuguesa”, Uniletras, v. 41, n. 2, p. 147-166, jul/dez. 2019.
Atravessamentos Discursivos e Corpóreos no Relato dos Partos de uma Mulher Preta em Situação de Rua
Partindo da análise de dados provindos de relato de parto, o presente trabalho, de cunho qualitativo-interpretativista não essencialista, visa compreender a construção e os efeitos dos discursos dominantes nos partos de uma mulher negra que já esteve por muito tempo em situação de rua, bem como as construções identitárias e implicações em movimentos de agentividade durante o evento do parto.
Os dados gerados foram analisados à luz da análise de narrativa e das performances adotadas em interação pela participante, estando alinhada à Linguística Aplicada Crítica (Moita Lopes, 2006) e à perspectiva de um caminho de pesquisa voltado para a equidade, para a escuta atenta aos grupos subalternizados e para as transformações necessárias no campo social. Servirá de aporte teórico metodológico a Análise de Narrativas. Para tal, me ancorarei sobretudo em Histórias de vida de Linde (1993), entendendo que um parto é evento altamente reportável que vem a constituir o repertório de histórias de vida de alguém, sendo algo a ser contado e recontado no curso de uma vida de acordo com as circunstâncias.
Percepções sobre violência obstétrica
Cunhado na década de 1970, violência obstétrica é um termo antagônico à humanização do parto, conceito que viria a ser amplamente disseminado na década de 1990. Entendo por violência obstétrica o abuso ou privação de medicalização; patologização de processos naturais (gestação e parto); usurpação da autonomia e poder de decisão maternos, dizendo respeito a ações relativas ao parto que afetam a dignidade e geram danos à mãe e ao recém-nascido. Embora seja esta a forma como a violência obstétrica é compreendida pelo senso comum, é este um termo disputado no contexto médico e com diferentes perspectivas de entendimento.
Cabe lembrar que a violência obstétrica extrapola a esfera das violências deferidas sobre o corpo físico, haja visto que as violências verbais também ferem a dignidade humana e geram traumas, distorções e violações sobre a percepção que a parturiente tem de si enquanto mãe, mulher, cidadã, sujeita, fixando a experiência singular do parto como um momento de sofrimento por toda a vida. Aquilo que aqui entendemos por violência verbal tem raízes espraiadas nos grandes Discursos[1] normativos do racismo, do patriarcado e da medicina. Segundo Diniz et al (2015 p. 91) há uma correlação entre raça, classe e escolaridade, visto que mulheres negras, pardas e com menos escolaridade são as principais vítimas de violência obstétrica.
A medicina tradicional e normativa crê-se soberana. Tende a lidar com os pacientes como se diante de alguém destituído de subjetividade. Como se um corpo apenas, sem opiniões, sentimentos, ingerência. Dona de verdades e performando como um deus, a medicina normativa é branca e masculina em sua espinha dorsal. No que diz respeito ao tratamento deferido a pacientes mulheres dentro da medicina tradicional, as assimetrias se escancaram. Se falarmos de mulheres não brancas e de classe popular, o fosso é ainda mais fundo.
O termo “violência obstétrica” continua sendo um tabu entre os profissionais de saúde, mais especificamente dentro da assistência ao parto, e sua aderência na área médica ainda encontra resistência por ser assimilada aos conceitos de patologização, patogenização e medicalização do parto. (Leite et al. 2022, p.486). Entende-se que haja a partir daí uma espécie de “zona cinzenta”, um terreno nebuloso onde não se pode definir ao certo se determinado procedimento seria de fato abuso ou banalização por parte da equipe médica ou se houve necessidade, de fato, de realizar tal procedimento. Os movimentos sociais pró-humanização do parto têm se empenhado no sentido de fomentar reflexão sobre a temática e de denunciar determinadas condutas que não correspondem ao entendimento de um parto verdadeiramente humanizado e respeitoso. As mulheres negras e de baixa escolarização foram e continuam sendo os principais alvos de violências, abusos, desrespeitos e privações durante o parto, conforme apontam os indicadores de qualidade da atenção ao parto da pesquisa Nascer no Brasil.[2] Para Diniz et al (2015, p. 4):
[…] quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela. Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro.
O acúmulo de intersecções de eixos de subordinação é fator que delimita a dimensão da opressão sofrida. Enquanto o entendimento de violência intervencionista mais óbvia ao senso comum acomete as mulheres brancas/ de classe média, as mulheres racializadas, além disso e sobretudo, sofrem pela falta de assistência e abusos subjetivos – linguísticos, psicológicos, morais, identitários.
Apesar da esmagadora incidência de violências sofridas por essas mulheres, os entendimentos podem ser distorcidos, uma vez que a mentalidade intervencionista da medicina obstétrica brasileira ainda entende que determinadas intervenções (vide a episiotomia, corte feito no períneo com o intuito de facilitar a passagem do bebê; a manobra de Kristeller que consiste em pressões fortes na região da barriga para acelerar a expulsão da criança; o uso indiscriminado da ocitocina sintética, sendo a ocitocina um hormônio naturalmente produzido pelo corpo feminino que pode estimular as contrações uterinas; e a cesárea eletiva) sejam sinônimo de cuidado e precaução, contrariando as orientações da Organização Mundial de Saúde, que lista estes e uma série de outros procedimentos não recomendados durante o evento do parto.
Por um enfoque de/descolonial
Na intenção da adoção de um enfoque verdadeiramente des/decolonial, me aplico a entender que a experiência da maternagem, bem como do parto, desponta sempre de um corpo sócio e historicamente situado. Para Antoniazzi (2021, p. 93), alinhando-se a bell hooks, a afirmação da interseccionalidade é base para um feminismo que não opera no registro da opressão no sentido da reprodução do racismo ou classismo que despontam de uma visão universalista. Situações são vivenciadas e descritas por corpos situados. A generalização não contempla as partes que constituem o todo, sendo o caminho o acolhimento da diversidade de experiências sem que um enfoque se sobreponha ou se imponha aos demais.
Para Haraway (1988, p. 23), importam as perspectivas parciais por seu viés categoricamente crítico. A autora advoga por uma prática de objetividade em prol da contestação, da desconstrução e da reconstrução de possibilidades de ver. Posiciona-se, assim, a favor de epistemologias não universalizantes, corporificadas, complexas e contraditórias, nebulosas, sem clareza ou precisão (1988, p.30, p.41). Ainda em Haraway, vem bem a calhar dentro do tema de pesquisa aqui desdobrado o entendimento de que “vários corpos biológicos em competição emergem na interseção da pesquisa e dos textos biológicos, das práticas médicas e outras práticas de negócios, e da tecnologia” (1988, p.4). Tratamos aqui de uma disputa de entendimentos situados e corporificados acerca de um evento (igualmente situado e corporificado). Apenas alguns deles, os não marcados, se naturalizam e se respaldam pela capa da objetividade científica, enquanto os corpos marcados, com todas as suas complexidades, são objetivos em sua não objetividade – isto é, muito dizem dentro de sua imprecisão crítica.
Lugones também trata a descoloneidade como tema central. A autora aponta a crítica ao universalismo feminista por parte das mulheres racializadas e do terceiro mundo, denunciando que a denominação “mulher negra” é intersecção que evidencia um apagamento, como se a categoria “mulher” contemplasse apenas algumas, as não marcadas. De acordo com Lugones, tais hierarquias e dicotomias são elementos fundantes do pensamento colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade, que, basicamente, se vale da separação entre humano e não humano, guarda-chuva maior para outras dicotomias (homens e mulheres, por exemplo). É a partir de tais binarismos e dicotomias que os colonizados são subjugados. Quem denomina – dá o nome, intitula – é o colonizador, homem, branco. Entre os animais, a fêmea sendo vista como um piloto ou um avesso do macho, esse sim, a perfeição. Mas se os colonizados são seres primitivos, menos que humanos aos olhos do colonizador, as categorias “homens” e “mulheres” não lhes caberiam. Afinal, “a diferenciação racial nega humanidade e, portanto, gênero às colonizadas” (2014, p. 943), sendo gênero uma imposição colonial que ignora outras cosmologias e formas de perceber e ser no mundo. A autora propõe a partir daí um pensamento de fronteira feminista, entendendo que esse “locus fraturado”, essa liminaridade de fronteira, seja em si lugar próprio, e não uma mera cisão que propulsiona a repetição de hierarquias dicotômicas ad aeternum (2014, p.947). Um feminismo de/descolonial não apaga a diferença colonial, pois é a partir da observação crítica dessa diferenciação que há o espaço para a renovação.
Assim, me aplico ao exercício de suscitar o olhar para esse pensamento de fronteira como espaço onde coabitam cosmologias diversas e de onde é possível percebermos umas as outras e firmar a coalizão feminista e descolonial, tal qual idealizada por Lugones.
As maternagens são múltiplas
A maternidade sempre ocupou lugar central em culturas não ocidentais, haja vista o papel da mulher nos países da(s) África(s) no período pré-colonial, com o prevalecimento do senso de coletividade e igualdade de gênero. Ainda hoje, a experiência da maternidade é considerada locus e fonte de poder (e resistência) para as mulheres negras em muitos países. A maternidade negra é política, uma forma de ativismo social que como tal empodera e é reconhecida como status dentro da comunidade (O’Reilly, 2021, p. 121-122). No entanto, é importante salientar a importância também da autodefinição (p. 133) dentro dos processos de maternagem. Afinal, as experiências e a relação das mulheres negras com a maternagem não é a mesma das mulheres brancas. Enquanto as feministas brancas falam em divisão de tempo com as crianças para disputarem no mercado de trabalho em pé de igualdade com os homens, as mães negras expressam muitas vezes o desejo de passarem mais tempo com seus filhos, não podem se dar ao luxo de serem donas de casa e muitas vezes estão trabalhando como cuidadoras dos filhos de outras mulheres (quase sempre brancas), que terceirizam parte da maternagem para se lançarem no dito mercado de trabalho. Contam então com suas redes de apoio dentro de suas comunidades – o othermothering – como estratégia de sobrevivência (O’Reilly, 2021, p. 118-119). A generalização da maternidade como um problema “de mulher” é uma encrenca que pasteuriza, essencializa e generaliza o que se entende por “mulher”, sendo denominado pela parcela normativa das mulheres que se creem estruturalmente como a régua do mundo feminino. Esse imbróglio afastou muitas mulheres negras do “movimento feminista” (O’Reilly, 2021, p. 114), termo que, como é possível inferir pela explicação acima, já é em si problemático e acachapante.
O feminismo matricêntrico, comprometido com uma perspectiva interseccional, se distancia de essencialismos e de conceitos prévios que universalizam a experiência materna e é um guarda-chuvas que abarca uma multiplicidade de formas de maternar, entendendo que partam de lugares próprios, situados e sociocircunscritos. Assim, se propõe a colocar as mulheres mães em posição agentiva, com autoridade e autonomia (O’Reilly, 2021, p. 104).
Mulheres mães em situação de rua: entre opressões, intersecções, resiliência e agência[5]
Ser mulher-mãe em situação de rua no Brasil é condição que vai de encontro ao ideário normativo da “boa mãe” (Badinter, 1985, p.238), desafiando padrões e atribuições de um dispositivo da maternidade[6], uma vez que ser mãe e os entendimentos de maternidade são construções sociais. Conforme sintetiza Santos et al. (2021, p. 2): “trata-se de mulheres que vivem em um profundo contexto de desamparo e desproteção social, desafiando normas instituídas sobre o que é ser mulher e mãe, provocando respostas do Estado”. Por representarem esse desafio ao que é tido como padrão, são então submetidas a violências múltiplas: medidas proibicionistas, políticas intervencionistas e normas punitivas. Mesmo que esse conjunto de violências interfira nos direitos da mulher e, dentro deles, nos direitos reprodutivos, são legitimadas pelas instituições (como ocorre nas separações compulsórias de mães e filhos), sob o argumento de que essas mulheres não são capazes de dar conta de sua prole, sendo indexicalizadas com perigo, criminalidade, prostituição e correlações preconceituosas entre a situação de rua e o uso de drogas, que desconsideram contexto e nuances. Essas mães são, em sua maioria, mulheres negras e se defrontam com um emaranhado de estigmas e preconceitos em interseccionalidades de raça, gênero e classe, em uma sociedade de mentalidade colonial, racista e patriarcal. Por não serem reconhecidas pelos discursos normativos dentro do protótipo social eugenista de “boa mãe”, encontram resistências constantes na criação de seus filhos e filhas, sendo confrontadas por discursos moralizantes de culpabilização e consideradas, dentro da lógica dos discursos hegemônicos, como um desvio (Mendes e Venosa, 2021). Seriam, então, um “desafio lançado à natureza, a a-normal por excelência” (Meruane, 2014, p. 15) e, por tal motivo, sofrem inúmeras cobranças (Rezende, 2020 p. 211), enquanto nesse movimento de responsabilização a figura paterna segue incólume em seu completo apagamento. Segundo Collins (2019, p. 304), “o ideal tradicional de família delega às mães plena responsabilidade pelas crianças, avaliando seu desempenho conforme sua capacidade de obter os benefícios de uma família nucelar”. A responsabilidade recai única e exclusivamente na mulher.
A ideia de maternagem cooperativa encontra ecos nos entendimentos sobre maternidade e maternagem de comunidades africanas, que muito diferem das construções normativas eurocêntricas. A maternidade é conceito chave nas culturas afrodescendentes, tendo a mulher protagonismo e relevância nessas sociedades (Collins, 2019, p. 292-298). As mães de criação, aquelas que dão suporte às mães de sangue na divisão de responsabilidades, ajudam a consolidar as redes femininas de cuidados cooperativos e se constituem de avós, irmãs, primas, tias, mas muitas vezes extrapolam relações consanguíneas. Em se tratando das mulheres negras em situação de rua no Brasil ou em redes de apoio de mulheres negras de forma geral, o que percebemos é que há mulheres que podem sentir na própria carne o que passam outras mulheres na mesma condição, tendo muitas vezes sido vítimas de opressões raciais do Estado intervencionista ou tendo testemunhado violências contra os seus. (Collins, 2019. p. 299).
Se é um fato dado que a força estruturante dos discursos hegemônicos mira no massacre dessas identidades forjando cobrar agência e apontando o dedo em riste para faltas e renúncias, é bem verdade que a agência cobrada já preexiste. E resiste. As mulheres mães (quase sempre pretas) em situação de rua têm em sua prole a latência da vida, da esperança, da mirada para o futuro e da ressignificação de sentidos de si e do mundo. Embora o desejo de maternar dessas mulheres em situação de vulnerabilidade extrema não encontre garantias de concretização, dadas as desigualdades profundas e necessidades específicas, ele se manifesta como possibilidade de construção de outras formas de caminhar pela vida (Santos et al., 2021, p. 7). A maternidade constitui para essas mulheres locus de transformação, de organização da subjetividade e resgate identitário (Zanello e Richwin, 2022, p. 79).
De uma perspectiva narrativa, o potencial de transformação que o maternar suscita em mulheres em situação de rua, tão presente em suas práticas discursivas, se articula, muitas vezes, como pontos de virada em suas histórias de vida (Kings et al, apud Santos et al, 2021, p. 11). Collins elabora como a maternidade, como símbolo de poder, pode promover crescimento pessoal, além de elevar o status das mulheres dentro da comunidade negra e, ao mesmo tempo, impulsionar o ativismo social (Collins, 2019, p. 296). Agência e maternidade, sob esse enfoque, andam de mãos dadas e determinam a forma como irão encarar e lidar com as questões que orbitam suas maternidades.
No momento em que o feminismo normativo olha com desdém para as mães engajadas em políticas de maternidade, coloca também em xeque o potencial de empoderamento da mulher-mãe na comunidade negra (Collins, 2019, p. 321). A despeito dos percalços e obstáculos na superação de opressões interseccionais, a maternidade e maternagem negras são símbolos de poder, que politizam, movem, produzem agência.
As agruras enfrentadas pelas mulheres mães em situação de rua deveriam ser encaradas como urgência pela pauta feminista. Ocorre que o feminismo normativo entende suas lutas como prioritárias e, à medida que o faz, tende a se limitar a pautas relacionadas exclusivamente à igualdade de direitos, não contemplando as necessidades urgentes de mulheres em situação de vulnerabilidade extrema: manterem-se vivas. Nas palavras de Kendall (2021, p.19):
[…] mulheres pobres que sofrem para colocar comida dentro de casa, pessoas de regiões pobres que têm de lutar para manter escolas abertas e a população que luta para ter o básico em questão de escolha sobre o próprio corpo também são questões feministas e que deveriam receber atenção dentro dos movimentos.
Crenshaw (2004), feminista negra que desdobrou o conceito de interseccionalidade[7], mostra em seus estudos o quanto as mulheres negras se deparam com dificuldades em relação aos problemas enfrentados, experienciando um agravamento da vivência dos problemas que se impõem pelo discurso dominante através dessa dupla opressão de ser mulher e negra. Um reflexo disso é que constituem a parcela social com menos recursos financeiros. Como mencionado, quando se encontra em situação de vulnerabilidade extrema, há outras prioridades mais urgentes do que a pauta por igualdade salarial, tais como questões relacionadas a alimentação e moradia. Denuncia então a opressão da categoria “mulheres” como limitada, essencializante, genérica e normativa.
Retomando Kendall (2021, p. 23), “tudo que afeta uma mulher é uma questão feminista, seja acesso a transporte, alimentação, educação ou salário mínimo”. Assim, o feminismo verdadeiramente interseccional não há de ser internamente hierárquico ou inclusivo por condescendência.
Estudos da Narrativa
Como uma ramificação dos estudos da interação, a análise de narrativa tem como objeto de estudo as narrativas que emergem em encontro social. Seu foco é microescalar – ou seja, focado em situações específicas, situadas e circunscritas em termos geográficos, históricos e sociais. No entanto, cada fala e história faz parte, constitui e diz sobre o macro – a sociedade como um todo, as influências culturais e seus discursos circulantes – havendo uma relação intrínseca entre ambos.
Histórias de vida e pontos de virada
Uma perspectiva fundamental neste trabalho, à qual irei me reportar, são as histórias de vida (Linde, 1993). Para Linde, todos temos histórias que nos constituem e que contamos e recontamos no curso de uma vida. Trata-se fundamentalmente de histórias relacionadas a marcos biográficos, como nascimento, casamento, doença, trajetória profissional. A autora entende que as histórias sofram acréscimos ou decréscimos a cada vez que são contadas, por adequações ao contexto da produção e performance, entendendo que o narrar é sempre situado e relacionado ao que se quer tornar relevante, e também por artifícios da memória e suas minúcias. Linde coloca ainda que uma história de vida contém algum ponto avaliativo extremamente significativo sobre quem narra ou sobre o que é narrado, além de trazer a questão da reportabilidade estendida como um aspecto fundamental de uma história de vida. Para que uma certa unidade discursiva seja considerada uma história constituidora da vida de alguém, ela deve possuir algo extremamente reportável que justifique ser contada e recontada ao longo dos tempos. Por se tratar de um acontecimento com grandes implicaturas, um parto integra, portanto, o repertório de histórias de vida de alguém e a narrativa de tal evento costuma vir encadeada e dar sentido a outras – prévias ou posteriores à narrativa do nascimento em si.
O “ponto de virada” (Mishler, 2002) é também uma categoria narrativa que servirá de aporte para a compreensão de guinadas nos rumos das histórias contadas mediante acontecimentos inusitados ou momentos considerados divisores de águas. Trata-se da construção narrativa de eventos destrutivos em um momento passado pontual que marcam e transformam a vida de alguém (Bastos & Biar, 2015). Segundo Mishler (2002:107), os pontos de virada seriam percebidos pelos narradores como
eventos que abrem direções de movimentos inesperados e que não podiam ser previstos por suas visões anteriores do passado, levando-os a um outro senso de si próprios e levando-os também a mudanças que traziam consequências para a maneira como eles se sentiam e para as coisas que faziam.
Dentro de um contexto de uma história de vida, os pontos de virada são então os elementos que configuram o reposicionamento de alguém diante de grandes marcos em suas experiências, reatualizando a percepção das mesmas e forjando identidades. Conforme veremos, o evento do parto é, potencialmente, um momento de transformações profundas na percepção dos sentidos que se tem sobre si, sobre a própria vida e sobre o mundo
A Força da Avaliação na Narrativa
No presente trabalho, iremos focalizar a avaliação, entendendo sua importância no valor que se atribui a um dado referente através de sua carga emocional e percebendo-a como a razão de ser da narrativa – aquilo que lhe confere o propósito de ser narrada e de sua reportabilidade.
Em Labov & Waletzky (1967), a avaliação pode se apresentar de duas formas na narrativa, podendo ser externa ou encaixada. A avaliação externa se dá quando o narrador interrompe seu relato e diz ao ouvinte a sua percepção sobre o fato narrado. Já na avaliação encaixada, o narrador faz sua avaliação de forma indireta, pela utilização de recursos linguísticos, como entonação; aceleração ou diminuição do ritmo de voz; alongamentos de vogais e repetições, não havendo, assim, interrupções do fluxo narrativo.
Alinhada com tal perspectiva, Charlotte Linde ressalta que na avaliação se encontra a expressão/dimensão da linguagem, exposta através de indicativos da ordem social do narrador. Com um viés mais contemporâneo e social da narrativa, Linde entende a avaliação como algo que constitui a determinação social de sentido atribuído a alguém, a suas ações e ao seu entorno (Linde, 1997, p. 165). Para ela, avaliação e prática social estão diretamente relacionados, sendo a avaliação um elemento através do qual se estabelece a negociação em interação social. A autora lança entendimento sobre a avaliação como um fator essencial para a compreensão de uma determinada pessoa, de suas ações e de seu contexto (Linde, 1993, p. 152).
Em tradução livre: “a avaliação compõe o coração da narrativa: a narrativa oral é bem mais sobre chegar a um acordo sobre o sentido moral de uma série de ações do que sobre um mero relato dessas ações”. Uma vez que avaliação e emoção mantêm uma relação de interdependência, não é possível separar avaliação de discurso. Emoções, avaliação e discurso estão interligados, influenciando-se mutuamente em uma indissociável relação de interdependência.
A seguir, serão analisados os partos de Dinara. Os excertos apresentados são unidades narrativas provindas de uma narrativa maior. Algumas apresentam traços mais canônicos, outras menos. As unidades narrativas podem ser percebidas como partes que funcionariam de forma independente, mas que se inter-relacionam na composição de um todo. Valho-me assim da metáfora do mosaico para aludir aos eventos narrativos que compõem esse painel maior do panorama de uma história de vida.
Dinara
Seus partos são por ela remontados olhando em retrospecto para a sua história de vida e inúmeros atravessamentos que marcaram profundamente sua humanidade enquanto mulher negra e moradora de rua. Tais partos por si sós não são construídos como focos centrais de violências físicas e discursivas em sua vida. Ela relata sua saga com muitos momentos que definem sua trajetória de forma abrupta, e os partos, por esse viés, embora também entalhados com a marca dos discursos hegemônicos, não são mais definidores do que o todo que compõe a sua vida. Proponho que possamos entender que os partos de Dinara não podem ser vistos como eventos isolados, dada a magnitude de suas experiências dentro do contexto situado de onde parte. Os partos de Dinara são parte do que constitui a complexidade de sua história de vida (Linde, 1993) e não serão analisados linearmente, pela necessidade de observarmos outros aspectos fundamentais fundantes de sua vida e de sua forma de se construir no mundo.
A vivência na rua está longe de ser um detalhe na vida de Dinara, se relacionando diretamente com sua percepção de si e do mundo, o que inclui a forma como constrói os atravessamentos em torno do seu maternar. Já os partos são eventos inteiros por si só. Cada parto é uma história que faz parte e sofre influência direta de uma história maior: a vivência na rua.
Se construções ocidentais em torno da maternidade (a partir da industrialização) reforçavam, dentro do “dispositivo da maternidade” performances esperadas da mulher-mãe como a figura que nutre, cuida, educa por instinto e vocação atrelando à mãe o “domínio” da esfera privada, tal relação se complexifica quando pensamos em contexto. E, evidentemente, o construto da maternidade não passa ileso pelos processos de colonização e escravização no Brasil e pelo encontro das concepções europeias sobre o maternar com as concepções culturais indígenas e africanas. Somado a isso, as relações de poder também ditavam as formas de se experienciar e dar sentido à maternidade/ maternagem (Zanello, 2018, 2022). Enquanto cabia à mulher branca procriar e seguir a cartilha ocidental de boa esposa e mãe devota, as mulheres negras tinham seus filhos arrancados de si “como bezerros separados de vacas” (Davis, 2016, p. 19), seja para servirem de amas de leite e “mães pretas” para os filhos das sinhás (Gonzalez, 1984, p. 229, 235), seja para a venda de seus filhos, escancarando a face da desumanização da mãe-mulher-preta na lógica colonial. Esse tipo de violência infligido às mães pretas as leva para movimentos de resistência dentro de seu maternar. A criação de redes de apoio e criação coletiva tem influência de entendimentos da cultura africana, em que maternar não é algo da esfera do privado e do vínculo biológico direto e se ancora na coletividade e na cooperação (Collins, 2019).
Os estigmas sociais sentidos pelos que se encontram em situação de rua marcam seu relato. Em diversos momentos é possível notar a associação dessa comunidade com uma suposta inaptidão para que se exerça o papel de “boa mãe”, construída no ideário dominante.
Análise do parto de Danilo
Em meio às dores de parto, o que poderia passar como sutil pelo filtro da naturalização se escancara à medida que Dinara dá vazão e extravasa sua dor:
“Se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha” – sobre poder e opressão
ela falou “não, deixa ela romper porque pode ser que nasça normal” eu fiquei lá, fiquei lá, fiquei, fiquei, quando ela viu que eu gritei, subi, desci, deitei, rolei, ela viu que eu não, ela falou pra mim, “se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha”, eu com quinze anos lá, fiqueidesesperada, ah vou parar de gritar, e fiquei ((simula estar fazendo força abafando o som)) aí:::, ela veio, me botou na mesa, abriu minha perna e fez um toque, eu fazia força e a cabeça do Danilo não passava↓, eu faziaforça, fazia força
A fala da médica que atende Dinara toma forma de uma ameaça. Em um momento delicado, onde o esperado é o acolhimento, a ameaça de desamparo ganha peso. Através do recurso poético da repetição (“fiquei lá, fiquei, fiquei,”), Dinara enfatiza o tempo que passou esperando o momento de nascimento. Marca e avalia seu esforço e dificuldades físicas pelas quais passou durante o parto através de uma sequência de verbos no passado (“quando ela viu que eu gritei, subi, desci, deitei, rolei,”). A fala construída aparece na narrativa como uma construção de ameaça de abandono: “se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha”). Diante da ideia iminente de ser deixada por conta própria no ambiente hospitalar por estar externalizando sua dor pelo grito, Dinara marca em avaliação o sentimento acometido: o desespero (“fiquei desesperada”). A instituição médica tem tal força que faz com que se leve a crer, muitas vezes, que devemos mesmo seguir à risca o que dizem, mesmo que isso implique coibir nossos instintos. Assim, Dinara se esforça a ir contra a própria natureza e abafar o grito (“ah vou parar de gritar”). Novamente, constrói em sua narrativa uma agentividade impositiva por parte da equipe médica, tendo as pernas abertas e o toque subsequente sem o seu consentimento ou sem que ao menos seja informada de antemão sobre as manobras as quais seria submetida (“aí:::, ela veio, me botou na mesa, abriu minha perna e fez um toque”). Seu esforço e agência no sentido da realização do parto é também marcado pela repetição “eu fazia força, fazia força “.
Análise do parto de Maya
A percepção de violências linguísticas e psicológicas mobiliza em Dinara o sentimento da indignação e da raiva. Abaixo, Dinara narra a recusa da médica em tocá-la:
“Parece que loira tem alguma coisa contra mim, porque não é possível” – violências linguísticas, abandono institucional e seus desdobramentos: raiva, humilhação e revolta
DINARA
não é! ela não me tocou, porque também minha vagina tava com cabelo, me chamou de porca, falando que eu não me raspei, que eu tinha que vir raspada, falou que não aceitava gritando, eu falei: “moça, mas tá doendo”“tem que se controlar, senão vai ficar aí”, de ironia comigo porque eu tava lá, não podia levantar, não podia socar a cara dela, porque se eu fosse levantar eu ia meter a mão na cara dela, mas com a mãe aberta, ela acabou de parir, ((inaudível)) parece que a loira tem alguma coisa contra mim porque não é possível
BARBARA
uma coisa chamada racismo, né?
O circo perverso desferido a uma mulher negra em situação de rua marca sem cessar quem tem o poder e o faz com mais afinco diante de qualquer movimento de insujeição/insubmissão.
Dinara por um momento modaliza e justifica a médica se recusar a tocá-la por não estar depilada: “porque também minha vagina tava com cabelo “. Elenca então a sequência de humilhações desferidas pela médica: “me chamou de porca, falando que eu não me raspei, que eu tinha que vir raspada, falou que não aceitava gritando”. A força opressiva, mesmo com a revolta gerada, respinga e semeia a culpa, no movimento de vai e vem pendular já exposto anteriormente. Ela também constrói como a médica poderia se valer de sua condição para humilhá-la, uma vez que ela não poderia reagir à altura, como gostaria, pela sua condição de uma parturiente deitada com as pernas abertas (“não podia levantar, não podia socar a cara dela, porque se eu fosse levantar eu ia meter a mão na cara dela, mas com a mãe aberta“). A percepção do racismo é então emulada (“parece que a loira tem alguma coisa contra mim porque não é possível “). A humilhação aflora diante do tratamento recebido.
Ainda sobre o racismo:
“Ela tinha que me tratar como ser humano” – racismo institucional
BARBARA
ela era a principal assim?
DINARA
a principal
BARBARA
entendi
DINARA
entendeu? ela era a principal, isso que me deu mais tristeza, porque ela tinha que me tratar como ser humano e ela não me tratou, ela me tratou igual um bicho, falando que eu tinha, eu fiquei desesperada porque eu achei, será que é algum exame que ninguém me informou? eu fiz meu pré-natal todinho da Maya, não me informaram que eu tinha nada, eu fiquei dormindo naquele treco lá, eu fazia meus pré-natal todinho e não me informaram, no finalzinho que eu não consegui completar, por causa do negócio da enchente, eu perdi o cartão, perdi documento, perdi tudo, e ela me tratou daquela forma, igual um lixo, e já não tinha nada, aí começou lá na maternidade mesmo, um doou uma roupinha, fralda, eu saí de lá com o ganho da maternidade do pessoal que tinha me doado quando eu perdi as coisas na enchente
O sentimento de tristeza (“isso que me deu mais tristeza, porque ela tinha que me tratar como ser humano e ela não me tratou “) é destacado em forma de avaliação dentro combo das humilhações do contexto do racismo institucional. Dinara denuncia em seu relato a bestialização e desumanização (“ela me tratou igual um bicho”, “me tratou igual um lixo”) sofridos e como aquilo vinha em um momento de extrema vulnerabilidade: uma mulher negra, em situação de rua, parindo e ainda tendo perdido tudo o que tinha em uma enchente. Em sua narrativa, se questiona sobre o que possa ter deixado passar, já que seguiu todo o protocolo do pré-natal.
Análise do parto de Lia
A seguir, Diana relata o momento em que se deu conta que sua filha iria nascer:
“Eu fiz o meu parto” – ponto de virada: agentividade pelo protagonismo no parto eu” botei a mão, não, eu prendi a respiração, porque a contração tava vindo e se eu empurrasse com força, ela ia, eu ficava assim, metremendo, me tremendo, aí eu levantei devagarzinhome tremendo, a contração parou, aproveitei que eu contava o tempo da pausa da contração, eu tampei o vaso, tirei com uma mão só, era uma coisa de louco, cara, eu tive que passar meu avental, aqueles que eles botam, branco, pelo soro, pelo negócio que segura o soro, abaixar lá embaixo, puxar, tirar, dobrar, abaixar
Relata então todos os passos cautelosos que adotou sem qualquer intervenção externa. Mesmo com medo, marcado em sua fala pela repetição “me tremendo, me tremendo”, esteve a todo tempo nas rédeas da situação. Enumera uma sequência de verbos no passado (levantei, tampei, tirei), que não apenas definem uma narrativa canônica, mas que aqui cumpre o papel de enfatizar sua agentividade: tampou o vaso, tirou apenas uma mão, passou o avental até embaixo, dobrou… A agentividade segue sendo marcada:
“(Fiz tudo) Sozinha” – sobre marcar a autonomia e agência
BARBARA
você fez o parto sozinha?
DINARA
sozinha, aí eu abaixei, a Lia saiu
BARBARA
não tinha ninguém perto?
DINARA
a Lia saiu, ela saiu dentro da bolsa
BARBARA
empelicada, não é isso que fala?
DINARA
é, ela saiu assim, dentro da bolsa
BARBARA
mas como é que você se sentiu? você tendo feito o parto dela?
DINARA
não, eu fiquei desesperada mas era muito bonito, eu não senti dor naquele dia, eu não senti uma dor, ela era muito pequenininha, ela nasceu um feijãozinho
O relato da construção de um parto sem interferências físicas ou discursivas parece associado a um sentimento de orgulho e uma consciência plena do próprio processo que permite a contemplação de sua beleza (o nascimento de um bebê empelicado, que descreve como “muito bonito”) além de não operar no registro da dor (“eu não senti dor naquele dia”), mesmo com o que descreve como um desespero pelo inusitado e pela responsabilidade sobre algo tão valioso que é nascimento de um filho. Sobre a momento em que a estagiária se dá conta de que Dinara fez seu parto, relata:
BARBARA
mas não te deu ao mesmo tempo um alívio que não tinha ninguém, era só você e ela? ela saiu, foi você que tirou
DINARA
é, não tinha ninguém, ela saiu, ninguém me machucou, mas veio a doida da menina, estagiária, que eu gritei, não desesperada, “oi, me ajuda aqui”, aí ela veio, eu super calma, quando ela abriu a porta, ela “ahhhhhh, meu Deus, calma mãe, calma”, eu “tô calma” “mas calma, olha pra mim, ai meu Deus o que eu faço” e não sabia o que fazer, aí fez assim na pele, não falava coisa com coisa, na bolsa, aquele saco lá, bolsa ((inaudível)) que fala? ela tocou na bolsa, mexeu, aí estourou, a Lia se esticou, aí a bolsa pá:::, e eu toda encantada lá, coisa que eu nunca tinha visto
BARBARA
falam que é lindo
DINARA
é uma coisa mágica, só que depois que saiu a Lia,
Dinara chama atenção no excerto acima para como, em um parto por ela executado, saiu ilesa, sem machucados de qualquer ordem. Ao pedir por ajuda, no entanto, a estagiária novata é descrita como alguém desnorteada, sem nenhuma intimidade com os protocolos de um parto e que pedia calma repetidas vezes a Diana como forma dela própria se acalmar. Mediante um toque, a bolsa estoura e revela Lia empelicada como um momento raro de magia.
BARBARA
deve ter sido o primeiro parto que ela viu na vida dela
DINARA
que ela viu na vida, ela falou, que foi o primeiro parto que ela viu, mais louco (.) ela “menina, você é incrível, hein? você teve a neném sozinha, eu quase matei sua filha, você reanimou ela”, ela chorava tadinha, deu pena dela, e eu toda emocionada, foi, eu fiz o parto da minha filha, eu consegui fazer ela respirar, eu tive calma, eu não gritei, não me desesperei, não tinha médico me apontando, eu fiz o meu parto, eu fiz o meu parto da Lia (.) Lia nasceu muito fora do peso, bem pequenininha porque eu não me alimentava direito
Aqui se coloca que a enfermeira estagiária era mesmo novata e não havia nunca presenciado um parto, muito menos como aquele. Suas qualidades de mãe empoderada são aqui corroboradas e enaltecidas pela enfermeira (“menina, você é incrível, hein você teve a neném sozinha”), que, nesse discurso construído, admite sua inabilidade e se responsabiliza por isso (“eu quase matei sua filha, você reanimou ela”). O sentimento de pena aqui, mais uma vez, evoca o esmaecimento da força da instituição médica (“ela chorava tadinha, deu pena dela”).
Por fim, conclui, com uma coda (uma espécie de “moral da história” que fecha a narrativa, após a qual volta-se ao tempo presente) que reafirma sua potência enquanto mulher mãe preta, a sua grande virada, rompendo com convenções de poder normativo. Elenca ela as suas ações: “eu fiz o parto da minha filha, eu consegui fazer ela respirar, eu tive calma, eu não gritei, não me desesperei, não tinha médico me apontando, eu fiz o meu parto, eu fiz o meu parto da Lia”. A filha é dela. O parto é dela. Dela e de mais ninguém.
A partir da pesquisa aqui proposta, espero ser possível fomentar pensamento crítico a respeito dos atravessamentos discursivos e questões sociais enfrentados por mulheres mães em diferentes contextos sociais (levando em conta, sobretudo, os efeitos que raça e classe vêm sobrepor sobre a condição de ser mulher-mãe Penso aqui que a humanização seja premissa básica em esferas sociais e institucionais na formação de profissionais de saúde e também para além da obstetrícia e da área médica. Por fim, as inter-relações cultura-discurso-corpo-afeto evidenciam como as determinações linguísticas não nos atravessam sem deixar suas marcas. Na mesma medida, seguir os rastros discursivos pelo faro das emoções (tão gritantes nas avaliações) permite reelaborar e redimensionar a experiência vivida.
* Barbara Venosa é doutoranda em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio, pesquisadora e artista visual. É também membra do grupo de pesquisa NAVIS – Narrativa e Vida Social, coordenado por Liliana Cabral Bastos e Liana de Andrade Biar.
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Notas
[1] Discursos com “D” maiúsculo aqui fazem oposição aos discursos com “d” minúsculo. Segundo Paul Gee (2001), os Discursos dizem respeito ao que permite identificar grupos sociais, suas ações, valores, conhecimento, possibilidades de existências, estruturas, dizendo respeito à estrutura macrossocial). Já os discursos se relacionam com o uso da linguagem, compreendendo a esfera microssocial.
[2] A pesquisa Nascer no Brasil, liderada pela Dra. Maria do Carmo Leal e sob coordenação geral da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz), consiste em um estudo histórico que coletou dados de 23.894 mulheres, em 191 municípios e 266 hospitais, entre 2011 e 2012, e sintetizou pela primeira vez as práticas de atenção ao parto e nascimento no país, no século XXI.
[3] A imagem faz parte da instalação artística Par(t)ir, de minha autoria (bem como as fotografias de minha obra) que fez parte da exposição coletiva Mátria, no Parque das Ruínas, Santa Teresa, Rio de Janeiro, entre dezembro de 2022 e março de 2023. A obra é um desdobramento interdisciplinar da pesquisa aqui disposta e é composta por treze esferas de argila (preta, terracotta e tabaco) dispostas em três escalas diferentes. Cada esfera craquelada possui uma incisão, aludindo às violências múltiplas sofridas por mulheres de diferentes locais sociais no advento do parto. Das três esferas maiores, ecoam os relatos de parto de três participantes de pesquisa, sendo uma delas, Dinara.
[5] A construção dessa seção foi movida pelos sentimentos gerados durante minha entrevista com Dinara, a partir da qual se escancara como o maternar das mulheres em situação de rua é uma questão complexa, embebida de múltiplas camadas e atravessamentos sócias e com sentidos próprios, e que muito embora seja uma realidade de uma quantidade expressiva da população do país, segue invisibilizada.
[6] Para Foucault (2000, p. 244), um dispositivo seria um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. A abordagem sobre um dispositivo da maternidade é aqui feita a partir de tais construções acerca do entendimento sobre poder e suas relações e modos de subjetivação.
[7] Há controvérsias em relação à autoria, visto que Lélia Gonzalez já se debruçava sobre a temática. Mas de uma forma ou de outra, foram pioneiras.
[8] Modelo baseado nas propostas jeffersonianas de transcrição.
Um dos maiores problemas que as feministas têm enfrentado ao longo do tempo está na sustentação de nome que nos designa, qual seja, feminismo. Heloisa Buarque de Hollanda, em declarações públicas, disse que achava terrível a resistência que a palavra causava, mas que, de fato, via grande afastamento de parte das mulheres, em especial, as periféricas, por causa do horror que repercutia na coletividade a palavra “feminismo”. Sim, representações hostis fizeram do feminismo uma palavra que apavora e, sem dúvida, essas representações são fruto das produções simbólicas, imaginárias, discursivas que o patriarcado operou enquanto sistema linguístico.
As igrejas e suas formas de entender e explicar o princípio do mundo e a disseminação de sua moral, ao lado da linguagem entendida como neutra, para carregar esses valores favorecem a incompreensão do termo e do sentido histórico nele contido. O que chamamos de misoginia se efetiva hoje no processo de produção dessa incompreensão, na desinformação e confusão em torno da temática de gênero e tudo que ela aborda. O patriarcado, enquanto uma das faces do capitalismo, é um sistema comprometido em difundir o discurso de ódio às mulheres e outras minorias políticas, da mesma forma com que o racismo partilha da operação do capitalismo para garantir seu discurso de ódio aos negros e a outras etnias não brancas.
O feminismo tem um potencial epistemológico radical não só pela ação política nele implicada, mas também porque carrega o sentido da luta epistemológica contra o patriarcado. Acredito que a luta atual do movimento feminista plural passa, necessariamente, a ser uma luta que briga para dizer seu próprio nome. E, a partir da afirmação de sua própria existência, segue sendo atacada pelo sistema de opressão e vigilância vigente. Ouso afirmar que dizer-se feminista é, portanto, uma declaração de participação no enfrentamento ao patriarcado e não é à toa que o feminismo, assim como gênero, sejam termos utilizados contra suas próprias signatárias. Ao pautar a insubmissão das pessoas ao sistema heteronormativo branco e capitalista, a máquina de produção linguística do patriarcado transforma o problema que o feminismo cria para ele em um problema para as feministas. A violência patriarcal implica não apenas a força física ou verbal, mas todo um jogo retórico e de inversão de sentidos.
A misoginia, enquanto discurso de ódio, afeta a imagem das mulheres e das lutas feministas em favor do círculo vicioso entre violência verbal e simbólica próprias à dominação patriarcal. Se agentes da discursividade misógina usam o “feminismo” em contextos ofensivos (como o termo “feminazi”, muito popular aqui no Brasil), nessa esteira, o que o sistema consegue é que muitas mulheres passem a abominar o feminismo e outras tantas jamais se sintam seguras e confortáveis para afirmarem-se como feministas. Se, de um lado, algumas pessoas permanecem alheias à análise concreta da realidade, de outro, não querem adotar em suas vidas uma expressão desabonadora que pode vir a prejudicá-las. Se ser mulher ou ser um corpo inadequado ao patriarcado implica a misoginia, já que o patriarcado cria o feminino como um outro a ser abatido, ser e dizer-se feminista implica a possibilidade de ser alvo da misoginia duas vezes.
Não consigo parar de pensar que não é só o termo feminista que sofre com a perversidade sistêmica. Nós, as feministas, sofremos os mesmos preconceitos das mulheres em geral, e nessa matemática atrevo-me a dizer que as mulheres não feministas também sofrem preconceitos como se feministas fossem. Porque a violência patriarcal não coloca no alvo tão somente a sobrecarga política oriunda da palavra maldita, o feminismo, muito pelo contrário; a palavra “mulher” também faz parte da episteme violentada pelo patriarcado; o próprio objeto da misoginia está no corpo dissidente, neste caso, no da fêmea da espécie humana ou, melhor dizendo, das mulheres. Mulher seria, então, um dos termos marcadores de fracasso social, tanto assim que servimos como ofensa, na máxima “só podia ser mulher”, ou ainda, quando fugimos do enquadramento, na outra máxima “nem parece uma mulher”. Ou seja, enquanto corpo ou palavra, as mulheres não conseguem sair do alvo nem enquanto sujeitos mesmos de seus corpos, muito menos enquanto sujeitas de sua ação política enquanto autodeclaradas feministas. O patriarcado trabalha nas duas vertentes para impedir o gesto performativo da autoafirmação, que torna alguém dono de si, ou seja, dono de seu próprio corpo. A misoginia desempenha um papel fundamental nesse processo, impedindo o feminismo como uma mediação necessária para a produção da consciência acerca do direito ao corpo.
Para além do preconceito estrutural construído pela modernidade, que está ligado à palavra, é visível que a operação patriarcal tem buscado evitar que a luta das mulheres avance, e este é o escopo da ação de silenciamento. Usando o preconceito reiterado, atualizado, o patriarcado consegue produzir uma rejeição à luta fundada na rejeição ao termo usado para expressar a luta. Se dizer é fazer (Butler, 2021), a fala violenta é ação em si mesma, mas também incitação a violências materiais e físicas que criam e recriam condições simbólicas e concretas em um círculo vicioso. A misoginia é parte fundamental da pragmática do discurso falogocêntrico; entendendo o patriarcado estruturado com uma linguagem própria, à medida que também estrutura a própria linguagem em um movimento dialético, a misoginia garante a ordem simbólica, conceitual e moral, ou seja, as próprias condições de possibilidade do patriarcado diante das ameaças que ele sofre por parte dos que se negam à sua exigência de submissão.
No contexto atual, a misoginia é o discurso oficial, e as mulheres e os corpos dissidentes divergentes passam a ser vistos como uma fraqueza ou um erro da natureza; se assim é, só posso dar péssimas notícias, pois nós, mulheres feministas, não passamos de um duplo erro da natureza e, com a força da nossa atuação, estamos disputando para que nossa existência também não seja considerada um erro da cultura. Feministas seriam, sem dúvidas, as bruxas da contemporaneidade e portadoras de algo antinatural: sua insubmissão. Acho que dá para ver um exemplo da misoginia didática quando pensamos no ódio a livros como O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, com sua crítica às mulheres que apoiam o inimigo, e sua teoria do seu “caráter inessencial”, no patriarcado, diante do caráter essencial dos homens.
A misoginia, como atitude da linguagem, sempre foi providencial na organização da violência para que ela funcione efetivamente de maneira orquestrada. Ela está presente quando se associam mulheres à natureza: na imagem da natureza, no que se diz da natureza, e no prisma usado para se construírem discursos sobre as mulheres. A situação de fala não é, portanto, um simples tipo de contexto, algo que pode ser facilmente definido por seus limites espaciais e temporais (Butler, 2021, p. 15), pois ser violentado pelo discurso é perder o contexto, é não entender onde se está. A redução da imagem da mulher e sua ligação à natureza, por meio do discurso, faz com que a certeza de espaço seja abalada. Toda qualidade preferida ligada a um dado da natureza nos coloca em posição subjugada. Mas é claro que essa falta total de agência foi e é reiterada pelo patriarcado, tornando-o eficiente em providenciar espaços de insegurança para as mulheres. Esses espaços geram mais violência quando nossos corpos estão soltos, avulsos, sem localização conhecida, e a violência é uma metodologia de separação aplicada às mulheres e aos corpos que deseja controlar ou descartar. O poder é uma metodologia criada entre os homens para garantir sua coesão, segurança e proteção, algo que as mulheres não devem usar segundo as normas do sistema patriarcal. Se as mulheres usarem a confiança umas nas outras como metodologia, o sistema sustentado na diferença hierárquica entre homens e mulheres pode ruir.
O feminismo é um operador teórico-prático, que pode funcionar como dispositivo de combate à ordem patriarcal, mas desmontar a máquina misógina é como desativar um programa de pensamento, que orienta o comportamento dos corpos, porque o patriarcado é o verdadeiro articulador do pensamento misógino, que orienta a ação na direção do favorecimento dos sujeitos privilegiados dentro do sistema capitalista. O ódio ao feminismo está ligado ao sistema capitalista de forma compulsória submetendo os corpos e os dispositivos de linguagem.
Em uma tentativa de entender o paralelo entre linguagem e o sistema patriarcal, imaginemos o seguinte: mulheres sofrem com o patriarcado em geral; pessoas trans têm problemas burocráticos, legais e sociais a enfrentar com o seu “nome social” frente ao lugar do “nome” que lhes foi dado pela família em sua estrutura patriarcal; o feminismo enfrenta com seu nome, nomenclatura designada, um problema criado pelo patriarcado. Talvez seja possível tal comparação para fins de entendimento do que considero uma questão de gênero ou um problema linguístico: o feminismo, como expressão carregada de incômodo, trabalha na mesma lógica que uma pessoa trans ou um corpo de mulher no mundo patriarcal; por ser considerado um termo inadequado, o feminismo luta pelo reconhecimento de sua dignidade enquanto termo. Sendo assim, acredito que o problema do nome na cultura patriarcal sempre foi um problema de gênero. Todo problema de gênero é linguístico, mas também performativo. Pesa sobre os corpos violentados pelo patriarcado a proibição de dizerem quem são e como se veem por meio de suas próprias palavras sob pena de atingirem, de maneira manifesta e provocativa, a condição de sujeito, deixando de ser objetos do patriarcado. Entre o nome próprio e a biografia, e entre o nomear a si mesmo e o poder de definir uma autobiografia, avança a política da verdade feminista ou uma ética feminista de promoção de uma política de verdade.
A violência exercida nos corpos considerados abjetos pelo sistema patriarcal tem correspondência na violência que se faz à teoria produzida por mulheres, teorias que disputam a epistemologia e tentam reduzir o patriarcado a somente mais uma teoria. Essas teorias, que estão em rota de colisão com o sistema, ficam na mira da artilharia patriarcal, de um lado, pelo apagamento acadêmico, contra o qual as teóricas feministas vêm lutando, e, de outro, por fundamentalistas que atacam a prática feminista, organizando-se para persegui-la.
Atualmente, existe um campo de batalha em torno da expressão “ideologia de gênero”, e talvez este seja o melhor exemplo do que está em jogo. A artimanha pela qual a citada expressão utiliza uma definição conceitual para combater aquelas estudiosas e todo o campo de estudos de gênero tornou-se popular no Brasil, inclusive em meios escolares. Com que intuito? A pesada violência conceitual contra teóricas, pesquisadoras, estudantes, escritoras, a reflexão, a ciência, o mundo acadêmico e a escola adquiriu ares de verdade em um movimento de populismo patriarcal. Nessa guerra, talvez possamos dizer que estamos assistindo a um retorno da caça às bruxas, sendo “gênero” a nova bruxaria. É bom que a gente se lembre de que o uso distorcido e falacioso da expressão “ideologia de gênero” passou a ser comum a partir de uma Conferência Episcopal da Igreja Católica ocorrida em 1998 em Lima, no Peru. O tema da referida conferência foi A ideologia de gênero – seus perigos e alcances. E de volta à cena, a operação religiosa ocupa seu lugar de nortear contra quem o conjunto da sociedade deve se preocupar, quem deve ser combatido e quem está a serviço de forças obscuras. Da perspectiva da igreja católica, cria-se uma espécie de monopólio epistemológico sobre o tema da sexualidade a partir da ideia de uma natureza sexual que o termo gênero vem questionar. O conceito de gênero passa a ser entendido, do ponto de vista religioso, como uma ameaça.
O gesto da autoafirmação, dizer e contar a própria história, assume o mesmo lugar de sujeito que o herege e a “bruxa” tinham na Idade Média. Dizer-se feminista torna-se uma ousadia e, no extremo, uma heresia pela qual a pessoa é demonizada. Nomear-se é um gesto de empoderamento. Aquele que nomeia é dono do poder simbólico sobre o outro na ordem do discurso. O que está em jogo é, ainda e mais uma vez, o problema da autoridade que implica a “autorização” para dizer o que ou “quem” se é. E esse aspecto diz respeito a um problema mais que verbal: o modo pelo qual algo entra na ordem da linguagem e adquire existência no mundo humano movido pela máquina da linguagem. Pois é, não é possível desconsiderarmos o patriarcado como também um dispositivo que tem, nos termos gênero e sexo, peças de sua engrenagem para promover a dominação. O feminismo tem tentado mostrar que o funcionamento dessa máquina, movida pelo “princípio de identidade masculino” e pela “política da identidade patriarcal”, precisa ser freado. Nesse processo, a epistemologia feminista cumpre um papel fundamental, e acaba sendo tratada como alvo permanente do ódio do opressor.
A invasão das Américas, ou a “descoberta” do mundo novo, pode nos ajudar a entender a política da linguagem colonizadora em analogia com a política da linguagem patriarcal. O caráter de negação da existência de seres humanos antes dos descobridores/invasores é notório quando estudamos a nossa história, mas a negação do outro é parte intrínseca do caráter de dominação presente na política colonial. “Índio” foi o nome dado aos seres humanos encontrados por aqui, e a nomeação do outro está implicada na política da colonização própria à história das Américas. A posse da terra descoberta/invadida foi feita também através de atos de linguagem. A atitude verbal é o que permite a ação da “posse” sobre o Outro. As palavras proferidas nas cerimônias servem à legitimação da propriedade e acobertam o crime de apropriação indébita, para dizer o mínimo, do mesmo modo que os discursos cerimoniais de sedução romântica que fizeram sucesso no período do amor cortês acobertam violências sobre corpos femininos sob alegação de “conquista”. Conquistar a terra e conquistar a mulher fazem parte de uma retórica colonial de dominação, que era feita por homens; entendido assim, posso dizer que o repertório de conquista faz parte de uma retórica de dominação patriarcal.
Nessa trilha, é possível entendermos o porquê, um pouco mais à frente, de os discursos jurídicos de “legítima defesa da honra” e “crime passional” servirem para acobertar crimes de feminicídio, por exemplo. O destino das mulheres ou das terras conquistadas é a sujeição ao homem e/ou a morte, ou seja, sujeição à normatividade estética e política do patriarcado ou a morte literal. A relação entre o poder patriarcal e a violência que ele produz para se perpetuar desemboca em simbolismos e práticas de feminicídio, seja na literatura, no cinema ou na vida.
A docilização e submissão produzidas na matriz de subjetivação feminina têm relação direta com a morte à qual as mulheres estão condenadas. A perseguição às mulheres e a violência contra elas são sustentadas pelo discurso misógino; para docilizar as pessoas marcadas como mulheres, foi inventado o conceito de “feminino”. O feminino é o termo usado para salvaguardar a negatividade que se deseja atribuir às mulheres no sistema patriarcal como uma coisa inofensiva. Parece-me que a produção epistemológica da colonização e do patriarcado se utilizam de métodos e objetivos idênticos; a colonização é epistemológica e patriarcal, assim como o patriarcado é uma forma de colonização baseado em uma epistemologia da dominação. Ela se dá sobre pensamentos e corpos, sobre o espírito e a matéria, sobre a cultura e a natureza e sobre as mulheres e os territórios. Penso no patriarcado como um dispositivo com regime epistemológico e afetivo amparado na linguagem. Dentro deste dispositivo, podemos entender ou enxergar o machismo e a misoginia como um dos jogos de linguagem que exerce um controle calculado nas ideias, nos conceitos, nos textos e nas palavras para o controle dos corpos. Então vai ficando óbvio que todo o controle dos corpos precisa e passa pela linguagem e também pela língua e, ao longo da história, as instituições que dominam a linguagem dominam o corpo.
A necessidade de nomear, lá na descoberta do mundo novo, nos mostra uma forma de pensar, de se emocionar e de agir, que se funda no princípio de identidade masculina e funda com ele uma matriz subjetiva, cuja principal ação é a marcação do outro com o objetivo de submetê-lo. Tal gesto linguístico aparece e reaparece mostrando seu caráter originário e constitutivo do patriarcado colonial ou da colonização patriarcal. Definições tais como “mulher”, “homem”, “macho”, “fêmea”, “hermafrodita”, “sexo”, e toda uma terminologia que escapa à criação feminina e feminista, fazem parte da necessidade de apreender com palavras, e depois com elas hierarquizar a ação ou mesmo a própria vida. Todas as palavras importam, e em nenhum regime as palavras ocupam papéis neutros. Em última instância, isso pode querer dizer que nenhuma palavra está isenta dos jogos de poder, violência e colonização. Embora poder e violência estejam entrelaçados intimamente, e a violência possa ser exercida sem palavras, o poder precisa muito mais delas. Comumente, as mulheres são lançadas na violência e afastadas do poder. A consciência feminista não pode ser solipsista ou universalista como é a consciência patriarcal. Desse modo, proponho que estejamos atentas à intimidade entre diálogo e feminismo na superação dos jogos de poder utilizados pela linguagem patriarcal, bélica e devoradora.
Tomando o diálogo como um operador feminista, que nos permite estabelecer ligações entre os modos de pensar e fazer feministas, levando em conta nossas singularidades, penso que ele, o diálogo, poderá ser um facilitador da ascensão feminista para práticas emancipadoras e transformadoras do momento em que estamos inseridas. O feminismo conecta uma pluralidade de mundos. Em um trecho chamado “A Conversação” de seu livro Metafísica da juventude, Walter Benjamin aborda as potências do diálogo ao fazer a seguinte pergunta: “Como conversavam Safo e suas amigas?”. Essa pergunta se constrói no contexto de um elogio do silêncio que, na visão de Benjamin, as mulheres reconheceram muito melhor do que os homens. Levando em conta a oposição silêncio e diálogo, que surge nessa pergunta, e entendendo que o silêncio também é parte do diálogo no ato de linguagem, em uma relação dialética, acredito ser o silêncio parte fundamental da alegoria metodológica do que se produz em termos de uma potência feminista. Não acredito que este movimento benjaminiano aconteça à toa, pois Benjamin evoca Safo distante das conversas socrático-platônicas e desloca a atenção sobre o diálogo socrático para o desconhecido, complexo e misterioso diálogo entre as mulheres.
O diálogo é o pano de fundo de toda textualidade filosófica e literária das quais as mulheres sempre estiveram excluídas. Por exemplo, no diálogo O Banquete, de Platão, existe uma cena em que as mulheres devem se retirar para que a conversa filosófica comece a ter lugar. Trago para este texto mais dois conceitos que podem nos ajudar a entender melhor o lugar das mulheres nesta antimonologia. Dialogicidade e polifonia, conceitos que encontrei em Bakhtin: a “multiplicidade de vozes e consciências independentes” apresentam o feminismo mais como uma multiplicidade de visões, de questões e, sobretudo, de singularidades que se expressam construindo o seu campo de ação do que como uma visão unitária sob a qual devem se encaixar os discursos, as teorias e as práticas feministas. O feminismo passa a ser um espaço aberto de diálogo ou um diálogo aberto diante das regras instituídas pelo patriarcado.
O feminismo pode até continuar carregando o mal-estar de ser quem se pretende em termos de nomeação. Realmente, não existe feminista que não seja vista com olhos de condenação ou mesmo uma figura da mulher que age contra a natureza. Mas também é preciso que estejamos cientes de que o horror causado por essa palavra é proporcional à sua força. O feminismo sempre foi uma fala inadequada, porque ele é uma fala de mulheres de todas as formas e tipos, bem como de seres que escapam às denominações do patriarcado. Diante do discurso patriarcal, ele mesmo uma ideologia e um fundamentalismo, o feminismo é uma forma dialógica e uma nova episteme. A sua história é a história da luta contra a opressão epistemológica administrada pela misoginia enquanto prática astuciosa da razão patriarcal.
O embate do feminismo é também o de ressignificar corpos e palavras subjugados por uma ordem injusta, que se sustenta pela produção de um discurso de violência. Não existiria patriarcado sem misoginia. Seja imaginária, simbólica ou física, a violência é o destino das mulheres e de todos os seres inadequados à heteronormatividade traçada pelo patriarcado. Nunca houve nada mais eficaz nos processos de subjugação, e por isso podemos dizer não apenas que o poder é um dispositivo, mas que a violência é um dispositivo quando se trata de mulheres. E, mais do que isso, ela é um método que foi introjetado na forma de pensar e de sentir dos sujeitos envolvidos. Coloco minha esperança de que, contra a opressão patriarcal ancorada em seu discurso, o diálogo feminista possa ser um caminho de emancipação das mulheres e dos corpos dissidentes.
* Drica Madeira é doutora em Ciência da Literatura/UFRJ e pesquisadora do PACC – Letras/UFRJ com bolsa FAPERJ Pós-Doutorado Nota 10.
Referências bibliográficas
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução Sergio Milliet 2 ed – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.
BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do humana. In: Jeanne – Marie Gagnebin (Org.). Escritos sobre mito e linguagem (1915 – 1921). São Paulo: Editora 34, 2011, p. 212 -156
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
______. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
______. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
______. Discurso de ódio: Uma política do performativo. Editora Unesp, 2021.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
PINHO, Isabela. Tagarelar (schwätzen): itinerários entre linguagem e feminino. Minas Gerais: Ed. Relicário; Rio de Janeiro: Ed. PUC-rio, 2021
Certa vez, quando eu era ume mere trabalhadore sapatão assalariade em um prédio comercial no Rio de Janeiro, eu fui à cantina do prédio tomar um café no balcão e fiquei conversando com a atendente. Eu usava uma roupa de trabalho tipicamente “masculina”: uma calça de alfaiataria, uma t-shirt preta, cinto e sapatos de couro preto recém-engraxados. Era um momento em que eu começava a ter uma relação saudável e criativa com a minha identidade de gênero, e estava me sentindo muito bem com o meu corpo – apesar de ainda não saber muito bem o que eu era, ou o que estava me (trans)tornando. Um médico que tinha consultório no mesmo prédio onde eu trabalhava abriu a porta da cantina e se sentou ao meu lado. Era um senhor de cabelos brancos, por volta de uns setenta anos. Ele puxou papo comigo e conversamos por alguns minutos. Em algum momento ele perguntou: “você está em qual série?” e eu fiquei um pouco espantade e respondi: “meu senhor, eu já tenho até doutorado, como assim qual série?”. Eu vi o seu rosto mudar para uma expressão incógnita, pasmo. Ele então tossiu limpando a garganta e com sua curiosidade médica questionou: “Os seus irmãos também são assim, sem barba?”. Eu olhei para a atendente com quem eu conversava diariamente, e trocamos um sorriso cúmplice, e eu olhei novamente para a entidade médica e respondi: “Não, eles têm barba”. Finalmente entendi o motivo de toda a entrevista: o médico achava que eu era um rapaz adolescente, e ao se dar conta de que eu era mais velhe, ele não concebeu outra possibilidade a não ser uma espécie de característica genética familiar que me levasse a não produzir barba e a ter uma aparência de um homem jovem. Agradeci gentilmente à atendente pelo café, me despedi do médico e o deixei com sua pulga atrás da orelha, enquanto eu me dirigi ao elevador para retornar ao meu trabalho.
Eventos como esse são constantes na minha rotina, e eu comecei a perceber que o meu corpo falava comigo, ele interagia com os outros corpos e me mostrava que ele estava em fuga constante, que ele escapava ao inteligível, que ele estava em êxodo das possibilidades que a metafísica platônica ocidental concebia para ele (e os saberes médicos ocidentais). Meu corpo ocupa uma brecha que hoje eu chamo de sapatransnão-binárie ou sapatão não-binárie, ou de simplesmente não-binárie. Sou um corpo de fronteira, um corpo que não está lá-nem-cá, um corpo que está lá & cá. A partir dessa percepção, percebi que há uma possibilidade de escapar dos gêneros binários nas micro-relações cotidianas.
Antes de falar sobre a emergência do termo sapatão não-binárie ou sapatrans não-binárie no Brasil contemporâneo, considero interessante fazer uma breve genealogia do termo sapatão para que entendamos os caminhos que nos trouxeram até aqui e para que possamos compreender as contingências socioculturais e políticas que fazem com que esse seja um assunto que tem gerado bastante polêmica dentro dos círculos lésbicos e feministas do país.
No Brasil temos a figura da “sapatão”, ou “mulher-macho”, que faz parte de um imaginário social popular. A sapatão é percebida no nosso território cultural como a lésbica que possui uma expressão de gênero que passeia por entre os gêneros e que desafia os comportamentos cisheteronormativos próprios das mulheres no mundo patriarcal. A origem do termo é incerta. No Brasil imperial, os portugueses já eram chamados dessa forma, talvez por utilizarem tamancas com grossos solados. Posteriormente os usos do termo para designar lésbicas com características de gênero ambíguas se tornaram mais corriqueiros. De acordo com o portal lésbico “Um outro olhar”:
Várias têm sido as apostas na etimologia da palavra, lembrando que os portugueses aqui em nosso país, na época da Independência, também eram chamados de sapatões, talvez em referência aos grossos tamancos que costumavam usar. A versão mais conhecida para a suposta origem da palavra é a de que lésbicas teriam os pés maiores do que os das héteros por natureza ou por usarem sapatos masculinos que lhes davam a impressão de ter pés maiores. De fato, contudo, não se sabe ao certo qual a origem do termo, mas sobre quem o popularizou não resta dúvida: foi o velho guerreiro, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, com a marchinha de carnaval Maria Sapatão, divulgada em seu programa Discoteca do Chacrinha (Buzina do Chacrinha, Cassino do Chacrinha), programa que durou, em diferentes versões, dos anos 50 aos anos 80. Maria Sapatão foi o maior sucesso do Carnaval de 1981.[1]
A marchinha de carnaval citada é amplamente conhecida e impactou o imaginário cultural brasileiro desde o seu lançamento. A letra narra a forma como a sapatão vive uma vida dupla: de dia vive uma vida de mulher, e à noite expressa toda a sua masculinidade:
Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João
Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João
O sapatão está na moda
O mundo aplaudiu
É um barato, é um sucesso
Dentro e fora do Brasil
Apesar de aparentar ser uma celebração da sapatão, a música geralmente era cantada de forma satírica. A sapatão não estava na moda, nem era um barato e um sucesso no Brasil. Ela é invisibilizada, sofre lesbofobia, violência e estupro corretivo para “virar mulher”. Por conta da marchinha e da sua repercussão, o termo passou a ser visto de forma pejorativa pelo movimento lésbico brasileiro em ascensão a partir dos anos 1980. A palavra melhor aceita internamente entre os coletivos e círculos sociais eram lésbica ou “entendida”[2].
Além disso, é preciso ressaltar a dimensão higiênica do termo “lésbica”. A figura da lésbica se cristaliza a partir dos anos 1990 como um termo politicamente correto, típico da expressão da sexualidade de mulheres brancas, femininas, “que amam mulheres”. A sapatão é associada a sujeitos racializados, que vivem nas periferias, e que sofrem menos aceitação social por engendrarem expressões corpóreo-discursivas que desafiam as expressões de gênero bem aceitas pela branquitude cisheteronormativa.
No entanto, o termo sapatão foi ressignificado e reafirmado algumas décadas mais tarde, por jovens lésbicas ativistas, sobretudo a partir do ano de 2015, quando no Rio de Janeiro surgiu o grupo de ocupação de espaços urbanos e praças Isoporzinho das Sapatão, do qual fiz parte da idealização e produção no primeiro ano. O Isoporzinho, como chamamos informalmente, era uma forma de lésbicas se reapropriarem de iniciativas de jovens que lutavam contra a austeridade econômica que levava a cidade do Rio de Janeiro pré-olímpica a se tornar uma cidade cara para a diversão e lazer. Como as bebidas alcoólicas e a entrada em festas privadas em casas noturnas estavam caras demais, grupos se reuniam com isopores térmicos e levavam as próprias bebidas para praças para consumo próprio. Foi quando surgiu esse termo “Isoporzinho”, que se referia a encontros produzidos inicialmente por pessoas heterossexuais (e dos quais hoje poucos se lembram). O Isoporzinho das Sapatão surgiu nesse contexto, também da necessidade de baratear os “rolês”, mas também de construir espaços de socialização lésbica, que são bastante raros. Foi nesse momento que o termo “sapatão” começou a ter um efeito positivo para a identidade de jovens lésbicas, que ainda tinham resistência de usá-lo, movimento parecido com o que aconteceu no inglês com o termo queer.
Em contrapartida, com a maior aceitação do termo sapatão, a palavra passou também a perder algumas conotações. Por exemplo, passou a se referir menos a pessoas que têm uma vivência mais fronteiriça dos gêneros, e começou a se tornar apenas um termo menos higienizado para se referir às homossexuais mulheres do que “lésbica”. Sapatão foi se tornando uma identidade política que ajudou os corpos de mulheres não-heterossexuais a terem mais visibilidade social, mais impacto político, mas perde grande parte da sua disrupção de gênero. É muito comum hoje, no Brasil, lésbicas femininas brancas se referindo a si mesmas como sapatão.
Ao mesmo tempo, como consequência da visibilidade e negociações culturais que combatiam as imagens “negativas” de pessoas LGBTs nas representações audiovisuais – e que viam as sapatões masculinas como imagens negativas para representar as lésbicas –, as sapatonas gênero-dissidentes começaram a rarear e a se tornarem um corpo marginalizado. Isso colaborou bastante para que a palavra sapatão fosse reapropriada por corpos femininos dentro da vivência lésbica brasileira, com um certo afastamento do seu antigo sentido.
Por conta disso, está em emergência no Brasil uma nova identidade política contemporânea, a sapatrans não-binárie, ou sapatão não-binárie – que pode ser relacionada ao que Audre Lorde descreve como “identidades hifenizadas”, ao se referir a mulheres racializadas na diáspora, como as afro-alemãs (Lorde, 2017).
No artigo “A emergência da cultura e da crítica cultural”, Eneida Leal Cunha (2009, p. 73) nos oferece significações dicionarizadas da palavra “emergência”: “ato de emergir, de vir à tona; situação grave, momento crítico, contingência; dispositivo de segurança que deve ser acionado em situações difíceis; combinação inesperada de circunstâncias imprevistas (ou que delas resulta) e que exigem ação imediata; o que se torna claro e compreensível, o que aparece, se expressa ou se manifesta em determinado momento.”.
Cunha propõe um adensamento do termo através do uso do termo ‘emergência’ recuperado por Michel Foucault, que mapeia em Nietzsche, mais precisamente, em sua Genealogia dos Valores, alguns termos dos quais ele se vale se negando a noção de origem como sinônimo de verdade, pureza, etc:
Como um bom discípulo do mestre que se declarava mais filólogo do que filósofo, Foucault coleciona e interpreta os termos utilizados por Nietzsche para desconstruir a idéia de origem. Proliferam, na Genealogia da Moral e em outros trabalhos, palavras como “começo” (Geburt), “proveniência” (Herkunft), “emergência” (Entestehung), cuja significação não é equivalente entre si, no sentido de que não são permutáveis nem são sinônimos de origem. Constata assim que o termo “emergência” aparece quando Nietzsche se refere ao ponto de surgimento de um valor ou de um conceito, que se produz em um determinado estado de forças; ou à entrada em cena de forças recalcadas, confinadas no silêncio dos bastidores. Nesta perspectiva, a emergência é sempre um lugar de enfrentamento e de afrontamento, de embate entre forças dominantes e forças dominadas, e, portanto, não pode ser compreendida como o ponto inaugural de alguma coisa nem como uma continuidade, mas como efeito de deslocamentos, reposicionamentos ou inversões. Para Nietzsche, a cada momento da história, o que é dominante fixa um ritual, ou seja, um conjunto de obrigações, direitos, marcas e regras, destinado a assegurar uma atribuição de sentido e de valor. Por isto, conclui Foucault, a história de uma palavra ou de uma coisa é a história das forças que delas se apoderaram, é a história de suas significações ou de suas interpretações (Cunha, 2009, p. 73)
A emergência da identidade sapatão não-binárie se aloca nesse lugar de disputas de forças, de reposicionamentos do termo “sapatão”, e de um tensionamento crítico duplo bastante frutífero tanto com o movimento trans quanto lésbico. As sapatões gênero-dissidentes são “forças recalcadas”, que sempre estiveram aí, mas que estão insurgindo neste momento para resistirem e se negarem a se colocar como ponto-cego dentro do próprio movimento LGBTQIA+.
No caso das identidades de gênero contemporâneas brasileiras, podemos tomar também como exemplo e atravessamento para o surgimento da sapatão não-binárie, o termo “bixa travesti”, conceito criado pela cantora, apresentadora, atriz e multiartista Linn da Quebrada. Linn desloca o termo “bicha” – que por muito tempo foi utilizado para se referir pejorativamente a homens gays no Brasil, e com o mesmo movimento que sapatão, passa a ser usado por homens gays brancos masculinos de forma ressignificada e positiva. “Bicha” passa a ser escrita com “x” por Linn, para se diferenciar do termo higienizado “bicha”, e o conjuga com “travesti”, uma identidade cultural brasileira que se refere a mulheres trans. Bixa-travesti é uma identidade cultural da encruzilhada, que ocupa as fronteiras das formas de identificação inteligíveis tanto por parte de uma sociedade cisheteronormativa branca, quanto por parte do movimento LGBTQIA+ hegemônico.
Tanto as sapatrans não-bináries, quanto as bixas travestis, são corpos que desafiam as concepções do norte global sobre identidades trans, que por vezes enrijecem as possibilidades de vivenciarmos nossos corpos de forma livre e criativa dentro das narrativas de transição e das fórmulas do antes e depois. Essas identidades não se comportam dentro de um conceito de trânsito que se encerra em um deslocamento de “Male to Female” ou “Female to Male”, mas se alocam nesse lugar de fronteira, ficam atravessados no meio do caminho. Somos como os corpos de fronteira de Gloria Anzaldua:
tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados. (Anzaldúa, 1987)
Somos corpos que amassam os binários em uma possibilidade nova, somos como as criaturas de um bestiário. Criaturas que não desatam de si o aspecto da monstruosidade, da ininteligibilidade. Somos corpos que fundam uma nova epistemologia e uma nova possibilidade de mundo, de vida, e de processos subjetivos. Somos como a falha de Jack Halberstam em A Arte Queer do Fracasso (2021).
A arte queer do fracasso é, conforme a descrição do próprio autor em sua introdução, “um passeio fora do confinamento do saber convencional e dentro de territórios não regulamentados do fracasso, da perda e do ‘inadequar-se’, [que] precisa fazer um longo desvio para evitar disciplinas e caminhos habituais do pensamento” (Halberstam, 2020, p. 28). É uma construção de um pensamento que parte da perda como potência, e o fracasso como lugar constitutivo e frutífero, através de uma perspectiva que se esquiva do otimismo neoliberal – que se manifesta em “positivismos tóxicos” na cultura contemporânea -, e da chamada “alta teoria”. Halberstam inicia seu livro se perguntando qual é a saída para o dualismo entre uma resignação cínica e o otimismo inocente. O que ele propõe é um entre-lugar, um “in-between”. Esse entre-lugar faz parte de um novo modo de relação que ele propõe não só com o pensamento ou a política, mas com a vida, a cultura, o conhecimento e o prazer.
Sapatrans não-bináries desafiam a concepção de que gênero e sexualidade são espécies distintas que se alocam em gavetas separadas. Para a sapatrans não-binárie, a sexualidade e o gênero são uma continuidade. Sapatrans é um resgate da potência disruptiva de gênero das nossas ancestrais que usavam sapatos masculinos, ternos, frequentavam bares e rompiam com as expectativas de gênero de corpos de pessoas designadas socialmente e juridicamente como mulheres. Sapatrans não são mulheres que amam mulheres, são trans e sapatão. Porque há uma filiação a um circuito cultural, político, de desejo a uma cena sapatão: sejam festas, referências, alianças, amizades, etc; etambém a uma cena e um circuito trans*. Só que não há para es sapatrans não-bináries a necessidade de se (homo)normatizarem. Sapatrans não-bináries passeiam em ambos os circuitos (lá e cá) e não consideram ser “sapatão” as “mulheres que gostam de mulheres”, sapatão é uma forma de estar no mundo e viver o corpo que burla as concepções cisheteronormativas.
A categoria sapatão como um conceito político que também diz respeito a uma identidade de gênero. Como as ‘butches’ da cultura estadunidense, o equivalente às caminhoneiras no Brasil – pessoas que constroem seus corpos e subjetividades em um lugar fronteiriço de gênero. As sapatões ou caminhoneires não são somente uma orientação sexual, mas quando falamos delus, por muitas vezes, também temos em mente pessoas que manifestam uma vivência de deslocamento de masculinidades e feminilidades. “As lésbicas não são mulheres”, então, serve às sapatões não-bináries como uma identidade política insurgente, como uma possibilidade que se abre para uma constituição identitária e subjetiva de liberdade. O que retira, além disso, as sapatões de uma certa dependência de suas identidades ao “amor romântico” – dependência que é fruto do machismo. Sapatões não existem só em par, mas existem também em suas existências livres, que navegam no entre-lugar dos binarismos engessados. Daí violências nos banheiros, o estupro corretivo, a invisibilização se dar no cinema, na mídia, nas ruas, sobretudo em relação a esses corpos.
Alguns problemas político-identitários se abrem quando concebemos a existência de sapatrans não-bináries. Uma pessoa que se relaciona com pessoas sapatrans continuam sendo lésbicas? Este é um debate que tem sido produzido de forma bastante categórica e acalorada quando falamos de corpos trans se relacionando com gays ou lésbicas. Tenho sugerido que pensemos os corpos não-heterossexuais como corpos livres para escolherem suas identificações. Não importa se minha companheira continuar se identificando como uma lésbica, porque sei que para ela ser lésbica é uma identidade política que não se limita a uma ideia de “ser mulher” de acordo com a cisheteronormatividade (“as lésbicas não são mulheres”). As lésbicas rompem com esse sujeito engessado do feminismo hegemônico e branco. Um corpo de encontro com outro corpo não precisa necessariamente definir a sua identidade. As produções subjetivas são singulares. Eu não me sinto deslegitimade ao namorar uma lésbica. Acredito que nos encaminhamos para que as identidades sejam provisórias, estratégicas, e dizem muito mais respeito ao nosso trânsito pelo mundo e aos posicionamentos que escolhemos diante do mundo.
O meu processo subjetivo só depende de mim e do meu auto-cultivo, dos meus processos internos e da forma como nego as estabilidades que a sociedade insiste em impor aos nossos corpos. Ser sapatrans não-binárie pode ser percebide como um corpo-enqueerzilhado, para tomar emprestado o termo cunhado pelas pesquisadoras Alessandra Brandão e Ramayana Lira no artigo “Corpas-enqueerzilhadas e alianças insólitas no cinema brasileiro” (2021), ao analisarem como é a aparição dos corpos LGBTQIA+ nos curta-metragens brasileiros contemporâneos produzidos por minorias sexuais e de gênero. Brandão e Lira são
Mobilizadas por uma perspectiva crítica da interseccionalidade, [e se apoiam] na lúcida e revigorante releitura do conceito feita por Carla Akotirene (2019; 2018). A autora ressalta a matriz de pensamento negro que constrói as bases para a formulação do termo antes mesmo de ser cunhado, em 1989, por Kimberlé Crenshaw, no contexto dos estudos de direito nos Estados Unidos. Akotirene também mapeia o percurso teórico e crítico do termo ao longo dos anos, situando-o ao mesmo tempo no âmbito do feminismo negro e da cultura afro-brasileira e diaspórica. Procura, com isso, descolonizar as percepções hegemônicas da interseccionalidade, asseverando que é “da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade” (2019, p. 24). Uma vez que a interseccionalidade é lida em sua dimensão histórica e geopolítica, Akotirene o localiza na complexidade da ferida colonial e do trânsito transatlântico das populações que foram forçadas à escravidão nas Américas. É, portanto, um conceito crivado de ancestralidade, uma “ferramenta ancestral”, como sugere a autora (2019, p. 25), reconhecendo “Exu, divindade africana da comunicação, senhor da encruzilhada e, portanto, da interseccionalidade” (2020, p.20). […] Akotirene recorre à encruzilhada como “o lugar multideterminado dos trânsitos de raça, classe, gênero, sexualidade, fluxos e sobreposições de acidentes identitários” (2019, online). (Brandão e Lira, 2021, p. 58 e 59).
Brandão e Lira propõem uma justaposição entre queer e encruzilhada, como uma recusa do queer para uma apreensão normativa ou de redução identitária e a encruzilhada como “um espaço que acolhe simultaneidades de existências e temporalidades diversas” (Idem, 2021, p. 59). A encruzilhada é um espaço propício para o afloramento dos corpos des sapatrans não-bináries e para o seu auto-cultivo nem-lá-nem-cá, ou com os pés tocando múltiplos terrenos ao mesmo tempo. Um lugar de cruzamento que desafia o pensamento branco e eurocêntrico maniqueísta com sua organização binária.
Talvez seja inconcebível até mesmo para o imaginário de minorias sexuais e de gênero existências que desafiam a concepção corrente do que é uma sapatão. É possível a sapatão ser trans? É possível a justaposição da sapatonice com a transidentidade? Sapatrans não-bináries se alocam na encruzilhada entre masculinidade e feminilidade, entre identidade de gênero e sexualidade. A vivência trans não apaga a vivência sapatão desse corpo. Não é um processo evolutivo se reconhecer trans para es sapatrans não-bináries – passado e presente coexistem nos corpos que não precisam escolher entre passado e futuro.
Jack Halberstam em Masculinidad Femenina (2008), elabora o termo “butch transgênero” que pode nos servir para a compreensão da emergência de outros gêneros trans no contemporâneo, e de possibilidades múltiplas de constituição de si para corpos fora dos binômios de gênero. Quando Halberstam pensa o corpo de butchs transgênero, o autor desafia também uma concepção limitada de masculinidade lésbica que produz uma noção de “graus de masculinidade”, dentro de um contexto norte-americano. Estes graus sugerem que existe uma progressão da masculinidade lésbica que obedece a etapas: androginia butch suave butch stone butch butch transgênero FTM. É uma progressão que vai do não masculino ao muito masculino. Pensar os corpos dessa forma ainda nos deixa limitades a uma percepção binária dos gêneros, como se o corpo transmasculino das butchs e sapatões estivessem em um processo de transição que vai chegar um dia na completa transição para homem trans, e que ainda não são legitimamente trans. As fronteiras bem demarcadas entre sapatão e trans, sapatão e lésbicas, servem a quem? Essa guerra de fronteiras é interessante para os processos subjetivos e para uma prática de liberdade dentro dos movimentos LGBTQIA+ ou só servem para produzir engessamentos identitários? Não estou deslegitimando as identidades de homens trans ou lésbicas, mas abrindo a possibilidade para outras formas de existência que podem ser vividas e construídas pensando os corpos para fora dos binários instituídos nas nossas concepções acerca do esquema sexo-gênero.
Halberstam percebe que corpos de butchs/sapatões podem ter um sentimento de transitividade de gênero em relação à sua corporeidade, à sua subjetividade sexual e na legitimação de seu gênero. Esse sentimento pode ser percebido nas vivências de sapatões não-bináries brasileires. Em uma recente reportagem sobre a emergência de identidade sapatão não-binárie no Brasil, feita pela revista digital AzMina, intitulada “Sapatão não-bináries não é só sobre amar mulheres”, escrita por Helena Bertho e publicada em 26 de agosto de 2021[3], ume des entrevistades, Bê Carobinieri, contexta a percepção política que coloca o corpo da sapatão somente como um corpo de mulher que ama mulheres:
“Nos meus 29 anos, mesmo não sendo uma mulher, eu tive uma experiência na sociedade enquanto sapatão. Muitas pessoas reduzem sapatão a duas mulheres, ambas com vaginas, se relacionando afetiva e sexualmente. Mas na minha experiência pessoal eu vivi algo diferente. A sociedade me atravessou como sapatão desde criança. Muito antes de andar de mãos dadas com mulher na rua, as pessoas gritavam pra me ofender, me chamando de sapatão. Sapatão pra mim, muito mais do que com quem eu me relaciono, tem a ver com como eu fui socializada, minhas pautas políticas, a comunidade onde eu cresci e me formei”
Bê contexta a percepção higienizadora e normativa de que o corpo da sapatão existe apenas quando “ama uma mulher”, e coloca sua subjetividade em um lugar de existência plena, que atravessa a sociedade e sofre violências mesmo quando o trânsito social não envolve uma relação afetiva. Não depende de estar de mãos dadas com uma mulher ou trocar afetos com mulheres para o corpo da sapatão sofrer ofensas. Uma sapatão não-binárie em encontro com a cidade sofre lesbofobia ou transfobia? Ou é um ajuntamento das duas violências, já que a violência acontece por conta do deslocamento que seu corpo produz nas performatividades de gênero aceitas e inteligíveis pela sociedade cisheterocentrada? Acredito que esse é um desafio para as nossas reflexões políticas e para pensarmos uma sociedade possível para esses corpos.
Com a emergência dessas identidades, e a divulgação de que há sapatões que se identificam como não-bináries, têm surgido cada vez mais relatos de violências epistêmicas e exclusões dentro de espaços de socialização e culturais lésbicos brasileiros. Recentemente, em São Paulo, Formigão, ume poeta e escritore que se identifica como sapatão não-binárie e também foi entrevistade pela reportagem de AzMina pregressamente citada, divulgou em suas redes sociais que iria participar dos ensaios de um bloco de carnaval conhecido da cidade de São Paulo, chamado Siga Bem Caminhoneira, e exclusivo para lésbicas. Formigão conta que entrou em contato com as organizadoras pelo Whatsapp e que elas haviam informado o local do ensaio em uma região central da cidade. Elu, que é uma pessoa negra e periférica, precisou gastar dinheiro de passagem e se deslocar para o local do encontro. Ao chegar, as organizadoras não tiveram uma boa receptividade com seu corpo transmasculino, e o informaram que elu não poderia participar do ensaio porque elas não sabiam ainda como tratar pessoas que se identificam como sapatrans ou sapatão-não-bináries dentro de espaços de socialização feitos por e para lésbicas. O relato de Formigão nas redes sociais viralizou e teve um largo alcance (chegou a ser censurado pelo Instagram), e uma parcela significativa das pessoas que interagiram com o post de retratação do bloco[4] transmitiram que a percepção de uma continuidade entre orientação sexual e identidade de gênero tem sido algo mais bem aceito dentro da comunidade, a exemplo deste comentário de @lillianntorqueti:
“Na moral, as mina tem o direito de fazer a festa do jeito que quiserem, mas, é de observar que a festa delimita orientação sexual e não gênero, é interessante o grupo dialogar isso para ser mais acertivo em relação ao que não quer em sua festa. Pois um trans masculino pode ter orientação sexual lésbica, desse modo estaria pertencente ao rolê. Se nunca pensaram nisso meninas, chegou a hora de pensar. Esse vídeo de quem se sentiu excluído também foi um pouco de quero biscoito, podia ter dialogado de outra forma, pois também criou um ataque a comunidade lésbica e BI do rolê. Faltou e está faltando bom senso dos dois lados.”
É interessante que, mesmo não concordando com o fato de que a organização da festa precisa aceitar a presença de Formigão, o comentário citado expõe de forma bastante assertiva que lésbicas podem ser transmasculinas. É cada vez mais visto como legítimo pela comunidade LGBTQI+ brasileira que sapatões podem se identificar como trans. Como diz Formigão em um poema de sua autoria publicado em suas redes sociais: “Sapatão é ser humano / Sapatão é ser um mano.”
Com uma maior visibilidade de sapatrans não-bináries nas redes sociais nos últimos anos, os debates sobre apagamento da ancestralidade sapatão masculina, apagada pela (homo)normatização do movimento lésbico, faz com que influenciadores estejam resgatando a memória de sapatões que desafiavam o binário de gênero no passado e que são, hoje, um ponto cego dentro da pouca visibilidade lésbica na mídia, nas festas jovens, e nas pouquíssimas personagens de séries, filmes, novelas. @raizdomato é o instagram de ume influenciadore sapatão não-binárie indígena da etnia potyguara que em 27 de novembro de 2021 fez um post intitulado “Movimento transmasculine não-binárie e memória lesbi” na sua rede. O texto dizia o seguinte:
Sempre existiram pessoas de identidade masculina e não-binária em espaços lés-bi. Não apenas isso, faz parte da produção intelectual lésbica afirmar a lesbianidade como um lugar fora do binário de gênero. O próprio feminismo/movimento de mulheres não aceitava lésbicas/caminhoneiras/pessoas de buceta que não se adequavam à cisheteronormatividade, pois es consideravam uma ameaça, predadoras, doentes. A real é que na prática e teoria espaços exclusivos para mulheres e lesbianidade/caminhoneirice são coisas que se anulam. A memória lésbica é repleta de pessoas que romperam com a mulheridade e ignorar isso é um processo de higienização e apagamento. Os movimentos lés-bi AINDA são repletos de pessoas que se afastam, questionam, transicionam da mulheridade. Essas pessoas constroem o movimento diariamente, mas sua expulsão segue sendo frequente. A repetição da frase “o que um homem quer fazer num espaço de mulheres” releva como não processam o significado de transmasculino e não-binárie, muito menos o percurso dessas existências. Traidorys da mulheridade, desertorys da cisheteronorma, corpas monstras ininteligíveis, bucetas que não cumprem sua função patriarcal-colonial. Isso é memória lés-bi.[5]
O movimento de resgate de memória que sobrepõe passado e presente, faz com que novas possibilidades se abram para as identidades trans não-bináries no contemporâneo. A emergência de identidades hifenizadas dentro do movimento LGBTQIA+ brasileiro é um sinal de que há uma resistência epistêmica acontecendo no seio desses movimentos, que são atravessados pelo pensamento decolonial, produzido por intelectuais não-branques que fazem parte de minorias sexo-gênero. É um momento de muita importância para imaginarmos novas formas de existir no mundo, e de vislumbrarmos que os corpos podem ser livres e encarnar essa liberdade na forma como se auto-cultivam.
A internet tem sido uma espécie de laboratório de trocas e de produção de saberes e de resistência epistêmica para sapatões não-bináries. É um território possível, sobretudo no contexto da pandemia de covid-19, para produção de redes, comunidades, e apoio, legitimando, assim, a existência de subjetividades em trânsito e em constante (re)construção. “A transição é para sempre”, como diz a faixa criada pelo artista Miro Spinelli. A transição é um processo que não acaba, não nos leva a lugar nenhum, a não ser a nós mesmes, em um infinito inacabamento de si.
* Dri Azevedo é doutore em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, professore substitute do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ, integrante do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas da UFRJ. É autore do livro Reconstruções queers: por uma utopia do lar (2022).
Referências
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.
BERTHO, Helena. “Sapatão não-bináries não é só sobre amar mulheres”. Revista Azmina, 26 de agosto de 2021. Disponível em: < https://azmina.com.br/reportagens/sapatao-nao-binaries-nao-e-so-sobre-amar-mulheres/>. Acessado em 04 de fevereiro de 2021.
[2] É possível conhecer mais sobre como lésbicas brasileiras se autonomeavam no Documento Especial: Televisão Verdade, programa jornalístico brasileiro criado e produzido pelo jornalista Nelson Hoineff, apresentado pelo ator Roberto Maya e exibido (este episódio) pela extinta Rede Manchete.
“Muito feminina” aborda a homossexualidade feminina. Reportagem de Bernadete Duarte. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=_Mt1aw3a4_E>. Acessado em 02 de fevereiro de 2022.
[3] Disponível em: < https://azmina.com.br/reportagens/sapatao-nao-binaries-nao-e-so-sobre-amar-mulheres/>. Acessado em 04 de fevereiro de 2021.
Sergio Adriano H é um artista negro de Santa Catarina, que nasceu em Joinville, em plena ditadura militar, em 1975. Filho de um pai branco e uma mãe preta, cresceu naquela cidade superando muitos obstáculos sociais e lutou pelo seu direito de sonhar além das expectativas de sua família. Conquistou o título de mestre em filosofia em 2016, pela Faculdade São Bento, São Paulo, e Licenciatura em Artes Visuais em 2005, pela Universidade da Regional de Joinville, SC. Atualmente vive e trabalha entre Joinville e São Paulo. Sergio Adriano H sempre reafirma sua origem como forma de luta e resistência: “Eu sou um artista nascido em Joinville, eu sou de Santa Catarina. Eu pontuo muito isto para que as pessoas tenham essa referência de que existem pessoas pretas nesse estado tão branco” (H Adriano, 2023). Em sua produção, Sérgio vem questionando as “verdades apresentadas” a ele desde que começou a se compreender como um corpo negro crescendo dentro de uma sociedade estruturalmente racista. A partir desse lugar de exame profundo das suas vivências, Sérgio Adriano H toma para si a palavra a fim de colocar sua percepção de temas como identidade racial, violência, invisibilidade e apagamento social. Seu trabalho, exibido em mais de 140 exposições individuais, coletivas e salões, vem sendo premiado e reconhecido nacionalmente e tem ganhado visibilidade no exterior. Sua biografia foi incluída no livro Construtores das Artes Visuais: Cinco Séculos de Artes em Santa Catarina (Boppré, 2014).
As imagens e todas citações do artista que integram esse ensaio visual são partes de uma entrevista com Sérgio Adriano H concedida à artista visual e mestranda Dalva França de Assis e sua orientadora Dra. Silvana Macêdo, em abril de 2023. Esta entrevista, ainda não publicada, integrará a dissertação de mestrado de Dalva França de Assis acerca das violências simbólicas contra corpos negros nas artes visuais e mídia contemporâneas, em desenvolvimento no PPGAV-UDESC.
O que me deu o poder do sonho foram as artes, a arte me tirou da passividade de responder perguntas e me colocou como formulador. Essas perguntas me levaram a questionar a verdade apresentada, e questionar essa verdade me levou ao conhecimento, e o conhecimento me levou à felicidade. Aprendi a sonhar e o sonho me fez artista. Então quando alguém vê uma obra minha é para fazer esse caminho que eu fiz, um caminho no qual eu fui salvo. Eu sempre penso que assim como eu fui salvo pelas artes, eu posso salvar outras pessoas através da minha arte. Se o médico cuida das pessoas com remédio, eu cuido das pessoas com arte e o meu cuidar com arte é levar a pessoa a sonhar, porque quando você perde o poder do sonho, ou você não sabe sonhar, ou estão aplicando em você o racismo estrutural.
Eu devo ter ganhado um livro lá pelos 12 anos de idade, de uma prima minha que era do Rio de Janeiro, a Rose. Era sobre os direitos universais em forma de desenho. Esse livro me alfabetizou porque os desenhos me levaram a entender o que estava escrito ali. […] Na arte também tem as palavras da moda. Tudo tem as palavras da moda e uma das coisas que eu me mais me preocupo é de como conversar com o senhor que deixa a rua limpa e a senhora que está indo para limpar a sua casa em um nível que não seja raso e que seja entendido por elas. Como transformar o meu repertório intelectual e artístico plausível para todes e conversar com uma pessoa que, mesmo sem saber ler (porque o analfabetismo ainda existe em nossa sociedade), consiga através da observação das minhas imagens de arte transformar em uma experiência significativa. Na minha obra – Ordem e Progresso – da série Justiça I de 2018 tem a imagem da justiça e na boca dela tem um martelo que é um martelo de carne que você usa na cozinha. Como fazer que uma pessoa analfabeta consiga associar esse martelo à nossa justiça e se questionar sobre o nosso sistema judiciário? Essa não-palavra, é a palavra-imagem enquanto se acha que seja o que ela pode ser. Essa é a minha grande questão, porque para mim a palavra é tão importante quanto a imagem.
Então, quando eu vou tratar das questões do feminino, elas estão ligadas à afetividade. Por exemplo, há uma história por trás do pente de cabelo que aproprio: a minha irmã mais velha jogava handebol nas competições escolares municipais por um colégio público. Ela jogava muito bem e uma escola particular lhe ofereceu uma bolsa de estudos porque eles queriam ganhar a competição municipal. Então, ela foi estudar nessa escola particular e ela era a única menina negra. Para minha irmã parecer mais com as crianças da escola, a minha mãe pegava um pente de ferro, esquentava no fogão e passava no cabelo da minha irmã para alisar. Todo dia eu via a minha mãe fazendo isso com o cabelo da minha irmã. Quando você passa o pente quente no cabelo dá um cheiro de queimado, mais que isso: às vezes a minha mãe fazia errado e encostava o pente no couro cabeludo e a minha irmã ficava com queimaduras. Então, quando eu fui tratar sobre a estética feminina, desse racismo que perpassa o cabelo, era sobre essa afetividade que acontecia em casa, era essa estrutura na qual a minha irmã foi criada e tinha que se submeter para estudar no colégio particular. Quando eu vou fazer essa obra, que é sobre a beleza feminina, eu coloco um pente em cima do livro Como se tornar bela e tem uma trança gigante com cabelo sintético e liso, estilo cabelo de Rapunzel. É sobre essa ótica, então eu tenho esse cuidado, de tratar um fato que tem a ver com o meu cotidiano e afetividade do meu entorno, é a experiência que eu tive. Então, não é uma coisa solta, eu não vou pegar alguma coisa do feminino que está longe da minha experiência. E aí, vou pensar sobre a trança que está no meu trabalho: a trança foi feita por uma mulher africana daqui do centro de São Paulo, fui eu quem pediu para ela fazer esse trabalho, expliquei para o que era. Ao agregar isso no meu trabalho, eu sempre digo que meus trabalhos não são soltos, todos eles se ligam em pontos, e essa estrutura toda tá dentro de uma redoma de vida que você vê e pode modificar.
Eu penso que deveríamos ter letramento racial. Porque qual é a questão dessas pessoas de não entenderem a sua cor, gênero, raça e classe social? E não entender que eles não estão dentro dos privilégios, estou falando de um homem e uma mulher negra não combaterem o racismo ou discriminação? A minha mãe por exemplo, falava para eu não ficar muito tempo na praia porque eu ficava muito mais preto do que já era. Ela falava: “Não vai ficar tucum – tucum é uma frutinha que é verde e quando amadurece, fica preta (essa fruta tem apenas no Sul) – e na cabeça da minha mãe que estudou até a quarta série, ela achava que quanto mais preto eu ficava, mais eu ia ser discriminado. Mas ela não tinha letramento racial para conseguir transformar o que realmente ela queria dizer sobre a cor do tucum e dizer para eu conseguir combater o racismo, porque ela não tinha força para combater o racismo. E aí quando você entende que, ao se apropriar do letramento racial, de classe, gênero e raça, você combate o racismo. Quando você foi adestrado socialmente, porque existem muitas pessoas que foram adestradas, e quando há esse adestramento você manda a pessoa sentar e ela se senta, ou seja, se eu digo a ela que não existe racismo e ela concorda com esse senso comum que foi incutido no pensamento: não existe racismo e ponto. Tem pessoas que são pretas, mas, não se acham pretas porque elas vivem em locais em que o entorno não as deixa sentir que são pretas, este é o racismo recreativo. Então o que é o racismo recreativo? São piadas de humor que incomodam quem tem a sua cor enquanto consciência; quando você não tem a cor enquanto consciência continua sendo racista e vê o racismo apenas como humor. Então eu acho que é isso que temos que passar para o Brasil: uma educação que toque nesses assuntos e que as pessoas saibam qual é o papel delas e onde elas se ocupam na sociedade.
Eu tenho certeza de que a morte não é só física, mas é moral, social, então devemos prestar atenção nos números no Brasil, quantas pessoas negres tem problemas mentais e se você for pesquisar vai ver que a quantidade maior é de pessoas negres; não são de brancos. E por que isso? Isto está ligado ao cotidiano, está ligado ao racismo. Por isso que eu falo que ela não é só moral, é social. Quando eu não tenho os códigos de comportamento é uma morte social, quando não eu não tenho vocabulário do lugar é uma morte social. Eu vou dar um exemplo porque que um homem negro apanha no Rio de Janeiro por 15 minutos e ninguém faz nada ou uma família tá indo pro batizado leva 80 tiros de fuzil no Rio de Janeiro, e é banal, ou por que que todos os chanceleres mundiais vão ao pico na Suíça onde caiu um avião com 80 europeus e faz a homenagem, o Papa vai lá também. E por que um navio com cinco mil Imigrantes afunda e ninguém fala nada? Porque que esses Imigrantes estavam vindo da África, são negros. Então o descarte do corpo negro em sociedade é gigantesco, por isso quando eu vejo o aumento das questões de violência contra esses corpos, tudo está ligado a essa política de valorização da branquitude, para mim está tudo muito ligado a isso e que a gente continua aí na mesma. Cinco séculos se passaram e continua a mesma coisa; e a gente continua com a imagem do Debret na cabeça. A pintura dos negros apanhando e pronto. Por que que uma mulher branca que é técnica de vôlei pode bater em homem negro, na semana passada, como se ele estivesse preso no tronco, sabe? Então eu vejo muitas dessas ligações, a imagem tá muito presente no nosso cotidiano, a imagem colonial, essa missão artística francesa que veio para o Brasil e retratou a botânica, ótimo! Mas por outro lado, também retratou os negros como se fossem animais e aí essa branquitude continua vendo a gente nesse lugar.
Quando eu vou fazer essa série PÁTRIA ArMADA que eu uso a Bíblia e dicionários, todos esses elementos ainda continuam matando pessoas, eles matam de um jeito que é invisível e permitem matar. Isso acontece porque você não vê as igrejas se manifestarem em nenhum momento contra essa quantidade de corpos negros mortos. Se a cada 23 minutos um homem negro morre no Brasil, quantas mulheres negras a mais são violentadas? A quantidade de violência contra corpos femininos negros é muito maior, não tem essa estatística precisa. Em São Paulo a polícia não quer mais colocar a etnia no boletim de ocorrência. São esses apagamentos que você não consegue ver quem está sendo fuzilado na sociedade, quem foi morto pela polícia. Isso é uma forma de apagamento, então, e aí, você vai linkar que o governo e sociedade tão juntas num pacto, juntamente com esses outros movimentos.
Um dos pontos de start foi quando fui para Maceió pesquisar sobre a “quebra do Xangô” que aconteceu em 1912; e como a esquerda estava na frente, a direita falou que era porque a esquerda estava usando magia negra e por isso a Igreja Católica autorizou a quebrar os lugares de matriz africana e matar negres, fui até lá para entender essa história e a do quilombo Palmares. […] Esse foi o primeiro território livre do Brasil, onde eles se uniram para combater os bandeirantes. Quando fui entender esse sistema pensei: estou precisando fazer uma série gigante sobre esse descolonizar cor e corpos. Porque o título ali é descolonizar cor e corpos, tem uma jogada de palavra dentro do título que é uma coisa que eu faço muito. E depois fui para residência no Armazém [Coletivo Elza, Sambaqui, em Florianópolis] e o que fui fazer na residência? Entre N coisas que eu fiz, uma série eu fiz com cobertor de moradores de rua e com a faixa escrito “DEsCOLONIZAR” em vermelho (as letras do título estão maiúsculas e o “s” em minúsculo). Depois vem essas transformações de cortar o “s” com X e ir para outros lugares. A foto-performance foi no Sambaqui, onde Dom Pedro chegaria, em uma rua em Santo Antônio de Lisboa, a primeira rua calçada de Santa Catarina, e quem calçou essa rua foram os corpos escravizados, e a primeira etapa é questionar isso. Depois vou para Porto Alegre na Praça dos Enforcados que foi renomeada como Praça da Harmonia, e não se conta a história de 16 negros que foram enforcados nesse lugar. Depois vou para o Parque das Redenções que tem a ver com a guerra Farroupilha onde eu estou com uma lança na mão fazendo uma alusão aos lanceiros que eram os escravizados e foram para a guerra lutar acreditando que ganhariam a liberdade se voltassem, essa foi a promessa feita a eles. Lutaram descalços, porque os negros não usavam sapatos, escravizados não podiam usar sapatos. Eu fiz uma lança que é uma lança de cana de açúcar.
Então quando vou para o palácio Cruz e Souza, coloco meu corpo na escadaria de mármore branco. Quando estou só com um cobertor em um Sambaqui e tem uma foto do entorno com duas canas em forma de arco, como um portal. Então quem é esse ser? Quem é essa pessoa nesse lugar? Quem é esse que está chegando? O comportamento, a postura, a indumentária como um cobertor fazem essa alusão. Essa é uma série na qual estou trabalhando muito, e pretendo levar para o Rio de Janeiro e Curitiba, onde tem a Igreja do Rosário. Estou construindo esse pensamento do país, conectando informações sobre o Palmares e a chegada no Rio de Janeiro evidenciando o sul do país, onde os resquícios coloniais são mais presentes.
* Dalva França de Assis é mestranda em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGAV-CEART), com graduação em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2019). Professora de arte da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, tem experiência na área de Artes, com ênfase em pintura e Graffiti. Colaboradora da Casa de Apoio à Mulher Helenira Preta na cidade de Mauá.
* Silvana Barbosa Macêdo é PhD Fine Arts (2003) e MA Fine Arts (1999) pela Northumbria University, Newcastle, UK. Fez pós-doutorado pela UCS/CNPq e é professora efetiva da Universidade do Estado de Santa Catarina, com experiência na área de Artes, com ênfase em pintura e multimeios, investigando principalmente ambientalismo e feminismos.
Referências
BOPPRÉ, F. et al. Construtores das Artes Visuais: Cinco Séculos de Artes em Santa Catarina – Volume 2. Florianópolis: Tempo Editorial, 2014.
ADRIANO, Entrevista ainda não publicada, concedida a Dalva França de Assis e Silvana Barbosa Macêdo, em 17 de abril de 2023.
1. Até que a ventania revele os contornos de uma arquitetura[1]
É tarefa exigente acolher os testemunhos de moradores da Maré sobre a violência armada e seus impactos, fazendo-os ressoar para além de truísmos, glosas e análises projetivas de conceitos previamente formulados, que muitas vezes funcionam como preconceitos. O que se oferece aqui é apenas o movimento na direção desse acolhimento, nem por isso isento de riscos, uma vez que as boas intenções não garantem fidelidade aos compromissos da consciência. Quanto ao primeiro passo não resta dúvida: é preciso escutar, outra e outra vez, apurando a recepção ao que se diz e ao que se cala, levando em conta os contextos interlocucionários e históricos, apreendendo os dinamismos estruturais na mediação performática da linguagem, deixando-se interpelar em todos os registros possíveis pelas manifestações reunidas em entrevistas e depoimentos, de tal modo que as senhas para a decodificação provenham dos próprios autores e das próprias autoras dos discursos coletados. O que se sabe com certeza é que abordar analiticamente uma comunidade criativa implica aproximar-se de uma constelação extraordinariamente complexa, cambiante e contraditória de percepções, afetos e práticas.
Além dos percalços típicos aos mais diversos segmentos das classes subalternas na sociedade brasileira, sobredeterminados pelas presenças insidiosas e combinadas do racismo e do patriarcalismo, acrescentam-se, em nosso caso, conflitos armados entre grupos civis e confrontos sangrentos provocados por incursões policiais. Sobre esse conjunto tenso de fatores incidirão a pandemia e seus impactos econômicos, intensificando o desemprego crônico, o desalento, a precarização do trabalho, a expansão da informalidade em condições críticas e o empobrecimento. Não por acaso os efeitos da Covid se distribuem desigualmente, em prejuízo dos mais pobres, sobretudo das mulheres e da população negra.
A equipe responsável pelo survey, no âmbito da pesquisa “Construindo Pontes”, para a qual esse texto pretende ser um suplemento, teve o cuidado de dividir a amostra em três segmentos, porque há três áreas na Maré nas quais, por hipótese, os moradores tenderiam a responder distintamente às questões relativas à exposição à violência armada: duas áreas onde se destaca a presença de grupos civis armados, ligados a dois diferentes comandos do tráfico de substâncias ilícitas, e uma em que atuam milicianos, cujas relações com as polícias são bem conhecidas, onde, portanto, não há incursões policiais. Os resultados confirmaram a hipótese, revelando diferenças significativas e consistentes não entre as áreas em que estão grupos do tráfico, mas entre essas e a terceira, na qual a influência da milícia bloqueia operações policiais. Ficou evidente que o fator decisivo na exposição traumática à violência armada é a brutalidade policial. Confrontos entre grupos civis são relevantes, provocam tiroteios e vítimas, produzem danos graves, mas o eixo de referência central é a relação com o Estado, o grande divisor de águas é a existência ou não de invasões policiais.
O recorte da pesquisa focalizou incidentes e sobressaltos provocados por armas e atos violentos, que interrompem expedientes, bloqueiam agendas, fecham comércio, cancelam aulas e atendimentos em postos de saúde, esvaziam ruas, interferem na circulação, ferem, mutilam, matam, abalam, aterrorizam, ameaçam e inscrevem acontecimentos dramáticos na memória coletiva, nas biografias e no curso dos dias.
Os eventos atravessados por tragédias são pontuações que inscrevem a descontinuidade com potencial traumático no fluxo incessante do tempo vivido. Em alguns casos, os relógios param, prendendo à dor as vítimas diretas e indiretas.
Por isso mesmo, o cotidiano torna-se uma conquista e uma construção.[2] Reconciliar-se com o cotidiano corresponde a tocar a vida sem fixar-se no medo e no perigo, sem permitir que a insegurança roube a serenidade, a sanidade e a fruição de prazeres e afetos, abrindo espaço para a perspectiva de mudança. Reapropriar-se do cotidiano está longe de implicar rendição impotente ao intolerável ou denegação da realidade. Não significa acostumar-se ao inaceitável, mas retomar para si a vida, esta mesma posta em risco com frequência por confrontos entre grupos armados e incursões policiais. Mulheres e homens de todas as idades exercitam, antes e em certo sentido acima da cidadania, a guarda desse tesouro precioso que é o cotidiano a ocupar, reinventar e desfrutar. Reapoderar-se do cotidiano, guardá-lo, deve ser interpretado como uma realização que liberta, porque rompe com automatismos, adaptações reativas, ajustes funcionais à ordem da necessidade, normas e expectativas estabelecidas. Liberdade é uma categoria aplicável porque o cotidiano a ser conquistado, e guardado, não é um passado edulcorado a que se queira retornar e que deva ser restituído à comunidade. Não se trata do bem viver ideal nem de projeto político delineado, mas de uma possibilidade de convívio comunitário experimentado em tantos momentos autônomos relativamente à tensão e ao medo, celebrados de forma concentrada e intensa em rituais religiosos e festas, mas desfrutados também nos encontros prosaicos nas lajes e esquinas, nos botecos e nos becos, nos almoços de domingo, nos jogos e brincadeiras, na mansidão solitária da poeta, no enlevo musical, na onipresença redentora da música, na frugalidade que vale tanto, nos espelhos do salão de beleza, no alvorecer em paz, numa noite de amor.
Identificar, valorizar e guardar potencialidades inscritas na prática diária talvez constituam etapas de uma obra coletiva em construção, ensaio de uma modalidade embrionária de sensibilidade utópica: afinal, outra coisa está ali, além do que ostensivamente se dá a ver e saber. Por isso, os testemunhos tendem a nos interpelar sobrecarregados de mundos: a abundância emana do bulir com ambiguidades, contradições e lacunas, avançando e recuando entre ditos e não-ditos, explorando por tentativa e erro os limites da linguagem, excitando a imaginação criativa. Não é fácil divisar o que está na brecha entre atos, muros, linhas e silêncios, muito menos distinguir o que a realidade exclui (por incompatível com quaisquer condições de possibilidade) daquilo que ela recalca mas traz consigo, como a sombra fértil da negação que inscreve o movimento dialético no campo da história. Não é arbitrário que a palavra potência tenha passado a figurar com tanta assiduidade no léxico popular, sobretudo entre jovens que integram coletivos. Se não é simples divisar o que está na brecha, deduz-se quão exigente seria tomar posse do cotidiano, na medida em que tal apropriação implicasse o engajamento no esforço de saber de brechas e das sombras férteis dos fatos. Apropriar-se da vida cotidiana se revela, portanto, “uma busca e uma investigação”, como diz Cavell, citado por Veena Das, em um sentido diverso mas comparável ao nosso (cf. Cavell, 1987, apud Veena Das, op. cit.).[3]
A versão da Maré que vai aqui alinhavada é simplesmente a sequência editada de flagrantes dessa obra de libertação, ou melhor, desse empenho incansável em alcançá-la, da qual o desejo de arte, embora tão importante, está longe de ser a única evidência e para o qual a tenacidade de Sísifo talvez ofereça o modelo.[4]
Uma passagem inspiradora de Veena Das dialoga diretamente com temas que são também os nossos, a despeito das distâncias geográfica, histórica e cultural entre a Índia e o Brasil, entre a trajetória individual da mulher que a autora acompanha, Asha, e as trajetórias que se entrelaçam na Maré, entre a guerra com o Paquistão e os conflitos armados nas favelas cariocas:
(…) a memória da Partição (a sangrenta divisão dos territórios provocada pela guerra) não pode ser entendida, na vida de Asha, como uma posse direta do passado. Ela é constantemente mediada pela maneira em que o mundo está sendo habitado no presente. Mesmo quando parece que algumas mulheres tiveram uma sorte relativa porque escaparam à violência física direta, a memória corporal de estar-com-os-outros faz com que o passado cerque o presente como atmosfera. Isso é o que quero dizer pela importância de descobrir meios de falar sobre a experiência de testemunhar: que se nossa maneira de estar-com-os-outros tiver sido brutalmente estragada, então o passado entra no presente, não necessariamente como memória traumática, mas como conhecimento venenoso. Esse conhecimento pode ser enfrentado apenas pelo conhecimento através do sofrimento. Como diz Martha Nussbaum (1986:46): ‘Há uma espécie de conhecimento que funciona pelo sofrimento, porque o sofrimento é o reconhecimento apropriado do modo como a vida é nesses casos. E, em geral: captar seja um amor ou uma tragédia pelo intelecto não é suficiente para ter um conhecimento humano real’[5] (p. 35).
Um dos aspectos intrigantes dessa modalidade de conhecimento -e quanto a esse ponto Veena Das não necessariamente concordaria, porque seu pensamento é mais fiel a Wittgenstein do que o desdobramento aqui sugerido- poderia ser definido como a irredutibilidade às palavras, o que o situa, em certa medida, além e aquém da inteligibilidade, numa zona incerta entre conceitos, imagens e afetos, sem que por isso o situe fora da esfera do comunicável. Pelo contrário, esse conhecimento é quase inteiramente comunicação, embora prescinda de mediações, e até mesmo por delas prescindir. Mais do que comunicação, cujo modelo esquemático é triangular (emissor, receptor e mensagem), no sofrimento está-se em comum no comum (a mensagem não tem autonomia ou objetividade própria, que permita a seu respeito o juízo de agente externo ao dueto original: a comunicação é o encontro). Também por isso é reconhecimento: não porque se reencontre o vivido, mas porque é comunhão, (re)encontro com o Outro. As mães que perderam seus filhos para a violência policial, por exemplo, sustentam-se umas às outras e nada precisam dizer, sabem que as demais sabem o que quer que se precise saber para comungar a dor indizível. A perda de um filho não cabe em palavras e situa quem a sofre num ponto não localizável, materialmente, mas consabido por quem compartilha a experiência. Trata-se de um ponto de encontro duplo: ali a mãe (ou o pai, ou os irmãos – Antígona é irmã da vítima – usualmente a mãe é a protagonista) se encontra a si mesma e às companheiras de infortúnio. Justamente porque envolve o encontro consigo mesmo e com o Outro (e consigo enquanto Outro – o que desencadeia mudança, pois incita a tornar-se Outro), o conhecimento proporcionado pelo sofrimento é também (re)conhecimento. Dá-se uma dobra porque o sofrimento incorpora uma dimensão reflexiva: o sujeito “se encontra” significa, aqui, não o triunfo da razão ou da consciência, ou a superposição entre o ser e sua “essência”, mas a entrega desarmada à supremacia da dor, movimento que pode ser libertador caso seja uma etapa do trabalho do luto, etapa sucedida pela simbolização integradora, para cujo êxito é decisivo o compartilhamento. O luto se revelaria, assim, um processo comparável, em sua estrutura dramatúrgica, aos rituais de passagem: transita-se da perda dolorosa à aniquilação, e daí, amparada pelas parceiras, ao cotidiano, de volta à vida.
Referindo-se às perdas de Asha, Veena Das escreve: “Isso só poderia ser consertado permitindo a si mesma uma descida ao mundo ordinário, mas como se de luto por ele. A recuperação não estava em empreender uma vingança contra o mundo, mas em habitá-lo num gesto de luto por ele” (Veena Das, op. cit., p. 37 e 38). Lembremo-nos de que habitar o mundo é estar com, e entre, outras e outros. E a estabilidade implícita na permanência, que é um dos significados intrínsecos ao verbo habitar, aponta para o cotidiano. Esse é o horizonte da construção coletiva da liberdade, obra minúscula, volátil e interminável, fruto do modesto e imperceptível heroísmo de tanta gente que sofre, sobretudo mulheres negras nas periferias brasileiras. Nem resignação, nem imobilismo, nada a ver com falta de fibra e de luta, menos ainda com alienação e conformismo. Diante de nós está sendo erguido, no desfiar dos dias e das noites, um monumento invisível, tão majestoso quanto diáfano, que diz sim à vida e oferece à história a fertilidade do espírito e a inteligência do corpo. O novo mundo está em gestação. A chave para intuí-lo está na disposição de experimentar a empatia com o sofrimento alheio e abrir bem os olhos, apurar os ouvidos, admitir a própria ignorância e começar de novo, mais uma vez, até que a ventania revele os contornos de uma arquitetura.[6]
Além de conhecimento, reconhecimento e comunhão, o sofrimento pode ser entendido como a matriz do valor, o que ajuda a explicar o sentido desse ponto de encontro imaterial, elaborado no parágrafo anterior. O encontro se dá no valor e como valor, mobiliza uma ética que transcende epistemologias, métodos e racionalidades, uma ética que é morada, lugar comum que abriga e compreende (sendo continente, antes de ser conteúdo e cognição):
É o sofrimento que constitui o campo de uma experiência humana que, sendo radical e responsável pela inscrição de uma diferença matricial entre momentos do processo existencial ou entre formas de vida, e, não podendo dar-se a pensar ou a traduzir-se, intersubjetivamente, transforma-se em valor, isto é, na qualificação diferenciadora por excelência, independentemente dos conteúdos específicos aos quais se associe. O sofrimento, portanto, é a referência virtual do valor (Soares, 1993: p. 98).[7]
Se o sofrimento é um tipo de (re)conhecimento, talvez previna os mais calejados, e idosos, contra o medo -o que ajudaria a explicar resultados surpreendentes do survey: os mais velhos (dizem que) têm menos medo. Contudo, devemos avançar com cautela (e não só porque a velha geração masculina fora formada na contenção dos sentimentos e de sua exibição): esse paradoxal benefício do sofrer, o conhecimento, pode mergulhá-los no veneno tóxico que conhecer traz consigo. Acompanhemos o diálogo de Veena Das com Stanley Cavell:
Nesse ponto, minha análise do que é para Asha e para a irmã de seu primeiro marido trabalhar para superar esse conhecimento venenoso (refere-se ao) sentido de ser amaldiçoado ou ficar doente pelo fato do próprio conhecimento – isto é, de saber mais que os outros sobre as condições do conhecimento. O contexto dessa reflexão (evoca a ideia do) conhecimento como infectado e (…) tem a ver com todo o tema da desconfiança do cético nas relações, suas demandas por mais e mais provas – e, no entanto, o que pode curar essa condição não é mais conhecimento, mas o reconhecimento de que algumas dúvidas são normais e que a cura da suspeita não pode vir de dentro da própria suspeita (Veena Das, op.cit., p. 37 e 38).
A autora cita Stanley Cavell (1987:196-97), que veria nisso
a questão de aceitar ou rejeitar o conhecimento. Entretanto, assim como Cavell repetidamente aponta para a condição do sujeito moderno dentro do ceticismo (assinalado pela morte de Deus na filosofia), mostrando que a questão é historicamente situada, parece-me que vir a duvidar das relações que a Partição (na India) amplificou tem uma especificidade própria (assim como os confrontos bélicos na Maré têm suas particularidades). Isso só poderia ser consertado permitindo a si mesma uma descida ao mundo ordinário, mas como se de luto por ele. A recuperação não estava em empreender uma vingança contra o mundo, mas em habitá-lo num gesto de luto por ele (Veena Das, idem, ibidem).
Se o ceticismo de que trata a autora indiana diz respeito à especificidade da Partição, na Maré, a incredulidade corrosiva – que prostra, imobiliza, despolitiza e isola as vítimas indiretas da violência armada –, detectada em alguns casos, pode ser remetida às iniquidades cinicamente toleradas, preservadas e praticadas pelo Estado ao longo das décadas em que transcorreram as trajetórias biográficas dos moradores, imigrantes ou não (cf. Soares, L.E.,O Brasil e seu duplo, Todavia, 2019). Evidentemente, nem sempre a força psíquica e a solidariedade bastam para que os indivíduos resistam ao devastador sentimento de impotência para o qual não faltam motivos. Quando o sofrimento suscita conhecimento venenoso, a esperança desaparece e a aridez que a substitui é mortificante. Nesse sentido, a depressão é um subproduto da violência, sua extensão internalizada. No polo oposto estão os modos de percepção e os regimes afetivos desenvolvidos por membros de grupos civis armados, os quais, expostos a riscos extremos e perdas sucessivas de companheiros – sofrendo, portanto –, aparentemente são contagiados pelos efeitos deletérios do conhecimento tóxico, porém metabolizando o veneno de modo inverso àquele conducente à depressão. Em vez de se abaterem, assimilam, alguns, o veneno como combustível para uma vingança imaginária, infindável e impossível. Quando isso acontece, deixam de focalizar o andamento dos negócios e de agir para reduzir tensões em favor da fluidez do comércio. Passam a atuar sob a regência da vingança, prejudicando seu próprio mercado e elevando os riscos a que se expõem, como nos disse quem viveu na carne esse drama[8]. A obsessão por vingança condena o sujeito à prisão perpétua. Entende-se a revolta que cerca a dor da perda dos parceiros mortos em confrontos com as tropas policiais, porque entre elas estão alguns sócios dos negócios ilícitos, o que denota a hipocrisia dos slogans maniqueístas.
2. Virtudes da hesitação
Palavras que definem a Maré? A entrevistada, moradora que nasceu e foi criada no complexo de favelas da Maré, não hesitou:
Potência, resistência, alegria, força. Muitas coisas boas pra jogar você pro alto, porque, apesar de tudo, tem muita coisa boa. A gente não pode focar no que existe de ruim. Faz parte, é significativo, mas tem tanta energia boa aqui dentro, tanto sorriso, tanta vibração pra cima, que me traz muito mais a sensação de resistência e intensidade, força, do que me faz pensar em dor, tristeza, violência. Mudança, a Maré é isso, mudança, desejo. Mudança e desejo.[9]
Esse depoimento poderia abrir ou fechar o presente ensaio. E talvez bastasse, porque entre “potência” e “desejo”, a primeira palavra e a derradeira, o que é decisivo está presente, resumidamente. O sofrimento, as mazelas, a violência e as iniquidades não são subestimadas, muito menos negadas, estão lá, devidamente registradas no “apesar de tudo”, e no “que existe de ruim”. É o que demonstra o conjunto da entrevista, fazendo eco a muitas outras, nas quais não faltam menções a inúmeros problemas dramáticos, entre os quais o saneamento, a saúde, a educação, o acesso a direitos, bens e serviços.
A despeito da nitidez desse depoimento solar, em seu espírito, repleto de afetos positivos, e iluminador para a reflexão, o diálogo inclui momentos sombrios e hesitações que apenas atestam a sensibilidade, a acuidade analítica e a inteligência da entrevistada, mais fortes do que idealizações que acabam sendo, por sua própria natureza, unilaterais e reducionistas. Nossa interlocutora sabe o que são ansiedade e depressão, sentiu na pele seus efeitos, e a pele aqui remete à problemática do racismo, enquanto estrutura profunda que ordena a sociedade brasileira, historicamente, e se manifesta em múltiplas instâncias. É aí que se inscrevem as vivências traumáticas de que ela foi vítima, seja pela disseminação do preconceito na cidade, seja pela brutalidade das polícias que não esconde seu viés de cor e classe, e costuma ser letal.
Nossa interlocutora pondera, em outras palavras: Tem quem talvez não sinta medo e quem não fale para não ter de responder as perguntas seguintes, que decorreriam da primeira resposta. Há quem mascara os sentimentos e prefere não pensar – o mesmo acontece em outras áreas da vida, outros sentimentos também são calados. Nesse caso, o que existe é mesmo a dificuldade de expressar os sentimentos, o que também bloqueia a expressão dos pensamentos. Falar muito pode ser perigoso. Ao longo da vida na Maré, aprendi que: tenho boca e não falo, tenho ouvido e não escuto, tenho olhos e não vejo. É o reinado do silêncio. Falar demais é acusação gravíssima. Houve quem foi expulso e até quem morreu.
Embora enfatize que o alvo principal de seu temor são as polícias, ela relata cenas de violência protagonizadas por membros dos grupos armados. Cenas que nunca lhe saíram da cabeça. Teme agressões policiais a ela e, sobretudo, a seus familiares, assim como ao conjunto dos moradores, quando há operações policiais, em especial cita o medo de que sua casa seja invadida, depredada e roubada, porque é comum a pilhagem de residências por parte dos autodenominados agentes da lei: butim de guerra. Em seus próprios termos:
Nas incursões, tenho medo de um familiar estar na rua, medo de alguém ser atingido, poxa, fulano estava indo trabalhar e levou um tiro, isso é tão comum; medo de policiais invadirem minha casa, de policial fazer alguma covardia comigo, com meu esposo, que é negro, com algum familiar. Medo de encontrar a casa revirada, roubada.
As declarações de nossa entrevistada suscitam uma reflexão mais ampla sobre a relação entre as palavras e as coisas, a linguagem e os fenômenos, as categorias que descrevem a experiência e a experiência da descrição por meio de categorias, o testemunho e a consciência, o depoimento e a especulação crítica. O alcance vai além dos temas imediatamente contemplados. Aqui está um exemplo: ela conta que participa de um bloco, criado em 2006, cuja “proposta é romper as fronteiras imaginárias – imaginárias entre aspas, não é tão visível, é e não é”. A fronteira referida é a divisa que separa territórios sob domínio de facções rivais do tráfico. As questões são, entre outras: o que está visível?, o que não está visível?, e o que, mesmo visível, não deve ser reconhecido ou nomeado? O que não se deve ver, ouvir e falar? Quais os limites da percepção ou da atribuição de sentido? O que é inteligível, na realidade, e o que merece esse nome? Qual o limite da transgressão?
Tudo ganha ainda mais complexidade quando associado ao conteúdo da passagem que focaliza a delicada, difícil, desafiadora convivência com as fontes armadas do medo, internas e externas à comunidade, cuja presença aponta para a iminente emergência dos confrontos, isto é, para o potencial disruptivo que pulsa sob a ordem aparente do mundo, sempre à beira do colapso, portanto. Além da incerteza tensa, essa passagem trata da convivência com os embates sangrentos que deixam atrás de si, e na memória de cada pessoa, rastros de violência, cicatrizes, quando não feridas que não saram. Apesar desse quadro ser abordado pela entrevistada em clave compreensivelmente dramática, seu relato evoca também tesouros afetivos e éticos da comunidade, trazendo à baila episódios de solidariedade entre moradores, surpreendidos na chegada à Maré por incursões policiais, e a generosidade do acolhimento aos desprotegidos em meio a tiroteios. O desconhecido, em vez de inimigo, é irmão, irmã, parceira do infortúnio e fonte, não de medo, mas de suporte e confiança.
Quanto ao convívio com as fontes da violência e a iminência da erupção que agride e mata, as considerações de nossa interlocutora são refinadas e requerem escuta cuidadosa. As pessoas têm de focar outras áreas da vida, ela diz. A música, por exemplo, a família, o trabalho. “Não porque banalizaram, se acostumaram, ninguém se acostuma com armas na sua frente, mas também você enlouquece se pensar nisso dia e noite. Não tem como mudar, é o que as pessoas acham. Como denunciar? É arriscadíssimo. Não é fácil. Nem adiantaria.”
Assim como a divisa é uma “fronteira imaginária – imaginária entre aspas, não é tão visível, é e não é –”, também as fontes do medo são visíveis e reais, e não são: são reais quando precipitam a cadeia de acontecimentos violentos e deixam de sê-lo quando se recolhem ao campo das possibilidades não atualizadas. As fontes do medo são objeto: (1) de transfiguração na memória, de onde não podem ser simplesmente apagadas, mas podem ser elaboradas, desarmadas e resfriadas para que se reduza o risco de combustão (a insistência do real não simbolizável condena o sujeito ao retorno recorrente do episódio irradiador de sofrimento excruciante); (2) de sublimação, por meio da qual (2.1) são incorporadas como índice de instabilidade sistêmica, cuja energia sem finalidade contagia a realidade com o espectro de uma negatividade disruptiva ubíqua (o anverso da insegurança constante, irmã gêmea do medo, é a introdução no princípio de realidade da expectativa -eventualmente benigna- de mudança, em certa medida um correlato do desejo), e (2.2) são ressignificadas e deslocadas, ou transpostas para a esfera das narrativas coletivas e mitologias locais. Se a ordem é tão precária e se assenta na postergação de seu colapso, há um outro que se infiltra no monólito aparentemente impermeável das coisas como elas são, uma sombra imponderável mas perceptível que se mostra em dupla face: o que é pode não ser e os cativos do destino podemos nos tornar livres de amarras e protagonistas de outra história.
Uma película discursiva, intersubjetiva, conecta e envolucra falas e atos, insinuando-se, sutilmente, entre o que acontece, todos os dias, há tanto tempo, impondo-se às percepções, cujos efeitos não admitem ilusões, e aquilo que a comunidade se dispõe a nomear – sabendo-se que nomear é designar, descrever, reconhecer, mas também evocar. Portanto, recusar-se a nomear poderia implicar o engendramento da tessitura simbólica (aqui vale dizer, estética) que operaria o feitiço de promover a atenuação ontológica do indesejado e a gestação da mudança. Essa película poderia ser apresentada, metaforicamente, como a membrana (afetiva, política e estética) que protege o corpo social enquanto o organismo, a coletividade, prepara a troca de pele: a metamorfose que tem a força e o alcance da mutação.
Aquilo que soa ambíguo e impreciso em falas vacilantes – “é e não é” – talvez ganhe nitidez e relevância, interpretado sob esse prisma. Cabe sublinhar que são inúmeras as entrevistas qualitativas em que a presença do tráfico suscita a mesma hesitação aqui provocada pela divisa. Dizer taxativamente que algo é implica assumir o compromisso com essa existência, que a nomeação consagra e, politicamente, de algum modo, autoriza. Trata-se de um pacto de quem nomeia com o nomeado – nesse caso, com as fontes do medo –, pacto cujo preço é a insensibilidade para a fraqueza dessa demanda de realidade (demanda atendida pelo ato que nomeia), é a insensibilidade para a fraqueza dessa vontade de existência, dessa ambição de mundo. Quem nomeia com o desembaraço da certeza ante evidências furta-se a ver quão débil é o pleito por vir a ser de cada fonte do medo, as máquinas entrelaçadas (que se retroalimentam) do tráfico armado, das milícias e das polícias. Sim, porque o que “é” precisa “vir a ser” continuamente, “reiterar-se”, movimento que comporta o risco de desvio embutido em toda reprodução. O que aparece sob o modo de permanência é insistência reiterada. A dinâmica pode ser lida em chave ontológica, mas se apreende mais plenamente como formação do sujeito, configurando-se entre os limites e as exigências da economia psíquica e as vicissitudes da linguagem.
Assim, não é necessariamente por medo ou incoerência que tantos entrevistados e tantas entrevistadas oscilam entre admitir o medo e abjurá-lo, confirmá-lo e negá-lo, entre falar da divisa e dos tiroteios e calar, entre pronunciar carência e preenchê-la com a fartura de esperanças, afetos, virtudes, realizações e compromissos. Esses compromissos com raízes arcaicas, idealizadas ou não, com valores, origens e histórias comuns são provas de lealdade a homens e mulheres que construíram famílias, descendência e uma comunidade. E o que soa como subestimação da gravidade da violência talvez seja exercício de resistência. Resistência a aderir ao que é como realização plena do que pode ser, como se a versão atual da realidade, tão avara, iníqua e apequenada, esgotasse todas as possibilidades inscritas no real, excluindo potenciais não realizados mas contidos no que é.
Hesitar talvez corresponda a fazer reverberar os sentidos da realidade, suas implicações e contradições, para além dos recortes e mesmo da censura que os poderes em jogo tentam administrar. A película discursiva opera como o filtro solar que submete a luz a refrações, abrindo o espectro de cores e tonalidades. Não restringe a visão, amplia o campo do visível e matiza as imagens, introduzindo gradações e variações de outro modo neutralizadas pela intensidade dos raios. Não se trata de ser mais ou menos realista ou de adotar o relativismo como abordagem, reduzindo todo enunciado a escolhas legítimas e equivalentes. Trata-se de entender a estética aplicada nessas estratégias de composição das distintas camadas de sentido, conhecimento e afeto, amalgamadas nas percepções e nas experiências que as falas comunicam e silenciam. Talvez por isso tantos jovens valorizem a poesia e o Slam (os torneios de poemas falados) faça tanto sucesso. O Slam talvez circunscreva, ritualmente, e exponencie o trabalho da linguagem que a criatividade coletiva exercita cotidianamente para dar conta da sobrevivência física e mental, ante muitos percalços, e não se deixar atolar na areia movediça paralisante que alguns confundem com “a realidade” -realidade que, uma vez consagrada na epistemologia rudimentar da capitulação, torna-se profecia que se autocumpre.
Vale descer aos detalhes de alguns exemplos: a moradora lembra-se da cena bárbara que a marcou, um linchamento perpetrado por membros de uma facção armada, mas tampouco esquece a presença do marido a seu lado, que em seguida a acompanha de volta para casa, oferecendo sua companhia como apoio prático e mediação simbólica entre dois polos: de um lado, o indizível, perturbador e inassimilável, de outro, a materialidade plena de sentido da casa que, antes de ser a palavra que a descreve, acolhe, mais que representa, realiza o acolhimento e serve de guia e modelo para toda assimilação – de que a economia psíquica não prescinde para prevenir o trauma. A casa é inteligível e previsível, como a parceria amorosa e o histórico que a sustenta, como as relações familiares e suas reasseguradoras projeções prospectivas. O trajeto entre flagrar o linchamento e voltar à casa não apagou o evento brutal nem anestesiou a indignação e a repulsa. O trajeto deu-se em dupla dimensão, física e simbólica, as duas negociando entre si e se reforçando, mutuamente. Há o assassinato covarde e o amor, o espaço da irrupção do desvario e o abrigo que liga o passado ao futuro e concretiza o presente sob a forma de proteção, traçando forte separação, ética e afetiva, do abominável. Resta a vítima, desafortunadamente entregue a seu destino. Nada havia a fazer para salvá-la ou mitigar seus tormentos, por isso, era necessário impedir que a violência despedaçasse também a testemunha, seu espírito. Aprende-se que não se pode tudo, nem mesmo em nome da justiça, da compaixão, da piedade. Realidade é também o que resiste à vontade, sendo essa opacidade, a impermeabilidade, a crispação dessa diferença, outro componente a identificar na prática cognitiva. São lições de finitude que domesticam a culpa, cujo papel seria aqui exclusivamente corrosivo e autodestrutivo. Conflitos, desespero, impotência, tudo isso é verdadeiro, dói e requer labor consciente e inconsciente, ajuda e recursos simbólicos para ser elaborado, e nem sempre se consegue elaborar, como atesta o sofrimento psíquico tão disseminado.
As ambiguidades e hesitações – que podem ser, como vimos, muito mais do que adaptações subservientes a imposições (e ameaças veladas) dos poderes locais ou a chantagens policiais – geram embaraço grave para a ideologia (a versão da realidade que simula legitimidade e dissimula contradições), na medida em que abrem um hiato pelo qual se percebe, ou intui, o atrito entre o discurso hegemônico na sociedade (deixando em segundo plano as distinções entre credos e valores, que em geral não o abalam) e as condições que lhe conferem verossimilhança. A ordem discursiva dominante, aqui denominada ideologia, carrega conteúdos que justificam as relações capitalistas, excluem alternativas do campo de possibilidades e pressupõem um acordo indisputável (definitiva e irrevogavelmente consagrado) quanto às raízes supostamente ontológicas e indisputáveis do princípio de realidade, cuja implicação primordial é a crença mistificadora na transparência da linguagem.
A hesitação mostra e recolhe o que os nomes retratam. A hesitação os justapõe a outras palavras que desdizem o dito. Esse movimento é chave, porque sua matéria o é. Decide comportamentos e orienta avaliações. Constitui a realidade em seu eixo, ou a destitui e desestabiliza. A instabilidade semântica suspende o pressuposto matricial da ideologia e sua implicação primeira: a indisputabilidade do acordo quanto ao princípio de realidade e a transparência da linguagem. Dizer que algo é e não é desloca a referência do mundo (ingenuamente tomado como o depósito das coisas que são) para a dança da vida real permeável à ação, para o dinamismo intrínseco à história. O movimento que hesita torna-se a referência da enunciação. O performativo salta sobre o uso constativo da linguagem. Hesitar propõe aos afetos e à imaginação a hipótese de que a realidade seja um continente de possibilidades, entre as quais se incluiriam aquelas incompatíveis com a armadura politicamente consolidada pela modernização conservadora e autoritária de nosso capitalismo periférico. Aqui, vale a redundância, hesitar não designa a indecisão entre dizer e não dizer, mas o movimento ativo que formula uma contradição, atribuindo-a ao real, não a deficiências cognitivas. A coisa “é e não é” não porque quem enuncia o verbo não sabe se a coisa, efetivamente, é ou não é. A simultaneidade de ser e não ser é aquilo que é, porque o que é traz consigo, nesse caso, para além das evidências positivas, uma alteridade irredutível, que é potencialidade para a ação, que convoca a ação e inscreve a mudança no campo do real. Quando se fala em esperança, é dessa abundância do real, é desse mesmo excesso que se trata. Está aí isso que é e está aí, ao mesmo tempo, a negação disso que é, sendo essa segunda realidade aquilo que não se vê porque não se afirmou enquanto prática, e nem por isso deixa de ter presença pela mediação de seus efeitos, por antecipação ou potencialização. Se o enunciado fosse unilateralmente negativo, “a divisa não existe”, seria negacionista, delírio ou manipulação; se fosse exclusivamente positivo, “a divisa existe” – “o tráfico e o medo existem” seria o enunciado correspondente em outros depoimentos –, descreveria um fenômeno existente mas de um modo limitado e correndo o risco de reificá-lo, como se a divisa resultasse de uma necessidade à qual fosse irrealista (irracional) resistir, uma necessidade imperiosa que seria impossível transformar. A enunciação dupla é aguda porque recusa o negacionismo e a reificação. Nesse sentido, a enunciação é um gesto, uma pequena obra de arte viva que mobiliza conhecimento e política, especulação e ação, contemplação e protagonismo, epistemologia e estética.
Estamos prontos, agora, para refletir sobre o que nos diz a entrevistada a propósito da categoria “naturalização”, que ela comenta diretamente ou pela categoria análoga “banalização” – cujo diálogo tácito com Hannah Arendt não esgota os significados de seu emprego. Retomemos a passagem já citada: As pessoas não naturalizaram ou banalizaram, não “se acostumaram, ninguém se acostuma com armas na sua frente, mas também você enlouquece se pensar nisso dia e noite”.
Naturalização tem dois sentidos: (1) Reificação, processo em que automatismos alcançam tamanha autonomia que substituem deliberações, as quais implicam responsabilidades, ou as deslocam para que o império dos efeitos padronizados e previsíveis se reproduza sem mediações subjetivas ou intersubjetivas, o que se verifica na medida em que a objetividade (a realidade cristalizada) anula os sujeitos, subordinando-os à ordem das coisas. (2) Atribuição irrefletida e acrítica do estatuto de inexorabilidade à rotina, ou seja, a constatação resignada de que certas dinâmicas a princípio inaceitáveis têm curso contínuo na sociedade e que, mesmo permanecendo inaceitáveis, passam a ser consideradas inevitáveis, o que implica tácita autorização para sua continuidade e cria uma estrutura de realidade em que se admite conviver com o que, entretanto, não se aceita. Na prática, passa-se a aceitar o inaceitável, por força de acomodação supostamente realista aos supostos imperativos da necessidade. Transfere-se à ordem do inevitável, como a morte de quem vive, o que é obra humana, favorecendo – e justificando – sua continuidade. Por isso, esse “acostumar-se” com o abominável tem consequências práticas devastadoras. Ao fim e ao cabo, a resignação nos devolve à reificação. Em outras palavras, a resignação é um dispositivo afetivo-cognitivo-psicológico que atesta e coonesta a lógica da reificação, enquanto modo multifatorial de produção da realidade. É, portanto, a reificação matizada pela culpa; é a rendição e a pusilanimidade que ganham corpo. O viés psicanalítico talvez propusesse uma analogia entre o mecanismo da naturalização e a compulsão à repetição, o primeiro funcionando na vida coletiva como o segundo atua nas experiências individuais. A compulsão, reconhecida ao menos em seus efeitos e repelida no plano da consciência, é mais forte que a vontade, “toma o lugar” do sujeito, assume o protagonismo e se põe em prática.
Nossa interlocutora nega que a resignação cúmplice exista na comunidade. Vai além: afirma que não há hipótese de que haja espaço para esse “acostumar-se”, quando os atores sociais estão diretamente envolvidos, como vítimas diretas ou indiretas, potenciais ou reais. Sem pôr em dúvida a acuidade do que ela diz, que faz todo sentido e é corroborado pelo conjunto de dados reunidos na pesquisa, talvez fosse pertinente sugerir que modulássemos sua constatação, introduzindo um gradiente por meio do qual diferentes formas de “não-se-acostumar” pudessem ser identificadas e analisadas. Consideremos algumas variações que encontram correspondência na experiência empírica:
(A) Há quem se abale tão intensamente ao vitimar-se ou testemunhar atos de violência que lhe faltem forças para submeter a vivência à elaboração simbólica que a elabore e integre. Sem lugar e sentido, recalcada, expelida da órbita da economia psíquica, a brutalidade do real permanece extraviada como um meteoro explosivo. A qualquer momento, um toque fortuito no elemento desencadeador (cuja presença e função se revelam somente a posteriori) pode disparar a corrente insuportável de dor e assombro, provocando pânico, prostração depressiva, a asfixia anímica da angústia, a inquietação vertiginosa da ansiedade. Eis aí o trauma, um fenômeno de repetição, que se manifesta como o histórico de padecimento que o sucede, a síndrome do stress pós-traumático. Nesse caso, atitudes que parecem caber na expressão “acomodar-se” ao inaceitável, porque soam a indiferença ou expressam a negação de sua ocorrência (ignorando os fatos ou os apagando da memória), nada têm a ver com acomodação resignada.
(B) Há quem desenvolva a capacidade de deixar-se impactar por atos brutais, elaborando-os, resistindo a seus efeitos desestruturadores, integrando-os e os deslocando para o segundo plano administrável da consciência e da memória, graças ao equilíbrio psíquico-afetivo que já logrou cultivar e a narrativas poderosas que incluam e valorizem a autoconstrução de si dos sujeitos, sem prejuízo do reconhecimento da própria finitude e, portanto, sofrendo o medo e a insegurança mas sem paralisar-se. Como disse a entrevistada: “você enlouquece se pensar nisso dia e noite”. Há que erguer uma proteção, alguma dose de anestésico pode ser salutar. Nada a ver com ausência de empatia ou “alienação”.
(C) Outro personagem típico hipotético é aquele ou aquela que não renuncia à empatia, tampouco se dessensibiliza, mas adota estratégias de sobrevivência que são também recursos de saúde mental, as quais recomendam o estabelecimento de relações pragmáticas com os poderes locais, cujas decisões incidem sobre a vida comunitária. Não se trata de valentia ou covardia, nem de juízos morais, mas de avaliações racionais de correlações de força no cálculo da própria trajetória, que prescrevem palavras e gestos. Se há tirania, é preciso não se deixar destruir por ela até mesmo para ousar reduzir-lhe o potencial destrutivo. Injunções da sobrevivência não produzem acomodação, mas modalidades de disputa por sentido e liberdade que exigem negociação com os limites -esse processo delicado e tortuoso merece ser designado resistência.
(D) Há também quem, como nossa interlocutora, apure a sensibilidade e a inteligência o suficiente para inscrever o abominável numa dobra da realidade na qual o positivo (fáctico) e o negativo (potencialidades de mudança que inviabilizem o status de sua existência mesma) se sobrepõem, indistinguíveis, como se o que aconteceu (e acontece) ocupasse o limiar entre ser e não ser, ocorresse e não ocorresse, fosse visível e não fosse visível, inteligível e ininteligível, nomeável ou inominável. Não se trata da lógica do trauma nem da estratégia de negociação para sobreviver com vetos e ameaças dos poderes locais, calibrando as palavras, mesmo dentro de casa. Aqui, a hesitação e a ambiguidade, conforme já havíamos procurado demonstrar, inauguram uma epistemologia crítica (ativa em si mesma, enquanto discurso performativo) que dialoga (sem render-se a idealizações ou ao autoengano) com o desejo, a ética e a política, em sua acepção ampla e nobre: aposta-se que o futuro esteja embutido no presente (porque potencialidade é infusão de tempo no ser, ou a melhor definição do ser) e que a reiteração, sempre em curso, do que é (aquilo que é reitera-se para ser) pode ser interceptada, uma vez que a história (a avalanche de ações interconectadas mutuamente funcionais ou colidentes em busca de uma morfologia) não é destino e não oferece garantias ontológicas.
Aí estão algumas das modalidades de relação estabelecidas entre os sujeitos e a experiência da vitimização, seja ela direta ou indireta, atual ou virtual. Nem todos os tipos listados são mutuamente excludentes e podem suceder-se na biografia de um mesmo indivíduo. Por outro lado, a experiência que provoca, assusta, choca ou traumatiza nem sempre é a violência, entendida como ato físico de agressão ou grave ameaça. Há situações passageiras ou prolongadas, derivadas das desigualdades entre as classes (como o desemprego), do racismo estrutural (como o estigma que bloqueia o acesso ao emprego), da misoginia (que se traduz, no limite extremo, em feminicídio, mas se manifesta em iniquidades competitivas com os homens, no emprego ou mesmo no mercado informal), da homofobia ou da transfobia (que matam, mas também desempregam), situações que oprimem, humilham, causam o sentimento corrosivo de impotência, levam ao desamparo e ao desespero.
* Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP. Publicou mais de vinte livros, dos quais os mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019), Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020) e o romance Enquanto anoitece (Todavia, 2023).
Notas
[1] O presente ensaio reúne os dois primeiros capítulos de meu livro Maré e a longa gestação do novo mundo, publicado, em 2021, pelo People’s Palace Projects, no âmbito de sua parceria com a Redes da Maré, a Queen Mary University of London, os Departamentos de Serviço Social e Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, e o Núcleo de Estudos em Economia da Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, com o apoio do Economic and Social Research Council e Arts and Humanities Research Council, através do Global Challenges Research Fund. Originalmente, o ensaio foi escrito como contribuição à pesquisa Construindo Pontes, coordenada por Paul Heritage e Eliana Sousa. Minha participação se deu no interior da equipe de cientistas sociais, dirigida por Miriam Krenzinger, para cujo relatório final também contribuí. Sou grato a Paul e Eliana pelo convite para participar da pesquisa, a tod@s @s colegas, por enriquecerem meu conhecimento sobre as comunidades, e muito especialmente a Natália Guindani e, sobretudo, a Miriam, pelo acompanhamento passo a passo de minhas análises e por inúmeras sugestões fundamentais. Devo a Miriam boa parte do que houver de positivo em meu texto – mas não lhe transfiro responsabilidade por meus eventuais equívocos. Nada teria sido possível sem a generosa disponibilidade de moradores e moradoras da Maré a compartilhar conosco suas reflexões, percepções e sentimentos. Sou grato a Paul Heritage também por sua leitura aguda, que propiciou correções e desenvolvimentos muito relevantes.
[2] Michel De Certeau (1998, original 1990) e Veena Das (2011, original 2007), em estudos primorosos que alcançaram o estatuto de clássicos, já demonstraram seu lugar estratégico na formação subjetiva e na tessitura das redes sociais. Certeau, Michel De – A Invenção do cotidiano; artes de fazer. Vozes, 1998 [Tradução: Ephraim Ferreira Alves] (L’Invention du quotidien; arts de faire. Gallimard, 1990). Das, Veena – “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”, In Cadernos Pagu (37), julho-dezembro de 2011:9-41. [Tradução: Plínio Dentzien] (“The Act of Witnessing: Violence, Gender, and Subjectivity” In Veena Das, Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary, University of California Press, 2007).
[3] A obra de Stanley Cavell citada por Veena Das é Disowning Knowledge in Six Plays of Shakespeare. Cambridge, Cambridge University Press, 1987. Citar a apropriação que faz Veena Das da interpretação polêmica que Cavell propõe sobre a obra de Shakespeare não implica endossar sua leitura do grande dramaturgo. As teses de Veena Das valem por si mesmas.
[4] No ensaio memorável já referido, Veena Das nos dá régua e compasso, embora analisando uma realidade bastante diferente: “Essa imagem de voltar evoca não tanto a ideia de um retorno, mas uma volta para habitar o mesmo espaço, agora marcado como um espaço de destruição, no qual você deve viver outra vez. Daí o sentido do cotidiano em Wittgenstein como o sentido de algo recuperado. Como tornar tal espaço de destruição em seu próprio espaço, não por uma ascensão à transcendência, mas por um descenso ao cotidiano, é o que descreverei através da vida de uma mulher …” (p. 16)
[5] Nussbaum, Martha, The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Cambridge University Press, 1986.
[6] Há extensa bibliografia nacional e internacional em torno de luto, memória, ritos de reparação e lutas de mães que perderam filhos de forma violenta em favelas, sobretudo assassinados por policiais, ou mortos por agentes de ditaduras. Seguem algumas referências importantes:
CATELA, L. S. Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo: Hucitec, Anpocs, 2001
CATELA, L. S. Rituais para a dor. Política, religião e violência no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, P.; LEITE, M. P. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
LEITE, M. P. As mães em movimento. In: BIRMAN, P.; LEITE, M. P. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
LEITE, M. P.; BIRMAN, P. (Orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
Algumas pesquisas focalizam intervenções estéticas nesse mesmo contexto, como a dissertação de Natalia Guindani:
GUINDANI, Natália. Arte e rituais de luto em contextos de violência: os trabalhos de denúncia e homenagem produzidos pelo coletivo Magdalenas por el Cauca – Colômbia. 2018. 144 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018.
[7] A citação segue: “Explico: valor não se descreve; opera, sim, como ordenador de relevâncias ou como indexador de hierarquias, instituindo e circunscrevendo arenas ou espaços de investimento afetivo e imaginário (com dimensões cognitivas, simbólicas, expressivas e comunicativas) para conflitos entre escolhas ou entre alternativas excludentes de figuração da memória humana, as quais envolvem hesitações intensas, cuja tensão corresponde, segundo meu ponto de vista, à vivência mesma da moralidade. Definido como diferenciador mais importante para o juízo, moral e afetivamente concernido – vale dizer, existencialmente radicado -, o valor qualifica a vida humana, diferenciando-a, o que lhe atribui função ordenadora para os processos de significação e um duplo papel, mnemônico e prospectivo. Não há teleologias desprovidas de valor, ou que não nasçam, em alguma medida, do valor” (Soares, L.E., “O lugar do sofrimento humano no pensamento político moderno”, In Os dois corpos do presidente, Relume Dumará, 1993). (A primeira versão deste ensaio foi apresentada por ocasião do lançamento do livro Impacto da modernidade sobre a religião [editora Loyola], no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, dia 2 de setembro, 1992, em mesa-redonda que também contou com a presença dos professores José Jorge de Carvalho e Maria Clara Binguemer [coordenadora]. A presente versão foi apresentada em 22 de outubro de 1992, no âmbito do Grupo de Trabalho Religião e Sociedade, coordenado pela profa. Maria Helena Villas Bôas Concone, na reunião anual da ANPOCS, realizada em Caxambu, Minas Gerais. O artigo foi republicado em Legalidade Libertária. Lumen-Juris, 2006.)
Como é bem sabido, a antropofagia da qual fala Oswald de Andrade no manifesto de 1928 é um ritual que permite englobar no sistema cultural de uma tribo (no caso, os Tupinambás) os valores do inimigo. Uma atitude absolutamente revolucionária até hoje, se a compararmos com o nosso sistema de lidar com o adversário capturado: a nossa estratégia é a de isolar, confinar, encarcerar; em alguns casos suprimir; e, em todo caso, esquecer. Quanto mais potente for o nosso inimigo, tanto mais será preciso neutralizá-lo. Excluído e recluso. Ao contrário, na sugestão de Oswald, não se trata de neutralizar mas de utilizar, de incorporar ao invés de rejeitar. Dessa forma, não se dispersa nada do que, pertencendo a quem se é contrário, é potencialmente útil. Sobretudo, o sistema axiológico do inimigo não somente não é negado, mas é ressaltado. Lembremos que se trata de uma provocação, mas por trás de cada provocação há um desejo autêntico de subversão e de novos valores: por exemplo, o “matriarcado de Pindorama” parecia ser (e talvez ainda pareça) uma miragem aliciante, e isto muito embora possa não ter sido real.[1]
É usual indicar poucas obras que tenham seguido as indicações do manifesto oswaldiano (e nenhuma de Oswald, por sinal, a não ser o próprio Manifesto, que, não por acaso, se define Antropófago e não Antropofágico), e tais obras são, como se sabe, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e, retroativamente, O Guesa errante, de Sousândrade. Substancialmente, por uma espécie de crase interpretativa, definiram-se como antropofágicas – ou antropófagas – as obras que de certa forma incorporaram as culturas indígenas.
Na realidade, observando bem, quatro anos antes do Manifesto antropófago, a Poesia Pau-Brasil já praticava a devoração da cultura europeia (inimigo sagrado) para criar quadrinhos nacionais. E, sem querer deformar um autor universal como Guimarães Rosa, vemos como Grande Sertão: veredas também se alimentou daquela cultura europeia que se encontra nos antípodas do mundo representado no romance: um texto brasilianíssimo, embora nutrido de saberes clássicos (não somente ocidentais), uma obra local e global, como indicou, entre outros, Ettore Finazzi Agrò (2001). Confirmando esta visão, Eduardo Sterzi (2022) acolhe Guimarães Rosa em seu ensaio recente sobre antropofagias.
E um estudo amplo e aprofundado sobre a reelaboração – frequentemente estereotipada – do conceito de antropofagia na cultura brasileira, desde a redescoberta do movimento nos anos 1950 até hoje, é oferecido pelo ensaio de Alessia Di Eugenio, La cultura della divorazione, estudiosa que ampliou suas pesquisas no exame da reapropriação indígena deste conceito, de certo modo inventado pelo colonizador branco a partir de sua própria visão das culturas locais.
Parece-me, porém, fundamental sublinhar que, no exame do fator antropofágico, deve-se entender como “inimigo” seja quem, antagonista e estrangeiro, é admirado (a cultura europeia, por exemplo), seja o inimigo interno (os conteúdos recalcados porque inadmissíveis). Neste caso, por exemplo, o ato de comer a própria tradição inimiga do progresso significa reconhecê-la ao mesmo tempo positivamente como criadora de progresso, carregando valores em seu próprio mundo na época em que se apresentara como novidade.
Se o moto da antropofagia literária pode ser superficialmente aproximado da mera prática da citação ou do pastiche (e neste caso as praxes pós-modernas o englobariam cabalmente), na realidade ele inclui uma segunda fase que é a do reuso, da profunda reciclagem, da metamorfose. E é através desta metamorfose que se amplia o cânone. O que era excluído agora chega a ser integrado, por um ato de vontade do artista que o resgatou.
Gostaria de propor uma reflexão ulterior que conduz ao conceito que eu definiria como “autofagia”, pelo qual quem é comido faz parte da mesma cultura de quem comeu. Observo, com efeito, que a cultura brasileira de hoje parece com frequência querer digerir a si mesma, não somente recuperando e re-ingerindo a tradição oposta à vanguarda, mas também, e especialmente, as partes mais indigestas do suposto “progresso”, tais como a escravidão, o subdesenvolvimento, a dependência ou a desigualdade social extrema, para tranformá-las numa mensagem ou um aviso para os tempos presentes.
Não se trata, portanto, da diferença aberta entre antropofagia endo e exocanibálica, porque não são as qualidades positivas dos antepassados que são ingeridas (como no endocanibalismo, ou endofagia), e sim as qualidades incômodas porém poderosas. Através da incorporação dos assuntos mais dissonantes – difíceis de serem incluídos no discurso literário ou artístico –, os momentos disfóricos não somente são mencionados e criticados, mas são encaixados no discurso criativo. O passado e o presente que incomodam serão reabsorvidos e replasmados.
Considerando bem, ainda, quando a Poesia Pau-Brasil repercorria (como diz o Manifesto homônimo) “toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil” e apresentava casos e cenas de donos e escravos num tom ligeiro (talvez o humorismo pirandelliano, o tragicômico “sentimento do contrário”), estava digerindo o intolerável – porém real – passado colonial, não renegado mas sim corajosamente exibido no estilo antirretórico das vanguardas, ousando até o sorriso.
2. Desmascarar com ironia: a Canção do subdesenvolvido
Como para criar uma trilha sonora para estas considerações, quero trazer como primeiro exemplo a “Canção do subdesenvolvido”, de Carlos Lyra e Francisco de Assis, de 1962.
Nesta obra atuavam ambos os tipos de antropofagia descritos acima, os mesmos que se encontram em Pau-brasil: utilizavam-se os modos do inimigo externo (que neste caso é também um adversário econômico-político) para falar de um tema local negativo e presente desde sempre, porém tão visível que não era mais percebido: a dependência.
Fagocitando diversos estilos musicais tirados do mundo anglo-saxão, o mundo dos especuladores estrangeiros, uma melodia animada por um refrão alegre lembrava como o Brasil tinha sido explorado e vendido em várias fases de sua história, portanto procurava através do humor recuperar verdades indizíveis (o inimigo interno!) e conscientizar a população, de forma que a ironizada “vida nacional” se tornasse uma realidade conhecida por todos os que nela estavam ignaramente imersos. Vale ressaltar que a longa palavra “subdesenvolvido”, fonicamente pouco apta para ser musicada, é repetida inúmeras vezes no estribilho, de modo que quase perde o sentido, tornando-se normalizada assim como fora normalizada a realidade correspondente, sobre a qual os autores quiseram despertar a atenção.
3. Cantar o inaceitável: Noites do Norte
Sempre passando da ingestão do que pertence a outros para a ingestão do que é interno à própria cultura brasilieira, podemos mencionar uma canção insólita de Caetano Veloso, que já com o movimento da Tropicália nos acostumara com miscigenações antropófagas.
A canção “Noites do Norte” dá o título ao CD de 2000 dedicado à história e à cultura afrobrasileiras. Eis a letra:
A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte… É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.
São as palavras de Joaquim Nabuco tiradas de sua célebe autobiografia intelectual, Minha formação, de 1900.
A música do Caetano para esta letra é bastante anômala, pois oferece uma melodia dificilmente memorizável, justaposta ao trecho de forma a não alterá-lo, mas sofrendo pela falta de ritmo desta prosa cheia, porém, de imagens poéticas. Apesar das dificuldades em adaptar o canto a um texto tão refratário, Caetano quis oferecer, para divulgá-lo, suas capacidades de cantor e compositor, para fazer transitar a mensagem para além do restrito círculo dos leitores do grande abolicionista. Sobretudo, engolindo e reexpondo o texto a um século exato de distância, Caetano nos fazia aceitar o inaceitável: a existência de uma nostalgia da escravidão, a presença liricamente transfigurada de mulheres e homens deportados no solo americano e destinados a uma vida de sofrimento, num trecho que começava pela palavra “escravidão” e elencava uma série de termos positivos: “suavidade”, “religião natural e viva”, “encantamentos”, “alegrias”, “felicidade”, para rematar com o luar.
A figura do inimigo interno acima definida foi aqui neutralizada, e pode ser desvelado o elemento que fora recalcado (em termos freudianos) pois moralmente condenável. Sobre escravos e escravidão pode-se falar também poeticamente, e não somente em termos de violência ou condenação. Mais adiante no texto, Nabuco falava de sua ama africana e do afeto para com a população negra. A complexidade da questão do legado afetivo do regime escravista, explicitada por Nabuco, é enfrentada e divulgada por Caetano numa operação preciosa. Uma reciclagem de grande efeito que ressalta o que existia e parecia inadmissível.
4. Relembrar palimpsestos violentos: Descobri que estava morto
Um terceiro exemplo, outra digestão que também durara um século.
Quando o jovem escritor João Paulo Cuenca recupera a posição política e cultural de Lima Barreto de forma direta e indireta no romance Descobri que estava morto (2016), não está somente exibindo um jogo literário, está apontando para o fato gravíssimo de que o governo do Rio de Janeiro (e metonimicamente do país) não aprendeu a lição da História, repetindo na cidade – ironicamente e às vezes sarcasticamente definida “olímpica” em vista dos Jogos de 2016 – a demolição das moradas pobres em prol de uma política ao mesmo tempo de “depuração” e de especulação mobiliária. O protagonista autobiográfico, que atravessa todas as camadas sociais num enredo tingido de romance policial, desde os festins dos jovens de sucesso até as áreas mais degradadas, está remapeando uma cidade que se rasura a si mesma. As observações paralelas sobre o atual violento programa político-militar do Choque de Ordem e sobre as muitas demolições do início do século XX (particularmente a do Morro do Castelo), acompanhadas estas últimas pelas coevas citações de Lima Barreto, nos lembram que já passamos por isto. Devorar o escritor incômodo e corajoso de um século atrás significa reavivar um passado escabroso de destruição que fora neutralizado por uma arquitetura moderna e modernista, como provavelmente seguirá acontecendo com as construções pós-modernas e pós-modernistas que cobrem elegantemente o extermínio dos pobres.
Mas eis que, devorado o passado para transformá-lo em lição, o escritor ousa exibir-se e mostrar sua insuficiência citando-se de forma sincera e desencantada, e, de alguma forma, autodevorando-se:
[…] no fim das contas, o movimento de encarecimento da cidade e as violações dos direitos humanos me incomodavam apenas o suficiente para eu me aproveitar disso num livro antes de me mudar de cidade e país.
Ou, pelo menos, esse era o meu plano.
(Cuenca 2016: 63).
5. Reexumar vidas do lixo: Lixo Extraordinário
Música, literatura, e um exemplo das artes visuais.
O artista e fotógrafo Vik Muniz conduz há tempo uma operação de releitura das ícones da cultura ocidental, reconstruindo tais obras com materiais insólitos de forma a apontar para uma reflexão sobre a nossa relação com uma realidade frequentemente fetichizada: chocolate, ketchup, diamantes, açúcar, retalhos de revistas. A operação talvez mais extrema é a que se encontra narrada no célebre documentário Lixo Extraordinário (2010), por si já um título antropófago que engole T.S. Eliot para chegar ao material incomum empregado por Vik para criar o objeto de sua fotografia, ou seja, o lixo do aterro de Jardim Gramacho (RJ), que foi descrito como o maior do mundo e que hoje não existe mais. Como é sabido, o vídeo emocionante relata a experiência de arte compartilhada com jovens catadores de lixo reciclável: Vik teve a ideia de recuperar alguns destes objetos descartados para reconstruir, em escala gigante, imagens artísticas que fizeram a história: a Repasseuse de Picasso, o Atlas de Guercino, a Morte de Marat de David ganham vida com os vultos das meninas e dos meninos catadores, resgatando-os do olhar que vê a eles mesmos como descartes. E as imagens são tão tocantes como é tocante a consciência de que atrás daquelas caras transfiguradas pelo resultado artístico há percursos humanos tão afastados de nós como tão em primeiro plano.
Como na ação antropofágica, temos aqui um movimento circular, que parte do reconhecimento do que é alheio (“Só me interessa o que não é meu”, diz o Manifesto oswaldiano) e de sua valorização para torná-lo próprio através de uma transformação radical, uma digestão, e devolvê-lo sob a forma de um valor agregado. Para cumprir até o fim esta ciclicidade, nesta como em outras operações (por exemplo, as Crianças de açúcar da ilha caribenha de St. Kitts), Vik doa parte dos lucros da venda das obras aos protagonistas com quem trabalhou. Nada mais próximo da arte da reciclagem, nada mais mágico do que a transformação do lixo em emoção e aviso.
6. Reafirmar pertenças ancestrais: Ori/cachoeira
Para variar, um pouco de teoria, um pouco de feminino.
Na teoria feminista de estudiosas afroamericanas e afrobrasileiras como Carla Akotirene, a pertença à cultura yoruba é reafirmada com convicção como uma forte herança ancestral e existencial que marca a maneira de se aproximar da realidade seguindo modos afins aos outros seres da natureza. Akotirene, enfrentando o ambiente asséptico da teoria literária, se define corajosamente em tal sistema como a “cachoeira”, que com suas afirmações cria “estrondos” à sua passagem, ou seja, tem um efeito de subversão. O choque epistemológico pode ser avaliado se imaginarmos comparar este lance a um(a) cientista que ponha em relação sua tarefa de descobridor(a) de novos terrenos com seu nascimento sob o signo de Áries. E em seu volume Interseccionalidade, de 2018, o primeiro agradecimento da estudiosa “pela firmeza da escrita” é justamente para seu Ori, a divindade pessoal (a “cabeça”) que norteia os indivíduos desde antes de nascer até depois a morte.
Saberes complementares, frequentemente menosprezados como irracionais e portanto irrelevantes e daí risíveis, são resgatados publicamente para gerar imagens poderosas e eficazes. Em vez de o irracional rebaixar a importância do aporte intelectual, o valor deste último é inserido num sistema que reavalia o que geralmente é descartado.
7. Nota à margem e conclusão moralizante
Uma nota à margem. O objetivo do prêmio Right Livelihood Award, criado pelo sueco Jakob von Uexkull e considerado por alguns um Nobel paralelo, é o de “ajudar o Norte a encontrar uma sabedoria que corresponda à ciência que possui, e o Sul a encontrar uma ciência que corresponda à sabedoria que possui”. Ou seja, para além da mecânica divisão Norte/Sul, por vezes simplificada e estereotipada, a mensagem é: aceitar a necessidade de integração.
Pequena moral, para concluir: se aprendéssemos com “o que não é nosso”, ou com o que é nosso mas não é reconhecido, os nossos saberes seriam talvez menos impotentes.
* Maria Caterina Pincherle é professora da Sapienza Università di Roma.
Referências
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CUENCA, J.P. Descobri que estava morto. São Paulo: Planeta, 2016.
DI EUGENIO, A. La cultura della divorazione: Antropofagia culturale, miti interpretativi ed eredità nel Brasile contemporaneo. Roma: Mimesis, 2021.
FINAZZI-AGRÒ, E. Um lugar do tamanho do mundo. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
NABUCO, J. Minha formação. Rio de Janeiro: Record, s.d.
STERZI, E. Saudades do mundo: Notícias da Antropofagia. São Paulo: Todavia, 2022.
A revisão do modernismo paulista, que tomou fôlego com a efeméride dos cem anos da Semana de Arte Moderna de 1922, mas já vem sendo feita há décadas na academia, depende de um debate terminológico que não é fácil de fazer. Modernismo, modernidade, modernização e moderno – para não falar da noção mais que problemática de pré-modernismo – são quatro conceitos que parecem se referir à mesma ideia central, mas a ampla gama de significados dificulta a compreensão exata dos termos. São palavras que têm usos comuns e especializados diversos, conotações positivas e negativas, que podem se contradizer. No caso brasileiro, há ao menos dois usos que conformam uma constelação específica de significados com a qual sempre lidamos ao usar esses termos: primeiro, o uso no discurso da modernização, de caminho em direção à modernidade (de perfil ocidental), em oposição ao arcaísmo, oposição esta que atravessa o pensamento de autores progressistas e conservadores; segundo, a apropriação pelo Modernismo de 1922, que instituiu, para falar como Pascale Casanova (2002, p. 118), o meridiano que determina, no caso do sistema literário brasileiro hegemônico, o que é moderno, qual é o “presente incessantemente redefinido” a partir do qual autores, grupos, tendências, obras eram situadas, tivessem surgido antes ou depois de 1922.[1] Afinal, “moderno” vem, lembra Williams (2007), do latim modo, no sentido de “precisamente agora”, e é a partir desse “agora” que se traçou o que é moderno e o que é arcaico.
Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945, de Rafael Cardoso (Companhia das Letras, 2022), está inserido nessa onda de revisões dos modernismos e tem o grande mérito de chamar a atenção, na esteira do trabalho de Monica Pimenta Velloso (2010), para outro tipo de modernismo – termo cujo uso discuto mais à frente – que cronologicamente antecederia o movimento paulista de 1922. Esse modernismo, cuja capital era o Rio de Janeiro, ocorria nos bares, nos salões de carnaval, nas galerias de exposição, mas principalmente na imprensa, onde eram testadas novas formas de escrever, mas de maneira ainda mais destacada novas técnicas de desenho e de impressão, em linha com os avanços tecnológicos.
Aliás, é ao analisar as obras gráficas da época que Cardoso, historiador da arte, professor da Universidade Livre de Berlim e membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atinge melhores resultados analíticos, como no primeiro capítulo (“Coração das trevas no seio da metrópole moderna: favelas, raça e barbárie”), em que relaciona as representações das favelas e dos negros na iconografia da época – indo de Uma rua da favela (c. 1890), de Eliseu Visconti, às caricaturas de J. Carlos no final dos anos 1920 – com os movimentos de modernização, muitas vezes autoritários, do Rio de Janeiro.
Outro exemplo de bom resultado analítico é quando discute Boemia, quadro de Helios Seelinger de 1903. Aquela pintura, escreve Cardoso, é um “manifesto visual, anunciando um novo espírito artístico livre das amarras das convenções, tanto morais quanto pictóricas, e engajado na busca de liberdade e leveza, prazer e vivacidade”, além de registrar, na figura dos boêmios, a existência “de um grupo artístico concreto”, entre os quais estavam Gonzaga Duque, João do Rio, Luís Edmundo, Raul Pederneiras, K. Lixto e Seelinger. Apesar de, para o olhar da época, parecer “esboçada e mal-acabada”, e sua composição, “caótica e confusa” (Cardoso, 2022, p. 100), a pintura foi não apenas aceita como também premiada pelo Salão da Escola Nacional de Belas-Artes (Enba), o que mostraria uma abertura, já no começo do século XX, das instituições cariocas para as novas experiências artísticas europeias e para uma mistura entre tradição e modernidade e entre alta – Boemia tinha 103 por 189,5 centímetros, “grande demais para ser um quadro de costumes” (Cardoso, 2022, p. 102) – e baixa cultura – afinal, o quadro não apenas retrata uma cena boêmia, como nela estavam figuras populares como o caricaturista K. Lixto (Calixto Cordeiro) e o jornalista e escritor João do Rio.
Esse modernismo carioca, que não teria se comportado como movimento organizado, mas como um grupo difuso com práticas comuns disseminadas em meios intelectuais e profissionais, formado por escritores, artistas plásticos e jornalistas que tinham de trabalhar para viver, teria ainda lidado de maneira mais orgânica com a questão racial, incorporando pontos de vista mais variados e menos mitologizantes que o modernismo paulista. Isso porque, diferente de Paris ou Nova York, “o Rio de Janeiro é uma cidade onde o velho e o novo, o rural e o urbano, o sagrado e o profano desenvolveram maneiras únicas e peculiares de coexistir” (Cardoso, 2022, p. 35). Esse contato produziu um fenômeno – o samba e o Carnaval, “formas culturais específicas nascidas do contato entre as elites cariocas, ávidas por uma fantasia da Europa, e a pujante população constituída por imigrantes, migrantes e descendentes de pessoas escravizadas” (idem). Isso permitiu, segundo Cardoso, que “esse modernismo carioca carnavalesco tenha aberto espaço para incorporar artistas afrodescendentes como K. Lixto e um Arthur Timotheo [da Costa]”. Já o “modernismo paulista que o sucedeu – e, em grande medida, apagou sua memória – detinha uma relação bem diferente com temas de negritude” (Cardoso, 2022, p. 143).
Esse breve resumo mostra algumas das contribuições de Cardoso e alguns dos problemas de sua argumentação. A primeira, mais geral, é uma extensão do sentido do autodenominado “Modernismo” (um conceito que é, em si mesmo, questionável) de 1922 para outros grupos mais difusos, como o carioca. Afinal, como Cardoso dá a entender, e parece-me que de maneira acertada, o modernismo carioca não foi um movimento fechado, mas uma movimentação de atores do campo artístico e literário. A segunda é uma questão teórica que relaciona a prática cultural com o movimento histórico concreto: por que a literatura do modernismo paulista se transformou no “agora” literário, mas não ocorreu, por exemplo, com a música paulista?[2] A que problemas históricos essas produções responderam e por que o sistema literário, o sistema artístico e o sistema musical se formaram de maneiras diferentes? Em terceiro lugar, dialogando com as duas primeiras questões, está a relação entre essa modernização (no sentido de absorção, mesmo que transculturada, do “agora” ocidental da virada do século XIX para o XX), representada pelas reformas gráficas no Rio de Janeiro, e o processo de modernização conservadora, que constituiu uma possível constante da nossa história desde a independência.
Comecemos pela ideia de modernismo. Na introdução, Cardoso, com razão, critica uma ideia simples de continuidade e ruptura, que transformaria a história da cultura em algo unidirecional, quando ela deve ser vista como “fenômeno histórico disperso e diverso” (Cardoso, 2022, p. 16). A partir disso, ele propõe a ideia de “modernismos alternativos”, “outras correntes de modernização cultural em paralelo àquela geralmente conhecida”. No caso brasileiro, enquanto o cânone modernista veio das esferas elitistas da arte, esses modernismos alternativos “brotaram da cultura popular e de massa” (Cardoso, 2022, 17). Um dos problemas da instituição do Modernismo de 1922 como centro do cânone, portanto, é o apagamento de outras formas de arte que já rompiam com o academicismo do final do século XIX e do começo do XX, categorizadas como “pré-modernistas” por alguns críticos e historiadores. Como escreveu Beatriz Resende (2016, p. 16), o “cânone modernista terminou por se fazer responsável pelo esquecimento, pela desvalorização ou mesmo pelo desaparecimento de obras e autores que, já desvinculados do academicismo, do beletrismo, não chegaram, porém, às vezes por mera questão de calendário, a fazer parte do que se consagrou como Movimento Modernista”.
O problema aqui é que Cardoso acaba produzindo um esquema binário em que um modernismo vem antes do outro – ou seja, ele recai na história unidirecional que havia criticado –, e esse segundo não apenas se torna hegemônico como também é menos democrático do que o primeiro. Dessa forma, o livro parece instituir outro cânone, o que significa refazer o movimento de exclusão, algo que parece ser uma tendência de outros analistas críticos aos modernistas de 1922. Como termo de comparação, vejamos o que escreveu outro autor, o biógrafo e jornalista Ruy Castro (2021, p. 16), na introdução de As vozes da metrópole: uma antologia do Rio nos anos 1920: “desde 1920, o Brasil já tinha um escrete de escritores afiados na observação de sua época e que já escreviam brilhantemente em brasileiro, em todos os estilos correntes e em outros que, a partir dos anos 1920, seriam caracterizados como ‘modernistas’ (embora os autores do Rio, modestamente, fossem apenas modernos) […] sem dispensarem o humor e a leveza que são as marcas do Rio”.[3] Essa citação de Castro mostra como o uso livre e pouco específico de moderno, modernismo e modernização provocam confusão, sobre a qual falaremos mais à frente. Moderno, enquanto oposição ao antigo (ou ao clássico), não é algo exclusivo das vanguardas do século XX, nem da passagem do século XIX para o seguinte. Para mencionar um uso nas nossas letras, Antonio Candido lembra como Gonçalves de Magalhães justificava seu “repúdio do imaginário clássico” em 1833: “Outro deve ser o maravilhoso da poesia moderna; e se eu tiver forças para escrever um poema, não me servirei dessas caducas fábulas do paganismo” (Magalhães, apud Candido, 2017, p. 378). De forma semelhante, o que se chamou modernismo nas letras hispano-americanas se chamou “art nouveau, modern-style, liberty, jugendstil, sezessionsil” (Ramírez, 2016, p. xx). Um crítico como José Paulo Paes (2002) chegou a sugerir, a partir de Brito Broca e Flávio L. Moura, substituir o infeliz “pré-modernismo” por art nouveau ou “arte nova”, e Beatriz Resende sugere “literatura art-déco” para a produção carioca moderna dos anos 1920 a 1945 (Ferreira; Ernesto; Resende, 2014).
Sergio Ramírez, em sua introdução à obra seleta de Rubén Darío, propõe ainda uma segunda diferenciação, entre o modernismo decorativo e barroco finissecular, cuja figura principal é William Morris, ao modernismo invasivo dos anos 1920, que ele relaciona à Bauhaus e a Walter Gropius (Ramírez, 2016, p. xxi-xxii). Haveria, portanto, dois processos de modernização das artes, ambos com suas contradições: um de resistência à industrialização por meio do artesanato, mesmo que incorporando os novos materiais (Morris), e outro de despojamento (Gropius), entre os quais há tanto continuidade quanto ruptura.[4] No Brasil, a oposição toma outra forma: entre uma “arte nova” ou, mais à frente, “art-déco”, com grupos dispersos, ligada à profissionalização; de outro um Movimento Modernista, com revistas, manifestos e correntes mais ou menos definidas.
Parece-me, portanto, que há, no livro de Cardoso, uma contaminação (talvez inevitável, mas que não é tratada adequadamente) entre moderno (em oposição a arcaico ou clássico), modernismo (enquanto nome de um movimento específico de tentativa de modernização) e modernização (termo que trataremos mais à frente). Sigamos a argumentação. A modernidade carioca é descrita por Cardoso e por Castro em oposição ao modernismo paulista. De um lado, artistas e escritores profissionais, vindos de classes diversas, escrevendo para o público, tratando com organicidade a questão racial e surgindo também organicamente de uma cidade que era em si moderna e cosmopolita, cidade-luz – Ruy Castro (2019, p. 305) menciona que Albert Einstein teria dito, ao visitar o Rio em 1925, que “os brasileiros mataram a noite”. Do outro, artistas e escritores diletantes, saídos da elite cafeeira, escrevendo para os pares, abordando a questão racial de um ponto de vista abstrato, quando não racista, tentando desprovincianizar uma cidade ainda provincial e ao mesmo tempo querendo produzir uma arte não cosmopolita, mas nacional. Mencionando Monica Pimenta Velloso, Cardoso diz que o modernismo carioca é “assumidamente cosmopolita e menos primitivista do que seu equivalente paulista” (Cardoso, 2022, p. 23). No entanto, ao menos no que tange ao aristocratismo do movimento paulista, embora real, talvez também deva ser nuançado, como sugere Maria Arminda do Nascimento Arruda (1998). A citação é longa, mas a reproduzo:
A postura irreverente foi igualmente marca registrada de Oswald de Andrade, comportamento que lhe rendeu incontáveis dissabores e o relegou à posição de marginalidade em relação às instituições. No fim da sua vida, Oswald revelava a consciência agônica do seu distanciamento diante das instâncias de consagração cultural e de inserção institucional, o que o tornava um verdadeiro outsider na vida intelectual paulista. Diferentemente, vários membros do grupo carioca possuíam empregos públicos, entretinham colaboração permanente em jornais e revistas, criavam anúncios para o nascente mercado publicitário, cultivavam relações próximas com políticos, altos funcionários e empresários, que lhes rendiam financiamentos para a publicação das suas obras. Emílio de Menezes conseguiu até mesmo ser admitido na Academia Brasileira de Letras. Por isso, é desejável redimensionar a possível marginalidade desses intelectuais cariocas e, talvez, interrogar sobre a construção das autoimagens que proliferam entre os produtores culturais, sequiosos em se destacarem do conjunto dominante.
Para que o esquema de Cardoso funcione, é preciso criar algumas divisões onde não havia ou onde não eram tão claras, muitas vezes recorrendo a supressões de evidências ou ao menos a interpretações bem controversas. Menciono um caso específico. Ao falar da Antropofagia e, dessa forma, tratar das fases do modernismo,[5] Cardoso faz uma ótima análise da oposição entre primitivo e selvagem segundo o movimento liderado por Oswald de Andrade, assim como do seu vínculo com a psicanálise e da contradição entre a prática e o discurso antropofágico. No entanto, ao tratar da relação do grupo antropofágico com os demais subgrupos, afirma que, “dado o desgaste das relações entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que foi da amizade para o antagonismo, seria temerário presumir qualquer continuidade entre os propósitos da Semana de Arte Moderna e da Antropofagia” (Cardoso, 2022, p. 206). Há aqui um salto argumentativo, que permite que o autor não leve em conta que os posicionamentos artísticos sempre são respostas tanto aos movimentos reais da sociedade quanto às disputas e tensões internas ao campo artístico (que é relativamente autônomo, como tão bem demonstra Pierre Bourdieu). Logo, mesmo que tenha havido ruptura pessoal entre os dois principais nomes do modernismo paulista, cabe ao historiador e ao crítico inquirir as movimentações reais dos atores. Desse ponto de vista, o que há é uma dialética sempre aberta entre ruptura e continuidade, como o próprio Cardoso sugere na introdução. Mas, afinal, o que permite que ele afirme não haver continuidade? Segundo ele, “as opiniões dos próprios antropofagistas”, como quando Oswald afirma que a Semana de Arte Moderna seria um “falso modernismo” (Cardoso, 2022, p. 201). Aqui o autor decide tomar ao pé da letra as afirmações dos atores, como se elas próprias não fossem posicionamentos em grande medida em reação a movimentações de outros atores dentro do campo artístico. Uma crítica das fontes ajudaria a ler com um grão de sal afirmações como a de Oswald.
A própria formação de grupos é uma resposta a essa dupla pressão sobre os atores, tanto externa (social, econômica e política) quanto interna ao campo artístico.[6] É interessante que, ao descrever Boemia, Cardoso chegue perto do tema ao notar que o quadro expressa a existência “de um grupo artístico concreto”. Essa afirmação poderia abrir espaço para outro tipo de investigação, de caráter mais sociológico, que levasse em conta a importância de grupos para a transformação estética e social, como mostrou Raymond Williams – autor citado por Cardoso – em relação ao Círculo de Bloomsbury (Williams, 2011, pp. 201-230), ou Bourdieu com os grupos realistas, naturalistas e impressionistas franceses (Bourdieu, 1996). No caso brasileiro, é o que Sérgio Miceli tem feito com o próprio modernismo, mais recentemente em Lira mensageira: Drummond e o grupo modernista mineiro (2022). Miceli é um bom exemplo – com acertos e erros, como qualquer pesquisa – de análise que busca trabalhar as mediações contraditórias entre os campos políticos e intelectuais na história do modernismo.
Por fim, para concluir esse tópico, a impressão que se pode ter é de que se quer instituir outro modernismo canônico, em que uma cidade substitui a outra, as artes gráficas, a crônica e a imprensa profissional substituem as artes plásticas, o quadro, a escultura e o livro. Mas, como sugere Maria Arminda Arruda (1998), “as discussões construídas em torno de primazias e de correntes hegemônicas são desnecessárias e podem até aludir a posições revalidadoras de disputas ingênuas”. O caminho de crítica ao cânone modernista talvez possa ser outro. Por um lado, é necessária “uma releitura [do modernismo] onde se dê uma efetiva abertura para a superação de fronteiras definidores e limitadoras”, como sugere Resende (Ferreira; Ernesto; Resende, 2014), levando em conta o trânsito não apenas entre tendências anteriores (como o simbolismo) e o modernismo, mas também entre autores, revistas e jornais identificados com um grupo ou outro. Por outro, dado que há relativa autonomia dos grupos carioca e paulista, é necessária uma releitura em que enxergaríamos em um modernismo a verdade do outro: no carioca, a explicitação da ligação entre arte moderna e mercadoria, relação esta relegada a segundo plano no Modernismo de 1922 por causa do diletantismo; no paulista, a explicitação da relação entre modernidade e escravidão, que no carioca muitas vezes era preterido diante da celebração cosmopolita da democracia que representariam a imprensa e a metrópole.[7] Talvez essa contradição entre dois modernismos (de muitos outros que poderiam ser elencados em Minas Gerais, no Sul ou no Nordeste) seja um caminho mais interessante para descobrir algo novo sobre nossas próprias contradições do que a escolha historicista de um caminho apenas como o da verdadeira (ou melhor) modernidade. Isso se considerarmos mesmo que faz sentido usar o termo “modernismo” para designar não apenas movimentos – uma vez, repito, que havia uma consciência da condição de movimento nos paulistas de 22, não nos cariocas antes dessa data –, mas grupos mais dispersos que promoveriam uma modernização das práticas artísticas e culturais.
Essa dicotomia reaparece quando Cardoso trata da relação de Mário de Andrade com a música, o que nos leva à segunda questão: o que torna uma prática cultural “nacional”? O autor parte de uma série de afirmações de Mário de Andrade sobre Sinhô para afirmar que o autor de Macunaíma sugeria que “ser carioca era ser distinto de ser brasileiro e, por extensão, [que] a capital da República não era representativa do Brasil” (Cardoso, 2022, p. 230). Diante da visão em ascendência “de que a mistura racial seria a maior característica da brasilidade”, característica simbolizada pelo Rio de Janeiro, Mário nutriria “algum paradigma exaltado de pureza cultural e étnica”, contrapondo “a atualidade degradada a um estado primevo de pureza” (Cardoso, 2022, p. 231). Por mais que a relação de Mário de Andrade com a identidade nacional seja complicada – aqui, vale a pena retomar o ensaio “Macunaíma e a ‘entidade nacional brasileira’”, de Leyla Perrone-Moisés (2007) –, as conclusões às quais o autor chega são contundentes demais para as evidências elencadas, que se concentram em poucos textos sobre Sinhô. Ainda mais quando o objeto de crítica é um autor com tantas flutuações quanto Mário de Andrade. Além disso, a crítica à defesa de Mário à gravação de música folclórica nos leva a ver como essa dicotomia leva a um binarismo: ou o cosmopolitismo de Sinhô, ou o primitivismo de Mário, como se a questão fosse determinar qual representa a nacionalidade ou o “agora” do sistema artístico brasileiro. E não uma questão de investigar a quê cada uma dessas práticas culturais responde, a quais pressões internas e externas do campo artístico, e como essas respostas rendem. Cabe ainda refletir quanto há, em Mário, uma crítica à centralidade do Rio de Janeiro na Belle Époque como uma espécie de “meridiano de Greenwich” do agora nacional. No artigo já citado, o autor de Macunaíma escreve que uma das conquistas do modernismo foi a “descentralização intelectual”, contribuindo para que a literatura alcançasse “estabilização normal no país”. E continua: “O movimento modernista, pondo em relevo e sistematizando uma ‘cultura nacional’, exigiu da Inteligência estar ao pardo que se passava nas numerosas Cataguazes” (Andrade, 2002, p. 272), numa referência ao grupo da revista Verde.
Vamos ao terceiro ponto. Embora toque na questão teórica na introdução, ao longo do livro Cardoso não define o que entende como “moderno”, termo que pode recuar até a querela dos Antigos e dos Modernos no século XVII, polêmica possibilitada por um processo que podemos chamar de modernização (estabelecimento de um capitalismo editorial). No Brasil, podemos dizer que há ciclos de modernização, no sentido de atualização das práticas sociais de acordo com a atualidade europeia e, depois, americana, isto é, com o “moderno”: após 1808; a partir de 1821, com a liberdade de imprensa; e assim por diante. Esses processos de modernização sempre foram contraditórios, baseados na manutenção ou no reforço da escravidão, na disputa entre oligarquias regionais, no fortalecimento da exploração da mão de obra assalariada.[8] A pergunta que fica é: qual é a contradição específica do modernismo carioca? Se o modernismo paulista teve uma relação com a oligarquia paulista – por meio do capitalismo editorial modernizante simbolizado pela família Mesquita e pelo mecenato –, quais são as relações entre o modernismo carioca (enquanto momento artístico, não movimento organizado), o grupo de artistas profissionais carioca, que estabelece uma autonomia relativa proporcionada pelo capitalismo editorial da capital da República e que se organiza em torno dos valores da art nouveau e da “civilidade” carioca, e as pressões exteriores ao campo artístico? De que maneira esse cosmopolitismo, em oposição ao nacionalismo paulista, responde a certa necessidade de ignorar, ali no centro de poder, o que havia de permanência de formas antigas de exploração em todo o país, enquanto se olhava para o que havia de moderno, de iluminado e de atual na capital? De que modo o gosto pela velocidade, pelas luzes e pelo prazer seria uma continuidade da “miragem compensadora” de que falava Candido (2023) ao tratar da opulência do parnasianismo?
Se o livro de Cardoso não pretende responder a essas perguntas, certamente acrescenta novas questões e nuances relevantes que podem e devem ser exploradas por pesquisadores. Apesar das imprecisões mencionadas e do que me pareceu uma insistência “em torno de primazias e de correntes hegemônicas”, Modernidade em preto e branco é uma contribuição importante para tentar complexificar a recepção contemporânea dos chamados modernismos e para reaproximar campos de estudo que ficaram por tempos afastados, como as artes gráficas e a literatura.
* Lucas Bandeira é editor da Revista Z Cultural e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.
Referências
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ARANTES, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. São Paulo: [s.n], 2021.
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Notas
[1] São inúmeras as histórias da literatura que se baseiam na premissa de que a literatura brasileira percorreu um caminho mais ou menos único até chegar à autonomia com o Modernismo de 22, tese que vai de Eduardo Portella (1971, p. 34), em texto 1963, para quem o percurso literário brasileiro se dividiria entre o longo início, a formação em curso e a plena autonomia, ao Antonio Candido de “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, texto de meados dos anos 1950, que levanta a hipótese de que haveria dois momentos decisivos da dialética do localismo e do cosmopolitismo que seria como uma “lei de evolução da nossa vida espiritual”, o Romantismo e o Modernismo (Candido, 2006, p. 117-120). Para um apanhado das revisões do modernismo, ver Velloso, 2010, e Dealtry, Fischer e Leite, 2022.
[2] Hermano Vianna (2002, p. 29) trabalha essa questão, a partir de uma breve e instigante observação de Antonio Candido, em O mistério do samba, livro que completa 28 anos em 2023.
[3] Ver também Castro, 2019.
[4] Menciono um pequeno mas curioso momento dessa relação entre ruptura e continuidade no livro de Luiz Ruffato: em cartas ao grupo da revista Verde, Alcântara Machado insiste em que eles simplifiquem o aspecto gráfico da revista, em que ainda perduram, como o leitor pode ver nas capas reproduzidas no livro, elementos art nouveau (Rafatto, 2022, p. 98-99 e 170-182).
[5] Mário de Andrade (Andrade, 2002, 260, 265-266) fala de uma fase heroica, pré-1922, uma fase destruidora e uma fase construtora, em que entram de maneira mais clara o nacionalismo e, dessa forma, a questão racial.
[6] Em A revista Verde, de Cataguases, por exemplo, Luiz Ruffato (2022, p. 133) levanta a importância de publicações fora do Rio de Janeiro e de São Paulo, antes do surgimento da Revista de Antropofagia, em 1928, para a “divulgação das novas ideias modernistas num momento em que praticamente não havia um canal de expressão adequado nos grandes centros”. O livro de Ruffato também tem o mérito de, por meio de um estudo de caso, mostrar a importância das relações pessoais, tanto quanto dos posicionamentos políticos e estéticas, como determinantes das escolhas de filiação dos escritores mineiros às correntes do modernismo. Além disso, ele dá indícios da penetração do modernismo paulista em outros estados já em meados dos anos 1920.
[7] O próprio Mário de Andrade, em uma de suas autocríticas, afirma que, “socialmente falando, o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo”, já que o “Rio era muito mais internacional”. Em um movimento argumentativo a princípio desconcertante, Mário continua: “É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro de sua malícia vibrátil de cidade internacional, uma espécie de ruralismo” (Andrade, 2002, p. 258-259). O modernismo é paulista, segundo Mário, porque lá havia uma aristocracia rural – oposta à burguesia carioca – que ao mesmo tempo daria condições financeiras e se escandalizaria com o movimento. No “Rio malicioso, uma exposição como a de Anita Malfatti podia dar reações publicitárias, mas ninguém se deixaria levar” (Andrade, 2002, p. 259).
“Vários meses se passaram desde o momento em que comecei essa narrativa, em novembro. Levei bastante tempo para conseguir escrever porque não era nada fácil lançar luz sobre fatos esquecidos, talvez fosse mais simples inventar.” (Ernaux, Annie, 2021)
Todas as profissões têm cacoetes. Os jornalistas, como eu, têm a obsessão de achar um lead e um título nos textos que leem. Acho que hoje, mesmo que cada dia mais longe das matérias jornalísticas e mais próxima dos literários, ainda procuro um lead e um título para o que leio. Uma busca sem pretensão de encontrar um sentido absoluto para o texto, que me serve apenas como método para facilitar minha orientação nas obras da literatura contemporânea. É apenas uma estratégia para percorrer narrativas que abdicam do que o filósofo Jacques Rancière chama de racionalidade ficcional, dada pelo encadeamento de causas e efeitos que organizam um arranjo de eventos estruturante de uma certa realidade, e, que testado pela inversão das expectativas geradas por ele, produz as peripécias vividas pelas personagens (Rancière, 2010). Uma literatura marcada pela diluição da importância dessas peripécias em favor de escritas não lineares, híbridas, compostas por vários gêneros que transformam o romance em uma obra comprometida não apenas com a narração de uma história, mas também com um exercício autobiográfico do autor, que pretende unir arte e vida em sua escrita e dar a sua voz um caráter coletivo e crítico, abordando questões políticas e teóricas caras ao contemporâneo. Uma literatura que não se preocupa em traçar caminhos para o leitor e que se dedica a fazer seu próprio percurso na narrativa, como é o caso do romance Pagu no metrô, da escritora Adriana Armony, em busca de sua biografada, a escritora Patrícia Galvão, a Pagu.
Antes de deixar Rouen, vou visitar a célebre catedral, pintada por Monet entre 1892 e 1894. Por um longo período e várias estações do ano, o pintor traduziu em pontos de luz a mesma igreja, de vários ângulos, a cada vez diferente segundo o clima, a hora, e as sombras dos dias. Gostaria de pintar Pagu assim, não apenas com minhas palavras de escritora, mas também com as histórias, as decepções e esperanças que a atravessam, como leitora (Armony, 2022, p. 106).
Esse trecho do romance é a chave que proponho para a leitura de Pagu no metrô, o meu lead. Assim como o pintor Claude Monet, que instalou seu ateliê em frente à Catedral de Rouen, para observá-la em todas as suas possibilidades, Adriana mudou-se para Paris, onde morou no ano de 2019, em busca de dados sobre a permanência de Pagu na cidade nos anos de 1934 e 1935. Mas, ao contrário de Monet, que se postou diante da matéria da catedral, ela sabe que seu objeto não passa de um espectro em constante movimento, provocado pelas leituras e releituras de sua personagem ao longo de quase um século que as separa. A pesquisadora que precede a autora parece estar convencida de que a experiência em Paris de Pagu está perdida (“É então que me dou conta de que tenho pouquíssimos indícios do que se passou com Pagu em Paris em 1935” [Idem, p. 65]), e que a única tarefa possível à biógrafa é buscar os rastros da passagem da brasileira pela cidade, dispersos em arquivos franceses. Ela fará a biografia de sua personagem dessa letra morta, guardada nos arquivos e observada com a mesma paciência de Monet diante da Catedral de Rouen, que ela sabe não ser totalmente confiável (“Uma distração do funcionário, um carimbo equivocado, e as peças não se encaixam, e todo um castelo pode ruir” [Idem, p. 106]). Dar vida a Pagu como sua leitora, explorando todas as possibilidades de sua biografada sem a certeza dos biógrafos, exige que ela trabalhe a personagem por meio da ficcionalização do real, assim como as impressões de Monet produziram 30 telas diferentes de uma única catedral. O que ela entrega ao leitor é ficção composta pelos restos do real, que colhe em sua permanência em Paris. Real vivido em dois tempos, o dela e o de Pagu.
Restos que se interligam a histórias da própria autora e de suas conhecidas ou amigas e de mulheres que se relacionaram com a biografada na vida real ou na ficção produzida por ela. Mulheres que compõem uma única sujeita. Valho-me aqui da dubiedade desse neologismo sujeita, que, se por um lado dá a elas a condição de sujeito negada pelo patriarcado, por outro nos lembra a desqualificação imposta àquelas chamadas de sujeitas, sujeitinhas. As mulheres que não se assujeitam não são perdoadas. (“(Será que um dia conseguiremos superar a dicotomia santa-puta?)” [Ibidem, p. 79].) Pois é essa sujeita renegada pelo patriarcado – não importando se santa ou puta -, resultado da fusão de várias vozes femininas convocadas por Adriana para o romance, que constitui o corpo de mulher materializado no texto. Vozes, incluindo a da biógrafa, que gravitam em torno de Pagu. Vozes que reverberam na escrita e no corpo da autora, assim como na escrita e no corpo de Pagu. (“Posso imaginar como Patrícia se sentiu. Como muitas mulheres, também perdi um bebê. E tive outros, como Patrícia teria depois o seu. Rudá, seu menininho de cabelos dourados, com seu pijaminha, o polegar deformando a boca e a outra mão atrapalhada nos cabelos. Aquele que ela queria esmagar no seu seio, aquele que não devia conhecer aquela ternura criminosa. Eu me reconheço na Pagu de 14” [Ibidem, p. 11]) Uma sujeita que indica quando autora e personagem, ou, no caso estudado aqui, biógrafa e biografada, formam o mesmo corpo de mulher.
Na plataforma do metrô République, duas mulheres se encaram. Uma tem mais de 100 anos, a outra praticamente a metade disso. A centenária tem também 52, e ao mesmo tempo 24. A pesquisadora tem também 24 anos, caminha para os 52 e em um piscar de olhos ultrapassará os 100 (Ibidem, p. 126).
Um corpo coletivo, múltiplo, constituído em uma colagem que une fragmentos da vida de mais de 20 mulheres reais ou fictícias trazidas para o romance. Fragmentos que não são um sintoma da impossibilidade da linguagem, mas, sim, da impossibilidade de se recompor uma vida em uma narrativa teleológica. Assim, eles servem, como uma estratégia da escrita contemporânea, para compor uma rede de interconexões que problematiza o real, e que, no caso de Pagu no metrô, forma um sentido para a vida narrada, sem qualquer pretensão de reconstruir essa trajetória em seus detalhes. Um sentido dado por um vozerio de mulheres que compõe uma experiência marcada pela repressão, pela violência sexual, pela hipocrisia e pela invisibilidade vividas por Pagu. Adriana tece, assim, uma teia em torno de sua biografada, com o objetivo de dar visibilidade não apenas a mulheres que nunca foram vistas em suas múltiplas possibilidades, mas, sobretudo, à experiência daquelas que fizeram de suas vidas uma história de resistência à ordem de um mundo patriarcal. Mulheres que “produziram importantes rupturas e sucessivos deslocamentos no imaginário social, especialmente no que tange às questões da moral, da sexualidade e dos modelos de feminilidade e corporeidade que lhes deveriam ter servido de referência” (Rago, 2013, p. 35). Essas vozes femininas se agregam ao romance pela técnica da montagem, como uma forma de dublar ou redizer essas experiências, uma estratégia narrativa que Clara Schulmann (2022) vai identificar como comum na literatura contemporânea feminista.
Trata-se de ouvir vozes, isolando-as dos terrenos ou dos contextos em que elas puderam aparecer, para capturá-las de outro modo. O trabalho se parece portanto com uma forma de transcrição, eventualmente de montagem, de assemblage. A escrita faz nascer essa comunidade ao desenhar ligações de parentesco: como se eu tentasse dar existência a uma família improvável, que o tempo, as épocas e as disciplinas não pudessem separar (Schulmann, 2000, p. 14).
Pagu é a principal destas vozes. Musa dos modernistas paulistanos, é vista como uma femme fatale, que com sua beleza e poder de sedução nunca despertaria um sentimento puro (Galvão, 2020, p. 20), ou, ainda, que colocaria homens e famílias em perigo. (“Pagu chegou a ser inocentada numa sentença inusitada em que o juiz federal Bruno Barbosa propunha sua inocência, mas destacava o “poder de atração das mulheres revolucionárias” [Ibidem, p. 100]) Um estereótipo que Pagu não conseguiu se libertar nem mesmo quando saiu da prisão, durante o Estado Novo no Brasil, com 26 anos e apenas 44 quilos, e que acabou por obscurecer não apenas sua militância política e a literatura, mas, sobretudo, seu modo de existência marcado pela condição feminina e sua subjetividade. É a experiência dessa mulher que atrai o interesse da pesquisadora e biógrafa, que parece querer, acima de tudo, enxergar na militância política e na literatura dela a mulher que Pagu foi, como deixa claro ao comentar a participação de uma ala de feministas brasileiras em uma manifestação em Paris.
(Por que me esqueci do horário do cortejo? Me pergunto se não tenho ciúmes das moças que carregam os cartazes com a foto de Pagu, o meu cartaz; que empunham o mito talvez sem conhecer a sua história; sem ver as mil e uma mulheres dentro dela, suas contradições, sua complexa e humana beleza.) (Armony, 2022. p. 89).
Chego aqui com o lead e o título de que precisava para percorrer o texto e os caminhos que Adriana traça no romance, mas isso é apenas o começo. A primeira dificuldade que se apresenta a mim é como classificar a obra. Buscar essa classificação, mesmo sabendo que na literatura contemporânea isso é praticamente impossível, é uma forma de esmiuçar a escrita de Adriana, que, em sua busca pela história de Pagu na Paris dos anos 1930, se multiplica. Ela é ao mesmo tempo pesquisadora, biógrafa e ficcionista de um texto que mistura o relato do esforço da pesquisadora em recuperar os fatos do passado e o desejo da ficcionista em interligar a si própria e a biografada em uma rede de experiências feministas. O que seria então esse texto? Uma biografia? Um relatório de pesquisa? Um diário? Um ensaio? Um romance? É possível dizer, logo de saída, que a biografia que Adriana faz de Pagu não é como a que ela faria se fosse uma jornalista. Não vemos no texto o esforço de recompor a vida da biografada, oferecendo ao leitor o maior número possível de informações verificáveis. Aqui, Adriana é ao mesmo tempo autora e a personagem narradora, responsável por estabelecer interconexões entre os fragmentos que compõem a obra. Uma escrita que se filia, assim, a uma tendência contemporânea de deixar visível no texto um “rastro de pontos de tensão em um espaço/movimento de transformação incessante” (HOISEL. 2019, p. 33). Uma tensão que produz não apenas um efeito estético, formal, mas, sobretudo, um sentido para uma vida que não pode ser recuperada, assim como o crítico Silviano Santiago enxerga nos índices remissivos que criam várias entradas para a mesma biografia.
Amplia-se o relato propriamente biográfico de Vargas pelo recurso dos editores a remissões. Elas, uma a uma, introduzem cunhas sucessivas no verbete, fragmentando a grafia de vida predeterminada pela obediência à cronologia e pela sucessão linear dos fatos. As várias remissões ampliam o texto obediente à ordem do alfabeto, retrabalhando-o pelo processo de fragmentação e de dispersão da grafia de vida, com o fim de levar o leitor a conhecer a figura em pauta de maneira mais acidentada e incoerente. Ao mesmo tempo, leva-o a situá-la entre seus distantes e universais companheiros de ideias e de atuação no passado, no presente e no futuro (Santiago, 2015, p. 13).
Essas remissões são constantes no texto de Adriana, que recorre ao passado e ao presente, a Pagu, a si própria e a outras mulheres para construir a personagem que biografa, como se confessasse ser impossível constituí-la apenas com as fontes da memória coletiva ou individual. Admitir essa falha é, na prática, pôr em xeque a clássica divisão entre “as duas fontes de grafias de vida – a enciclopédia, de um lado, e a biografia e a ficção, do outro” (Santiago, 2015, p. 13). Em Pagu no metrô, está tudo junto e misturado. Pagu é real e ao mesmo tempo fruto da ficção de Adriana, assim como Violette Nozière, assassina do pai, o é para Pagu no conto “O dinheiro dos mutilados”, assinado por ela com o pseudônimo King Shelter. Nele, aparecem os personagens Violeta Cottot e Paul Crevel, uma fusão dos nomes dos surrealistas Paul Éluard e René Crevel (esse último quem apresentou a Pagu a história da assassina do pai abusador ocorrida um ano antes de sua chegada a Paris), e muitos elementos do crime que assombrou a cidade. As duas se alimentam do real para produzir ficção, mas há entre elas uma diferença de estilo e de época. Pagu, em sua escrita, faz o esforço dos ficcionistas modernos de apagar a persona real do texto, escondê-la “por trás da observação refinada e das frases compostas a duras penas, com vistas a uma ambição superior − a da criação de um ser de papel e em letras, autônomo, futuro e complexo personagem de ficção” (idem, p. 21). Já Adriana, como os contemporâneos, deixa expostos seus procedimentos de escrita para o leitor, ligando sua obra ao real, mesmo que lhe dê tratamento ficcional, como faz com o texto que encerra o romance em que narra o encontro da biografa e da biografada na Estação République, em Paris. A narração é marcada por uma temporalidade e uma espacialidade surreais, que tornam possíveis um encontro entre Pagu e Adriana em tempos e em lugares diferentes. Elas embarcam em Paris, passam por várias fases da vida, e desembarcam na Estação Carioca, no Rio de Janeiro, em 2022.
Os fragmentos que compõem a obra têm ainda uma função ética de buscar uma forma para o texto literário que o transforme em um documento político, sem, no entanto, empobrecê-lo esteticamente. O arquivo, onde textos e documentos de diversas origens e gêneros podem conviver, para, depois, serem amalgamados na obra pela experimentação formal da escrita contemporânea, é uma estratégia de uma literatura interessada em produzir espetáculos do real ou “realidade-ficção”, como definiu Josephina Ludmer (2013), e não mais em apenas criar um efeito de real na narrativa, como era a intenção das obras oitocentistas percebida por Roland Barthes (2012). “A mistura de gêneros ficcionais e documentais, a inclusão de documentos e imagens de arquivo, o jogo permanente com a identidade real do autor, são algumas das estratégias usadas pelos textos para produzir esses efeitos de realidade” (Gutiérrez. 2017, p. 15). É nesse terreno movente, em que se transformou a escrita literária contemporânea, que os textos híbridos se situam “na fronteira entre o ficcional e o documental experimentando permanentemente esses limites” (Idem, p. 14), e deixando à vista do leitor os procedimentos que desestabilizam o estatuto do ficcional, baseado na imaginação comprometida com o princípio da verossimilhança.
Um dos aspectos destacados na análise destas formas híbridas é que se constroem misturando o discurso ficcional (que não teria presunção de verdade, tal como definido por Costa-Lima) com outro tipo de discursos em que existiria essa presunção de verdade (como o ensaio, o discurso da crítica e da história literária e a autobiografia) (Ibidem, p. 49).
Adriana escreve nessa fronteira explorada por múltiplos escritores em textos híbridos, que dão aos autores um novo protagonismo, com as escritas autobiográficas ou de autoficção. Ela é leitora, pesquisadora, admiradora e cúmplice de Pagu, ao mesmo tempo que se propõe a ser sua biógrafa em um romance que narra um biografema da vida da modernista (Barthes, 2005): a experiência de Pagu em Paris nos anos de 1934 e 1935. O hibridismo de seu texto se materializa nas páginas finais do romance. O livro se encerra não com o fim da história, mas com anexos onde está listada “alguma bibliografia” a que autora recorreu na pesquisa; com os agradecimentos a quem participou de seu estágio pós-doutoral iniciado na UFRJ e terminado na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3; e com a reprodução de documentos consultados por ela. Anexos inusuais na literatura, que, no entanto, não surpreendem os leitores dos romances contemporâneos. A pesquisa de Adriana rende frutos que são registrados no romance, com os detalhes da permanência da modernista na cidade, marcada por uma intensa militância comunista que a levou à cadeia e ao risco de extradição. Entre as descobertas que a autora-pesquisadora fez nos arquivos franceses está uma foto inédita, tirada na ocasião da prisão pela própria polícia, e um prontuário de internação de Pagu em um hospital, decorrente de uma metrorragia, que a faz desconfiar ser provocada por um aborto ou de um mioma, mas que, ao fim, descobre ser sequela de um ferimento causado por uma tentativa de suicídio. Os dados, até então desconhecidos, são comemorados pela pesquisadora, mas quem se alimenta deles é a romancista.
Metrorragia (do grego antigo, metra, útero, + -rrahagia, fluxo excessivo): sangramento uterino excessivo fora do período menstrual.
(…)
(Um choque súbito: o nome do sintoma de Pagu contém o radical “metro”. Uma nova camada, inesperada, cobre o título deste livro.) (Armony, 2022, p. 114).
Sexo, útero, gravidez, aborto. Esses são temas que perpassam toda a narrativa do romance. O nome que Pagu usou em Paris parece aos olhos da biógrafa a fusão de muitas dessas situações. Leónie Boucher, ou, em português, Leonina Açougueira. Leonina era a parteira que recebeu todos os brinquedos que comprara para a filha que teria com Oswald de Andrade, o marido de sua “ídola Tarsila do Amaral”. Um feto que morreu depois que a genitora se jogou no Rio Pinheiros, onde “ficou uma hora lutando contra a correnteza” (Idem, p. 10). Açougueira, por sua vez, é uma alusão à forma como as aborteiras eram conhecidas em Paris. Adriana descobre a ficha de uma mulher chamada Léonie Boucher, condenada à prisão por um aborto ilegal, em suas pesquisas nos arquivos das prisões, outros dados, no entanto, mostram que essa Léonie não era Pagu. Mas a violência a que as mulheres que fazem um aborto estão expostas e a interdição ao prazer do sexo perpassam a narrativa. O sexo quase nunca aparece como um encontro de corpos movidos apenas pelo desejo. Ele cede lugar à luxúria do homem, exercida como um instrumento violento ou não de dominação das mulheres, e, nem mesmo a musa das vanguardas brasileiras conseguiu fugir a essa regra. Adriana reproduz no romance um trecho da carta que Pagu escreveu na prisão para Geraldo Ferraz, que viria a ser seu marido, falando do amadurecimento sexual como sendo uma das “páginas mais doídas” do relato da vida de sua biografada. (“Foi quando começou a compreender que o ato sexual poderia ser mais do que “uma carinhosa dádiva do meu corpo ausente” [Idem, p. 27]). Mas não é apenas Pagu que sofre na mão de homens narcisistas que não enxergam as mulheres com quem se relacionam. Quase todas as mulheres que Adriana reúne, inclusive ela, são ou já foram vítimas desses homens, inclusive a adolescente protagonista de Zazie no metrô, de Raymond Queneau, de onde vem a inspiração para o título do romance, que sofre um abuso sexual.
No entanto, o que une todas essas mulheres que gravitam em torno de Pagu no romance não é o sofrimento, mas um modo de vida que não diz respeito aos homens. Uma forma particular de existência, que Adriana está interessada em iluminar ao buscar os detalhes da permanência de Pagu em Paris. A autora mostra-se consciente da disputa política entre homens e mulheres, que está em torno do “controle do que significa ser mulher” (Rago, 2001, p. 59). (“Quando eu tinha 14 anos, a palavra feminismo evocava mulheres brutas queimando sutiãs, como bruxas. Algumas usavam botas pesadas e eram chamadas de sapatão. Mas havia as moças que tinham aproveitado para libertar os seios sob vestidos esvoaçantes.” [Armony, 2022, p. 84]) Recusar esse estereótipo e outros, como o da femme fatale, é afirmar o modo de existência das mulheres, o que, segundo Rago, é uma das questões centrais dos feminismos que têm se preocupado em “propor a construção de identidades femininas sob outras bases e parâmetros conceituais” (2001, p. 59). A literatura contemporânea, ao colar-se à vida e à experiência das mulheres, tem sido uma grande aliada do feminismo na recusa às formas de sujeição impostas a elas pelo patriarcado. Mais ainda em romper com o silêncio que lhes foi imposto pelo determinado patriarcado. As mulheres, enfim, à custa de muita luta travada ao longo do século XX conquistaram o status de testemunhas da história, papel que lhes era negado pelas sociedades tradicionais, que tinham o testemunho como “um dispositivo de controle dos corpos e da mente” (Seligmann-Silva in Rago, 2013, p. 19). Adriana, com sua Pagu no metrô, com certeza dá sua contribuição a essa luta. Como ela mesma diz, no fim do romance, “estamos vivos” (Armony, 2022, p. 130). Ouso apenas corrigir o gênero do sujeito do enunciado e falar com a voz aguda das mulheres: “Apesar de tudo, estamos vivas.”
* Luciana Conti é jornalista e doutoranda no Programa de Ciência da Literatura/ Letras/ UFRJ, com bolsa da Capes.
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Só escrevendo
Aguento
Esse dia a dia
Sem vento
Mas gosto do calor
Sol entrando pela casa
Céu azul
Infinito a ver
II
Céu de anil
Amanhece
Mas não adormeço
O azul vem
Substituindo a escuridão
Primeiro azul escuro
Azul profundo
Até vir o sol
E clarear o mundo
III
Escrever
Aliviar
Mexer nos abismos
Escavar
E pra fora
Jogar
Toda a inquietação
Em palavras
Transformar
* Vera Lins é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e autora de Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador (Tempo Brasileiro, 1991), Novos pierrôs, velhos saltimbancos (EdUerj, 2009), Ingeborg Bachmann (coleção Ciranda da Poesia, EdUerj, 2013) e Desejo de escrita (7Letras, 2013), entre outros livros.
Annie Ernaux abre a introdução de Écrire la vie, edição em um volume do conjunto de sua obra publicada até 2011, com a frase: “Escrever é um presente e um futuro, não um passado.” O futuro estava próximo, o prêmio Nobel, recebido em dezembro de 2022. O passado se torna presente pela escrita que olha para o futuro. Annie Ernaux olha para frente, não para trás.
O passado, nas narrativas que se ocupam fundamentalmente da própria vida, não são memórias, nem autobiografia. A razão fundamental para serem narrativas originais em seu formato está em se constituírem no que a própria autora chama de “biografia impessoal”. Os melhores recursos do ficcional podem estar presentes, assim como as observações sociológicas, a avaliação política do contexto em que os fatos da vida acontecem. Quando narra sua vida pessoal, as relações familiares, quando fala da mãe trabalhadora ou do pai que falava patois mortos, é a memória social da filha do povo que aparece. As obras que tratam de seu percurso intelectual traçam a trajetória da jovem do interior da França que precisa ir para Paris, para os grandes centros para se transformar na escritora que é.
Annie Ernaux prova que o pessoal, na vida de uma mulher, é político. A narrativa da violência do aborto clandestino a que se submete, memória mais do que pessoal, torna-se leitura tão importante quanto o discurso que Simone Weil faz em 1974, diante de um parlamento composto de apenas 2% de mulheres eleitas, em defesa da legalização do procedimento. O acontecimento, no entanto, tornou-se leitura ainda mais importante num Brasil que continua condenando o aborto.
Partilhamos das leituras combativas, dos relatos da filha de operários, dos testemunhos das desigualdades da ordem social, e tudo nos parecia coerente, quando nos chega a tradução de Passion simple (Paixão simples, trad. Marília Garcia, São Paulo: Fósforo, 2023).
O título é o primeiro desafio que se impõe à competente tradutora, a poeta Marília Garcia. Trata-se de uma simples paixão, que poderia se diferenciar de outras, mais complicadas? É apenas paixão, sentimento que exclui outros, como o amor? Melhor mesmo foi ter ficado com a complexa simplicidade: Paixão simples.
Atribuir a uma mulher, ou a qualquer pessoa, uma identidade fixa é sempre um erro. Os estudos biográficos frequentemente cometem tal equívoco, sobretudo quando os autores são incluídos nos grandes cânones, nacionais ou internacionais.
No pequeno romance, especialmente contundente por sua concisão, a mulher é outra. Nada do passado importa, as questões políticas desaparecem, nem família nem trabalho vêm ao caso. Só o que importa é a experiência de uma paixão arrebatadora. “Sentia que estava no direito de me opor a tudo o que atrapalhasse uma entrega sem limites às sensações e narrativas imaginárias da minha paixão.”
Um diplomata estrangeiro, casado e que a seu país deverá voltar, captura o corpo e o cérebro da mulher de meia idade, e a partir daí não existe espaço para nada mais em sua vida senão o estar com ele.
Andar pela cidade, fazer compras, escolher um vestido, assistir a um filme, tudo só tem sentido ao se relacionar com a paixão vivida. Desejá-lo é esperar pelo telefonema, pelo barulho do carro que chega, pelo sinal à porta. Não importa quanto tempo espere, desde que o homem chegue. E os corpos se encontrem, o gozo se repita. “Gastávamos um capital de desejo.”
Roupas e copos se espalham pelo chão como em músicas românticas, cenas de filmes de sessão da tarde, talvez com trilha sonora de Roberto Carlos. O intrigante para o voyeur que atravessa as páginas do romance é que nada soe brega, vulgar. Ao contrário, quem lê se reconhece timidamente em alguma lembrança.
Nada se oculta no relato da paixão: na presença, o sexo, na ausência, a masturbação.
A cada êxtase de preenchimento se sucede a dor da falta que a ausência deixa. Porque é paixão será efêmera e o amante se vai. Fica a escrita, e é aí que Annie Ernaux mostra sua genialidade, a escritora raríssima, só ombreada mesmo por outra francesa, Marguerite Duras.
Os franceses se gabam do número de prêmios Nobel de literatura recebidos: 16. A única mulher premiada foi Ernaux, em 2022. Duras só recebeu o Gouncourt, o maior prêmio francês, no final da vida, em 1984. Talvez porque a imagem que criam de seus homens não deixem os vaidosos críticos satisfeitos.
Para a narradora de Paixão simples, é muito pequeno o limite entre reconstituição e alucinação, entre memória e loucura. O texto escrito é, para ela, vestígio daquele outro texto, vivido. Diante dos julgamentos que virão, a mulher que se revelou da forma mais nua durante a paixão acredita que, sob a forma de romance, “as aparências estão a salvo”.
Complicado, isso de paixão.
* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e editora da Revista Z Cultural.
Guimarães Rosa é conhecido por não dar entrevistas. Durante sua vida, mostrou-se exímio fugitivo de qualquer jornalista ou pesquisador. Essa entrevista, que encontrei numa visita à Graça Coutinho no Vale das Videiras, tornou-se, então, uma joia de acervo. Não que Graça Coutinho tenha tido alguma estratégia especial para fazer Guimarães ceder a uma entrevista. Foi simples. Graça era filha de Afrânio Coutinho, um intelectual de ponta que introduziu o New Criticism no Brasil e grande amigo do escritor, que sempre a levava ao Itamaraty em suas visitas a Guimarães. Aos 15 anos, Graça teve que fazer um trabalho de colégio com um autor brasileiro, e lembrou de procurar Guimarães, porque lhe parecia mais fácil. Essa é a origem desta raríssima entrevista com o gigante Guimarães Rosa feita por uma adolescente de 15 anos. Senti, na hora, que tinha de compartilhar isso com os leitores da Revista Z. Está aí. Se as perguntas são amadoras, as respostas traduzem em vários pontos a grandeza de nosso escritor maior. Heloisa Teixeira curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo
Mobilizada pelos 80 anos de Guimarães Rosa, lembrei-me de uma entrevista que havia feito com o grande escritor brasileiro nos tempos de colégio. Eu tinha então 15 anos e o privilégio de conhecê-lo e de privar de seu convívio nas visitas que fazia a meu pai.
Tendo que entrevistar o escritor brasileiro para um trabalho de estágio de português, escolhi imediatamente a grande figura de Guimarães Rosa, que muito admiro e a quem me ligam laços afetivos muito fortes, pois ele me honra com sua amizade.
Fui encontrar o grande escritor, que consentiu em conceder-me a entrevista no seu gabinete do Palácio do Itamarati ou Ministério das Relações Exteriores, pois, como embaixador brasileiro, ocupa o posto de escritor de departamento de fronteiras.
O seu gabinete de trabalho tem as paredes todas recobertas de mapas de nossas fronteiras. Recebeu-me, como sempre, com a maior simpatia, pondo-me logo à vontade. Não posso esconder que estava muito encabulada, pois aquela seria a minha primeira experiência nesse tipo de trabalho, sem falar em que estava diante de um dos maiores escritores brasileiros de nosso tempo e de todos os tempos, criador de um universo de ficção autenticamente brasileiro.
Mas consegui vencer a minha inibição e passei a formular ao escritor as minhas perguntas, a que ia respondendo de mistura com palavras amáveis e relatos de episódios de sua vida de diplomata e escritor.
Graça Coutinho: Diplomata e escritor ao mesmo tempo, como prefere o senhor viver, como escritor ou como diplomata?
Guimarães Rosa: Como escritor (mas escritor retraído).
GC: Onde prefere viver, no estrangeiro ou no Brasil?
GR: No Brasil sempre! Só no Brasil me sinto em perfeito equilíbrio psicológico.
GC: Na sua vida de diplomata, que países conheceu? E quais os de que mais gostou?
GR: Morei quatro anos e meio na Alemanha, dos quais três durante a guerra; dois anos na Colômbia (Bogotá) e três anos em Paris. Tive posto diplomático nestes lugares. Visitei também muitos países da Europa. Gosto da Alemanha, da França, mas meu carinho especial é com Portugal, que é o encanto, e com a Itália, que é deslumbrante.
GC: Que cidade mais o encantou no mundo?
GR: No Brasil é Salvador e o Rio de Janeiro, e no mundo é Florença, Roma e Veneza.
GC: Descobri há pouco tempo que o senhor é médico. Por que deixou a carreira?
GR: Ora, porque eu queria ir a fora e conhecer o mundo. Deixei a medicina para fazer o concurso para o Itamarati e talvez, inconscientemente, para me dedicar à literatura.
GC: Chegou a clinicar?
GR: Cheguei. Formei-me em fins de 1930 e fui para a cidadezinha no interior de Minas chamada Itaguara, onde cliniquei durante dois anos. Era médico da roça. Ganhava para ir às fazendas. Em 1932, houve a revolução e fui chamado para prestar serviços médicos. Fiz concurso para capitão médico. Em começo de 33, fui mandado para o 9º Batalhão de Infantaria, como capitão médico em Barbacena. Em 34, fiz concurso para o Itamarati, tendo sido nomeado em julho desse ano. Fui nomeado cônsul de terceira classe e fiquei três anos e meio no Brasil; depois, fui nomeado cônsul de segunda classe e fui para Hamburgo, onde permaneci até 1942, quando o Brasil rompeu relações com a Alemanha.
Mais tarde fui para Bogotá, como segundo secretário da embaixada. Em 44, retornei ao Brasil, onde fiquei como chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura.
Em 46, fui a Paris fazendo parte da delegação do Brasil à Conferência da Paz. Em 48 fui como primeiro secretário da Embaixada do Brasil para Paris. Lá fui promovido a conselheiro da Embaixada. Em 51, voltei para o Rio, a fim de chefiar novamente o gabinete do ministro.
Daí por diante, permaneci no Brasil, como ministro de segunda e agora de primeira classe (embaixador). Desde 1956 chefio o serviço de marcação de fronteiras.
GC: Recolheu da vida de médico alguma experiência para o escritor?
GR: Tudo o que nós vivemos serve de experiência. As lembranças misturam-se em nosso subconsciente e afloram mais tarde na obra.
GC: Quando começou a fazer literatura? Que o influenciou neste sentido?
GR: Comecei quando vim para o Rio, em 34. Em 35, escrevi um livro de poemas Magma, que obteve o prêmio da Academia em 36 e ficou inédito até hoje. Em 37, escrevi Sagarana, publicado somente em 46. Comecei a escrever movido pela saudade do interior de Minas.
GC: Quanto tempo levou escrevendo Sagarana?
GR: Escrevi em sete meses e retoquei-o em quatro. Da mesma forma Grande Sertão, apesar de muito maior.
GC: Sei que a publicação deste livro despertou um grande sucesso. Como o recebeu? E como se sentiu diante do êxito extraordinário de seu livro?
GR: Fiquei muito entusiasmado. Quem nunca comeu melado quando come se lambuza. Depois me fui acostumando.
GC: Como costuma trabalhar, e a que horas?
GR: Trabalho sem parar. Quando já tenho as ideias prontas. Prefiro, no entanto, trabalhar à noite.
GC: Gosta da vida social?
GR: Detesto. Gosto muito das pessoas, mas tenho horror à vida social. Não tenho paciência para aturá-la. Não gosto de frequentar a vida social, tenho logo vontade de escrever. Quando ando de ônibus estou sempre planejando algum trabalho. Concatenando ideias. Prefiro muito as montanhas ao mar. O campo agrada-me imensamente.
GC: Como ficcionista, qual a sua obra de que mais gosta?
GR: Eu gosto mais da história “Campo geral”, a primeira novela do livro Corpo de baile. Toda vez que releio esta história, enchem-me os olhos de lágrimas. Ela é assim mais forte do que eu, pois comove-me.
GC: O senhor trabalha lentamente as suas obras?
GR: Trabalho, porque eu retoco muito. Trabalho com “vagareza rapidez”, ou “rápida lentidão”.
GC: Quais os seus planos para o futuro? Tem algum livro em preparo?
GR: Eu não faço nunca planos. Mas, no momento, tenho um livro de novelas em preparo. Estou agora colaborando no jornal médico Pulso, que circula entre os médicos do Brasil inteiro.
Escrevo neste jornal contos de página e meia. Numa semana sai um artigo meu, na outra, um do Carlos Drummond de Andrade.
Acho o conto um excelente exercício de despojamento. Cada palavra tem de ser justa como um bordado delicado.
GC: Como vê o êxito de suas obras no estrangeiro, em traduções?
GR – Inesperado, uma surpresa que muito me comove, mas tive a sorte de ter excelentes tradutores. Vai sair este ano Sagarana em inglês, nos Estados Unidos, e a tradutora consultou-me muito.
GC: Como concilia o seu trabalho de diplomata e de escritor?
GR: Tirando muito o meu tempo de divertimento. Sacrifico os fins de semana, feriados e fico até tarde à noite.
GC: Quais os escritores brasileiros do passado e do presente que mais admira?
GR: Acho muito difícil responder assim, pois não tenho fanatismo por nenhum escritor do passado. Todos ensinam muita coisa. Machado de Assis, por exemplo, José de Alencar, Pompeia, Aluísio Azevedo. Ainda Bernardo Guimarães, o presente, faria uma longa lista. Entre muitos, poderia mencionar Monteiro Lobato, José Lins do Rego, não tenho preferência marcada. Na poesia, poderia citar Gonçalves Dias, Castro Alves, Alphonsus de Guimaraens e Bilac.
GC: Acha que a literatura brasileira já pode ser encarada como original e autônoma?
GR: Quase. Está fazendo força para isso.
GC: Qual o romance que mais admira na literatura brasileira?
GR: O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e D. Casmurro, de Machado.
GC: Quais os livros da literatura universal que mais admira?
GR: A Divina Comédia (Dante), Os Irmãos Karamazov (Dostoiévski), A Ilha do Tesouro (Stevenson), Macbeth (Shakespeare), D. Quixote (Cervantes), Os Miseráveis (Victor Hugo), Dr. Fausto (Thomas Mann), A Relíquia (Eça de Queirós), Contos (Andersen).
Citei 9, pois é meu número de sorte. Ou então 7. Sou religioso e supersticioso.
GC: Qual a obra de arte universal que mais o impressionou?
GR: O que muito me impressionou foram: os quadros de Tintoretto, em Veneza, todos os de Velázquez e os quadros de Tiepolo.
GC: Que brasileiro mais o impressionou no passado como figura humana?
GR: Borba Gato – bandeirante paulista, genro de Fernão Dias Paes.
GC: Dos personagens da sua obra, qual o de que mais gosta?
GR: Maria da Glória (Corpo de baile), Miguilim (Corpo de baile), Manuelzão (Corpo de baile), Zé Bebelo (Grande Sertão), Manuel Fulô (Sagarana).
GC: Como se sentiu com a eleição para a Academia Brasileira de Letras?
GR: Honrado e feliz, como todo escritor teria que sentir.
Antes de me despedir, Guimarães Rosa me mostrou as diversas edições de suas obras em alemão, italiano, inglês e francês.
Estava terminada a entrevista, e eu me retirei encantada com o nobre ambiente daquele palácio e com a nobreza daquele grande espírito.
* Graça Coutinho é artista plástica.
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